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Delito de Opinião

Juror #2

Luís Menezes Leitão, 21.12.24

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Há uns anos escrevi aqui que "Clint Eastwood é o último dos realizadores clássicos americanos, herdeiro de um tempo em que no cinema se contava uma história simples e cativante, com heróis que ficavam para sempre na nossa memória. Hoje o mainstream do cinema americano são os blockbusters, que entretêm, mas se esquecem ao fim de um minuto depois de sair da sala". Volta a demonstrá-lo aos 94 anos com outra obra-prima, este Juror #2 que infelizmente as inenarráveis opções dos distribuidores impediram que passasse nas salas em Portugal, atirando-o para o streaming. Felizmente que na Max ainda é possível assistir a este filme, embora naturalmente tivesse preferido vê-lo numa sala escura de um qualquer cinema de Lisboa.

Trata-se de um filme de tribunal, sobre as deliberações de um júri, a fazer lembrar o Doze Homens em Fúria de Sydney Lumet. É, no entanto, muito mais complexo do que este, levando a que Clint Eastwood ganhe em toda a linha o duelo que quis travar com Lumet. Quando alguns realizadores pretendiam imitar Hitchcock, dizia-se que não era impunemente que se desafiava um mestre, mas Clint Eastwood como realizador é um grande mestre e não receia medir-se com ninguém. E o filme é perfeito, quer no argumento, quer na direcção de actores, quer na realização. Espero que não seja o último filme de Eastwood, uma vez que ele já declarou querer imitar Manoel de Oliveira e continuar a filmar até aos cem anos. Mas, se o for, encerrou a sua carreira com chave de ouro.

Outro grande filme de Nanni Moretti

Pedro Correia, 26.12.23

Excelente filme: O Sol do Futuro, de Nanni Moretti.

Misto de comédia, musical e sátira política. Emociona, faz sorrir e faz pensar.

Filme sobre os bastidores do cinema, sobre o sortilégio das palavras, sobre as ideologias que iludem os incautos.

Sobre a vida, afinal.

Cheio de momentos inesquecíveis, como estes que aqui trago. Já nostálgico, apesar de ter visto há escassas semanas esta obra-prima que me fez sair da sala de projecção a cantar em italiano - idioma que adoro.

Sentindo-me personagem de Moretti também.

A Lisboa que muda na Lisboa que fica

Pedro Correia, 29.11.23

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Isabel Ruth e Rui Gomes no filme Os Verdes Anos, de Paulo Rocha (1963)

 

Não houve um filme como este, não haverá um filme como este. Admirável enlace entre imagem e som, com os acordes sofridos de Carlos Paredes a sublinhar este drama de gente desenraizada nos dédalos de uma cidade que se reinventava naqueles dias de ilusória quietação pressagiando tempos de turbulência.

É um filme que bebe inspiração sobretudo no cinema italiano que lhe era contemporâneo. Há aqui muito Antonioni, há aqui muito do inesquecível início da Dolce Vita, com uma imagem de Cristo a sobrevoar de helicóptero os novos subúrbios de Roma, espécie de sorridente alegoria ao milagre económico italiano.

Era um cinema de intervenção, certamente. Mas muito mais no plano estético do que no plano político. Era um cinema que olhava com veneração para a arquitectura e acreditava com sinceridade que os arquitectos eram os novos profetas da modernidade, capazes de - com as suas linhas ousadas e arrojadas - abraçar o futuro e edificar os alicerces de uma sociedade diferente, habitada pelo homem novo.
Utopias urbanísticas tornadas pouco antes realidade, como sucedeu com a Brasília de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, conduziam a isso. Daí a veneração quase infantil que Paulo Rocha demonstra pela arquitectura, pondo as suas personagens a deambular constantemente pelos espaços mais modernos da Lisboa daquele início da década de 60 - Avenida dos EUA, Avenida de Roma, Cidade Universitária...

 

Como se viu depois, a arquitectura serve para muito mas não para moldar o homem novo, que aliás permanecerá eternamente por criar. E a vanguarda de anteontem torna-se rapidamente uma obsoleta mercadoria académica aos olhos dos que nascem depois de amanhã.
O Cinema Novo tornou-se rapidamente prisioneiro das suas contradições, abraçando um neo-realismo tardio (em obras como Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes, e A Promessa, de António de Macedo), quase sempre a preto e branco, como metáfora permanente de um regime que parecia imutável mas que se tornou também espelho de fronteiras artísticas demasiado estreitas.

Derrubado o regime, também de algum modo os seus opositores no campo artístico se tornaram anacrónicos. O fabuloso Berlamino (1964) escapa a esta sina porque recusou logo à partida encerrar-se naquela tendência de contrapor ao miserabilismo da ditadura uma linguagem artística também tocada pelo miserabilismo de circunstância.

 

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Cena do filme rodada na Avenida de Roma, em Lisboa, junto à pastelaria Suprema


Os Verdes Anos, com as suas evidentes fragilidades, interessa-me hoje sobretudo pela sua vertente documental. Era um cinema feito na rua, que recusava o estúdio, também por inspiração italiana - e este filme, que constitui uma declaração de amor a Lisboa, acaba por ter portanto as rugas que a própria cidade ostenta. Neste aspecto, como noutros, diremos que a arte imita a vida...
Ainda há dias passei pela oficina de sapateiro do Raul/Rui Furtado, naquela cave situada mesmo ao lado da Suprema: tudo tal e qual como vem no filme. Excepto que a fresta, hoje gradeada, já não está aberta à rua. Ou o Vá Vá, onde decorre a cena final: está praticamente na mesma. Inversamente, a Floresta do Ginjal, que bem conheci na outra banda e era local de romaria gastronómica ao fim de semana, está há muito encerrada - sintoma de incompreensível decadência numa localização privilegiada, onde se obtêm as melhores vistas sobre a capital.
O filme confirma que, por detrás de uma Lisboa que muda, há uma Lisboa que permanece. Outros, antes dele, fizeram o mesmo - mas talvez nenhum com a transparência e a admirável sinceridade deste. Ao som hipnótico da guitarra de Paredes e revendo para sempre o belo rosto de Ilda/Isabel Ruth, em eterno desafio às inclemências do tempo com um fulgor que só a magia do cinema dá.

 

Texto reeditado, no dia do 60.º aniversário da estreia d' Os Verdes Anos

Filmes - «Drive my car»

beatriz j a, 13.04.22

Adaptado de um conto de Haruki Murakami é um filme sobre ser-se humano, sobre as relações entre as pessoas, sobre as cicatrizes que nos marcam, os fantasmas dos mortos que carregamos, os estilhaços do passado que nos ferem, as traições que fazemos, não só a outros mas a nós próprios para alimentar as mentiras que dizemos a nós mesmos para aguentar "a inevitável angústia de viver uma vida breve num mundo absurdo". Sobre a redenção que vem de não mentirmos a nós mesmos e vivermos uma vida genuína, e das relações genuínas que estabelecemos -se temos coragem- com outros também capazes de não mentir a si próprios. Sobre sermos como Karataev, a personagem do «Guerra e Paz» de Tolstói.

São três horas de filme. Ao fim de mais de meia-hora aparecem os créditos iniciais do filme e percebemos que estávamos a ver apenas o prólogo. O prólogo acaba com a morte da mulher do actor e encenador de meia-idade à volta do qual o filme se passa. O filme [re]começa passados dois anos desse acontecimento trágico que encerrou uma situação difícil de um casamento de vinte anos, de uma relação genuína que descarrilou depois da morte da filha pequena, da traição da mulher com outros homens (por razões que no filme se percebem), e da traição dele a si mesmo quando finge não saber e não se importar com a traição da mulher para evitar o aprofundamento da dor.

A maior parte do filme passa-se dentro de um carro vermelho vivo que ele estima muito e conduz, às vezes com acidentes (simboliza a própria vida em marcha) e que passa a ser conduzido por uma rapariga motorista que lhe atribuem quando vai a Hiroshima encenar a peça de Tchekhov, «O Meu Tio Vânia», uma peça difícil de representar sem que se olhe para dentro de si, como ele mesmo diz. A relação do actor-encenador com os outros actores, com o texto da peça e, sobretudo, com a motorista que lhe guia o carro durante esse tempo e com quem estabelece uma relação genuína -dois seres humanos que se reconhecem e mostram como são-, transformam-no. A ela também.

É um filme para se ver com atenção e vagar, para não perder os pormenores simbólicos, a cinematografia, o trabalho dos actores, os diálogos e os monólogos, excelentes a mostrar o humano em nós. 

(publicado também no blog azul)

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Morte supera Crime

Maria Dulce Fernandes, 03.04.22

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Nunca fui grande fã de remakes. Há filmes que pela sua excelência ganharam direito a brilhar no panteão das melhores obras de arte da chamada sétima. São clássicos e inimitáveis, por todas as razões cinematográficas de que me consigo lembrar.

Depois, numa tentativa de explorar o filão, presenteiam-nos com sequelas e spin-offs. Aí já não sou nem posso ser inflexível,  porque muitas das ditas  sequelas e spin-offs superaram o filme original sem o descaracterizar, tornando-se por mérito próprio obras-primas.

Nunca fui grande fã de remakes, mas sou fã de Agatha Christie e  creio ter visto tudo, ou quase tudo, o que foi adaptado ao grande e pequeno ecrã e alguma coisa do teatro.

Manifestei o meu desagrado e alguma indignação pela (pen)última incursão nos assassínios da grande escritora quando vi "Um Crime no Expresso do Oriente" de 2017, realizado por Kenneth Branagh com um elenco de luxo. Era pobre, mal contado, histérico e um tanto ou quanto canibalizado se tivermos em conta o livro.

Calhou esta semana ter "agendado" Belfast do mesmo realizador e ter ficado agradavelmente surpreendida pela doçura com que nos foi contada uma história de violência. 

Daí a pegar no novíssimo "Morte no Nilo", foi um estalar de dedos. Parti para a visualização com a firme ideia de que não iria gostar, porque muitas destas produções recentes de remakes são manipuladas para preencher quotas e bajular hashtags. Elenco não tão luxuoso como no primeiro filme, mas que deu conta do recado. A história foi bem contada, as quotas habilmente preenchidas e os twists até funcionaram. A paisagem ajuda bastante. A fotografia é magnífica.

Olha... gostei.

A raça do cão

Maria Dulce Fernandes, 24.03.22

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Não deixei de ser uma pessoa interessada em boa literatura e bons filmes, mas muito se tem passado que obrigou à reestruturação do quotidiano. 

Ainda sou do tempo em que via, apreciava, analisava e discutia todos os filmes candidatos aos Óscares. Depois fui-lhes perdendo o gosto à medida em que as cerimónias se degradavam ao culto do políticamente correcto e do socialmente perfeito.

Ninguém estava ali para ser justo. Apenas vingativo e rancoroso.

Os prémios do ano passado foram uma anedota. Não eram intragáveis, apenas não premiaram a excelência, apenas a raça, a cor e o género.

Este ano calhou ver  "The Power of the Dog".

Excelentes desempenhos. Prodigiosa realização.

Não sei se irei ver a cerimónia e aturar o secante bla bla bla, mas espero que ganhem o Benedict Cumberbatch e a Jane Campion.

Menção honrosa para CODA.

Menção honrosa para Guillermo del Toro, cujo Nightmare Alley está de algum modo nomeado para melhor filme (Don't Look Up também está), mas ele não obteve qualquer nomeação. 

Agora é apostar, porque no nosso íntimo sabemos que quem vai ganhar, nem é quem pode ganhar, muito menos quem deveria mesmo ganhar.

Perde a 7.ª Arte e perdemos todos um pouco também. 

Filmes - Eiffel

beatriz j a, 20.02.22

Este filme, de 2019, decorre durante os dois anos (1887 a 1889) que durou a construção da Torre que leva o seu nome e acompanha as vicissitudes da obra, nomeadamente a oposição de que foi alvo por parte de muitos parisienses. No entanto, o filme passa-se à volta de um acontecimento-hipótese que pretende responder à questão que desde há muito intriga os historiadores: porque é que Eiffel, que se opunha veementemente à construção de uma torre de ferro para a exposição de Paris de 1889 -ele tinha visto planos- de repente, de um dia para o outro e sem explicação aparente, decidiu construí-la e tornar-se o seu maior defensor. O filme adianta uma hipótese baseada na história de vida de Eiffel.

Quando era mais novo, Eiffel tinha sido o engenheiro chefe da construção de uma ponte de ferro em Bordéus. Acontece que ele e a filha do dono da construtora, Adrienne Bourgès, se apaixonaram perdidamente, mas foram impedidos de casar pela família dela, devido a ele ser de uma classe social inferior. Então, o filme supõe que eles se encontram em Paris vinte anos depois, por acaso, numa jantar em que se discute que projecto se deve levar à exposição de 1889, para elevar o nome da França, ainda afectada pela derrota de Sedan e para rivalizar com a Estátua da Liberdade, cujo esqueleto é da autoria de Eiffel. Nesse jantar, desafiado por Adrienne Bourgès, ele propõe-se construir a Torre, com 300 metros de altura, toda em ferro, no centro da cidade, para poder ser desfrutadas por todas as classes sociais. A partir daí o filme passa-se nos dois tempos desse grand amour, separados por vinte anos. No filme, a Torre tem a forma de um 'A', por causa de Adrienne.

Não sabemos se isto é verdade, mas também não interessa muito porque o filme é menos uma reconstituição histórica dos factos (nem abordam a oposição dos 300 artistas) e mais uma reconstituição da atmosfera, dinâmica e ambiente históricos da época. Dado que tem uma excelente e impecável produção damos vários passos atrás, no tempo, mas também na literatura. Entramos nas novelas de Dickens, com as fornalhas da revolução industrial quando estamos nas cenas de construção das fundações da Torre; estamos no ambiente de Proust nas cenas de interior dos jantares elegantes e passeios pelos parques e entramos nos romances queirosianos quando se discute as inovações e as políticas da época e o ambiente de fim de uma era. Vale a pena ver esse mundo ainda não totalmente perdido.

 

publicado também bo blog azul

Filmes - «Munique, The Edge Of War» (Munique, À Beira Da Guerra)

beatriz j a, 23.01.22

Este filme gira à volta da controversa assinatura do acordo de paz de Munique, em 1938, entre Chamberlain, primeiro-ministro inglês e Hitler, em vésperas da Segunda Grande Guerra. O filme tem duas histórias paralelas a correr em simultâneo: uma é a da assinatura do acordo e do papel de Chamberlain nesse processo -que o filme defende ter sido positivo pela razão de ter dado um ano de paz à Inglaterra e aos aliados para se preparem para a guerra; outra é uma tentativa de impedir a assinatura do acordo por parte de dois diplomatas, um inglês, secretário de Chamberlain e outro alemão, secretário de Hitler, que se conheciam e eram amigos desde os tempos de Oxford, que ambos tinham frequentado. 

O filme está bem feito. Sabemos a história e, mesmo assim, ficamos presos ao suspense da situação. Somos levados a questionar-nos se, chegado o momento que não tem retorno, o saberíamos reconhecer e, reconhecendo-o, se estaríamos à altura do momento. Esta é uma questão importante no filme. 

É difícil não traçarmos um paralelo com a situação actual, salvas as devidas distâncias, naturalmente, pois Putin não é Hitler, mas a situação geopolítica tem os mesmos contornos. 

Estamos num momento de autoritarismo crescente nos regimes do mundo, de crise económica com muito populismo, muita revolta e temos a Rússia de Putin a exigir que o Ocidente feche os olhos e permita o sacrifício de uma parte grande da Ucrânia e da sua possibilidade de sucesso económico, bem como de outros países da esfera da ex-URSS, a troco de paz. Na altura do acordo de Munique, em 1938, também se estava numa grande crise económica, com autoritarismos crescentes no mundo, populismos e revoltas e com a Alemanha de Hitler a exigir que o Ocidente fechasse os olhos à anexação dos Sudetos da Checoslováquia a troco de paz. 

Tal como na época, também hoje há acordos secretos entre os líderes da minoria separatista e o ditador invasor. Então como hoje, o ditador que faz exigências a troco de paz não é pessoa capaz de honrar compromissos ou acordos e tem a mão leve para o assassinato. Então como hoje o Ocidente tem, acima de tudo, desorientação e medo do ditador.

(publicado também no blog azul)

Terminar em beleza

Pedro Correia, 18.09.20

 

Há poucos dias, numa troca de impressões com o João Lisboa, descobri que temos gostos muito semelhantes em matéria cinematográfica. Incluindo uma devoção mútua pelo filme britânico O Terceiro Homem, realizado em 1949 por Carol Reed, a partir de um argumento concebido por Graham Greene, e com Orson Welles, Joseph Cotten, Alida Valli e Trevor Howard nos principais papéis. 

Costumo até eleger o magnífico desfile de Alida Valli pela vasta alameda bordejada de árvores despidas, ignorando a presença suplicante de Cotten, como a minha preferida de todos os finais de longas-metragens que já vi. Sem necessidade de uma palavra, só com a cítara dedilhada por Anton Karas a realçar a cena. A expressão terminar em beleza parece ter sido inventada aqui.

Proponho-vos que partilhem comigo as vossas preferências nesta matéria. Que finais de filmes mais vos tocaram por algum motivo?

Conversas em família (2)

Maria Dulce Fernandes, 05.08.20

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Depois de alguma leitura e muitas séries de TV, o sentimento de inutilidade instalou-se-me pesadamente no espírito e no corpo . Quanto menos fazia, menos me apetecia fazer. Comer , surfar o sofá e ver a família no tablet… farniente começava a não fazer qualquer sentido.

A casa de brincar da neta deu o mote e a partir daí demos largas à imaginação; fizemos 50 postais, uns a raiar o kitsh, outros mais compostos, qualquer coisa de BD, caricatura Burtoniana, loucura canastrona, sei lá , quase um por dia, exceptuando aos fins de semana.

Foi muito engraçado. Muita gente riu e chorou a rir. Amigos, amigos de amigos, conhecidos e estranhos enviavam mensagens com sugestões no género de “ discos pedidos", muitos quadros eram exequíveis e realizados, outros nem por isso, mas a sua louca idealização foi motivo de muitas gargalhadas.

Eis-nos então chegados ao vigésimo sexto dia do mês de Maio de 2020, 71° dia de confinamento. Pela primeira vez desde que foi declarado o estado de calamidade iríamos ter a neta , a fã número um das nossas produções, a passar o fim de semana connosco e a ter uma participação especial- a actriz convidada - nos projectos.

Chegou. Estava excitadíssima e apesar de confidenciar que gostava mais de papeis femininos, acedeu a representar o meu guerreiro gaulês favorito.

Sabes avó, tenho receio de não fazer bem esse personagem. Eu nem sei quem é o Asterix! Anda lá então aprender um bocadinho, que um bom actor tem que conhecer bem quem vai representar.

Sentámo-nos com o último livro no colo. Então… o Asterix é um valente guerreiro de uma aldeia situada numa terra chamada Gália ( que agora se chama França, já ouviste falar de França. Já!). Ele e os outros habitantes protegem a aldeia e não deixam que os palermas malvados dos romanos os conquistem. O Asterix é um homem pequenino… Um homem pequenino? Sim, mais pequeno do que a maioria dos homens. Assim como o Mateus? Maior do que Mateus. O teu colega Mateus é um menino. Percebi-lhe alguma confusão. Por muito pequeno que um homem possa ser, é sempre enorme na perspetiva de uma criança de cinco anos. Então… o Asterix é um baixinho muito valente e forte e tem um grande amigo , que é o Obelix, o gordo comilão . Como o mano? Mais ou menos, ele é comilão, mas este é grande , forte e barrigudo. Consegue comer um javali inteiro com duas dentadas. Riu com gosto enquanto folheava o livro e fazia perguntas sobre os personagens conforme iam aparecendo. E depois há o Panoramix, o druida, que é uma espécie de mágico e que faz caldeirões com poção mágica para dar força aos aldeões e os tornar invencíveis. Quando souberes ler, havemos de ler todas as aventuras de Asterix, queres? Está bem! Resumindo , o Asterix é o gaulês mais importante de todos e és tu quem vai representá-lo. Achas que consegues? Acho! Então vamos lá.

Depois de um almoço ligeiro, começamos a preparar o set e a caracterização, alinhavou-se o guião, Acção! Depois fomos editar a foto com a bonecada que se impunha, enquanto a curiosidade esvoaçava à solta como um pé de vento doido e as perguntas choviam loucas como um aguaceiro tropical. Avó, fico tão estranha com o bigode e a peruca!

Olhava sorridente para a foto. Se calhar devia ter tomada poção mágica , avó. Estás óptima, neta! Olha, ajuda o avô a tirar a barba! Avô, quase que pareces o Pai Natal, mas sem presentes! Gostaste, neta? Gostei! Mas, sabes, avó, estou aqui a pensar que era muito engraçado fazermos o Per Pan e eu ser a Sininho. Também acho ; fazemos da próxima vez, está bem? A próxima vez pode ser amanhã? Amanhã? Mas a avó não preparou esse filme neta, nem sei se temos adereços. Vá lá, eu ajudo, vai ser tão divertido!

Como dizer que não?

Amar ou odiar, ou tudo ou nada

Pedro Correia, 27.07.20

 

"Uma pequena história narrada numa escala épica." A definição é de Barry Norman, um dos mais prestigiados críticos de cinema britânicos, e parece a que melhor capta a essência deste filme desmesurado, que transcende todos os padrões do cinema conhecido no final da década de 30, e de algum modo antecipou tendências: E Tudo o Vento Levou funciona como raiz ancestral de todas as ficções telenovelescas que se tornaram uma maçadora banalidade dos nossos dias. A receita não voltou a pegar. Reveja-se O Gigante (George Stevens, 1956), por exemplo: não há comparação possível.

A diferença reside no carácter pioneiro desta ficção que pretende celebrar os "valores" sulistas dos EUA totalmente ao arrepio da torrente da história na América progressista de Franklin Roosevelt: há um certo charme neste assumido anacronismo. E é também uma questão de escala: tudo foi concebido em grande pelo produtor do filme, David O. Selznick -- megalómano, ególatra, dotado de uma tenacidade quase lendária, produtor ímpar da era de ouro do cinema norte-americano.

 

Selznick só sabia mesmo pensar em grande. Para ele, mais era sempre sinónimo de melhor: nunca se contentou em ficar a meio caminho. Reuniu a maior equipa técnica, o maior naipe de figurantes, o maior número de estrelas. Conseguiu o maior número de nomeações (onze, obtendo um total de oito estatuetas) para os Óscares de Hollywood. E sobretudo alcançou a maior receita de bilheteira: se actualizarmos o valor da inflação, E Tudo o Vento Levou foi provavelmente o maior campeão de bilheteira de todos os tempos.

O génio empresarial de Selznick ficou logo patente nessa brilhante jogada publicitária que foi a escolha do elenco para o filme, estreado no cinema Fox, em Atlanta, a 15 de Dezembro de 1939. Todas as actrizes conceituadas da época e muitas aspirantes ao estrelato, de uma forma ou outra, manifestaram interesse em conseguir o papel principal, o de Scarlett O' Hara.

A lista, para não variar neste empreendimento, era quilométrica: Bette Davis, Katharine Hepburn, Joan Crawford, Paulette Goddard, Joan Bennett, Greer Garson, Norma Shearer, Loretta Young, Lana Turner, Irene Dunne, Ida Lupino, Barbara Stanwyck, Jean Arthur, Miriam Hopkins, Talluah Bankhead, Carole Lombard, Anita Louise, Ann Sheridan, Claudette Colbert, Susan Hayward, Margaret Sullavan, Frances Dee, Catherine Campbell. Um megaconcurso de testes cinematográficos que acabou por servir de rampa de lançamento para a fama de uma britânica de 25 anos, em início de carreira. Chamava-se Vivien Leigh.

 

Sem ela, E Tudo o Vento Levou não seria o que foi. Não seria o que é. Se compararmos o cinema às grandes criações literárias, a Scarlett de celulóide equivale a uma das grandes personagens romanescas de que há memória. Com a sua força de carácter, a sua vivacidade, o seu apego tenaz aos valores familiares, à herança do sangue, aos vínculos afectivos à terra-mãe. Numa das cenas mais marcantes do filme, o pai de Scarlett, Gerald O' Hara (grande interpretação de Thomas Mitchell, um dos secundários mais talentosos de Hollywood), diz-lhe: "A terra é a única coisa do mundo por que vale a pena lutar ou morrer."

Ela faz desta frase um lema de vida. E remete tudo o resto a um plano inferior, fiel ao juramento que fará mais tarde: "Deus é testemunha que não deixarei ninguém derrotar-me." Indiferente aos ventos da história, que sopram implacáveis contra o orgulhoso Sul tão bem descrito pelo capitão Rhett Butler (Clark Gable) em vésperas da eclosão da guerra civil norte-americana: os sulistas, sublinha ele, "só têm palavras, escravos e arrogância".

 

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Olivia de Havilland (1916-2020)

 

Guerra e amor, os dois maiores condimentos do cinema clássico, estão presentes em Gone With the Wind. Mas o que mais prende a atenção do espectador, num filme que tem largas dezenas de personagens, é o destino de um quarteto: Scarlett, Rhett, Melanie (Olivia de Havilland) e Ashley. Personagens convictas, cada qual a seu modo, de que aquela guerra significaria "o fim do nosso mundo", como um angustiado Ashley (Leslie Howard) diz à sua apaixonada Scarlett em vésperas da mobilização geral no Sul.

Ironias do destino: no momento em que o filme estreou, também na vida real se travava uma guerra que mudaria para sempre a face do mundo. E o britânico Leslie Howard estaria envolvido nela, como agente de Churchill, acabando por ser abatido em 1943, num voo entre Lisboa e Bristol, pela aviação nazi.

 

Selznick, um homem que gostava de mulheres, estava certo: sem o fabuloso desempenho de Vivien Leigh, E Tudo o Vento Levou seria quase uma ficção banal. A belíssima britânica faz toda a diferença em cada cena da longa-metragem, transmitindo-lhe uma autenticidade quase inigualável na história do cinema. Não foi por acaso que recebeu o Óscar, suplantando os colegas do sexo masculino: Howard parece sempre um pouco deslocado neste filme e Gable limita-se a fazer o papel de... Gable.

Vivien só encontra aqui duas competidoras à altura do seu talento. Ambas negras, ambas vítimas do racismo sulista que não as deixou brilhar na memorável estreia de Atlanta: Hattie McDaniel, no papel de Mammy, e Butterfly McQueen, no papel de Prissy (que gozaria enfim de um merecido destaque nas celebrações das bodas de ouro do filme, em Dezembro de 1989).

 

E Tudo o Vento Levou é uma película cheia de momentos memoráveis. Momentos visuais e também auditivos: as primeiras quatro notas do Tema de Tara, composto por Max Steiner, são ainda hoje reconhecíveis em todo o mundo. Como esquecer as cenas do baile (que serviu de inspiração a outros filmes que deixaram rasto, como O Padrinho e O Caçador), o incêndio de Atlanta, as imagens do fim da guerra e da subsequente devastação que atingiu o sul dos EUA, a morte da criança e a vasta escadaria na mansão da família O' Hara que serve de excelente metáfora das relações sentimentais -- os degraus parecem poucos quando o amor predomina e dir-se-iam intermináveis quando o ódio prevalece)?

Qual o segredo de Selznick para que este filme de 1939 parecesse muito à frente da sua época e ainda hoje permaneça no imaginário dos espectadores? O segredo de sempre: soube rodear-se dos melhores. Entre a equipa de argumentistas, por exemplo, figurou um tal Scott Fitzgerald. Capaz, como outros, de reduzir as 1037 páginas do romance de Margaret Mitchell, galardoada com o Pulitzer, para cerca de um terço. Por uma vez sem exemplo, less was more.

 

Comecei por falar em Selznick, acabo o texto também a invocá-lo. Porque nenhum outro grande protagonista do cinema como ele perturbou tanto a "política de autores" teorizada na década de 50 por alguns críticos franceses, que centravam as suas análises no realizador, apontando-o como o verdadeiro autor de um filme.

Selznick era uma carta fora do baralho: é dele que se fala ainda hoje, quando se fala de Gone With the Wind. O filme chegou a ter quatro realizadores: Victor Fleming, único que figurou nos créditos finais, George Cukor (responsável por algumas cenas marcantes, como a da discussão inicial entre Scarlett e Mammy), Sam Wood e o fotógrafo William Cameron Menzies. Mas é um filme de Selznick, sem sombra de dúvida. Num tempo em que o produtor concebia a obra de arte e o realizador era apenas o seu artífice. Outros tempos, outros costumes. Numa cena capital, Rhett diz para Scarlett: "É um momento histórico. Pode dizer aos seus netos como viu o Sul desaparecer numa noite."

A última frase do filme, proferida por uma Vivien Leigh em estado de graça, é uma das mais célebres de sempre na Sétima Arte: "Amanhã será outro dia." Verdade histórica, verdade cinematográfica. O facto é que o cinema não voltaria a ser o mesmo.

 

Gone with the Wind. Ou na versão portuguesa, que sempre preferi, E Tudo o Vento Levou. Já que estamos mergulhados num melodrama, carreguemos nas tintas melodramáticas. Como escreveu o poeta Fausto Guedes Teixeira, num poema que certamente Scarlett apreciaria: "Amar ou odiar / Ou tudo ou nada: / O meio termo é que não pode ser / (...) Amemos muito como odiamos já! / A verdade está sempre nos extremos / Pois é no sentimento que ela está."

Às vezes convém trair a letra para permanecer fiel ao espírito. É o caso.

 

Texto reeditado em memória de Olivia de Havilland, agora falecida, aos 104 anos.

Joker - Are you talking to me?

João André, 10.03.20

Em 2001 saiu o filme Uma Mente Brilhante, de Ron Howard e com Russel Crowe. Venceu na altura o óscar de melhor filme do ano, mas sendo um veículo para Russel Crowe, este acabou por não receber a estatueta (que tinha recebido no ano anterior por Gladiador). Isto veio-me à memória com Joker, um filme que parece ter sido feito, à semelhança com Uma Mente Brilhante, para o seu actor principal receber o prémio de melhor actor. Ao contrário de Crowe, Joaquin Phoenix recebeu o seu óscar. Ao contrário do filme de 2001, Joker não ofereceu mais nada.

A principal coisa que me fica na memória depois de ver Joker é a performance de Phoenix. Não é simplesmente um desempenho, uma interpretação, é antes uma performance artística, só tangencialmente associada ao cinema. Joker não tem uma história, uma mensagem para transmitir. Tem um actor numa performance. Não tem personagens (nem mesmo a de Joker/Arthur Fleck). Tem um actor numa performance. Não tem uma linha sequencial. Tem um actor numa performance. Não tem princípio e não pretende ser um fim. Tem um actor numa performance.

Phoenix neste filme transmitiu-me duas imagens: a de freestylers, aqueles artistas que são capazes de imensos malabarismos com uma bola de futebol, de dar voltas e cambalhotas com a bola, de a fazer parar no pescoço e no peito, de dar toques quando sentados ou deitados ou de fazerem parecer que têm a bola colada ao corpo. Mas isso não é futebol. Outra imagem que me ficou foi a de João Grosso no palco de um teatro a declamar textos da Geração d'Orpheu, por volta de 1995. Ele estava sozinho em palco e declamava um ou mais textos de um dos autores, numa performance também muito física. Era um prazer ver, mas não havia qualquer interacção com o palco, outros actores ou espectadores (tenho a certeza que ele discordaria deste ponto). João Grosso bastava-se a si mesmo.

E foi isso que se passou com Joker. Joaquin Phoenix disse em entrevistas que tentou criar uma personagem com a qual ninguém se conseguisse identificar. Tentou que, sendo humano, o seu Arthur Fleck não pudesse ser definido de forma nenhuma, que fosse desfasado de um perfil completo. Isso nota-se claramente. Fleck tem problemas mentais e psicológicos, mas não parece ser essa a sua força motriz. A injustiça social afecta-o mas ele não a abraça como causa. Confessa querer fazer o mundo rir, mas cria piadas que só ele aprecia. A sua principal característica parece ser o egoísmo, mas só se manifesta nos seus momentos de sanidade.

Mais ninguém recebe traços mais que grosseiros. A sua vizinha é apenas um objecto. A sua mãe serve de Mcguffin. Thomas Wayne é um alvo para os seus desejos e serve apenas de arquétipo do bilionário que se julga benfeitor. Mesmo Murray Franklin parece ser não mais que uma chave para finalmente destrancar as psicoses mais violentas de Fleck. Escolher de Niro para o papel é apenas um piscar de olho nada subtil ao seu trabalho em O Rei da Comédia e Taxi Driver. Nenhuma destas personagens tem motivações, medos, desejos, inseguranças, felicidades. São apenas cones de trânsito para Phoenix navegar. Nada acrescentam à história. Se os autores tivessem escolhido uma criança, um vagabundo, um vendedor de rua ou um advogado, nada mudaria.

Este é um filme que tenta ser dos anos 70 sem ter a envolvência social desses tempos. Taxi Driver, Raging Bull, O Rei da Comédia, Mean Streets, etc, eram todos filmes que funcionavam nesses tempos porque eram imbuídos do espírito do tempo. Não são datados porque são filmes poderosamente humanos. Em Taxi Driver, Jodie Foster e Cybill Shepherd tinham personagens de carne e osso. O mesmo para Jerry Lewis em O Rei da Comédia ou Keitel em Mean Streets, Joe Pesci em Raging Bull ou outras personagens noutros filmes desses anos. Havia uma teia humana que sustentava os personagens principais. Em Joker, é como se Joaquin Phoenix passasse o filme em variações do “Are you talking to me?”, cena que também merece a sua referência directa.

No fim, sobra a performance de Joaquin Phoenix. Não é uma actuação em si mesma, antes um momento de arte abstracta. É brilhante e merece todos os elogios, mas não faz um filme. Lembrando a polémica dos filmes da Marvel, não sei se Scorsese chamaria a isto cinema.

Bons filmes, excelentes séries

Pedro Correia, 29.12.19

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Enquanto o cinema vai definhando, monopolizado em grau crescente por blockbusters de fabrico industrial que prometem (quase sempre sem cumprir) «arrasar nas bilheteiras», as séries florescem. Reflectindo a tendência actual: as pessoas trocam esse espaço colectivo que é uma sala de cinema regida por horários fixos pelo reduto doméstico em que imperam. Do social ao individual, do gregário ao solitário, do real ao virtual. Sair de casa, cumprir uma deslocação física, partilhar durante um par de horas uma sala (quando existe, o que já não sucede em várias cidades) com uma porção de estranhos deixou de atrair jovens e menos jovens.

Nos últimos três meses, à moda antiga, vi apenas duas longas-metragens que justificam elogio: Era Uma Vez em Hollywood, de Quentin Tarantino, e Dor e Glória, de Pedro Almodóvar - este com uma interpretação superlativa de Antonio Banderas. Sem surpresa, vejo ambas incluídas na lista dos três melhores filmes do ano elaborada pela revista Time.

 

No mesmo período, reforçando uma tendência dos últimos anos, vi bastante mais séries com qualidade.

Destaco três, que já mencionei aqui.

The Crown «Muito mais do que uma simples série televisiva: é uma exemplar coreografia do realismo político, aqui elevado a um patamar artístico.» (Terceira temporada, na Netflix)

O Método Kominsky«Vive de inteligentes e subtis modulações de texto em torno da velhice e da decadência física a ela associada, numa linha de fronteira ténue entre o drama e a comédia sem nunca excluir a ironia.» (Segunda temporada, na Netflix)

Ray Donovan - «Uma série amarga e tensa e desencantada, servida por um notável elenco onde se distingue o veterano Jon Voight.» (Sétima temporada, na Netflix)

 

Recomendei-as antes, recomendo-as de novo. Não por acaso, os cineastas de maior mérito e os actores mais consagrados têm trocado os estúdios de cinema pelas produções televisivas: é neste formato que hoje dão livre curso aos seus atributos artísticos. Aproveitemos, enquanto espectadores, esta idade de ouro da televisão. Com a certeza antecipada de que não durará sempre.

Livros, filmes e viagens

Pedro Correia, 05.12.19

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Há livros que nos abrem o apetite para conhecermos países e cidades. De tal maneira que, mal chegamos ao fim da obra, nos apetece logo fazer a mala. Aconteceu-me com a capital francesa depois de ler Paris É uma Festa, de Hemingway, e vários policiais de Simenon. Aconteceu-me com Barcelona, depois de ler Os Mares do Sul, de Vázquez Montalbán. Aconteceu-me com Londres, depois de ler O Livro das Cidades, de Cabrera Infante. Aconteceu-me com Amesterdão, depois de ler A Porta no Chão, de John Irving. Aconteceu-me com o Rio de Janeiro, depois de ler esse fabuloso livro homónimo que lhe dedicou Ruy Castro - autêntica carta de amor à Cidade Maravilhosa.

Mas também podemos apaixonar-nos por uma cidade que ainda não conhecemos ao ver um filme. Aconteceu-me com Viena assim que vi Antes do Amanhecer, de Richard Linklater, espécie de Casablanca dos anos 90 sem guerra nem nazis. Corria ainda o genérico final no ecrã e já eu fazia planos para rumar sem demora à capital austríaca, seguindo os passos de Ethan Hawke e Julie Delpy nesse filme hipnótico. E assim foi. Com uma diferença de pormenor, que neste caso era de pormaior: o filme passa-se no Verão e eu aterrei em Viena no Inverno, faiscavam as luzes de Natal na Rathaus. Com seis graus negativos, as águas do Danúbio estavam geladas e a animação de rua reduzida ao mínimo. Mas apanhei o eléctrico do Ring, andei na roda gigante do Prater (que me havia sido apresentada noutro filme, o inesquecível O Terceiro Homem) e era capaz de jurar que o fantasma de Sissi andava em Schönbrunn, na manhã luminosa em que lá estive, com as verdes alamedas do palácio transformadas num deslumbrante mar de neve.

My name is Bond – although the jury is still out on my first name

Diogo Noivo, 16.07.19

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A capacidade de adaptação é essencial à sobrevivência. Mais do que um truísmo darwinista, trata-se de um princípio intuitivo para qualquer bípede que tenha de fazer pela vida. Devemos, contudo, ponderar as diferenças entre “adaptação” e “invenção”. A primeira acomoda à realidade aquilo que já existe, a segunda cria algo de novo. E o que é novo, por incipiente e frágil, tem maior probabilidade de não sobreviver. Tudo isto vem a propósito da última polémica em torno do espião mais famoso do mundo.

De acordo com uma fonte alegadamente bem informada, na próxima entrega da saga James Bond o código 007 é passado a uma mulher. A actriz escolhida será Lashana Lynch (na foto). Após 24 filmes – na verdade, contando com os não-oficiais, são 26 – e passados 57 anos da exibição do primeiro título da série, Bond troca a testosterona por estrogénio. O rumor despoletou uma arenga feroz. De um lado, os puristas indignam-se, pois Bond em versão feminina matará a essência e a história do personagem. Do outro lado, os hereges exigem que Bond espelhe as agendas e as causas do momento.

Confesso que a cor da pele da actriz me é absolutamente indiferente. Veria com bons olhos a substituição de Daniel Craig por Idris Elba, um actor, de resto, várias vezes apontado como o próximo a estar ao serviço de Sua Majestade. Não é uma cedência minha ao politicamente correcto nem às causas fracturantes, apenas creio que Elba tem três bons argumentos a seu favor: é um excelente actor; é britânico; e permitiria uma evolução do Bond de Daniel Craig sem uma ruptura abrupta com o passado. Bom, e Elba é homem.

Como bem escreve o Francisco José Viegas aqui ao lado, Daniel Craig é o melhor de todos os Bond. A sua substituição será difícil e o adiamento é prova disso – o actor expressou em termos contundentes a pouca vontade de protagonizar o filme agora em produção. Craig encarnou um James Bond celibatário e mulherengo, mordaz e inventivo, isto é, igual a todos os outros. Mas, em simultâneo, mostrou um espião que se engana, que tem dilemas, que sofre, inovações que muito se agradecem numa sociedade que parece viver obcecada com o êxito e com a perfeição. Com Craig houve uma solução de compromisso entre passado e presente, uma adaptação bem-sucedida. Transformar James Bond em mulher será uma invenção, um corte absoluto com o legado de mais de vinte filmes. Porventura uma agente secreta feminista e cáustica que use os homens a seu bel-prazer dê um filme interessante – tenho a certeza que me divertiria – e até uma saga com êxito, mas não será um Bond.

No texto já citado, o Francisco recupera declarações Phoebe Waller-Bridge, a guionista do próximo filme, que deviam ser óbvias e que denotam uma mudança importante na forma como a franquia cinematográfica retrata o sexo feminino: "Bond é Bond, mas as mulheres também são (felizmente) novas e diferentes daquilo que aparecia nos ecrãs nos anos 70 ou 80". Waller-Bridge tem fama de feminista desenfreada e será dela a intenção de atribuir o código 007 a uma mulher, um rumor que não bate certo com as declarações anteriores. Esperemos que impere o bom-senso e que se fuja daquilo que o Alexandre Guerra justamente apelidou de idiotice. É James, não Jane.

Glenn em estado de graça

Teresa Ribeiro, 12.12.18

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                                                    A Mulher

Mal entrei, reparei que na sala – uma pequena sala de cinema de Lisboa – a plateia era quase exclusivamente feminina. Eram quinze mulheres para um homem. Sorri do presumível efeito dissuasor que um filme chamado “A Mulher”, no original “The Wife”, terá nas audiências masculinas. Se o título fosse “O Homem”, no original “The Husband”, o efeito no público feminino não seria igual, por razões culturais que curiosamente viriam a ser afloradas, minutos depois, na tela.

“A Mulher” é a adaptação cinematográfica da obra homónima de Meg Wolitzer e conta a história de uma mulher que nos idos de 60 desistiu de uma promissora carreira literária por acreditar que no mundo editorial, dominado por homens, jamais conseguiria vingar. Em vez de arriscar, escolheu ser a sombra do marido, um homem que não se inibe de lhe predar o talento. Cliché? Pode ser, mas Glenn Close – o filme é ela – consegue passar de uma forma tão intensa e todavia tão subtil a frustração, a dor do recalcamento, que não é possível vê-la apenas na pele daquela personagem. Ela encarna o mal larvar que anulou gerações de mulheres, soterradas pelo sexismo e pelos seus efeitos nas suas escolhas de vida. Conheci, conheço ainda hoje casos similares. Quem não conhece? Mulheres de asas cortadas rentes, presas ao estereótipo de cuidadoras, não raras vezes acabando a ser mães dos próprios maridos, eternas crianças ineptas, incapazes de tratar das minudências da vida. Visto assim o filme transmuta-se num comovente tributo a essas anónimas senhoras, pilares de pesadas arquitecturas familiares, musas exclusivas de génios, fazedoras de reis. Porém fá-lo sem pieguices, ou vestígios de demagogia e com Glenn Close em estado de graça.

Será desta que ela leva o oscar para casa?

 

Título original: The Wife

Realização: Bjorn Runge

Com: Glenn Close, Jonathan Pryce, Christian Slater

Dizer não às idiotices

Alexandre Guerra, 31.10.18

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Barbara Broccoli e Daniel Craig/Foto: The Guardian

 

A mudança dos tempos implica, quase necessariamente, a mudança das mentalidades. É uma evidência que decorre da evolução das sociedades ao longo da História. São processos morosos e que não acontecem de um dia para o outro. Não se mudam mentalidades por decreto e muito menos por imposição. A questão é que, nos últimos anos, tem-se assistido a uma aceleração incontrolável para a instituição de modelos de pensamento que resultam, em parte, dos excessos da globalização e da (r)evolução das tecnologias de informação /comunicação, com a emergência, por exemplo, do fenómeno das “redes sociais”, onde impera uma espécie de anarquia e que acaba por ditar tendências. São estas tendências, impostas sobretudo por essas novas “massas” digitais, que, de forma imparável e a uma velocidade louca, têm contribuído para uma certa histeria e cegueira no processo de decisão, de forma a ir ao encontro daquelas que passaram a ser as “convenções socialmente aceites”, comummente o chamado “politicamente correcto”, na convivência entre os cidadãos da polis. E o problema é que estes processos (mesmo aqueles que têm fins mais virtuosos) se desenrolam de forma desenfreada e irreflectida, cometendo-se abusos, exageros e, muitas vezes, absurdos monumentais.

 

A cultura pop, nomeadamente através do cinema e da televisão (leia-se, séries), tem sido quase mimética no eco que faz dessas “exigências” que se fazem ouvir ruidosa e ferozmente nas “redes”. Exigências que, mascaradas com uma pseudo-tolerância e com o mote da defesa da igualdade de direitos, acabam, na verdade, por esconder preconceitos e ideias castradoras, conduzindo ao disparate. Disparates como aquele que, há uns tempos, começaram a circular, sugerindo que uma das personagens masculinas mais icónicas da história do cinema das últimas décadas poderia, na verdade, dar lugar a uma mulher. Felizmente, teve que ser uma mulher a ter a coragem para vir dizer que James Bond continuará a ser um personagem masculino (obviamente) e com as características que lhe são inerentes. Quem o disse foi Barbara Broccoli, a produtora da saga 007 e filha do histórico “Cubby”, que, juntamente com Harry Saltzman, foi quem trouxe o espião dos livros para o cinema.

 

“Bond is male. He’s a male character. He was written as a male and I think he’ll probably stay as a male. And that’s fine. We don’t have to turn male characters into women. Let’s just create more female characters and make the story fit those female characters.” Com esta frase proferida ao The Guardian há umas semanas, Barbara Broccoli pôs fim a um infeliz devaneio, alimentado não se sabe bem por quem, mas, certamente, por alguém que olha para a causa dos direitos de igualdade com as lentes distorcidas do fanatismo. E Broccoli foi ainda mais longe ao reconhecer que James Bond não é propriamente um ideal feminista e que muitas características não seu ADN nunca mudarão. É uma das produtoras mais poderosas da indústria do cinema, precisamente por deter os direitos de James Bond, e quem tenha acompanhado com atenção a evolução da saga dos filmes 007 nos últimos 20 anos, constata que Broccoli foi uma das primeiras a introduzir alterações relativas ao papel da mulher e à forma como o agente secreto as via, indo ao encontro da tal mudança dos tempos. Mudanças que foram sendo graduais sem desvirtuar a essência de 007. Mas a verdade é que nos dias que correm, onde reina um ambiente de “caças às bruxas”, as palavras de Broccoli pressupõem coragem e determinação contra os extremismos da idiotice, sendo de salutar a sua sensibilidade na defesa de algo que continua a alimentar o imaginário de muitos de nós, homens e mulheres.

Músicas de filmes, listas e nós

Pedro Correia, 22.03.18

 

Todo o filme tem música - e aquele que porventura não tiver parecerá sempre muito esquisito.

Cada um de nós tem as suas de eleição - aquelas que nunca esqueceremos, por mais novas longas-metragens que vejamos.

Aqui há uns anos o jornal londrino Telegraph organizou a lista das cem melhores bandas sonoras do cinema. Muitas delas coincidirão com os nossos gostos pessoais, outras nem por isso.

Como sempre acontece nestes casos, vale a pena ver quais são e comparar com outras que aqui não surgem.

E perceber quantos destes filmes já vimos.

E ponderar se a lista não poderia ser bem diferente.

 

É o desafio que hoje deixo no DELITO. Esperando naturalmente contributos vossos.

 

Os filmes, as listas e nós

Pedro Correia, 19.03.18

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 In The Mood for Love (Disponível para Amar), de Wong Kar-wai

 

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  The Pianist (O Pianista), de Roman Polanski

 

Há dias, trouxe ao DELITO a lista do Guardian com os cem melhores livros de ficção em língua inglesa. Hoje trago outra: esta enumera os melhores filmes do século XXI e foi elaborada pela BBC.

Aqui a deixo à consideração dos leitores que, tal como eu, apreciam listas. É uma boa oportunidade para fazermos um balanço dos nossos conhecimentos e encontrarmos pistas que nos permitam conhecer obras cinematográficas de qualidade.

 

Duas observações prévias: os ingleses, tal como os norte-americanos, insistem na tese de que o século XXI começou no ano 2000 - o que implicaria a existência de um "ano zero" que jamais existiu; por outro lado, traduzem em regra os títulos dos filmes para o seu idioma, sem complexos de qualquer espécie (devíamos aprender com eles, nós que ainda manifestamos tanta aversão às traduções).

Assim, por exemplo, The Secret in Their Eyes é El Secreto de Sus Ojos (O Segredo dos Seus Olhos), de Juan José Campanella, Talk to Her é Habla con Ella (Fala Com Ela), de Pedro Almodóvar, e City of God, obviamente, é Cidade de Deus, de Fernando Meirelles.

 

Eis os cem filmes.

Quantos deles já vimos?

Quantos deles já nos viram?

Qual deles poria cada um de nós em primeiro lugar?

 

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The Tree of Life (A Árvore da Vida), de Terrence Malick

 

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  The Hurt Locker (Estado de Guerra), de Kathryn Bigelow