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Delito de Opinião

Figura internacional de 2023

Pedro Correia, 08.01.24

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VOLODIMIR ZELENSKI

Segunda vitória consecutiva do Presidente da Ucrânia como Figura Internacional do Ano aqui no DELITO. Do quase anonimato, Volodimir Zelenski. tornou-se celebridade à escala mundial. Pelo pior motivo possível, certamente, na opinião dele. Por ser um herói involuntário que soube manter-se de pé e liderar o seu povo agredido por Moscovo. É fácil presumir que nada disto estava nos seus planos quando se candidatou à presidência, em 2019.

Zelenski, que em 2022 teve um triunfo esmagador na votação do blogue, desta vez venceu por maioria simples.

Eis algumas das justificações apresentadas por quem votou nele:

«Essencialmente, pela capacidade de resistência.»

«Apesar de outros conflitos graves [em 2023], não pode ser esquecido.»

«Quem sabe o que sucederá, caso a Rússia ganhe a guerra.»

Enfim, um conflito gravissimo iniciado com a invasão decretada por Vladimir Putin, em 24 de Fevereiro de 2022, e que se mantém neste início de 2024. Sabe-se lá até quando.

 

E quem mais?

O segundo lugar coube à presidente da Comissão Europeia. Ursula von Der Leyen, que já tinha sido eleita Figura do Ano em 2020, esteve perto de revalidar esta distinção. «Interventiva, sem dúvida», houve quem dissesse, justificando ter votado nela.

A tal frase - provavelmente apócrifa - atribuída a Henry Kissinger sobre a impossibilidade de pegar no telefone e contactar alguém que «liderasse a Europa» talvez deixe enfim de fazer sentido com esta ex-ministra alemã da Defesa que tem assumido inegável protagonismo como porta-voz do espaço comunitário. E que parece estar muito longe da aposentação. 

 

O terceiro posto do pódio coube ao recém-eleito Presidente da Argentina, Javier Milei. Um assumido ultraliberal que venceu as eleições de Novembro para a Casa Rosada, com 56%, destronando o rival peronista Sergio Massa num dos países mais proteccionistas do mundo - e também um dos mais depauperados por décadas de péssima gestão económica e financeira.

Seguiram-se votos isolados no Papa Francisco (vencedor em 2013 e 2014), no Presidente norte-americano Joe Biden (Figura do Ano em 2022), na primeira-ministra italiana Giorgia Meloni e no secretário-geral da ONU, o nosso compatriota António Guterres

 

Faltam mais três.

Ismail Haniya, líder do Hamas - «Pelas piores razões», diz quem votou nele.

Sam Altman, big boss da OpenAI. Motivo? «Abriu a porta para um futuro potencialmente tão assombroso quanto tenebroso – porque, quer queiramos quer não, o futuro já chegou e está em movimento uniformemente acelerado.»

Finalmente, um voto com dimensão colectiva. No povo palestiniano. «Vítima do Hamas, de Netanyahu e da inércia/impotência internacional. Não teve voz nem voto na matéria, limita-se a esperar a morte», assim foi justificado.

Para o ano há mais, fica prometido.

 

Figuras internacionais de 2010: Angela Merkel e Julian Assange

Figura internacional de 2011: Angela Merkel 

Figura internacional de 2013: Papa Francisco

Figura internacional de 2014: Papa Francisco

Figuras internacionais de 2015: Angela Merkel e Aung San Suu Kyi

Figura internacional de 2016: Donald Trump

Figura internacional de 2017: Donald Trump

Figura internacional de 2018: Jair Bolsonaro

Figura internacional de 2019: Boris Johnson

Figura internacional de 2020: Ursula von Der Leyen

Figura internacional de 2021: Joe Biden

Figura internacional de 2022: Volodimir Zelenski

Figura nacional de 2023

Pedro Correia, 07.01.24

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MARCELO REBELO DE SOUSA

Repete o destaque já aqui alcançado há seis anos. Desta vez, sobretudo, por ter decidido dissolver a Assembleia da República, em Novembro. Tal como fizera em 2021, o que permitiu ao PS vencer as eleições seguintes e usufruir do breve interlúdio da maioria absoluta que será quebrado a 10 de Março. 

O Presidente da República volta a ocupar o principal lugar do palco num sistema político que tem reforçado a vertente parlamentar. Isto no ano em que as relações institucionais com o primeiro-ministro cessante passaram do morno para o quase gélido. Hoje quase parece impossível que António Costa tenha recomendado em Janeiro de 2021 o voto no actual inquilino de Belém. Prova - mais uma - de que a política portuguesa se alimenta de microciclos, em aceleração constante.

Assim, Marcelo Rebelo de Sousa foi escolhido pelo DELITO como Figura Nacional do Ano. Por maioria simples, muito longe de qualquer vitória arrasadora. Houve quem o elegesse pela positiva. «Não há noticiário que passe sem ele», assinalou alguém. Mas pesaram igualmente motivos menos lisonjeiros - incluindo o caso das gémeas brasileiras, ainda não esclarecido na totalidade e que contribuiu para uma quebra notória da popularidade do Chefe do Estado já reflectida nas sondagens.

«[Marcelo] parece ter perdido o sentido de Estado ou até mesmo o contacto com a realidade. Vive num mundo imaginado, onde é rei absoluto», justificou uma das vozes "delituosas".

 

Na segunda posição ficou o recém-eleito secretário-geral do PS. Pedro Nuno Santos, que passou de quase proscrito a sucessor de Costa, sufragado nas eleições internas de Dezembro, em que superou o seu rival interno, José Luís Carneiro, com cerca de 64% dos votos.

«Por ter feito a travessia do deserto socialista mais rápida dos últimos tempos e conseguido passar de persona non grata a potencial futuro primeiro-ministro num abrir e fechar de olhos (cortesia de Lucília Gago e Marcelo Rebelo de Sousa). Um verdadeiro artista do circo que é a nossa política.» Foi assim que um dos nossos votantes em PNS justificou a sua escolha.

 

Seguiram-se votos isolados em diversas outras figuras nacionais. António Costa, que o DELITO elegeu Figura do Ano em 2015 e 2022. João Galamba, empossado em Janeiro como ministro das Infraestruturas e forçado a abandonar estas funções em Novembro após ter protagonizado em Abril um dos episódios mais caricatos e vergonhosos do Governo de maioria absoluta que o transportaram para o anedotário nacional. Lucília Gago, a procuradora-geral da República escolhida pelo Governo socialista e agora transformada em alvo frequente de críticas no PS devido à investigação anunciada ao País a 7 de Novembro. Vítor Escária, ex-chefe de gabinete de Costa, que tinha quase 76 mil euros em notas no seu gabinete da residência oficial em São Bento. O antigo presidente da Iniciativa Liberal Carlos Guimarães Pinto, que um dos "delituosos" elogiou como «um dos poucos deputados que conseguiuram dar alguma qualidade ao parlamento». E, claro, Cristiano Ronaldo - que em 2023 foi o futebolista que marcou mais golos em competições oficiais de todo o mundo: 54. Já com 38 anos, promete continuar em 2024. Ninguém o pára.

 

Figura nacional de 2010: José Mourinho

Figura nacional de 2011: Vítor Gaspar

Figura nacional de 2013: Rui Moreira

Figura nacional de 2014: Carlos Alexandre

Figura nacional de 2015: António Costa

Figura nacional de 2016: António Guterres

  Figura nacional de 2017: Marcelo Rebelo de Sousa

Figura nacional de 2018: Joana Marques Vidal

Figura nacional de 2019: D. José Tolentino Mendonça

Figura nacional de 2020: Marta Temido

Figura nacional de 2021: Henrique Gouveia e Melo

Figura nacional de 2022: António Costa

Brilhante estratego, fraco profeta

Henry Alfred Kissinger (1923-2023)

Pedro Correia, 30.11.23

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Teve uma vida cheia - e lúcida e activa até ao fim. Morreu ontem, tranquilamente, na sua casa do Connecticut. Já centenário, há quatro meses fez uma última visita a Pequim, onde foi recebido por Xi Jinping, que o enalteceu como amigo perpétuo da China.

Catedrático emérito da Universidade de Columbia, talvez o maior especialista em política internacional nos escalões dirigentes norte-americanos da última metade do século XX, Henry Alfred Kissinger, nascido em Maio de 1923 na Alemanha e radicado na América desde 1938, levou uma perspectiva europeia ao Departamento de Estado. Antecipando o que mais tarde, na viragem do milénio, sucederia com Madeleine Albright durante a administração Clinton.

Como conselheiro especial do presidente Richard Nixon, de quem se tornou braço direito para a política internacional, com prolongamento para a administração Ford, subiu tão alto quanto lhe era possível em Washington. Foi o primeiro judeu a desempenhar as funções de secretário de Estado - terceiro posto na hierarquia do Executivo. Faltou-lhe apenas ter sido candidato à presidência, o que lhe estava constitucionalmente vedado por não ter nascido com a nacionalidade norte-americana.

 

Este europeu transposto para o Novo Mundo era herdeiro directo dos "realistas" que retalharam o mapa mundi ao longo de um século -- da Convenção de Viena, em 1815, à cimeira de Versalhes, em 1919. Com duas convicções básicas: nenhum país tem aliados permanentes, só interesses permanentes; e não haverá vencedores em guerras na era atómica. Assim promoveu o degelo nas relações entre Washington e a China comunista primeiro e com a União Soviética logo a seguir. As duas mais espectaculares acções norte-americanas das últimas décadas na política externa.

Legou-nos detalhadas memórias em três volumes e várias obras ensaísticas dissecadas nos circuitos universitários e nas chancelarias internacionais, além de conquistarem leitores fiéis entre os cidadãos comuns. Diplomacia, por exemplo, é um trabalho académico de grande fôlego, confirmando o autor num patamar de erudição muito superior ao da média entre a elite política no seu país adoptivo.

 

A originalidade de Kissinger, nos salões e gabinetes de Washington, radicou-se na sua visão da política externa americana inspirada nos cem anos anteriores dos meandros da diplomacia europeia. Também influenciado, naturalmente, por circunstâncias da sua biografia pessoal: ter nascido numa família hebraica entre as duas guerras mundiais e conhecer a experiência totalitária não em abstracto mas no concreto. O regresso à Alemanha devastada pela guerra, enquanto cumpria o serviço militar já como cidadão norte-americano e exerceu funções de tradutor nas forças armadas, levou-o a perceber como são débeis os pilares daquilo a que chamamos civilização e como se havia tornado irrisória a influência europeia nos destinos mundiais.

A sua tão propalada realpolitik limitou-se, no fundo, a seguir os trilhos abertos por Ialta, na cimeira que dividiu o globo em esferas de influência. O planeta multipolar dos nossos dias, com emergentes potências de âmbito regional, baralhou toda a lógica anterior, que a geração de Kissinger preferia, pois a política de blocos, ideologicamente antagónicos mas perfeitamente identificáveis, assegurou meio século de relativa paz em diversas regiões do globo.

Consumado xadrezista, Kissinger valorizava na política externa as linhas de continuidade estratégica em função das quais as alianças entre nações assumiam uma geometria variável ditada por conveniências tácticas. A aproximação simultânea de Washington a Moscovo e Pequim, sob o seu comando, aconteceu como via de exploração das divergências entre russos e chineses que à época fracturavam o mundo socialista e acabaram por disputar as boas graças dos EUA.

Neste aspecto foi hábil sucessor dos mestres da diplomacia oitocentista na Europa, desde logo Metternich, e opositor da visão messiânica dos Estados Unidos na promoção das boas práticas democráticas à escala planetária.

 

Culto, cosmopolita, viajado, com solidez intelectual e uma perspectiva abrangente do mundo, Kissinger adquiriu fácil relevância no contexto norte-americano, ou seja numa diplomacia globalmente sofrível - para não dizer medíocre. No tempo em que desempenhou funções de relevo em Washington, só 17 senadores tinham passaporte, o que revela muito sobre a classe dirigente dos Estados Unidos.

Há que lembrar, de qualquer modo, que se revelou fraco profeta em relação a Portugal, ao vaticinar em 1975 que o nosso país sucumbiria a uma "ditadura comunista" capaz de funcionar como "vacina" para o conjunto da Europa. E não esqueço o aval, directo ou indirecto, que deu aos generais indonésios para invadirem Timor.

Era uma figura compreensível no contexto da Guerra Fria - e sobretudo à luz desse contexto merece ser valorizada. Pelo menos sabia apontar qualquer país no mapa, teste em que provavelmente muitos dos seus antecessores e alguns dos seus sucessores falhavam.

Centenário

Pedro Correia, 27.05.23

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«As dificuldades são também um desafio. Não têm de ser sempre um obstáculo.»

Henry Kissinger, The Economist (Maio de 1923)

 

Viveu muito, leu muito, viajou muito, conheceu muito.

Ensinou muito - e continua a fazê-lo, com plena lucidez intelectual, neste dia em que celebra cem anos.

Henry Albert Kissinger, nascido a 27 de Maio de 1923 na Baviera, fugido com os pais do regime nazi, refugiado em Nova Iorque aos 15 anos. Em 1943, naturalizou-se cidadão americano. Serviu no exército dos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial. Escapou à morte, mas o sistema totalitário tocou-o de perto: 13 dos seus parentes sucumbiram no Holocausto.

Admirado, invejado e detestado em partes iguais, pontificou nas administrações Nixon e Ford entre 1969 e 1977. Primeiro como conselheiro da Segurança Interna, depois como secretário de Estado - terceiro posto na hierarquia governamental. No auge do caso Watergate, chegou a ser ele a segurar no leme. Enquanto rasgava horizontes na política externa norte-americana: liderou o degelo diplomático com a República Popular da China ao avistar-se com Mao Tsé-tung, levou Washington a substituir os soviéticos como força dominante no Médio Oriente ao assumir-se como interlocutor entre israelitas e árabes, negociou a limitação de armas estratégicas com Moscovo em plena Guerra Fria. 

 

Doutorou-se com uma tese sobre Metternich (1773-1859), príncipe da diplomacia no império austríaco, expoente máximo da doutrina realista contra os idealistas, responsáveis por tantos conflitos bélicos.

Nos anos 50 e 60 foi um dos mais famosos professores em Harvard, onde leccionou Ciência Política antes de rumar aos palcos mundiais como comandante norte-americano para os assuntos externos. Com várias sombras entre muitas luzes, incluindo o apoio activo às ditaduras de Pinochet no Chile e de Suharto na Indonésia (dando cobertura à invasão de Timor em 1975) e a sua falhada visão de um Portugal mergulhado no comunismo em 1975, útil como «vacina para a Europa». Ao contrário do que previa, os comunistas foram derrotados aqui. Enquanto ganhavam terreno em África e no Sueste Asiático: o Nobel da Paz que recebeu em 1973 pelos acordos de Paris anteriores à retirada norte-americana do Vietname ainda suscita polémica.

Facto inegável: foi um dos mais brilhantes intelectuais que trabalharam nos últimos 60 anos na Casa Branca. Após abandonar funções públicas, tornou-se consultor de monarcas, presidentes e primeiros-ministros. Já nonagenário, continuou a percorrer o mundo: só a pandemia, em 2020, o reteve na sua casa rural no Connecticut. Mas ainda frequenta regularmente o seu escritório, no 33.º andar de um edifício art déco em Manhattan. E continua a publicar livros. Tem dois muito recentes. Um sobre inteligência artificial (tema que o fascina e preocupa), outro sobre seis políticos que conheceu pessoalmente: Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Richard Nixon, Anwar Sadat, Lee Kuan Yew e Margaret Thatcher (Liderança, já com edição portuguesa da Dom Quixote).

Do antigo Presidente francês, cita com frequência uma frase emblemática sobre comando político: «Assumir riscos constantes numa perpétua luta interior.»

 

Em recente entrevista ao Sunday Times, pronunciou-se sobre a invasão russa da Ucrânia. Elogiando Zelenski: «Não há dúvida de que cumpriu uma missão histórica.» E criticando Vladimir Putin: «Chefia um país em declínio e perdeu o sentido das proporções nesta crise.»

Judeu, aos 9 anos o pequeno Heinz (só viria a chamar-se Henry na América) viu Hitler ascender ao poder no seu país natal, onde em menino adorava jogar futebol. Nem o exílio forçado nem o incêndio da Europa que testemunhou ao vivo diminuíram o proverbial optimismo que muitos lhe reconhecem. Mas vai advertindo contra os sinais de crescente desagregação da ordem mundial que imperou nas últimas três décadas: «A segunda Guerra Fria será ainda mais perigosa do que a primeira.»

Um aviso que deve ser levado a sério. Vem de quem sabe mais e viu muito mais do que qualquer de nós.

Figura internacional de 2022

Pedro Correia, 08.01.23

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VOLODIMIR ZELENSKI

Unanimidade quase total este ano: 19 dos 20 autores do DELITO que participaram na votação elegeram como Figura Internacional do Ano o Presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski. Do quase anonimato, tornou-se personalidade com ressonância planetária. Daí a nossa homenagem.

Sem qualquer intenção de sermos originais: já a revista Time tinha feito o mesmo

Foi apenas, no fundo, a confirmação do que havia acontecido ao longo de quase todo o ano, com o protagonista da resistência ucraniana a merecer contínuas referências aqui no blogue. Sobretudo desde que viu o seu país invadido pela força bélica russa, a 24 de Fevereiro. 

 

Na justificação do voto, algumas frases merecem ser destacadas. 

«Um verdadeiro herói, além de uma série de outros atributos, tem de ser um herói improvável. Zelenski cumpre todos esses critérios.»

«Líder improvável, mas um líder. Estóico, agitador de consciências, verdadeiro protector do seu povo. Guardião de um patriotismo ameaçado e alvo de tentativas de aniquilação. A sua liderança foi também capaz de tocar a reunir o Ocidente, congregado em torno da causa ucraniana.»

«Não sei o que é mais admirável nele: o sentido do dever? A intrepidez? A fortitude? A inteligência de se rodear das pessoas certas? A visão política? O patriotismo inspirador? A segurança sem arrogância? A capacidade de acção? A improbabilidade de todas estas virtudes misturadas numa só pessoa?»

Às vezes muito pode ser dito também numa simples frase. Como esta, a justificar igualmente a escolha em Zelenski: «Por ter restaurado o conceito de pátria.»

 

Houve ainda um voto isolado no secretário-geral da ONU. António Guterres, por sinal, também mencionado na votação para Figura Nacional do Ano.

Para o Presidente russo, Vladimir Putin, nada.

 

Figuras internacionais de 2010: Angela Merkel e Julian Assange

Figura internacional de 2011: Angela Merkel 

Figura internacional de 2013: Papa Francisco

Figura internacional de 2014: Papa Francisco

Figuras internacionais de 2015: Angela Merkel e Aung San Suu Kyi

Figura internacional de 2016: Donald Trump

Figura internacional de 2017: Donald Trump

Figura internacional de 2018: Jair Bolsonaro

Figura internacional de 2019: Boris Johnson

Figura internacional de 2020: Ursula von Der Leyen

Figura internacional de 2021: Joe Biden

Figura nacional de 2022

Pedro Correia, 07.01.23

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ANTÓNIO COSTA

É um regresso a esta galeria anual do DELITO DE OPINIÃO. O primeiro-ministro já tinha passado por cá em 2015, quando chegou ao poder mesmo sem ter vencido as legislativas. Era o início da geringonça que se manteve durante seis anos: o PS a governar com apoio parlamentar simultâneo de comunistas e bloquistas. 

Em 2022 abriu-se outro ciclo: o PS saiu vencedor incontestado da eleição antecipada, convocada pelo Presidente da República para 30 de Janeiro após a dissolução da Assembleia da República devido ao chumbo do Orçamento do Estado.

Todas as sondagens falharam: os socialistas emergiram das urnas com maioria absoluta. Cento e vinte deputados num total de 230. Foi a segunda vez que superaram a barreira dos 115, após José Sócrates em 2005.

Também com maioria absoluta, António Costa foi escolhido pelo DELITO como Figura Nacional do Ano. Recolheu 11 "boletins" de 20 eleitores - mantendo-se a regra aqui vigente desde o inicio: cada um de nós pode votar em mais de uma figura. Uns pela positiva, outros nem tanto. «O anti-reformador. Pela conquista da maioria absoluta e porque essa conquista confirma-o menos como um gestor de políticas e mais como um gestor da política como meio de conservar o poder, pondo o país refém dele», observou um dos membros da tribo "delituosa".

 

O facto é que o chefe do Governo deixou a larga distância todos os restantes. Desde logo Marcelo Rebelo de Sousa (três votos) e Cristiano Ronaldo (dois).

O mais célebre português do planeta justificou rasgados elogios, como este: «Conseguiu ser o jogador de futebol mais bem pago de sempre. Passar a receber 200 milhões por ano depois da sua péssima prestação no Mundial merece destaque absoluto.» E este: «Para uns desceu do pedestal, para outros caiu. E em torno dele adensou-se aquela nuvem roxa de ressentimento, inveja e azedume tão tipicamente portuguesa.»

 

Seguiram-se votos isolados em António Guterres («tem obtido sucessos na agenda climática»), Fernando Medina, o contribuinte português («apesar de todas as dificuldades nacionais e internacionais, está prestes a bater de novo o seu recorde»), as cientistas Rita Acúrcio, Rita Guedes e Helena Florindo («as três investigadoras portuguesas do grupo de quatro que descobriu uma molécula capaz de estimular o sistema imunitário a combater vários tipos de cancro») e ainda, como triste símbolo nacional, a bebé Jessica («morta às mãos de quem deveria tomar conta dela, em representação do enorme falhanço deste estado social, mas também da indiferença da sociedade»).

 

Figura nacional de 2010: José Mourinho

Figura nacional de 2011: Vítor Gaspar

Figura nacional de 2013: Rui Moreira

Figura nacional de 2014: Carlos Alexandre

Figura nacional de 2015: António Costa

Figura nacional de 2016: António Guterres

  Figura nacional de 2017: Marcelo Rebelo de Sousa

Figura nacional de 2018: Joana Marques Vidal

Figura nacional de 2019: D. José Tolentino Mendonça

Figura nacional de 2020: Marta Temido

Figura nacional de 2021: Henrique Gouveia e Melo

Adriano Moreira: cem anos

Pedro Correia, 06.09.22

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 Retrato de Adriano Moreira na galeria dos antigos presidentes da Sociedade de Geografia de Lisboa

 

A 10 de Julho de 2015, um senhor vestido formalmente, de cabelos brancos e testa alta, ergueu-se da cadeira onde estava sentado, numa livraria do centro de Lisboa, e durante três quartos de hora prendeu a atenção de algumas dezenas de pessoas que o escutavam com uma notável lição de história, geografia, geopolítica - tudo a pretexto da literatura.

Eu estava entre os que tiveram o privilégio de o escutar nesse fim de tarde. E admirei a impressionante rapidez de raciocínio, a notável fluência verbal e a claridade de ideias deste homem então com 93 anos. 

A expressão francesa sagesse aplica-se por inteiro a Adriano Moreira, que nessa tarde em Lisboa discorreu sobre a «comunidade de afectos» que a CPLP é acima de tudo - e como a língua comum funciona como poderoso traço de união entre os Estados-membros. Ao contrário do que sucedeu com outras antigas potências coloniais europeias, como a Bélgica ou a Holanda, incapazes de gerar laços afectivos com os povos residentes nas paragens que tutelaram.

 

Adriano Moreira foi subsecretário de Estado da Administração Ultramarina (1958-61) e depois ministro do Ultramar (1961-62) com António de Oliveira Salazar, de quem chegou a ser apontado como um dos seus mais jovens e promissores delfins. Enquanto ministro, aboliu a lei do indigenato - uma das medidas de maior alcance social alguma vez decretadas nos então territórios ultramarinos.

A corte da ditadura fervilhava de intrigas contra aquele jovem governante com 40 anos recém-cumpridos que se atrevia a revelar protagonismo num regime em que tantos progrediam na penumbra.

Um dia, em Dezembro de 1962, Salazar chamou-o e foi sucinto: «Nós acabamos de mudar de política.» Adriano Moreira foi igualmente sucinto: «Então acaba de mudar de ministro.»

 

Nunca mais reassumiu um posto governativo. Correu mundo, escreveu livros, (Tempo de Vésperas, O Novíssimo Príncipe), radicou-se no Brasil após o 25 de Abril, regressou a Portugal, foi eleito deputado e presidente do CDS, mais recentemente destacou-se como conselheiro de Estado. Tendo exercido a advocacia, nunca escondeu qual era a sua paixão de sempre: o ensino. Deu aulas durante dezenas de anos e deixou um rasto de admiradores em todos os continentes: é um dos portugueses com maior vocação universalista.

«A minha mãe ensinou-me que Deus é companheiro e nunca me esqueci disso. Nunca ando sozinho, nunca ando sozinho», declarou este católico convicto em Maio de 2015, numa longa entrevista ao jornal i.

Pensa bem e diz o que pensa. Gostem ou não do que ele diz. Se em Portugal existisse Senado, ele seria o nosso primeiro senador. Festeja hoje um século de nascimento, continuando a ser um sonhador. Ouvi-lo falar com tão espantosa agilidade mental, como tive o privilégio de o escutar há sete anos, foi para mim também uma lição de vida. 

Em louvor de Nelson Rodrigues

Pedro Correia, 23.08.22

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Nelson Rodrigues, nascido a 23 de Agosto de 1912 - faz hoje 110 anos - no Recife e falecido no Rio de Janeiro 68 anos mais tarde, a 21 de Dezembro de 1980, é um extraordinário prosador do nosso idioma. O seu legado, durante mais de meio século de escrita torrencial, a um ritmo avassalador, não está ainda devidamente catalogado.

«É provável que nenhum outro escritor brasileiro tenha produzido tanto», assinala o seu biógrafo e principal antologiador, Ruy Castro, sem esconder o fascínio por este jornalista que foi um polemista impenitente, um dramaturgo inconfundível e um transbordante produtor de pensamentos em fórmulas incisivas que não perdem actualidade.

 

«O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza», sublinhava este leitor compulsivo de Eça de Queiroz.

Nelson Rodrigues trouxe à língua portuguesa o fogo da paixão que punha em cada linha da sua lavra. Amava e odiava do mesmo modo desmesurado. Não renegava os adjectivos, antes pelo contrário, mas insuflava-os de um vigor semântico habitualmente reservado aos substantivos.

Coerente com esta perspectiva era a sua peculiar visão do jornalismo. Em sentenças como esta: «A crónica policial piorou porque os repórteres de hoje não mentem.» Ou esta: «Ai do repórter que for um reles e subserviente reprodutor do facto. A arte jornalística consiste em pentear ou desgrenhar o acontecimento e, de qualquer forma, negar a sua imagem autêntica e alvar.»

Poucos conheciam tão bem os jornais por dentro como este «génio da rotina», designação atribuída por O Globo, diário em que colaborou nos últimos 18 anos de vida, até ao próprio mês em que morreu.

 

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Era assim em tudo. A sua própria biografia o confirma. Uma biografia que se lê como um romance porque a vida verdadeira de Nelson Falcão Rodrigues, nascido sob signo Virgem e adepto fanático do Fluminense, imitou muitas obras de ficção.

Leiam O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro: está lá o retrato, vivo e impressivo, de um homem multifacetado, intempestivo, por vezes terno, outras vezes colérico, demasiadas vezes incoerente, eterno romântico, marcado por uma sucessão de dramas familiares e quase sempre tocado pelo génio que lhe incendiava a escrita. Um homem a quem muitos acusavam de "tarado" ou "imoral", que reconhecia ser um "reaccionário" e dizia de si próprio: «Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino.»

 

Foi um cronista excepcional, nado e criado num país que inventou e popularizou a crónica jornalística e a tornou uma insubstituível disciplina da literatura - com pares imensos neste género, como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade e Millôr Fernandes.

Tinha um estilo muito próprio, que forjou uma legião de imitadores, caracterizado pela constante repetição de ideias, metáforas e expressões como «grã-fina com narinas de cadáver», «padre de passeata» ou «tempestades do quinto acto do Rigoletto». E também pelo diálogo sincopado com o leitor, transformado em seu cúmplice involuntário e permanente.

 

Foi igualmente um inultrapassável produtor de frases que nos perduram na memória. Citando ainda Ruy Castro, com toda a justiça: «Ele é talvez o maior frasista da língua portuguesa.»

Aqui ficam algumas:

«Deus está nas coincidências.»

«Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor.»

«Todas as vaias são boas, inclusive as más.»

«Todo tímido é candidato a um crime sexual.»

«A cama é um móvel metafísico.»

«Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.»

«Só o inimigo não trai nunca.»

«Só os imbecis têm medo do ridículo.»

«Na vida, o importante é fracassar.»

«Invejo a burrice, porque é eterna.»

 

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Idolatrado pelas gerações mais jovens, enfastiadas com o estilo entorpecente e a prosa insípida dos amanuenses da escrita, Nelson Rodrigues conseguiu ver incorporadas expressões da sua lavra na linguagem comum, tornando-as património universal da língua portuguesa. Expressões como «toda unanimidade é burra»«óbvio ululante» e «um calor de derreter catedrais».

Faleceu num domingo, vítima de uma trombose. Nesse preciso dia, horas depois, ganhou o totobola brasileiro: as suas previsões bateram certo. Se sobrevivesse, seria rico - algo que nunca lhe aconteceu em vida. Até na morte a sua figura ganhou contornos de personagem de ficção. Como as que ele criou para peças tão controversas como O Beijo no Asfalto e Toda Nudez Será Castigada.

 

A morte, tal como o amor, é tema omnipresente na sua obra. Dizia ele que «a morte natural é própria dos medíocres». E fornecia abundantes exemplos em abono da sua tese: Lincoln, Gandhi, John Fitzgerald Kennedy. "O grande homem sempre morre tragicamente."

Paradoxo suplementar num homem que soube cultivar contradições como ninguém: 42 anos após a sua morte, Nelson Rodrigues ainda é a cara do Brasil real. Que melhor homenagem pode haver a um escritor do que esta?

 

Texto reeditado, com pequenas alterações

Dar luta à salmonela, inimiga declarada do SNS

Graça Freitas

Pedro Correia, 10.07.22

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Entramos em Julho e apetece dar graças (o trocadilho aqui funciona) por faltarem ainda 30 dias para que chegue o temível Agosto. Porque, acima de qualquer outro, esse é o mês menos recomendável para necessitar de cuidados médicos, segundo a advertência feita aos portugueses pela mais credenciada fonte: a directora-geral da Saúde.

No seu posto de incansável zeladora e cuidadora do sacrossanto Serviço Nacional de Saúde, Maria da Graça Gregório de Freitas, 64 anos, lançou o aviso: «A pior coisa que nos pode acontecer é adoecer em Agosto.»

Fala do que bem conhece, pois encontra-se desde 2018 à frente da autoridade sanitária nacional, onde aliás já antes pontificava como subdirectora. Poucos como ela podem pronunciar-se com tanta minudência sobre a manifesta incapacidade do SNS em prestar cuidados de saúde a quem cá vive. E também a quem nos visita, pois o mês que vem costuma atrair dezenas de milhares de turistas a este recanto soalheiro da Europa.

É indispensável que estes forasteiros desembarquem prevenidos com um manual de instruções para enfrentarem a precária rede sanitária pública. A menos que tenham a intenção expressa de experimentarem uma modalidade de turismo radical enquanto “utentes” (palavra agora muito na moda) da urgência de um hospital – incluindo naquelas unidades que há poucos anos eram consideradas modelos de excelência, quando estavam sob gestão privada. Como o de Braga, um dos estabelecimentos que há dias encerraram durante 24 horas o serviço de urgência de ginecologia e obstetrícia por falta de clínicos disponíveis. Cenário de terceiro mundo naquela que se orgulha de ser a cidade mais jovem do rectângulo lusitano.

 

Já conhecíamos a posição da ministra da tutela face ao colapso da rede hospitalar e ao contínuo êxodo de médicos para o sector privado: confrontada com críticas de todas as latitudes ao ponto de se ver forçada a interromper as férias, Marta Temido nomeou uma comissão para analisar o caso antes de voltar a banhos. Faltava ouvir Graça Freitas, também dotada de notáveis atributos oratórios. Valeu a pena esperar. A directora-geral rompeu o silêncio para nos recomendar máxima precaução contra o consumo do popular bacalhau à Brás. Porque este prato é confeccionado com ovos, que em período estival têm o risco acrescido de conterem salmonelas, fonte de intoxicações alimentares.

A salmonela – tal como os privados, que “só visam o lucro”, na perspectiva da coordenadora do Bloco de Esquerda, e os velhos “barões da medicina” diabolizados em lapidares versos do poeta Ary dos Santos – é inimiga declarada do SNS, do estado social, das “conquistas de Abril”.

Há que dar luta à salmonela, evitando adoecer. Sobretudo em Agosto, mês de todos os perigos. E há que evitar dar à luz, genericamente, durante todo o Verão na segunda nação mais envelhecida da Europa. A menos que se queira aguardar nove horas numa “urgência hospitalar” – se por acaso estiver aberta.

Este país não é para grávidas. Bem-haja, doutora Graça Freitas, pelo clarividente alerta que nos deixou.

 

Texto publicado no semanário Novo

Atenta a direitos, liberdades e garantias

Maria Lúcia Amaral

Pedro Correia, 29.06.22

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O Provedor de Justiça foi inovação introduzida na Constituição de 1976. Mas a eficácia desta instituição unipessoal depende muito das características de quem ocupa o cargo. Neste quase meio século, houve figuras que por ali passaram sem deixar rasto. Não é o caso de Maria Lúcia da Conceição Abrantes Amaral, 65 anos, provedora desde Novembro de 2017.

Primeira mulher neste cargo, tem-se pronunciado várias vezes sobre diversos assuntos, sem recear controvérsia ou incompreensão do poder político. É a única forma de desempenhar com zelo e manifesta utilidade o papel atribuído a quem ocupa o 12.º lugar na lista de precedências das altas entidades públicas, tal como determina o protocolo do Estado.

 

Professora catedrática de Direito Constitucional da Universidade Nova de Lisboa e anterior juíza do Tribunal Constitucional (2007-2016), de que chegou a ser vice-presidente, Maria Lúcia Amaral esteve em foco nos últimos dias ao criticar o famigerado artigo 6.º da pomposa Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. Se este artigo fosse aplicado, corríamos o sério risco de ver reintroduzida a censura oficial neste país que a suportou durante décadas. Desta vez de forma sonsa, mediante «selos de qualidade» atribuídos por «entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública» a pretexto do combate à desinformação.

Num pedido de apreciação da constitucionalidade desta lei – proposta pelo PS, secundada pelo PSD e votada em 2021 por unanimidade na Assembleia da República, indiferente às vozes críticas que já soavam – Lúcia Amaral alerta para a aparente «violação dos princípios da reserva de lei e da proporcionalidade na restrição da liberdade de expressão e informação». Lembrando esta evidência que passou despercebida a deputados habituados a votar sem ler o que aprovam: «A principal obrigação dos intervenientes estatais é abster-se de interferir e censurar, e garantir um ambiente favorável a um debate público inclusivo e pluralista.»

Apesar de o Tribunal Constitucional ainda não se ter pronunciado, há já sinais de que o PS está enfim disposto a rever o diploma.

 

A provedora agiu aqui em consonância com o Presidente da República, que já havia solicitado um parecer do TC sobre o tema. É sinal acrescido de que os direitos, liberdades e garantias estão salvaguardados por quem tem a missão institucional de zelar por eles. Na linha de outros recentes alertas de Lúcia Amaral – sobre a desprotecção social de trabalhadores independentes, a falta de apoio do Estado a pessoas forçadas ao isolamento profiláctico durante a pandemia ou a forma como são recolhidos e conservados os metadados pelas operadoras de telecomunicações.

Não por acaso, o número de participações de cidadãos à actual Provedora de Justiça tem sido o mais elevado desde a entrada em funcionamento deste órgão independente, eleito pela Assembleia da República mas por definição imune a pressões políticas. Indiciando que o sistema de freios e contrapesos – pedra angular de qualquer democracia liberal – é mais do que mera metáfora entre nós.

 

Texto publicado no semanário Novo.

A Saúde necessita de cuidados intensivos

Marta Temido

Pedro Correia, 20.06.22

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O Serviço Nacional de Saúde, peça central da narrativa propagandística do Governo, está a precisar de cuidados intensivos. Não é de agora, mas a situação agrava-se a ritmo acelerado. E o rosto desta crise, com picos caóticos que levaram ao encerramento de diversas urgências hospitalares nos últimos dias, é o da ministra da tutela. Que por vezes fala como se fosse recém-chegada ao cargo. Mas não é: Marta Alexandra Fartura Braga Temido de Almeida Simões, 48 anos, conduz o Ministério da Saúde desde Outubro de 2018. Recebeu elogios pelo combate à pandemia, a mesma lógica leva-a ser criticada neste momento de notório desgaste do SNS, incapaz de dar resposta aos problemas que se acumulam sem solução à vista.

Nenhuma máquina de propaganda oculta as evidências. «Existe um problema estrutural sério no SNS, que se está a agravar muito, de incapacidade de planeamento e gestão de recursos», declarou há dias Adalberto Campos Fernandes, antecessor de Marta Temido, pondo o dedo na ferida em entrevista à CNN portuguesa. É médico, foi ministro, sabe bem do que fala.

A profissão está envelhecida, o sector público há muito deixou de ser aliciante. Cerca de 40% dos clínicos de medicina geral e familiar têm mais de 65 anos. Os serviços de atendimento permanente revelam incapacidade de organizar escalas face aos recursos disponíveis. Os médicos somam mais de oito milhões de horas extraordinárias no SNS, tendo atingido em Maio o limite máximo previsto para o ano inteiro.

Metade dos obstetras já transitou para o privado. E a situação agrava-se neste período em que todos os dias recebemos milhares de turistas. O caso de uma grávida que perdeu o bebé por aparente falta de especialistas no hospital das Caldas da Rainha introduziu uma componente de tragédia num quadro que se tornou dramático. Desmentindo a imagem de inefável modernidade que o Governo tenta exibir ao mundo para atrair visitantes.

A ministra, que parecia desaparecida, falou enfim esta semana. Mas quase nada disse, refugiando-se numa oratória sem conteúdo, truque retórico que aprendeu com António Costa quando nada há de concreto para anunciar.

Não adianta iludir a questão, ocultando-a com torrentes de palavras. Os extenuados profissionais do SNS exigem de Marta Temido a revisão das carreiras, a garantia de melhores remunerações e a existência de condições de trabalho que lhes permitam exercer com eficácia a relevante missão que desempenham. Caso contrário, a sangria para os hospitais privados prosseguirá. Ou até o recurso à emigração.

Há em Portugal 1,3 milhões de cidadãos sem médico de família, contrariando todas as promessas feitas pelo primeiro-ministro em campanha eleitoral. Isto ajuda a perceber por que motivo 4,5 milhões de portugueses já optaram por seguros de saúde ou subsistemas como a ADSE.

Todos fazem um diagnóstico preciso da situação. E sabem que nenhum problema sério nesta área se cura com ideologia ou hossanas incessantes a um serviço público que necessita de atendimento urgente. Para não sucumbir de vez.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Ascender de quase nada a quase tudo

Cavaco Silva

Pedro Correia, 15.06.22

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Bastou um artigo de jornal e uma entrevista televisiva para se perceber, por contraste, o imenso vazio do principal partido da oposição. Cavaco Silva preencheu-o com a acutilância que já lhe conhecíamos de outros momentos. Incluindo aquele em que bastou um texto seu no Expresso sobre a «má moeda» para deitar por terra o precário executivo de Santana Lopes, no final de 2004.

Nessa altura, convém lembrar, Cavaco foi levado em ombros pelos mesmos que agora se apressaram a denegri-lo nas redes, em socorro de António Costa. Alguns, incorrigíveis, voltam a falar dele com indisfarçável preconceito social. Por ser da província, manter cerrada pronúncia algarvia e ter cumprido o ensino secundário numa escola técnica.

 

Costa, com instinto apurado, reagiu com esperteza. Visado nas palavras daquele que ocupou o palacete de São Bento entre 1985 e 1995, acusado de camuflar a ausência de espírito reformista com a espuma mediática debitada pelo seu aparelho de propaganda, o primeiro-ministro revelou que tenciona homenagear Cavaco em 2025, assinalando o 40.º aniversário da subida ao poder do professor de Boliqueime.

Bem pode fazê-lo: iniciou-se aí a década em que Portugal mostrou melhores indicadores económicos em democracia. Quando o PIB nacional chegou a crescer 7% em dois anos consecutivos, houve convergência real com os padrões europeus e a nossa economia se libertou do garrote imposto pela versão original da Constituição. Enquanto terminava o inaceitável monopólio da televisão pelo Estado, permitindo-se a existência de canais privados, e os reformados e pensionistas ganhavam acesso ao 14.º mês já auferido pelos trabalhadores no activo. Isto ajuda a compreender as duas inéditas maiorias absolutas conquistadas então pelo PSD.

 

Aníbal António Cavaco Silva – com duas outras maiorias no seu currículo, como candidato à Presidência da República, em 2006 e 2011 – tem hoje, aos 82 anos, suficiente autoridade moral para indicar a Luís Montenegro, recém-eleito 19.º presidente do PSD, qual o caminho a seguir.

Ao contrário do que aconteceu durante quatro anos sob a errática batuta de Rui Rio, o partido «deve ser muito claro na identificação do adversário político: o PS e o seu governo», sem se desviar por trilhos secundários. Para que Portugal «deixe de ser um país de salários mínimos».

 

Cavaco dispõe de autoridade noutro plano, ainda com maior significado. Por ser a prova viva de que o elevador social pode funcionar entre nós. Afinal de contas, foi o nosso primeiro – e até agora único, num quadro de sufrágio universal – Presidente da República civil não oriundo das endogâmicas famílias da classe média-alta alfacinha que há décadas se revezam nos circuitos de decisão. «Quem é o gajo?», perguntava Mário Soares quando ele ascendeu à presidência do PSD.

Alguém «de fora», que surgiu do quase nada e alcançou quase tudo. Superando com sucesso as delimitações territoriais dos clãs dominantes em Lisboa.

No fundo, tantos anos depois, é isto que alguns não lhe perdoam. No PSD também.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Arrumar a casa e gerir uma pesada herança

Luís Montenegro

Pedro Correia, 07.06.22

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As perspectivas de sucesso do PSD são cada vez menos risonhas: quatro anos de gestão errática de Rui Rio devastaram o partido. Fosse quem fosse o sucessor, teria sempre tarefa complicada. Os sociais-democratas, com o antigo presidente da câmara do Porto ao leme, perderam duas eleições legislativas e fracassaram na oposição ao poder socialista, agora muito mais robustecido.

O sucessor já tem nome e rosto: Luís Filipe Montenegro Cardoso de Morais Esteves, 49 anos, advogado. Distinguiu-se como líder parlamentar social-democrata entre 2011 e 2017, mas hoje está ausente do hemiciclo. Terá de relacionar-se com uma bancada escolhida por Rio, marcada pelo estilo que lhe foi impresso pelo dirigente cessante. Morno, cordato, quase amigável – precisamente o que agrada ao primeiro-ministro.

Missão nada fácil. E com reflexos óbvios na estrutura anímica do partido: a abstenção nestas directas do PSD rondou os 40%, com participação de pouco mais de 20 mil militantes, o que faz soar alarmes no estado-maior de Montenegro.

A seu favor, o forte apoio de quem votou – 72,5%, triunfo claro contra Jorge Moreira da Silva. Além de só haver eleições nacionais em Maio de 2024: serão as europeias. Até esse teste, não lhe faltará tempo para arrumar a casa. Devia começar por mudar a sede do partido, há décadas entrincheirado num palacete da Lapa lisboeta. E ampliar o universo eleitoral interno do PSD, imitando o ocorrido no PS em 2014. Nos tempos que correm, de progressivo desinteresse pela militância política tradicional, gestos como estes contam muito.

 

Em 2016, Marcelo Rebelo de Sousa fez um rasgado elogio a Montenegro a pretexto da comemoração dos 43 anos do concelho de Espinho, cidade natal do novo líder laranja, enaltecendo-lhe as qualidades cívicas e humanas. Como se estivesse a sinalizar-lhe a rota. De Belém não faltará incentivo subliminar ao homem que se distinguiu como tribuno em São Bento e um dia disse a Costa: «Governar não é geringonçar.»

Resta ver como reagirá um partido desgastado por incessantes questiúnculas internas. E se os eleitores ainda olharão o PSD como força política indispensável e necessária. Olhando o que acontece noutros países europeus, nada está garantido.

 

Se quer afirmar-se como dirigente de futuro, Montenegro deve começar por assumir sem complexos o melhor legado do PSD como porta-voz dos sectores mais dinâmicos da sociedade – na edificação das autonomias regionais, no fim da tutela militar sobre as instituições civis, na liberalização da economia, na construção europeia.

Tem de abandonar a absurda posição de Rio, que deixou o PS ocupar o centro enquanto punha o PSD a fugir da direita. Cabe-lhe, acima de tudo, escrutinar o Governo com acutilância e competência. Em questões que mobilizam o cidadão comum. Como os computadores anunciados mas que nunca chegaram às escolas, os hospitais que não passaram de chamariz para ganhar votos, os médicos de família cada vez mais escassos, as habitações prometidas mas inexistentes.

Só assim um partido da oposição se torna útil.

 

Texto publicado no semanário Novo.

O Presidente preso no seu labirinto

Marcelo Rebelo de Sousa

Pedro Correia, 31.05.22

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Frenético, hiperactivo, irrefreável, Marcelo Rebelo de Sousa anda em permanente corrida consigo próprio. Imaginando sempre os capítulos seguintes da telenovela política portuguesa, em que é um dos protagonistas. Sem ele, o enredo seria muito diferente.

Lida mal com o silêncio. Detesta imaginar-se esquecido. Não suporta a ideia de ficar reduzido a rodapé da História. Ele, que foi criado no Estado Novo e estudou em pormenor o singular «presidencialismo de primeiro-ministro» (definição de Adriano Moreira) que caracterizava esse regime concebido por Salazar, jamais se suporia confinado ao estatuto residual de corta-fitas, associado apenas à pompa ritualística da democracia.

No múnus presidencial, Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa, 73 anos, tem Mário Soares como arquétipo. Pela elevada fasquia que esse antecessor estabeleceu em três domínios: ser o chefe do Estado mais votado em reeleição, exercer uma «magistratura de influência» a partir do Palácio de Belém e cessar funções deixando no poder a sua família política de origem.

 

Destes objectivos, o primeiro já é inalcançável. O segundo vai ser posto à prova com a maioria absoluta socialista. O terceiro dir-se-ia hoje utópico face à crise existencial no PSD, que encolhe de sondagem em sondagem e desperdiça oportunidades para se reencontrar com a sociedade, como esta frustre campanha para a eleição directa do próximo líder confirmou.  

Soares findou o mandato, em Janeiro de 1996, edificando o sonho hegemónico de Francisco Sá Carneiro: um Presidente, uma maioria e um Governo. Mas à esquerda – com Jorge Sampaio em Belém, António Guterres em São Bento e o PS a imperar no hemiciclo. Marcelo viveu esse ciclo da pior maneira, condenado a comandar o PSD na oposição sem nunca ter chegado a primeiro-ministro.

Agora ambiciona atingir até 2026 a meta de Soares, em rigorosa simetria. Para tanto, tem de superar três obstáculos. Primeiro: a presença quase obsessiva de António Costa, com tendência crescente para ocupar todo o palco. Segundo: a reorganização de forças à direita do PS, que não depende dele. Terceiro: a sua manifesta falta de paciência para racionalíssimos lances de xadrez político.

 

No Governo, há quem queira condená-lo à irrelevância – e o astuto Marcelo está farto de saber isso. Mas o antídoto mais eficaz dificilmente passará pelo excesso de histrionismo presidencial que voltou à tona nesta visita de Estado a Timor, nem pelo uso imoderado da palavra, como quando comunicou aos jornalistas no Dubai que Costa estaria a caminho da Ucrânia. Num regresso pouco recomendável aos tempos em que era um dos maiores fornecedores de manchetes da vida política nacional.

Eis o Presidente preso no seu labirinto: as legislativas de 30 de Janeiro, que ele mesmo convocou, vieram alterar as regras do jogo. «O importante não é o valor das palavras. O que importa é saber quem manda», dizia o Coelho Branco à Alice. Era no País das Maravilhas, mas também se aplica a Portugal.

 

Texto publicado no semanário Novo.

O abismo depois do êxito, esse velho impostor

João Rendeiro

Pedro Correia, 23.05.22

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A trágica morte de João Rendeiro ilustra melhor do que mil sermões como é ilusório o clarão dos holofotes, que iluminam por instantes e logo se apagam, deixando a vedeta da véspera submersa na penumbra. À glória fácil sucede-se a queda sem remissão. Aconteceu com o banqueiro que teve parte da classe dirigente e da constelação jornalística a seus pés, quando ganhou fama de multiplicar os dividendos de ricos e poderosos. Triste ironia, terminar os seus dias tão longe desse mundo de seda e cetim, num país distante, entre os escorraçados da sociedade.

Os mais cínicos dirão que o lisboeta João Manuel Oliveira Rendeiro, nascido há 69 anos em família de classe média oriunda de Aveiro e agora encontrado sem vida numa cela sul-africana, por aparente enforcamento, teve o que merecia. Mas num país que se orgulha de haver abolido o tratamento prisional desumano, práticas de tortura em estabelecimentos estatais e a pena de morte, é imoral alguém congratular-se com o desaparecimento seja de quem for, sobretudo em circunstâncias destas. Trate-se de um milionário caído em desgraça ou do mais humilde varredor de ruas.

 

É verdade que Rendeiro, fundador e antigo homem forte do Banco Privado Português, promovido com a ajuda de muitas figuras mediáticas e habituado durante anos a gerir fortunas, criou um monstro financeiro que acabou por devorá-lo. Já era assim, em estrito rigor, quando as manchetes da imprensa mais complacente lhe colavam o rótulo de «banqueiro dos ricos».

Cometeu, sem dúvida, vários pecados capitais – incluindo o de acreditar no seu próprio mito. E era um foragido à justiça: fora condenado, em última instância, num dos processos criminais que lhe haviam sido instaurados. Neste caso, a cinco anos e oito meses de prisão efectiva por falsidade informática e falsidade de documentos

Escapou para a África do Sul, perante a chocante benevolência de um sistema judiciário que lhe concedia garantias sem lhe impor deveres, e só viria a ser localizado pelas autoridades policiais após uma célebre entrevista que assinalou o início das emissões da CNN portuguesa. Expondo a nossa investigação criminal ao ridículo.

Como outras opções que foi tomando, numa vida que dava um filme sem final feliz, também esta se revelou desastrosa. Dizia agir «em legítima defesa», recusando ser «bode expiatório do sistema financeiro nacional». Sem perceber que continuava a dar passos na direcção errada.

 

Poucas derrocadas pessoais terão sido tão abruptas. Dos supostos milhões que haveria amealhado nas Ilhas Virgens britânicas, enquanto gestor das ilusões alheias, à quase-indigência que nem lhe permitia pagar os serviços jurídicos da advogada sul-africana. Também sem assistência consular, como se fosse apátrida.

De algum modo, teve o destino que escolheu. Até em sentido literal, enquanto reverso do êxito, esse velho e astuto impostor. Como escreveu o poeta espanhol Juan Bonilla, «todo suicidio es un crimen pasional. / El suicida se sacrifica siempre / por un amor no correspondido.»

 

Texto publicado no semanário Novo.

Tabelião de Costa no hemiciclo de S. Bento

Eurico Brilhante Dias

Pedro Correia, 18.05.22

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Esta foi a semana em que se dissiparam os disfarces: o PS dispõe de maioria absoluta e vai usá-la até ao limite, abusando dela se for necessário. Acaba de acontecer a propósito da inaceitável comissão de recepção russa a refugiados de guerra ucranianos na Câmara de Setúbal, quando já se sabemos que esses supostos agentes do Kremlin andavam há anos a ser investigados pelos serviços de informações portugueses.

O chumbo socialista à audição do autarca setubalense, requerida por bancadas da oposição, teve pelo menos a virtude de confirmar que o PS não brinca às maiorias absolutas. A vida parlamentar será doravante aquilo que António Costa ditar ao líder nominal da bancada rosa, por sinal alguém que na campanha interna do partido, em 2014, alinhou com António José Seguro. Parece ter sido há uma eternidade.

 

Eurico Jorge Nogueira Leite Brilhante Dias, 50 anos, sucedeu a Ana Catarina Mendes como dirigente dos socialistas no hemiciclo de São Bento. Mas o verdadeiro líder parlamentar é o próprio António Costa, ninguém duvida. Neste caso tendo como figura intermédia precisamente Ana Catarina, entretanto nomeada ministra dos Assuntos Parlamentares. Não se prevê turbulência, ao contrário do que sucedeu na malograda legislatura 1999-2002, à época do hesitante António Guterres, quando o PS estava a um deputado de preencher a maioria absoluta, com 115 deputados.

Brilhante Dias, que foi secretário de Estado da Industrialização entre 2017 e 2021, causou celeuma em Setembro do ano passado ao afirmar que «nós ganhámos com a covid-19», mesmo com tantos mortos, porque «Portugal mostrou-se um país muito organizado que enfrentou uma realidade muito disruptiva com sucesso». Uma semana depois, como é hábito entre nós, já tudo estava esquecido. Costa até o recompensou, designando-o para a actual função. Ele, grato, agirá como prestável tabelião do que for decidido superiormente.

 

Só faltou ao PS uma narrativa consistente para justificar o veto à audição do autarca de Setúbal, que já recusara esclarecer a Assembleia Municipal da cidade sadina não apenas sobre as ligações à Rússia mas também sobre o facto de o município funcionar desde 2018 sem encarregado da protecção de dados, incumprindo a lei.

Alegam os socialistas que não compete à Assembleia da República fiscalizar o desempenho de responsáveis autárquicos. Não pareciam pensar assim há onze meses, quando aprovaram a deslocação ao parlamento de Fernando Medina, enquanto presidente da câmara de Lisboa, para ali ser questionado sobre a lista de activistas da oposição russa fornecida à embaixada de Moscovo em Portugal pelos serviços camarários.

Menos debate, menos esclarecimentos, menor transparência: não parece animador o novo guião em São Bento. Se ainda fosse secretário de Estado, talvez Brilhante Dias repetisse que Portugal é capaz de enfrentar «uma realidade muito disruptiva com sucesso». Quem diz Portugal, diz o PS – como se fossem sinónimos.

Desta vez não disse, mas se calhar pensou.

 

Texto publicado no semanário Novo.

A guerra na Ucrânia provoca estilhaços em Setúbal

André Martins

Pedro Correia, 10.05.22

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O Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV), fundado há 40 anos para ser muleta eleitoral do PCP, anda em maré de azar. No plano nacional e no plano autárquico. Primeiro foi riscado do mapa parlamentar, nas legislativas de 30 de Janeiro. Agora que tinha finalmente um presidente de câmara, eleito em Setembro na lista da CDU para liderar Setúbal, esta cidade torna-se notícia por maus motivos.

Em plena guerra provocada pela Rússia na Ucrânia, o autarca setubalense, André Martins, foi acusado de ter ao serviço do município, para acolher refugiados oriundos do país invadido, duas pessoas relacionadas com a potência invasora. A recepção de 160 ucranianos na cidade do Sado esteve a cargo de um casal suspeito de manter vínculos ao Kremlin: o russo Igor Kashin, antigo presidente da Casa da Rússia e do Conselho de Coordenação dos Compatriotas Russos em Portugal, e Yulia Kashin, funcionária da câmara setubalense e presidente da Associação dos Emigrantes de Leste (Edinstvo). Facto que legitimou protestos de organizações ucranianas, indignou a oposição camarária e logo transbordou para as notícias.

André Valente Martins, 68 anos, viu-se forçado a tomar três decisões simultâneas para conter maiores danos reputacionais. Retirou o casal russo do polémico processo de acolhimento aos ucranianos, revogou o protocolo de cooperação que a Câmara de Setúbal mantinha desde 2005 com a Edinstvo, à qual terá pago quase 90 mil euros nos últimos três anos, e nomeou enfim um encarregado de protecção de dados no município. Cumprindo – só quatro anos depois – a legislação existente desde Maio de 2018.

Questionado repetidas vezes pelos jornalistas, o autarca “verde” pouco ou nada esclareceu. Esta quarta-feira, manteve o mutismo na reunião pública do executivo municipal, alegando que só esclarecerá tudo no âmbito da sindicância promovida pela Inspecção-Geral de Finanças, a pedido do Governo, e do inquérito em curso na Comissão Nacional de Protecção de Dados.

Ser-lhe-á difícil alegar desconhecimento, dada a sua ligação com mais de 20 anos ao município. Entre 2001 e 2017 foi vereador com vários pelouros (ambiente, turismo, actividades económicas, urbanismo, mobilidade urbana). De 2007 a 2017 assumiu a vice-presidência, como braço direito de Maria das Dores Meira, e nos quatro anos seguintes presidiu à Assembleia Municipal de Setúbal. Até substituir a comunista – eleito por 34% dos votos, sem maioria absoluta – nas últimas autárquicas.

«Juntos vamos continuar a fazer Mais Cidade e a construir Mais Setúbal. Agradeço o apoio e a amizade de Igor Khashin», escreveu André Martins numa rede social a 12 de Maio de 2021. Confirmando a forte ligação ao russo que imprevistamente projectou este licenciado em Sociologia, natural de Castelo Branco, para as manchetes de âmbito nacional. Eram bem mais tranquilos os tempos em que ia preenchendo a quota dos “verdes” como deputado na Assembleia da República (1989-1995), deputado municipal em Lisboa (1989-1997) e deputado municipal na Guarda (1997-2001). Sempre à boleia do PCP.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Visitar o agressor e só depois o agredido

Pedro Correia, 03.05.22

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A imagem não podia ser mais reveladora da impotência e da inutilidade da organização criada em 1945 pelos vencedores da II Guerra Mundial: o ditador russo recebeu o secretário-geral da ONU em Moscovo sem um cumprimento, sem um sorriso protocolar – muito menos sem o afável aperto de mão que dispensou a Marine Le Pen quando a diva da extrema-direita gaulesa o visitou em 2017.

António Manuel de Oliveira Guterres, 73 anos, dialogou com Vladímir Putin – e o verbo dialogar não passa aqui de eufemismo – numa longa mesa que os colocava a mais de seis metros de distância. Lembrando a de Citizen Kane, quando o magnata e a esposa já nada tinham a dizer um ao outro após anos de casamento infeliz.

«Missão humanitária», sublinhou o antigo primeiro-ministro português, que permaneceu dois meses encerrado no palácio de vidro em Nova Iorque enquanto a Ucrânia ardia e a Europa assistia à maior deslocação de gente em fuga no continente ocorrida nas últimas oito décadas. Quando enfim decidiu atravessar o Atlântico, já com dez milhões de ucranianos desalojados dos seus lares, Guterres optou por visitar primeiro a potência agressora e só depois a nação agredida. Insólita ordem de prioridades talvez para salvar a face de Moscovo após as recentes derrotas russas em votações no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral das Nações Unidas.

 

Putin, detentor do maior arsenal atómico do planeta e salvaguardado pelo direito de veto que mantém para travar os efeitos práticos de qualquer resolução hostil na ONU, assumiu pose de czar ao dignar-se receber o português no Kremlin.

Se a intenção da visita era demovê-lo de praticar novas atrocidades, foi perda de tempo. Se visava apenas debitar platitudes, Guterres cumpriu o plano. Mostrou-se «muito preocupado com a situação humanitária na Ucrânia», admitiu que a Federação Russa possa ter acumulado «muitos ressentimentos» em anos precedentes e proclamou-se «mensageiro da paz». Missão em que o Papa Francisco supera sem dificuldade o católico socialista que em 2001 abandonou o «pântano» político português para mergulhar 15 anos depois nas águas pantanosas da diplomacia mundial.

 

A frase mais contundente do secretário-geral da ONU em Moscovo, antes de visitar Kiev, foi proferida após a audiência com Putin. Lembrando que há forças militares russas na Ucrânia e não soldados ucranianos na Rússia. Terminou aí a ousadia verbal de Guterres. Bem diferente de um dos seus antecessores, o ganês Kofi Annan, que em 2004 criticou com dureza a intervenção norte-americana no Iraque, considerando-a «ilegal», e em 2006 acusou Washington de desrespeitar o direito internacional em matéria de direitos humanos durante as campanhas militares e no combate ao terrorismo.

Estilos diferentes, contextos diferentes, alvos diferentes. Putin, leitor de Maquiavel, prefere ser temido a ser amado. Guterres situa-se no extremo oposto: ninguém o receia. Até ganha na comparação, embora não pareça.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Estreia calamitosa como líder parlamentar

Paula Santos

Pedro Correia, 27.04.22

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O PCP é uma organização de ritmos lentos. Tão lentos que o fazem andar em contramão nos trilhos da História.

No plano interno, utiliza um jargão incompreensível para a grande maioria dos portugueses neste século XXI, num país quase sem indústria e portanto destituído daquilo a que o velho partido insiste em chamar «classe operária».

No plano externo, os comunistas ainda se orientam pelo guião da Guerra Fria, concluída em 1991 com a derrota soviética. Indiferentes aos factos, olham para Moscovo como «o sol da terra», fiéis à frase devota que Álvaro Cunhal consagrou na década de 70. Vladímir Putin, que foi tenente-coronel do KGB mas nada tem hoje de comunista, merece-lhes a mesma veneração beata que noutras épocas lhes mereceu Estaline ou Brejnev.

 

Na sua história centenária, nunca o PCP foi dirigido por uma mulher – aqui também inspirado no «sol da terra», pois desde a imperatriz Catarina a Grande, falecida em 1796, jamais a Rússia voltou a ter comando feminino.

Apesar de tudo, vão ocorrendo inovações entre os espessos muros da sede situada na Rua Soeiro Pereira Gomes: há agora, pela primeira vez, uma deputada à frente do grupo parlamentar comunista, circunscrito a seis elementos desde as legislativas de 30 de Janeiro. A escolha recaiu em Paula Alexandra Sobral Guerreiro Santos Barbosa, setubalense de 41 anos e apresentada como «química» de profissão embora seja funcionária do partido, como ali é regra.

No parlamento desde 2009, Paula Santos teve calamitosa estreia como dirigente da sua bancada. Coube-lhe a ingrata missão de dar a cara em defesa do indefensável, tarefa que lhe foi confiada pela cúpula do Comité Central, guardiã dos dogmas, atenta ao menor indício de heresia.

Anunciou ela, lendo um papel nos Passos Perdidos, que os seis comunistas recusariam escutar a mensagem dirigida pelo Presidente da Ucrânia ao parlamento português. Pretexto invocado: Volódimir Zelenski «personifica um poder xenófobo e belicista rodeado e sustentado por forças de cariz fascista e neonazi». Argumento decalcado da narrativa oficial russa, tornando o PCP cúmplice moral do Kremlin, que pratica crimes de guerra na Ucrânia desde 24 de Fevereiro.

 

Que sentido faz isto? Nenhum. Excepto reforçar a coerência dos comunistas portugueses. Convém recordar que este é o mesmo partido que em Dezembro de 2011 rejeitou associar-se a um voto de pesar na Assembleia da República pelo falecimento de Vaclav Havel, primeiro presidente da República Checa democrática. Que em Fevereiro de 2014 recusou condenar os crimes contra a humanidade cometidos pelo regime totalitário da Coreia do Norte. Que em Novembro de 2014 não subscreveu um voto de congratulação pelo 25.º aniversário da queda do Muro de Berlim. E que em Abril de 2017 votou contra uma resolução que condenava o uso de armas químicas na Síria, onde a Rússia protege o ditador Bachar Assad.

Fiéis à cartilha ideológica, alinham com o carrasco contra a vítima. O sol de Moscovo cega quem se fixa em excesso nele.

 

Texto publicado no semanário Novo.

Flores de retórica em celebração da Primavera

António Costa Silva

Pedro Correia, 21.04.22

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Um bom teórico não tem necessariamente de ser um bom político. Na maior parte das vezes, aliás, os teóricos só entram na política para atrapalhar e não para ajudar. Quando aterram no Governo, a coisa complica-se.

Parece ser o caso do recém-empossado ministro da Economia e do Mar, que vinha aureolado de ser o autor do plano de recuperação económica do país após a grave crise provocada pela pandemia. O esforço intelectual valeu-lhe entusiásticos adjectivos de certos comentadores com lugar cativo na imprensa económica que nunca se cansam de praticar a lisonja para agradar aos poderes de turno.

Tanto o elogiaram que ele chegou ao ministério com sede na Rua da Horta Seca, substituindo o ponderado Pedro Siza Vieira, afastado sem justificação plausível. E há que dizer sem rodeios: a estreia de António José da Costa Silva, aos 69 anos, em debates parlamentares não passou despercebida. Desde logo por ter escorregado na primeira casca de banana que o Bloco de Esquerda lhe pôs à frente. Em resposta ao repto que dali lhe foi lançado na sessão de apresentação do programa do XXIII Governo Constitucional, apressou-se a anunciar a criação de um novo imposto. Para que o Estado possa arrecadar parte dos «lucros aleatórios e inesperados» das empresas.

 

Foi um momento extraordinário, este em que vimos o titular da Economia transfigurar-se em directo. Recusando ser o primeiro aliado do tecido empresarial para se assumir como porta-voz aleatório e inesperado do Ministério das Finanças enquanto o seu colega desta pasta se remetia ao silêncio.

Quase tão memorável foi o perfume das flores de retórica que Costa Silva espalhou no plenário, talvez em louvor e celebração da Primavera. Algumas pareciam decalcadas de cursos por correspondência de auto-ajuda. Eis um exemplo: «Nós podemos sempre sonhar e temos um país que permite sonhar. E a minha função aqui não é puxar o país para baixo, é puxar o país para cima.» Outro: «Muita gente diz que aquilo que estamos a propor é impossível. Mas viver é tornar possível o impossível.»

 

As paredes do vetusto hemiciclo, habituadas a linguagem mais prosaica, até vibraram. Na bancada socialista e até em certos parlamentares sociais-democratas muito próximos de Rui Rio viam-se rostos embevecidos com esta homilia inaugural do ministro, espécie de cruzamento de Boaventura Sousa Santos com Paulo Coelho. Só lhe faltava envergar túnica em vez do fato.

No dia seguinte, o encantamento quebrou-se. Certamente por sugestão do chefe do Governo, mais vocacionado para gerir o possível do que para sonhar o impossível, Costa Silva comunicou à nação que o tal imposto extraordinário não fora sequer abordado no Conselho de Ministros. Decepcionando decerto Catarina Martins e Mariana Mortágua, para quem uma empresa ter lucro é imperdoável pecado. Mas aliviando quem produz riqueza, estimula a inovação e gera postos de trabalho. Falta saber até quando. É só aguardar pela próxima prédica ministerial.

                                               

Texto publicado no semanário Novo.