Estátuas para derrubar (6)
Estátua de Fidel Castro, há dias inaugurada por Vladimir Putin em Moscovo
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Estátua de Fidel Castro, há dias inaugurada por Vladimir Putin em Moscovo
Foto: Esquerda.net
Os deputados do Bloco de Esquerda não aplaudiram nem se levantaram dos assentos, como recomendam as regras do procotocolo e a mais elementar boa educação, no final do discurso do Rei de Espanha - o primeiro Chefe do Estado estrangeiro a comparecer numa sessão solene da Assembleia da República em seis anos. Motivo? "O Bloco de Esquerda mantém a posição de sempre, republicana, e não naturaliza relações de poder com base em relações de sangue e não em actos democráticos", alega um "responsável" bloquista, não identificado, ao jornal Público.
Acho estranho que o Público não identifique o tal "responsável" do BE, como se estivesse em causa a divulgação de um segredo de Estado. E não entendo o significado da expressão "não naturaliza relações de poder": deve ser jargão destes tempos pós-verdade em que vivemos.
Mais estranho ainda é ver os bloquistas subitamente tão alérgicos ao poder com base em "relações de sangue". Vinte e quatro horas antes, o Bloco de Esquerda viabilizara no Parlamento dois votos de pesar pela morte de Fidel Castro, um dos quais apontava o falecido ditador cubano como "referência incontornável para os povos da América Latina".
Acontece que Castro dirigiu Cuba durante 49 anos sem nunca ter sido sufragado por qualquer acto democrático e transmitiu ainda em vida todos os poderes - na chefia do Estado, no comando supremo das forças armadas e na liderança do partido único - ao seu irmão Raúl, general do exército.
Acontece também que o nome mais falado em Havana para suceder a Raúl é o seu filho, Alejandro Castro Espín, o que permitirá à família Castro conservar as rédeas do poder absoluto, iniciado em Janeiro de 1959, quando 90% dos actuais deputados do Bloco ainda nem sequer tinham nascido. Deputados como José Soeiro, que confessou ao jornal El Mundo sentir "muita dificuldade" em prestar homenagem a "chefes de Estado que nunca foram eleitos". Numa involuntária crítica póstuma ao tirano cujas cinzas por estes dias percorrem vilas e cidades de Cuba.
"Relações de sangue" como fundamento do poder - eis o que sucede em Cuba há quase 58 anos. Espero um dia destes ouvir o BE condenar a monarquia vermelha que detém trono e ceptro em Havana. Mas esperarei sentado, imitando os fatigados parlamentares do Bloco.
Adenda: em Março, o BE comportou-se com Marcelo Rebelo de Sousa, na sessão de investidura do Presidente da República, como fez oito meses depois com o Rei de Espanha. O que anula o argumento agora invocado.
De la energía nuclear a la moringa, los proyectos inacabados de Fidel Castro
Despedido "como un perro" por ironizar sobre Fidel Castro
Estudiantes de periodismo acorralaron a Fidel Castro en una reunión secreta en 1987
Excelente capa, a do Courrier International. Com um dos melhores títulos que li por estes dias para assinalar a morte de Fidel Castro: "Cuba libertada."
O jornalismo de qualidade é assim: consegue dizer quase tudo com um número mínimo de palavras. Neste caso bastaram duas.
Huber Matos (à direita) com Fidel Castro em 1959
Arnaldo Ochoa (à esquerda) com Fidel Castro em 1961
Nenhum ser humano bem formado se congratula com a morte de outro ser humano. Mas um democrata alegra-se sempre perante a expectativa de um fim próximo de um regime autocrático.
Na morte de Fidel Castro - que por ironia mencionou Cristo na sua última reflexão pública, difundida a 9 de Outubro - penso nos inúmeros perseguidos pela ditadura implantada há quase 58 anos em Cuba. Todos, ou quase, acreditaram nas promessas de liberdade, traídas pelo novo tirano que envelheceu no cargo sem nunca ter abdicado da menor parcela do seu poder absoluto.
Penso no general Arnaldo Ochoa, que foi o oficial mais graduado do exército, proclamado Herói da Revolução e líder das operações militares em Angola, de que Castro se serviu para a sua propaganda “internacionalista”: acusado de traição à pátria, foi detido em Junho de 1989 pela polícia política e condenado sumariamente à morte por um tribunal fantoche e logo executado, sem lhe ser reconhecido o direito a uma defesa minimamente justa.
Penso em Guillermo Cabrera Infante, um dos melhores escritores latino-americanos do século XX, forçado em 1965 a um exílio perpétuo que o levou a trocar o sol caribenho pelas brumas de Londres, onde sucumbiu de nostalgia, por ter ousado gerir com irreverência o Conselho Nacional de Cultura e o Instituto de Cinema nos primeiros anos da era pseudo-revolucionária.
Penso em Heberto Padilla, poeta encarcerado em 1971 pelo “crime” de pensar e escrever como um homem livre, atirado para os cárceres castristas na sequência de um recital de poesia em Havana considerado “subversivo” – ele que escreveu estes versos corajosos: “Muerte, / no te conoszco, / quieren cubrir mi patria / con tu nombre.”
Penso em Huber Matos, combatente na Sierra Maestra e revolucionário da primeira hora, o primeiro crítico da deriva autoritária do novo regime. “Es bueno recordar que los grandes hombres comienzam a declinar cuando dejan de ser justos”, escreveu ele numa desassombrada carta a Fidel Castro que em Outubro de 1959 lhe valeu 20 anos de prisão, seguido da expulsão de Cuba, onde nunca foi autorizado a regressar.
Penso em muitos outros cubanos, uns já desaparecidos outros ainda vivos mas condenados à morte cívica e ao banimento vitalício em sucessivas purgas promovidas pelas patrulhas ideológicas do castrismo ou vítimas dos anátemas políticos lançados pelo regime: Antón Arrufat, Arturo Sandoval, Bebo Valdés, Belkis Cuza Malé, Cachao López, Carlos Alberto Montaner, Carlos Franqui, Celia Cruz, Eliseo Alberto, Eloy Gutiérrez Menoyo, Gustavo Arcos, Jesús Díaz, Néstor Almendros, Norberto Fuentes, Olga Guillot, Orlando Jiménez Leal, Paquito d' Rivera, Pedro Luis Boitel, Raúl Rivero, Reinaldo Arenas, Severo Sarduy, Virgilio Piñera, Willy Chirino, Zoe Valdés.
Sob a mão de ferro dos irmãos Castro, Cuba tornou-se um país que "mata os seus heróis", na definição lapidar de Cabrera Infante. País de suicidas e desterrados, onde a luz da esperança se foi tornando cada vez mais precária e vacilante.
Herbert L. Matthews com Fidel Castro
E se Adolf Hitler, quando saiu da sua Linz natal para concretizar o sonho de ser pintor, não tivesse chumbado na admissão à academia de belas-artes de Viena? A pergunta, para quem gosta de fazer leituras psicológicas da história universal, tem razão de ser: um Hitler reconhecido como artista pela elite vienense jamais teria precipitado a II Guerra Mundial.
E se James Dean não tivesse desaparecido tragicamente, ao volante de um Porsche prateado, com apenas 24 anos, em 1955? Imaginemo-lo disforme e grotesco como o Brando crepuscular ou destruído pela sida, como aconteceu a Rock Hudson: não sobraria espaço para o mito, só possível porque os deuses o levaram tão jovem para o seu Olimpo.
Uma porta que se fecha na cara, um pouco mais de pressão sobre um pedal: um quase-nada capaz de mudar o mundo. “O acaso é uma parte da realidade. O inesperado acontece nas vidas de todos nós com uma regularidade quase entorpecente.” São palavras de Paul Auster, um dos autores contemporâneos que mais têm sublinhado a importância do acaso na viragem de qualquer vida. Quantas vezes a realidade não supera os mais assombrosos cenários de ficção?
Herbert L. Matthews foi um daqueles homens cujas vidas mudaram para sempre num só dia, que para ele constituiu simultaneamente o apogeu da sua carreira de jornalista e uma data fatídica que jamais o largou. Era um repórter que se distinguira ao serviço do New York Times na Guerra Civil de Espanha e na II Guerra Mundial antes de o instalarem, durante uma década, num gabinete de editorialista. Naquele dia, 17 de Fevereiro de 1957, conseguiu o furo da sua vida: entrevistou Fidel Castro na Sierra Maestra.
Castro liderava um pequeno grupo de guerrilheiros que se opunham à ditadura de Fulgencio Batista mas era praticamente desconhecido fora de Cuba. Foi Matthews quem o transformou num mito ao projectá-lo para a manchete do seu jornal a 24 de Fevereiro, uma semana após ter entrevistado o jovem comandante barbudo que Batista jurara ter morto uns meses antes. Afinal Fidel não só estava vivo como comandava “centenas de homens”, como Matthews garantira na reportagem.
O veterano jornalista, já com 57 anos, deixara-se iludir: Castro tinha apenas 18 homens armados na Sierra Maestra. Mas o mito do resistente hercúleo estava lançado: o furo jornalístico transformou-se no maior veículo de propaganda da “revolução” cubana, que triunfaria menos de dois anos depois – e se transformou numa ditadura mais feroz e muito mais longa do que a de Batista.
Matthews, antes tão louvado pela sua proeza, passou a ser contestado nos Estados Unidos à medida que Castro revelava a sua face de autocrata sem escrúpulos. Considerado um herói em Cuba, país que continuou a visitar quase até à morte, em 1977, recebeu críticas contundentes dos seus próprios colegas, que o consideraram um peão ao serviço do comunismo castrista.
Depois de se reformar do New York Times, em 1967, radicou-se na Europa e na Austrália. Obstinado até ao fim, nunca denunciou o carácter ditatorial da “revolução” nem admitiu ter-se enganado quando assegurou aos leitores que Castro era um democrata genuíno que só pretendia instaurar a democracia na ilha. Em 1969, ainda o considerava “um dos homens mais extraordinários do nosso tempo”, dando razão aos seus críticos: o jornalista que denunciara a ditadura de Batista era incapaz de denunciar a ditadura de Castro.
Outro repórter do New York Times, Anthony De Palma, disseca este caso num livro brilhante, editado em Portugal pela Bizâncio: O Homem que Inventou Fidel. Tese: Matthews tornou-se prisioneiro da sua manchete. Reconhecer os erros do ditador “teria diminuído a sua própria importância” enquanto jornalista que o deu a conhecer ao mundo. Conclusão: por vezes é muito ténue a linha que separa a verdade do mito e mesmo um jornalista experimentado pode cair nas malhas da propaganda.
A vida de Matthews teria sido bem diferente se não tivesse subido à Sierra Maestra naquele dia, escapando à monotonia do trabalho de gabinete em busca, mais do que de uma notícia, do “reconhecimento” que, segundo Hegel, é uma característica inerente à espécie humana.
Sem esse golpe do acaso, perderia uma cacha mundial mas mantinha incólume a sua reputação, que assim foi de algum modo manchada para sempre.
Texto reeditado
Hoje e nos próximos dias suceder-se-ão as análises sobre a vida e o papel político de Fidel Castro, uma das personalidades mais fortes e marcantes do século XX. Porém, a morte do líder cubano deve convidar-nos também a relembrar todos aqueles que, com prejuízo para a sua parca liberdade e segurança, se atreveram a denunciar o regime ditatorial que submeteu um país inteiro à indigência.
Conhecemos relativamente bem os opositores das gerações mais velhas, gente como Guillermo Fariñas, Elizardo Sánchez, e o colectivo Damas de Branco. Mas existe uma ala jovem, tão ou mais activa. Los Aldeanos, um duo formado por Bian Oscar Rodríguez Gala "El B" e por Aldo Roberto Rodríguez Baquero "El Aldeano", estão na vanguarda da nova dissidência. Usam como instrumento de acção política um dos poucos 'produtos' que conseguiu furar o embargo: o hip hop.
Formado em 2003, o duo Los Aldeanos deixa claro ao que vem nos títulos dos álbuns que editou e no nome dos projectos que integrou: o primeiro trabalho recebeu o título “Censurado”; o segundo intitula-se “Poesia Esposada” (Poesia Algemada); e, em 2007, integram o colectivo “La Comisión Depuradora”.
As letras têm um propósito claro. Contudo, e em linha com a tradição da música de intervenção feita sob o jugo de ditaduras, os versos estão pejados de subtilezas que tornam os textos ambivalentes – e que mantêm os autores fora da prisão. “No le tengo miedo” é porventura um dos melhores exemplos da capacidade de criticar frontalmente o regime de Castro através de uma letra cujo valor facial não é político. O que, à primeira vista, é uma ode à vida e à superação das dificuldades quotidianas, esconde um apelo à resistência e à liberdade.
Y yo sé que yo
a la vida no le tengo miedo
y aquí no se rinde nadie no
seguiré de pie levantando mi voz
Y yo sé que yo... Y yo sé que yo...
Los años no engañan, el tiempo puede estar bravo
que yo sigo siendo yo, y a los falsos caso no hago, no!
trabajo diariamente, no soy creyente ni vago
ni me rindo, ni me paro, ni me canso, ni me apago
Destruir la poesía de fe con podrida prosa
es como ver encajada en un clavo una mariposa
a la luz la creación, a lo oscuro, el facilismo
tu podrás ser quien tu quieras fiera, que yo soy yo mismo
Lo más importante es la visión real que tengas
que nadie te meta un cuento y la mente te la entretenga
en mierda, basura, drogas, dinero y prostitución
porque todo eso, no es más que perdición
Voy en dirección contraria, el agor lleva muchos
porque escucho a mi corazón y con mi corazón lucho
son tiempos de ahogo espiritual, de idas absurdas
la gente dobla en lo reto y coge reto en la curva
Em Portugal, país apaixonado por cantautores como Zeca Afonso, os projectos musicais como Los Aldeanos deveriam ser venerados. Hoje é um bom dia para começar.
Marcelo Rebelo de Sousa: Sofri uma enorme perda. Ele era para mim um amigo do peito. Ainda há poucos meses estivemos juntos em amena cavaqueira. Nunca me esquecerei dos conselhos que na altura me deu.
Eduardo Ferro Rodrigues: Ele, sim, compreendeu o que era a democracia parlamentar. Deveríamos seguir os seus ensinamentos.
Augusto Santos Silva: Era claramente um homem da nossa família política, que a história avaliará, como vai avaliar o nosso governo da geringonça. Por isso daqui enviamos condolências a toda a família enlutada.
Jerónimo de Sousa: Ficámos órfãos. Mas vamos continuar a prosseguir a luta no percurso que ele nos indicou.
Assunção Cristas: Era uma figura controversa, mas professava como nós o radicalismo do amor. Por isso a morte do camarada Fidel representa uma grande perda para toda a democracia cristã.
Donald Trump: Quem diabo era afinal Fidel Castro?
Poder sem eleições, ditador. Ditador, cabrão. Apoiantes, tolerantes e elogiadores de cabrão, filhos da puta. Para a esquerda, para a direita. Para cima e para baixo.
«El modelo cubano ya no funciona ni siquiera para nosotros.»
Fidel Castro, Setembro de 2010
A morte física de Fidel Castro - o autocrata que permaneceu mais tempo em funções na era moderna - tem desencadeado expressões de idolatria lacrimosa nos circuitos mediáticos: "Pai da revolução cubana", "comandante chefe", "líder histórico", "figura carismática".
Nem uma só vez escuto a palavra ditador.
"Não se pode dizer que Fidel Castro deixou Cuba como país próspero e desenvolvido. O povo cubano tem sofrido muito - e tem sofrido não só por causa do bloqueio mas pelas políticas que foram realizadas pelos próprios dirigentes cubanos. E não nos podemos esquecer que em Cuba não há democracia." Palavras do jornalista José Milhazes na SIC Notícias - um dos raros que navegaram contra a corrente, pondo os factos acima da ladainha hagiográfica.
Na sua fabulosa Autobiografia de Fidel Castro, Norberto Fuentes - que foi um dos funcionários de mais elevada patente do castrismo antes de se ver forçado a rumar ao exílio, como aconteceu com centenas de milhares de cubanos - escreveu estas palavras, supostamente concebidas pelo próprio autocrata: "Hei-de morrer a ruminar a satisfação imensa de que terão de me julgar à revelia. E quando decorrerá tamanho processo? Dentro de quinhentos anos? Dentro de mil? Quando é que a história julga de maneira definitiva e sem apelo nem agravo?"
Nesse aspecto, Fidel Castro pode ser apresentado como um triunfador da História - alguém que sobreviveu à derrocada do mundo comunista e recorreu às bravatas nacionalistas para se perpetuar no poder até a fatalidade biológica impor a sua lei suprema.
Para ele, só a razão de Estado existia. E o Estado confundiu-se durante mais de meio século com a sua pessoa. Neste contexto, o povo funcionava como substantivo abstracto: compunha as manifestações de apoio ao Governo, as únicas autorizadas, e servia de vocativo permanente na retórica oficial.
O que vigora na Cuba dos nossos dias?
Um regime de partido único, profundamente hierarquizado, em que as hostes partidárias se confundem com as forças armadas (que embolsam 60% das receitas turísticas) e o aparelho de Estado. Um regime em que a cúpula do poder permanece nas mãos de membros da mesma família há 57 anos. Um regime que destruiu o tecido produtivo do país e hoje se vê forçado a importar 80% do que ali se come. Um regime mergulhado num irreversível e penoso crepúsculo, confundindo o seu destino com o do país.
Há meio século, a palavra de ordem era "socialismo" - a toda a velocidade. Agora a palavra que paira nas mentes de todos é "capitalismo" - o mais devagar possível. Com mais de dois milhões de cubanos forçados a viver fora da ilha e milhão e meio à beira do desemprego porque o Estado-patrão deixou de ter verba para pagar os magros salários - os segundos mais baixos do hemisfério ocidental - e as esquálidas pensões de reforma.
"Agotados de tanta trinchera y demasiadas alusiones al enemigo, nos preguntamos si no sería más coherente usar todos esos recursos para aliviar los problemas cotidianos. Revertir las crónicas dificultades del transporte urbano, la calidad del pan del mercado racionado o el abastecimiento de medicamentos en la farmacias de la Isla, serían mejores destinos para lo poco que contienen las arcas nacionales." Palavras escritas há dias pela jornalista Yoanis Sánchez no seu blogue.
Cuba é hoje uma nação envelhecida, sem esperança, com a segunda mais larga população de idosos da América Latina: 46% da população tem mais de 40 anos. Os jovens tudo fazem para abandonar um país onde o partido-Estado persiste em oprimir a sociedade.
Este foi, para azar dos cubanos que mal sobrevivem hoje com o equivalente médio a 15 dólares diários, o principal legado de Fidel Castro.
Em nome da "liberdade", o que torna tudo ainda mais trágico.
«Cuba é o "objecto" de Fidel. É ele o seu dono, à maneira de um proprietário de terras do século XIX. Dir-se-ia que transformou e aumentou a fazenda do seu pai para fazer de Cuba uma só fazenda de onze milhões de pessoas. Dispõe da mão-de-obra nacional como bem entende. Quando, por exemplo, a Universidade de Medicina forma médicos, o objectivo não é que eles exerçam livremente a sua profissão, mas que se tornem "missionários", enviados para bairros-de-lata de África, da Venezuela ou do Brasil, de acordo com a política internacionalista imaginada, decidida e imposta pelo chefe de Estado. Ora, em missão no estrangeiro, estes bons samaritanos tocam apenas numa pequena fracção do salário que lhes pagaria, em circunstâncias normais, o país de acolhimento, ficando a parte mais significativa à disposição do governo cubano, que assume um papel de um prestador de serviços. Do mesmo modo, os hoteleiros estrangeiros, franceses, espanhóis ou italianos, que contratam pessoal cubano na ilha não pagam eles próprios aos seus funcionários, como acontece em qualquer sociedade livre: pagam salários ao Estado cubano, que factura esta mão-de-obra a bom preço (e em divisas), antes de atribuir uma parte ínfima aos trabalhadores (em pesos cubanos, que pouco valem). Esta variante moderna de escravatura não pode deixar de lembrar a relação de dependência que existia nas plantações do século XIX em relação ao dono todo-poderoso.»
Juan Reinaldo Sánchez, A Face Oculta de Fidel Castro, pp. 180-181
Ed. Planeta, 2014. Tradução de Patrícia Xavier
Como bem se demonstra neste artigo a única decisão racional possível implicaria o Eurogrupo chegar a acordo com a Grécia, atribuindo-lhe condições mais favoráveis de pagamento da dívida para poder permanecer na zona euro. Essa situação evitaria que a Grécia se aproximasse da esfera de influência russa, o que é essencial numa altura em que estamos a um passo da guerra total na Ucrânia.
Não me parece, porém, que tal vá acontecer, especialmente porque as decisões políticas nem sempre são racionais, podendo ser ditadas por uma forte carga emocional. Foi assim, por exemplo, que os Estados Unidos encararam a revolução cubana, onde um grupo de guerrilheiros derrubou o regime pró-americano de Fulgêncio Baptista, visto internamente como um simples capataz dos EUA. Desde o início, os EUA adoptaram uma política de total intransigência em relação a Fidel Castro, o que teve como único resultado que Cuba se atirou para a esfera de influência soviética, passando os EUA a ter um regime pró-soviético a 120 km das suas costas. Cuba quase atirou os EUA para uma guerra nuclear e só agora, passados mais de 60 anos, os dois países voltaram a ter uma aproximação.
Mas a revolução cubana teve também um efeito altamente pernicioso no ocidente, devido à grande influência que teve na sua juventude. Che Guevara e Fidel Castro transformaram-se em ícones mundiais da juventude, levando a uma contestação sem precedentes nas democracias ocidentais. Nos EUA assistiu-se às gigantescas manifestações contra a guerra no Vietname e na Europa culminou com o Maio de 68, que até provocou a renúncia de De Gaulle no ano seguinte. Curiosamente, enquanto toda a juventude europeia olhava fascinada para Cuba, a URSS esmagava tranquilamente a primavera de Praga. Na altura dizia-se que o ocidente atravessava uma época de depressão nervosa, da qual só sairia com o governo de Thatcher no Reino Unido e com a presidência de Reagan nos EUA, essenciais para a vitória na guerra fria.
A Europa atravessa um período semelhante de emoções à flor da pele. Há muito tempo que costumo ver em viagens à Alemanha cartazes a dizer: "os gregos que paguem sozinhos as suas dívidas" ou "os resgates do euro põem em causa as nossas pensões", num país que deveria estar a cantar loas aos ganhos líquidos que está a ter com o euro. Em Portugal Passos Coelho também se pôs a criticar as propostas gregas, porque sabe que, se forem satisfeitas, ele será posto em causa por não ter feito exigências semelhantes. E agora até Cavaco Silva saiu da sua torre de marfim para falar dos muitos milhões que Portugal emprestou à Grécia, numa atitude totalmente imprópria de um Chefe de Estado.
Curiosamente, não me parece que o governo grego esteja minimamente preocupado com esta falta de acordo. Dá-me aliás a ideia que as constantes viagens de Tsipras e Varoufakis não se destinam minimamente a influenciar os seus inimigos europeus, perdão, os seus parceiros europeus para que cheguem a acordo com a Grécia. A ideia parece-me ser antes a de influenciar a opinião pública europeia, que se tem multiplicado em manifestações de apoio aos gregos. As declarações públicas de Schäuble e agora de Cavaco Silva parecem-me assim uma tentativa frustrada para combater a simpatia com que a iniciativa grega está a ser vista pelas populações europeias. Neste enquadramento, a estratégia de Tsipras parece clara: o homem que chamou Ernesto ao seu filho, em homenagem a Che Guevara, quer realizar o velho sonho de Otelo e ser o Fidel Castro da Europa. Já esteve mais longe de o conseguir.
"Fidel Castro se comporte en empereur", de Axel Gyldén.
"A História me absolverá" corresponde a uma célebre alegação de defesa de Fidel Castro no julgamento de Moncada em 16 de Outubro de 1953 em que, em vez de terminar pedindo a sua absolvição pelo Tribunal como habitualmente fazem os advogados, terminou declarando irrelevante que os juízes proferissem a sua condenação, pois apenas lhe interessava a absolvição da História: "Condenadme, no importa. La historia me absolverá". A repercussão causada por esse discurso seria o rastilho que levaria à revolução que derrubou Fulgencio Baptista.
Passos Coelho, pelos vistos, não se importa minimamente com a História, uma vez que perguntado se esperava a absolvição desta, respondeu com um singelo "não sei". Conclui-se assim que Fidel Castro pode ter atirado Cuba para o desastre, mas ao menos tinha convicções. Passos Coelho nem isso tem. A sua política resume-se assim a aplicar o Diktat germânico, qualquer que ele seja. Faz lembrar Groucho Marx: "Those are my principles, and if you don't like them... well, I have others."
Pensava eu que um ditador é isso mesmo: um ditador. Nada disso: é um "líder histórico". Uma, duas, três, quatro vezes "líder histórico". A notícia é da agência Lusa, mas pelo estilo podia ser da Prensa Latina, o que não impediu a sua repercussão acrítica em diversos órgãos de informação portugueses, o que diz muito sobre a qualidade do nosso jornalismo.
Temos de ler a imprensa estrangeira para vermos uma correspondência correcta entre o nome e a coisa. Aqui, por exemplo. Nunca imaginei que por cá fosse tão difícil escrever uma simples palavra de sete letras. Estou com muita curiosidade de saber qual será a próxima vez que a Lusa a utilizará.
Norberto Fuentes é um escritor que fez parte do círculo íntimo do poder comunista em Havana e chegou a ser confidente de Raúl Castro durante os longos anos em que o irmão mais novo de Fidel se limitava a aguardar pacientemente que chegasse a sua hora de ascender ao posto cimeiro da hierarquia política em Cuba. Durante o período da intervenção cubana em Angola, nas décadas de 70 e 80, esteve lá destacado numa missão de que foi incumbido pelo próprio Fidel Castro, tendo sido um dos cronistas dessas expedições militares que de algum modo assinalaram o canto do cisne da Guerra Fria.
Fuentes também é um dos autores mais bem documentados sobre Ernest Hemingway, a quem dedicou anos de investigação. Recolheu muitas confidências de Gregorio Fuentes, que foi o piloto do iate Pilar, de Hemingway, e serviu de inspiração ao inesquecível pescador Santiago, da novela O Velho e o Mar. Um dia, em Havana, falou livremente sobre Mario Vargas Llosa, já então proscrito pelo regime castrista devido às suas críticas desassombradas ao sistema ditatorial que perseguia os melhores cidadãos de Cuba. “Como romancista é bom, mas interessa-me mais como político. É uma das melhores cabeças deste continente”, confessou um dia ao escritor espanhol J. J. Armas Marcelo, biógrafo e amigo de Llosa. Este episódio, passado nos anos de chumbo do castrismo, vem descrito no livro Vargas Llosa: El Vicio de Escribir, de Armas Marcelo.
Pouco tempo depois, à semelhança do que fizeram mais de três milhões de cubanos desde a instalação da ditadura comunista em 1959, Fuentes conseguiu abandonar a ilha-prisão, rumando ao exílio em Miami. E de lá legou ao mundo dois livros considerados fundamentais sobre dois homens que para sempre ficarão ligados à história cubana: Autobiografía de Fidel Castro e Hemingway en Cuba.
Dois livros que pretendo adquirir e ler sem demora.
Foto: Ernest Hemingway e Fidel Castro na única vez em que se encontraram (Cojímar, Cuba, Maio de 1959)
Fidel Castro, surpreendendo muito boa gente, acaba de reconhecer que o "modelo cubano" não é exportável, pois nem em Cuba funciona. "El modelo cubano ya no funciona ni siquiera para nosotros", declarou o histórico dirigente comunista, ainda hoje idolatrado por uma certa esquerda, ao jornalista Jeffrey Goldberg, já aqui citado pela Ana Margarida.
Fidel já antes surpreendera ao reconhecer os erros cometidos pelo regime cubano nas décadas de 60 e 70, quando perseguiu os homossexuais. "Sí, fueron momentos de una gran injusticia, una gran injusticia!, la haya hecho quien sea. Si la hicimos nosotros, nosotros...", reconheceu, em entrevista ao jornal mexicano La Jornada, o ditador cubano, que em 1963 chegou a considerar a homossexualidade uma "degenerescência".
Apetece perguntar: será que o Avante!, sempre tão atento a todas as declarações de Castro, também transcreverá estas nas próximas edições? Por mim, não tenho ilusões: certamente o director do jornal, José Casanova, dará ordens para omitir por completo o assunto no jornal oficial dos comunistas portugueses, incapazes de lidar com tanta heterodoxia. Vai uma aposta?
Fidel Castro continua a ser retratado desta forma por olhares só na aparência isentos. Fazem-me lembrar uma fabulosa frase de Millôr Fernandes: "Jamais diga uma mentira que não possa provar."
Nestas coisas há que ter um mínimo de memória para evitar escrever disparates em excesso. O "comandante" que agora surge tão preocupado com a "guerra nuclear" foi o mesmo que em plena crise dos mísseis em Outubro de 1962 - que pôs o mundo à beira da III Guerra Mundial - escreveu ao então líder soviético, Nikita Kruchtchov, dizendo-lhe que se os americanos invadissem Cuba Moscovo deveria retaliar lançando mísseis sobre os Estados Unidos, "ainda que a ilha desaparecesse do mapa".
Sabe-se hoje qual foi a resposta lapidar de Kruchtchov: "Nós lutamos contra o imperialismo não para morrer mas para conseguir a vitória do comunismo." Uma mensagem que enfureceu Castro, déspota sem aspas. Ao ponto de autorizar manifestações de rua em Havana onde se gritou: "Nikita, mariquita, lo que se da no se quita."
São assim alguns auto-intitulados "libertadores do povo", ainda tão venerados em certa escrita idolátrica dos nossos dias. O mínimo que lhes devemos chamar é ditadores. Sem aspas. A primeira linha de combate a qualquer tirania ocorre no vocabulário que escolhemos. E não há palavras inocentes neste combate.