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Delito de Opinião

Festas da Paróquia, a concorrência dos municípios e o rentismo da SPAutores

Paulo Sousa, 01.09.23

Terminada a festa, e faltando ainda desmontar algumas das suas estruturas, já posso escrever sobre dois temas associados que, por omissão, será como se não existissem. E existem.

O primeiro deles prende-se com algo que já referi mais vezes, e que se prende com o facto de, nas duas décadas já viradas do século XXI em Portugal, as câmaras municipais serem das poucas entidades que têm dinheiro para caprichos.

Muito para além das reabilitações de esquadras da polícia e de equipamentos escolares, que em vez de serem assegurados pelos orçamentos das respectivas tutelas, se recorrem da boa vontade dos executivos municipais, é nas festas locais que o voluntarismo de um presidente de câmara se pode avaliar. Sob a desculpa de promoção do território, do turismo, da notoriedade da “marca” do município, contratam-se artistas de calibre mais ou menos famoso. O executivo escolhe um nome, passa o cheque (eu sei que os cheques estão fora de moda, mas o acto da assinatura adequa-se muito mais ao atravessar-se por uma decisão, que qualquer outra modalidade electrónica com tripla segurança), e a magia acontece.

Acredito que outrora, mesmo nas sedes de município, tenham existido comissões de festas realizadas em honra do orago local. Nos últimos anos, que coincidirão com o tal período das farturas municipais, estas comissões foram substituídas pela autarquia ou qualquer outro órgão análogo. Esta mudança foi tão mais recente, quão paroquial seja a edilidade, pois nas sedes de distrito a coisa é, há bem mais tempo, levada muito a sério.

Na minha freguesia existem festeiros, que são cidadãos que gastam dias de férias e, sem qualquer remuneração, se dispõem a dar o corpo ao manifesto para que a celebração anual ocorra. Na sede dos municípios, os festeiros são os funcionários municipais. É normal que umas semanas antes do evento se oiça dizer que a instalação de contadores de água está a demorar mais por causa da festa e sobre a iluminação pública com problemas, idem aspas com o electricista.

Esta desigualdade de esforço e de empenho exigido é depois reforçada pelos tais cartazes de artistas famosos que desviam o público, no que acaba por ser uma concorrência absolutamente desleal.

No caso da minha freguesia, a concorrência sentida não é causada pelo nosso Município de Porto de Mós, que celebra o São Pedro a 29 de Junho, mas pelos da Batalha e de Alcobaça. As festas são todas numa sequência de fins de semanas, com o feriado de 15 de Agosto pelo meio, a que se soma a Feira Medieval de Aljubarrota a 14, data da Batalha Real e feriado municipal na Batalha. No fim de semana seguinte é sempre a Feira de São Bernardo em Alcobaça, onde este ano actuaram os Xutos e Pontapés. Tudo organizado e tratado por funcionários municipais, com entradas livres e contratações asseguradas pelo orçamento do Município.

Os tempos que vivemos, onde o sentido de comunidade vive sobre ataque, este desequilíbrio de meios e de esforço exigido faz com que seja cada vez mais difícil manter a tradição.

O outro ponto de que queria falar respeita aos direitos de autor cobrados pela Sociedade Portuguesa de Autores. Este assunto já me levou a que no passado, e sem qualquer sucesso, tentasse aceder às contas deste organismo, que dizem existir para defender os interesses dos artistas.

Já aqui postei sobre o extinto Festival de Jazz da minha terra, o JuncalJazz. Nas suas três edições, em 2018, 2019 e 2022, a SPA arrecadou à organização deste festival o total de 1164€. Ignorando os momentos maravilhosos que vivemos e proporcionamos, este festival teve um lucro de 250€ em 2018, deu prejuízo em 2019, que foi dividido pela organização num valor superior aos ganhos da primeira edição, e ficou rigorosamente a zero em 2023.

Importa acrescentar que este custo é suportado à cabeça, ou seja, tem de ser inventado de alguma forma, pois antecede qualquer receita de bilheteira.

Mais de que uma vez, em conversa com os artistas que ali actuaram, puxei o assunto perguntando quanto é que os artistas autores recebem da SPA. A pergunta era claramente provocatória e a resposta envolvia sempre entre um a quinze palavrões. Os músicos, que aspiram a fazer da música uma profissão, sabem bem que estes custos não são mais do que barreiras à sua entrada no ofício.

Um dos resultados desta acutilância rentista foi que o referido Festival de Jazz, por insustentabilidade financeira, deixou de se realizar. Graças à SPA os artistas têm menos um palco onde actuar.

Se o propósito da defesa dos direitos de autor é uma causa nobre, a dificuldade que tive em aceder às contas da SPA, juntamente com as queixas dos músicos, leva-me a concluir que o modelo português da defesa dos direitos de autor tem tudo para que possa ser classificado como um esquema rentista. Existe uma elite de galões e dragonas que é remunerada por ter o nome dentro dos rectângulos do organograma da coisa, e que criou uma rede de correspondentes por todo o país, os quais correm as redes sociais à procura de eventos prevaricadores, para, depois da sua identificação, avançarem com o camaroeiro e assim sacarem mais uns cifrões. Já ouvi dizer, e isto pode ser apenas bluff para criar aflição aos cobradores da SPA, que algumas comissões de festas mandam fazer um prospecto para afixar pelas ruas, que não é exactamente igual ao que lhes entregam. Será verdade? Será que vão ter de passar a levantar o rabo da cadeira para maximizar as suas rendas?

O mesmo se passa com as festas da paróquia. A Festa de São Miguel deste ano pagou 1.391,50€ de direitos de autor. Segundo o documento emitido, este valor foi calculado da seguinte forma:

4 Bailes a 79€ cada
3 Concertos de música ligeira a 158€
1 Animação de Rua a 27,50€ (Banda Recreativa Portomosense – peditório e procissão)
3 Actuação de DJ’s a 158€
1 Cabine de Som a 100€

Como é natural este valor é descontado às receitas da festa, e nisso residirá também outra diferença relativamente às festas concelhias, onde, imagino, mais uma vez seja o cheque municipal que, directa ou indirectamente, cubra esta alcavala, o que só confirma a deslealdade da concorrência a que as festas da paróquia estão sujeitas.

A Festa de São Miguel

Paulo Sousa, 14.08.23

A festa de São Miguel é a festa da minha terra e acontecia sempre por altura dos meus anos. Era como se fosse a minha festa, mas na rua e com muita gente. As memórias mais antigas que tenho dela andam à voltam disso.

Lembro-me do fogo de artifício e do fogo preso, fixo às paredes da Igreja com explosões que projectavam pedaços dos artefactos explosivos sobre os espectadores. Uma vez apanhei com um bocado de qualquer coisa na cara. Lembro-me também dos foguetes a serem lançados por um veterano da Guerra do Ultramar, que os acendia com o morrão do cigarro, que só tirava da boca para os lançar. E lembro-me do cheiro da nuvem de fumo que envolvia a zona de lançamento. Aquele cheiro era um dos cheiros da festa. Lembro-me de serem lançados atrás da Igreja em direcção à periferia, mas que o vento por vezes fazia com que as canas caíssem no meio do público.

Lembro-me do jogos tradicionais, do quebra bilhas e da corrida de frangos, do ciclismo ao sábado, do atletismo que foi sempre mais esporádico e onde uma vez ganhei uma medalha, que há uns tempos encontrei encardida. Lembro-me dos bares feitos com varolas de eucalipto roubadas durante a noite, e de as bebidas serem arrefecidas por blocos de gelo colocados dentro de umas tinas das uvas. Na rampa que dá acesso à cave do Salão Paroquial, funcionava a cozinha de onde saía a clássica coluna de fumo do assador dos frangos. Lembro-me de um assador, que aparecia todos os anos, que no último dia da festa fazia questão de subir ao palco para falar ao público. Ninguém se importava porque quando estava bêbado era muito divertido. Despedia-se sempre com vários “Tankiou, gódnaite”. O cheiro a frango assado é outro dos cheiros da festa.

As inúmeras salas esconsas, com o piso de madeira, da cave do Salão Paroquial, eram preenchidas com mesas onde os grupos maiores eram colocados. Os grupos mais pequenos eram servidos na plateia da sala de espectáculos e também no palco. As salas da cave eram totalmente desligadas umas das outras e, quando o serviço apertava, podia-se ficar ali durante muito tempo à espera de se ser atendido, com a clara sensação que alguém se tinha esquecido de nós.

Os bailes eram dançados em pares no largo empedrado da festa, o largo de São Miguel. A calçada aterrorizava os saltos de algumas raparigas, as mais contidas, mas era insuficiente para travar as mais afoitas, que na mão de um rapaz cumpridor na arte da dança de baile em piso de pedra, esvoaçavam, enfeitiçando a populaça que não conseguia evitar um sorriso de encanto perante aquela juventude, agilidade e beleza. Lembro-me de observar um ou dois desses pares e de mais tarde os ver constituir família. Hoje já não há bailes desses de antigamente, já não há valsas, nem corridinhos, só concertos, com camião palco, muitos LED de muitas cores, com o fumo do Habemos Papa no arranque da actuação e com umas tipas vindas sabe-se lá de onde, a dançar. Lembro-me de, nos anos 80, o Conjunto Típico Torrense, os CTT, terem ali actuado e do alvoroço que causou a falta de música para dançar, o que agora já é normal.

Depois do Salão Paroquial ter sido reabilitado, o restaurante teve de sair dali. A higienização a que foi sujeito impediu que a festa deixasse de funcionar dentro dele e transformou-o num mero espectador. Não acredito que tenha apreciado a mudança. Foi como se a sua idade, quase secular, o tivesse colocado dentro da redoma de uma residência para velhos. Passou a existir apenas a meio gás.

Na manhã do Domingo é feito o peditório pelas ruas da vila. A banda filarmónica segue dentro da caixa de uma carrinha de taipais e os músicos vão sentados em cima de fardos de palha que são escondidos com umas mantas. Assim podem ir sentados sem recear cair. A acompanhar o peditório são lançados umas dezenas de morteiros de tiros repetidos e outros, os mais potentes, de tiro único. Lembro-me de, quando era miúdo, sentir a onda de choque nas entranhas.

Já fui festeiro, e também juiz da festa, e por isso já acompanhei diversos peditórios. A manhã do Domingo da Festa, segue-se sempre a um longo serão de sábado, o que significa que é feita com um esforço adicional. A adrenalina é um excelente combustível e será isso o que permite que a bandeira de São Miguel corra todas as ruas e passe pela frente de todas as casas. Lembro-me de vários conterrâneos que, quando visitados pelo cortejo, emocionados, falam com a imagem do arcanjo como se de um amigo que os visita todos os anos se tratasse. Alguns queixam-se dos seus achaques, pedem-lhe ajuda e chegam a dizer-lhe que não sabem se no ano seguinte ainda lá estarão para o receber. Lembro-me de uma senhora viúva que vivia sozinha, que no peditório deu uma nota e, em lágrimas, pediu que mandassem um foguete em memória do filho que tinha perdido, “e tanto que ele gostava da festa”.

No início da tarde é celebrada uma missa solene com procissão. A tradição de cobrir com tapete colorido a rua principal, a Rua de São Miguel, já tem várias décadas. Este tapete é feito com verdura e serradura colorida. É composto durante a madrugada de Domingo e ali fica para ser admirado por poucas horas, até ser desfeito pelas passadas da procissão. Além do tapete, e isso dura toda a festa, a rua está também decorada com doze arcos ligados entre si por grinaldas de flores que, assim, transformam a rua num túnel de cor. As flores são feitas durante o ano e colocadas nos cordéis de sisal pelos festeiros, com a ajuda das velhotas que têm naquela tarefa um motivo para sair de casa à noite. Há sempre coisas que se podem dizer e que só se dizem quando elas se juntam. Na férias da escola, ao grupo juntam-se algumas crianças, que atam flores ao mesmo tempo que jogam à bola com elas, que sujam as mãos de preto enquanto fazem rodas e piruetas e assim, serão após serão, lá vão limpando chão que, quando chega à festa, está quase limpo.

É difícil não deixar para trás demasiadas memórias, dos dias verdadeiramente inteiros, da Festa de São Miguel. Parte do que ali acontece, resulta e alimenta o sentido de comunidade. O grupo  de pessoas que se forma para a preparação da festa é nomeado de um ano para o outro. Noutros tempos, os festeiros eram os homens casados há pouco tempo, ainda com o vigor da juventude e já desligados dos impulsos namoradeiros, pelo menos teoricamente. As festeiras eram as raparigas solteiras, ainda livres da lide da casa. Com o passar dos anos, a tradição foi-se diluindo e alguns solteirões acabaram também por ser festeiros e um até foi juiz. Mais recentemente, a escolha é feita por ano de nascimento. No ano em que se celebra o 30.º, 40.º e 50.º aniversário, todos são chamados a servir a comunidade.

A aleatoriedade da constituição destes grupos, assim como a dinâmica que se gera num misto de sentido de dever e de colaboração totalmente gratuita, leva a que se estabeleçam fortes laços de amizade. É por isso que acho que a festa, além de uma manifestação da comunidade, é também um catalisador desse sentimento de pertença.

Na segunda-feira de manhã, celebra-se uma missa na capela de São Miguel do Peral, que fica a mais de um quarto de hora a pé do largo da festa. Segundo a tradição, terá sido por ali que o embrião da povoação se formou. Hoje é um agradável espaço onde, para além da pequena capela, existem apenas uns carvalhos, alguns olivais e o buraco dos mouros, onde noutros tempos se caçavam texugos, e onde alguns mouros, a fugir da reconquista cristã, se terão escondido. Depois da missa, a que o povo assiste sentado sobre mantas à sombra dos carvalhos, há sopa da pedra, porco no espeto e imperial a correr em bica.

Mesmo quem passa o ano metido em casa acaba por se revelar neste dias. Há sempre quem reclame. Ora porque a música não presta, aquilo nem é música, está muito alta e não deixa ninguém dormir, que uma missa com procissão e oferendas chegava muito bem, os DJ's fazem barulho até ser de dia, e de manhã é uma pouca vergonha, tudo mijado por todo o lado, as beatas de cigarros são aos milhares e os copos de plástico são aos milhões. E elas, as raparigas, são as que se portam pior. Aquela barulheira tonta até fez cair o reboco do tecto da sacristia. E por falar nisso, ainda nem falei da Igreja.

Podia ser apenas a igreja do Juncal. Cada lugarejo tem uma capela, mesmo aqueles que são pouco mais do que duas casas e três curvas. E nós temos a nossa. Esse é o sentimento que interpreto à maioria dos que por aqui vivem. Mas a nossa Igreja Matriz é muito mais do que isso, pois concorre num outro campeonato. Por ampliação da que ali existia e que foi muito danificada pelo terramoto de 1755, a actual Igreja Matriz foi erigida no Séc. XVIII e é encimada pela data de 1780. É forrada a azulejos dessa época fabricados na Real Fábrica do Juncal e chegou a ser cavalariça das tropas napoleónicas. É uma preciosidade que merece ser visitada e tem de ser mantida. Num recanto do retábulo de altar, existe uma inscrição que diz: “Joaquim da Fonseca Brilhante Brito e seu irmão, de Aljubarrota, douraram e pintaram este retábulo no anno de 1886”. As diferentes coberturas de tinta que contornam esta inscrição permitem imaginar quantas gerações já por ali passaram. O arranjo realizado pelos irmãos Brito foi feito há muito tempo e nessa altura já a igreja era secular. Para que possa ali estar por mais anos do que aqueles que já tem, as exigências de manutenção daquele espaço são imensas.

Depois do Salão Paroquial ter sido “reabilitado”, o restaurante da festa foi transferido para as traseiras da escola primária. Fica umas boas dezenas de metros afastado do largo que, felizmente continua empedrado. Por só existir temporariamente e para este efeito, é necessário que este seja construído e desmantelado todos os anos. É um esforço insano. Vigas de ferro são levantadas e cobertas por chapas metálicas que são rasgadas num canto para ali funcionar a chaminé, onde o assador dos frangos continua a exercer a sua magia. A cozinha é equipada com enxoval próprio, mas também por algum emprestado pela União Recreativa e Desportiva Juncalense, assim como pela Associação de Bombeiros Voluntários locais. Os pratos vão muito para além do frango assado e passam pelos petiscos da região, morcela de arroz, bacalhau à São Miguel, orelha de porco, moelas e outros grelhados vários. A mão-de-obra é totalmente voluntária embora, não poucas vezes, possa parecer que ninguém ali tenha feito outra coisa durante o resto da sua vida.

A festa deste ano começa no próximo dia 18 e vai durar cinco longos dias. Dias verdadeiramente inteiros, onde cabe sempre mais alguém.

Repensar o São Martinho (e outras datas rituais)

jpt, 12.10.20

michel_pastoureau_ours.jpg

Abaixo aludi à necessidade de repensar as celebrações do dia de São Martinho - meu modesto contributo à proposta presidencial de reflexão sobre os convívios familiares natalícios durante este Covidoceno.

Nos comentários a esse meu postal João Lisboa colocou ligação a uma interessantíssima série de 3 postais no seu Provas de Contacto, dedicados às origens e conteúdos das celebrações do São Martinho, frutos da leitura do livro L'Ours/Histoire d'un Roi Déchu de Michel Pastoureau (La Librairie du XXIème Siècle/Seuil, 2007). Os três (breves e sumarentos) textos são acessíveis nesta ligação. Muito aconselho a sua leitura.