Portas que não se deviam abrir
Fernanda Câncio não sabe decerto (ai) quem sou, e menos conhece os meus escritos. Porque com certeza gostaria um pouquinho do que escrevi a propósito deste texto dela sobre a guerra na Ucrânia:
Durante anos a minha camarilha censurou-me a parcialidade a favor da ex-namorada de Sócrates e expelidora de fartos asneiróis em forma de opinião e eu hirto na minha consideração – ao que acham adversários ligo nada e ao que pensam correligionários pouco. Agora partilham-lhe um texto, por ser muito bom. Taiszaver? Eu já cá estava.
A minha consideração continua imperturbável mas a Fernanda regressou ao ordinário da missa, isto é, hoje levanta alto o facho da superioridade moral a propósito do racismo, nomeando-se protectora das minorias oprimidas, um clássico das seitas de esquerda, o que nem lhe fica mal, mas também harpia castigadora dos relapsos da opinião, o que não lhe vai bem. E diz:
“… uma coisa é a opinião que cada um tem, necessariamente livre, por mais repugnante, porque se trata de pensamento; outra a respectiva divulgação pública, em relação à qual pode, como no caso da discriminação e do incitamento ao ódio, aplicar-se o Código Penal”.
Mais claro não se pode ser: pensa lá o que quiseres mas se acreditas que a generalidade das mulheres conduz pior que a generalidade dos homens, ou que a cultura cigana, ou de inúmeras sociedades muçulmanas, comporta aspectos que são incompatíveis com o acquis civilizacional do Ocidente, ou que os negros não têm qualquer direito a discriminações positivas a título de reparação pelos tortos que os nossos (dos brancos) bisavós infligiram aos deles; ou outra coisa qualquer que os guardiões das ideias boazinhas achem que é discriminação ou incitamento ao ódio: guarda lá essas ideias para ti, que o SOS Racismo, ou outra organização qualquer igualmente cheia de virtude (e, suponho, de subsídios) vela, queixa-se e estás feito ao bife, lá vais ter de contratar advogados e andar embrulhado em processos e julgamentos.
E quando em casa pensa bem antes de abrir a boca, que se a moda pega até mesmo em processos de divórcio litigioso já se está a ver o cônjuge queixoso: ai senhor juiz que ele (ou ela) estava sempre a falar dos pretos e dos ciganos, causou-me grandes danos psicológicos por causa do ódio e assim.
Porém, constata-se que não é impossível tropeçar num magistrado sensato que, para não mobilizar o atravancado sistema judicial com frescuras, despache:
“Qualquer opinião, ainda que tenha o conteúdo que o assistente [SOS Racismo] lhe atribui, não pode, assim, preencher a incriminação em análise neste processo (a do artº 240º), com vista a permitir a mais ampla expressão de pontos de vista sobre a vida pública. A regra é a de que opiniões, nessa qualidade, não podem ter implicações criminais sob pena de restrição absurda da liberdade de expressão (…)”.
Lapidar. Assim não o entenderam os senhores desembargadores, que mandaram regressar o assunto à base porque, dizem eles, “a adjectivação generalista não deixa de revelar uma manifestação de uma pretensa inferioridade de ‘ciganos’ e ‘africanos’ apresentando-os como inferiores a um outro grupo colocado a uma distância civilizacional e intelectual que partilha de ‘crenças’, ‘códigos de honra’ e ‘valores’ moralmente superiores…”
Sucede que se não houvesse sociedades mais ou menos adiantadas em termos de estado civilizacional não seria sequer pensável qualquer ideia de progresso social. Enunciemos o óbvio: uma sociedade esclavagista é inferior a uma sociedade em que todos os cidadãos sejam iguais perante a lei; uma sociedade onde a fonte do exercício do poder não é o consentimento dos governados, ou onde este é condicionado pela ausência da liberdade de expressão das opiniões, é inferior a uma que não sofra dessas entorses; e é defensável que uma das fraquezas do Ocidente seja precisamente a desconfiança em relação aos seus valores que um simplismo acéfalo, quando não interesseiro, acha equivalentes a quaisquer outros.
Se Maria de Fátima Bonifácio, que agora se vê nestes assados, tivesse escrito que o cigano Ricardo Quaresma, por o ser, sofre destas e daquelas inferioridades, estaria a injuriá-lo, e cairia justamente sob os rigores do Código Penal. Mas se generalizou para uma comunidade imputações que quem com ela convive frequentemente subscreve, estará quando muito a ser injusta – não tendo nenhum autor, nem nenhum opinante, obrigação legal de ser justo. Precisamente o contrário do que entendem os senhores desembargadores, por não alcançarem que a porta que estão a abrir é o da choraminguice institucional e da litigiosidade americanizada – há ofensa sempre que alguém se sente ofendido.
De modo que, hoje, ódio sinto eu – aos senhores desembargadores. E discriminação também defendo, aliás duas, uma positiva e outra negativa: acho que eles, que estão numa instância superior, deviam ser despromovidos à inferior – é a negativa; e os magistrados judicial e do MP que tão bem entenderam o problema, a julgar pelas transcrições que dos respectivos despachos fez a abnegada Fernanda, é que deviam ir para a Relação – é a positiva.