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Delito de Opinião

Ler (34)

Nada melhor do que um prazer que se partilha

Pedro Correia, 22.06.24

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Adquiri estes nas minhas três deslocações à Feira do Livro de Lisboa em Maio e Junho. De variados géneros - da ficção ao ensaio, passando pelo teatro e até ao desenho.

A Hora dos Lobos, de Harald Jähner (D. Quixote)

A Próxima Guerra Civil, de Stephen Marche (Zigurate)

Agarra o Dia, de Saul Bellow (Relógio d' Água)

Entre a Mentira e a Ironia, de Umberto Eco (Gradiva)

Fui Tão Feliz Com a Minha Thompson, de Sérgio Sousa Pinto (Avenida da Liberdade Editores)

Goodbye, Columbus, de Philip Roth (D. Quixote)

Jornada Para a Noite, de Eugene O'Neill (Cotovia)

O Render dos Heróis, de José Cardoso Pires (Moraes)

Os Ratoneiros, de William Faulkner (Portugália)

Pnim, de Vladimir Nabokov (Relógio d' Água)

 

São muito diferentes. Dois foram adquiridos em pavilhões de alfarrabistas, com chancelas de editoras há muito extintas (Moraes e Portugália). Andei anos em busca de ambos. Num caso por se tratar de um dos romances menos conhecidos de Faulkner, aliás há muito esgotado no mercado português. Noutro por ser talvez o único que me falta ler de Cardoso Pires.

A original obra pictórica de Sousa Pinto comprova que o talento deste deputado socialista - que conheço há 27 anos - não se esgota na escrita ou na oratória: está patente também nos seus desenhos, com óbvia influência de mestres da banda desenhada, como Hugo Pratt. A jovem editora que lhe lançou a obra merece-me igualmente simpatia. Gosto de incentivar novos projectos nesta área, contrariando os profetas da desgraça sempre prontos a jurar que os livros estão condenados. Alguns evacuam há décadas sentenças deste género, felizmente nunca confirmadas.

Russo que renegou o seu país sob a ditadura soviética, Nabokov escreveu Lolita, romance fundamental do século XX - é quanto basta como carta de recomendação. Bellow e Roth são ficcionistas norte-americanos que aprecio - mais o Nobel de 1976, confesso, mas senti curiosidade em conhecer a primeira novela do autor de A Conspiração Contra a América, publicada quando tinha apenas 26 anos. O dramaturgo O'Neill - Nobel de 1935 - é autor que lerei pela primeira vez.

Quanto aos ensaios políticos, um vira-se para o futuro próximo, outro para o passado. A Hora dos Lobos detalha a vida quotidiana na Alemanha em ruínas do pós-guerra, com raro aliciante: observar factos históricos na perspectiva dos derrotados em conflitos bélicos. Contrariando o relato dominante, na óptica dos vencedores.

Há ainda o livrinho de Eco, pensador sempre estimulante. Mesmo quando escreve sobre temas aparentemente menores.

 

Destes dez, já li dois. E sobre um deles até escrevi aqui, recomendando-o sem reservas: A Próxima Guerra Civil Americana. Tema mais actual que nunca: está já em marcha a próxima corrida à Casa Branca.

Sobre o outro terei ocasião de escrever também. Quando gosto a sério de um livro, sinto vontade de divulgar a notícia. Faz parte do sortilégio da leitura: nada melhor do que um prazer que se partilha.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 16.06.24

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Livro dez: O Príncipe da Democracia, de Nuno Gonçalo Poças

Edição D. Quixote, 2024

462 páginas

 

À medida que o tempo passa, o nome de Francisco Lucas Pires (1944-1998) vai ficando cada vez mais esquecido. E, no entanto, foi um dos políticos mais brilhantes dos dois decénios iniciais do regime democrático. O primeiro que teve o desassombro de se dizer de direita, primeiro, e de se proclamar liberal, depois. Etiquetas que ainda hoje, para algumas almas penadas que pululam nas pantalhas, fazem soar campainhas de alarme: soam a «fascismo» e «extrema-direita». Quem não viveu esses tempos de geometria deturpada, quando Diogo Freitas do Amaral era apontado como «o homem mais à direita de Portugal» (título de um célebre editorial de Artur Portela Filho), nem imagina como andava tanta coisa às avessas. Começando pelo fundador do CDS, que se dizia «rigorosamente ao centro» e acabou a carreira política como ministro de José Sócrates e a partilhar palcos de comício com Francisco Louçã.

Nuno Gonçalo Poças escreveu esta biografia de Lucas Pires pelo motivo mais elementar: não haver nenhuma. Fez bem em colmatar esta lacuna. Nascido em Coimbra, onde se licenciou em Direito e se especializou em Ciências Jurídico-Políticas, adquirindo justa reputação como constitucionalista, Lucas Pires foi ministro, deputado na Assembleia da República e no Parlamento Europeu, conselheiro de Estado, presidente de um dos quatro partidos históricos da democracia portuguesa.

Deu aulas no ensino universitário a largas centenas de alunos (tive o privilégio de ser um deles), revelando-se mestre na pedagogia e na arte da oratória política. Incomparável criador de metáforas contundentes mas sem nunca humilhar um adversário. Com irrepreeensível fleuma britânica, muito distante da berraria incendiária que alastra dos extremos para contaminar o centro.

Pareceu sempre um homem à frente do seu tempo: esta longa biografia reforça tal noção entre aqueles que o conhecemos. Quando ainda meio mundo suspirava de nostalgia pelo «Portugal africano», já ele olhava para a Europa. Quando juravam que a cultura era indissociável da esquerda, ele revelou-se o primeiro e mais brilhante ministro desta pasta, entre 1981 e 1983. Quando quiseram impor o socialismo como via de sentido único para o rumo pós-revolucionário, ele advertiu que nos sobrava peso do Estado e nos faltava crença nas virtudes da sociedade - desequilíbrio que pagávamos em défice de prosperidade e desenvolvimento. Então em Portugal «vivia-se sob quase permanente assistência financeira, em perpétuo estado de austeridade, inflação, dificuldades, absentismo e corrupção».

Lucas Pires era maior do que o CDS, partido em que esteve filiado de 1976 a 1991, e que liderou entre 1983 e 1985. Quando saiu, ficou numa espécie de terra de ninguém. Reservaram-lhe só um discreto quarto lugar na lista europeia do PSD, em 1994, como independente. Noutro contexto, poderia ter sido presidente do Parlamento Europeu, função que nenhum português desempenhou. A incógnita jamais se dissipará: morreu subitamente, demasiado cedo, com apenas 53 anos

Não deixou sucessor: faz parte da sina de homens raros como ele. Isto também ajuda a explicar que a sua primeira biografia surja só 26 anos após a sua morte. Nuno Gonçalo Poças está de parabéns por ter posto fim a tão lamentável omissão editorial: enquanto figuras menores da política das três últimas décadas do século XX são lembradas a propósito de quase nada, Lucas Pires vinha sendo esquecido a respeito de quase tudo. Até agora.

 

Sugestão 10 de 2016:

Bairro Ocidental, de Manuel Alegre (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2017:

Santos e Milagres, de Alexandre Borges (Casa das Letras)

Sugestão 10 de 2018:

Sonhos Públicos, de Joana Amaral Dias (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2020:

A Minha Intenção, de Czeslaw Milosz (Cavalo de Ferro)

Sugestão 10 de 2021:

O Retorno, de Dulce Maria Cardoso (Tinta da China)

Sugestão 10 de 2022:

De Quase Nada a Quase Rei, de Pedro Sena-Lino (Contraponto)

Sugestão 10 de 2023:

Perseguição, de Jorge de Sena (Assírio & Alvim)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 14.06.24

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Livro nove: Por Amor à Língua e à Literatura, de Manuel Monteiro

Edição Objectiva, 2024

296 páginas

 

Este livro presta serviço público. Diz ao que vem e cumpre o prometido: é na verdade uma admirável declaração de amor à língua portuguesa, hoje tão maltratada no jornalismo, na escola, na academia, na publicidade e na linguagem de todos os dias. Com a contínua supressão de vocabulário, ameaçando de extinção milhares de palavras. Com a profusão sem freio de erros gramaticais e sintácticos - em jornais, revistas, livros, anúncios, folhetos de supermercado, rodapés de televisão e até no Diário da República. Com o famigerado aborto ortográfico, que aboliu a noção de norma num emaranhado de «duplas grafias» e «facultatividades» à mercê de uma nebulosa «pronúncia culta» que nega qualquer pressuposto científico.

Nesta versão revista e ampliada do livro Por Amor à Língua, publicado em 2018, Manuel Monteiro reforça o combate à banalização do erro e pugna contra a complacência perante tantos atentados ao nosso idioma. Emenda, corrige, esclarece. Nunca em tom de mestre-escola, mas com humor, vivacidade e a contagiante alegria de quem se declara sem rodeios apaixonado pela língua portuguesa.

Não é livro para arrumar em prateleiras destinadas a acumular pó, mas instrumento útil a quem faz do português ferramenta de trabalho e veículo privilegiado de comunicação, partilhado por quase 300 milhões de pessoas no mundo. Levanta o polegar perante «círculo vicioso» (correcto) e baixa-o em «ciclo vicioso». Esclarece que só «quando muito» faz sentido («quanto muito», que alguns papagueiam, é erro crasso). Dissipa a confusão entre «ter de» e «ter que» desta forma lapidar: «Nunca vi um "de" quando deveria estar um "que", ou seja, em caso de dúvida, opte sempre pelo "de", que, garanto-lhe, não errará. O erro é sempre ao contrário.»

Na linha do que já fizera em O Mundo Pelos Olhos da Língua (2022), este escritor e professor que foi revisor profissional enumera várias palavras usadas e abusadas nos contextos mais abstrusos. Como o famigerado verbo «colocar» que parece ter destronado o claro e conciso «pôr». Manuel Monteiro observa: «Coloca-se algo/alguém de lado/de parte/à margem, colocamo-nos na pele de outros, coloca-se a mão/o dedo/qualquer parte do corpo algures, coloca-se o carro na garagem, coloca-se o dinheiro no banco; progressivamente, tudo se coloca.» Até já leu esta frase num título da RTP, atribuída a um sindicalista da polícia: "Era o que faltava não podermos colocar baixa".»

Eis outros vocábulos que alastram como pulgas em dorso de cão vadio: abordagem, arrasar, empatia, inclusão, incontornável, tóxico, privilégio, literalmente, foco, evento, tolerância, fascista. E até filosofia, em expressões ridículas como «a filosofia de jogo do treinador», «a filosofia de vendas», «a filosofia de atendimento ao cliente». Assim «trivializamos e abandalhamos Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Kant» e tantos outros.

Merece também aplauso a justa luta do autor contra a despudorada profusão do portinglês, que transforma a nossa língua numa espécie de pátio das traseiras do idioma de Donald Trump. 

«Jornalistas há que escrevem metade das crónicas em português (e que, quando escrevem a metade em português, escrevem a pensar em inglês, seja quanto aos significados, seja quanto à construção sintáctica (...), seja quanto ao decalque de expressões idiomáticas, como "no fim/final do dia" ou "pôr-se nos sapatos dos outros/calçar os sapatos dos outros", quando em português são "no fim de contas/afinal de contas" e "pôr-se no lugar do outro") e a outra metade em inglês, que até nos títulos despejam palavras inglesas quando para as quais há palavras portuguesas de uso corrente.» Lembrei-me logo do Camilo Lourenço com o seu chorrilho de títulos à amaricana: «One Sided Stories»; «Unfit and Unproper»; «Scratch my back, I'll scratch yours».

Amor à língua, sim. Também é fogo que arde sem se ver. Mas lê-se. E não deixa lugar a dúvidas.

 

  Sugestão 9 de 2016:

Entrevistas da Paris Review, (Tinta da China)

Sugestão 9 de 2017:

Ao Largo da Vida, de Rainer Maria Rilke (Ítaca)

Sugestão 9 de 2018:

Só Acontece aos Outros, de Maria Antónia Palla (Sibila)

Sugestão 9 de 2019:

La Llamada de la Tribu, de Mario Vargas Llosa (Alfaguara)

Sugestão 9 de 2020:

Estocolmo, de Sérgio Godinho (Quetzal)

Sugestão 9 de 2021:

Woke - Um Guia para a Justiça Social, de Titania McGrath (Guerra & Paz)

Sugestão 9 de 2022:

Carta à Geração que Vai Mudar Tudo, de Raphaël Glucksmann

Sugestão 9 de 2023:

A Vida por Escrito, de Ruy Castro (Tinta da China)

Na Feira do Livro

jpt, 14.06.24

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A culpa foi do José Navarro de Andrade. O outro dia fui a uma cena dessas literárias, o que me é raríssimo. O tipo também comparecera, coisas de amizades lá dele. Enfim, fiz o que me cabia, sem murmúrios ouvi algumas palavras (auto)laudatórias e depois uns mui sentidos versos bem mortais. No final daquilo, e também para evitar uns apparatchikos PS (daqueles mesmo..) que por lá constavam, roliços ronronantes, vim para a rua fumar, e o Navarro também avançou. A gente vê-se (via-se, melhor dizendo) era na bola, ele levava-me a ver o Sporting, e também nos jantares de sportinguistas no Império. Mas ali não falámos de futebol, descaímos para livros. E não é que o Navarro me diz - ao fim destes anos todos - que tem este "Terra Firme", pequeno livro sobre a formação dos preços dos víveres, isso que nos esmaga. Narrou o ciclo, dos produtores até aos Pingos Doces da vida...

Enfim, fui agora à Feira do Livro, tendo jurado nada comprar, dadas as estantes atafulhadas e, acima de tudo, devido à... formação dos preços dos víveres, cruéis. Mas lembrei-me do livro do Navarro, e fui comprá-lo, até por ser bem barato. Mas foi o desastre, foi o ceder do dique moral. Malditas pechinchas!, as que logo se seguiram, que do Benoliel aos monos (e que belos monos) da Relógio D'Água já disparatei. E a culpa, repito, é do Navarro.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 13.06.24

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Livro oito: A Próxima Guerra Civil, de Stephen Marche

Edição Zigurate, 2024

223 páginas

 

No seu primeiro século de vida, os EUA foram dilacerados pela Guerra da Secessão, carnificina que provocou cerca de 750 mil mortos e deixou feridas que demoraram décadas a sarar, fracturando o país muito após o armistício assinado em 1865. Subsistem cicatrizes desse conflito, um dos mais sangrentos do século XIX.

Stephen Marche, escritor e colunista no The New York Times e nas revistas The Atlantic, EsquireNew Yorker, desenvolve uma tese controversa mas sustentada em indícios sólidos: os norte-americanos mergulharam numa nova guerra civil, por enquanto de baixa intensidade, mas que ameaça desencadear uma espiral descontrolada de violência. Qualquer rastilho pode soltar ferozes ódios ideológicos, pondo-os em confronto. A nação una e sólida do passado parece ter passado à história. O maior inimigo de um habitante dos EUA, pense ele o que pensar, é hoje um compatriota seu.

Há vários países dentro do país. No Texas, por exemplo, todos os candidatos presidenciais do Partido Republicano venceram desde 1980: os democratas não ganham ali uma eleição estadual desde 1994. Na Califórnia, pelo contrário, não há um só republicano em cargos executivos estaduais e São Francisco não tem um mayor deste partido desde 1964. Conclusão: «Num certo sentido, ambos os estados já se separaram de metade do país.» Podiam ser independentes? Sim. A Califórnia seria a quinta maior economia do mundo e o Texas teria o décimo PIB à escala planetária.

Marche observa o fenómeno com olhar preocupado mas desapaixonado. Tem, neste caso, a vantagem de ser estrangeiro: é canadiano, da província de Alberta. Evita a contaminação política, procurando analisar o que se passa nos EUA com objectividade. E o que vê deixa-o pessimista. Ao ponto de admitir que o país vizinho entrou já num caminho sem retorno em matéria de confrontação interna, com as paixões ideológicas à solta.

«As forças que despedaçam a América são radicalmente modernas e tão antigas como o próprio país», observa o escritor, autor de três romances, quatro ensaios e diversas reportagens sobre temas contemporâneos. Aqui cruza a ficção com o jornalismo, concebendo cinco cenários calamitosos que podem ocorrer num futuro próximo. Com base no seu profundo conhecimento da realidade norte-americana e nos depoimentos de quase duzentas fontes que foi contactando - incluindo militares de alta patente, agentes dos serviços secretos, ambientalistas, historiadores e politólogos.

Este livro funciona como poderoso sinal de alerta: o pior pode mesmo acontecer num país onde existem mais de 400 milhões de armas em poder dos cidadãos. Os americanos adquirem 12 mil milhões de cartuchos por ano. Só em 2020, 17 milhões de indivíduos compraram ali armamento diverso, alegadamente para defesa pessoal - o maior número de que há registo. O resultado está à vista: «Há 57 vezes mais tiroteios nos Estados Unidos do que no conjunto dos restantes países industralizados.» Com quase 40 mil vítimas mortais em 2017.

Impressionante arsenal bélico, alarmante em qualquer contexto. Pior ainda num país como este: «O ódio, mais do que qualquer outra coisa, é o motor da política nos Estados Unidos.» Os exemplos abundam: «Os adolescentes negros em Baltimore e St. Louis sentem-se sob ocupação policial. Os rancheiros no Texas e no Oregon sentem-se ocupados pelo Governo federal. Cada uma das facções políticas opera como se estivesse cercada: os democratas, pela máquina política republicana; os republicanos, pela demografia, pela imigração, pela cultura popular. Todos querem construir algum tipo de muro.» (Tradução de Ilda Luís.)

Tem tudo para correr mal. E pode correr mesmo. A Próxima Guerra Civil Americana ajuda-nos a abrir ainda mais os olhos. Porque uma constipação séria na América é capaz de provocar uma pneumonia à escala mundial.

 

Sugestão 8 de 2016:

Todos os Fogos o Fogo, de Julio Cortázar (Cavalo de Ferro)

Sugestão 8 de 2017:

Prantos, Amores e Outros Desvarios, de Teolinda Gersão (Porto Editora)

Sugestão 8 de 2018:

Quem Meteu a Mão na Caixa, de Helena Garrido (Contraponto)

Sugestão 8 de 2019:

Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins (Bookbuilders)

Sugestão 8 de 2020:

A Ideologia Afrocentrista à Conquista da História, de François-Xavier Fauvelle (Guerra & Paz)

Sugestão 8 de 2021:

Ernestina, de J. Rentes de Carvalho (Quetzal)

Sugestão 8 de 2022:

Luanda, Lisboa, Paraíso, de Djaimilia Pereira de Almeida (Companhia das Letras)

Sugestão 8 de 2023:

A Biblioteca de Estaline, de Geoffrey Roberts (Zigurate)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 12.06.24

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Livro sete: Inglaterra: Uma Elegia, de Roger Scruton

Edição Guerra & Paz, 2024

260 páginas

 

Este é um livro tocado de nostalgia. De saudável nostalgia. Roger Scruton (1944-2020), um dos mais brilhantes pensadores britânicos dos últimos decénios, fala do seu país natal sempre no passado. A Inglaterra, outrora Grã-Bretanha – não o Reino Unido, designação que lhe parecia espúria.

Ele não se envergonhava de ser o que era: um genuíno conservador, pessimista antropológico, avesso a subscrever as consabidas noções de «progresso». A nação a que presta tributo nestas páginas encerra algo de mítico, de intangível. Terá existido realmente, largas décadas atrás. Ou talvez nem isso. A elegia pela pátria pode confundir-se com um lamento pela juventude perdida.

Tal incógnita não retira interesse a este ensaio, publicado originalmente em 2001. O título resume o espírito da obra: estamos perante uma vibrante declaração de amor à Inglaterra, que Scruton pretendia ver como reino independente, sem elos directos com Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales. Mantendo a monarquia constitucional como pedra angular do Estado, a religião anglicana como vínculo com as gerações precedentes e preservando a inigualável paisagem inglesa, povoada de pastos, quintas de família e aldeias hoje abandonadas ou desfiguradas sem remissão. Esta é a mágoa maior do filósofo doutorado pela Universidade de Cambridge e autor de Como Ser um Conservador e O Ocidente e o Resto, entre outros títulos que lhe valeram uma legião de admiradores em vários países. Também entre nós.

«A pátria não é apenas um lugar; é também o que lá acontece. Um lugar torna-se uma pátria em virtude dos hábitos que o domesticam», observa com acerto enquanto discorre sobre o carácter inglês e até sobre «o amor dos ingleses pelo absurdo». Único povo do mundo «capaz de aceitar simultaneamente a ideia de que o sagrado é uma invenção humana e a ideia de que as coisas são realmente sagradas».

Scruton fala de política, da sociedade, das leis, do idioma de Shakespeare, de autores da sua predilecção (Dickens, Conrad, Eliot, Orwell, Larkin), de múltiplos aspectos da vida quotidiana, pontuada pelo individualismo e pelo cavalheirismo. Sempre no passado, convicto do inexorável desaparecimento do torrão que lhe serviu de berço. Ressalvando, porém, que «civilizações mortas têm muito para dizer a pessoas vivas».

Nada parece toldá-lo tanto como a perda do verde cenário da sua infância. Em linguagem poética que mais lhe acentua a melancolia: «O amor de um nativo pela paisagem da sua terra é bastante diferente do turista pelas vistas. A paisagem do nosso país de origem, tanto a natural como a urbana, é iluminada pelo carácter nacional, tal como o rosto é iluminado pela alma.»

Se alguém nunca sentiu o mesmo pela exígua parcela do planeta onde nasceu e cresceu, tornou-se imune às paixões humanas. Ou nem soube que existiam.

 

Sugestão 7 de 2016:

O Bosque, de João Miguel Fernandes Jorge (Relógio d'Água)

Sugestão 7 de 2017:

1933 Foi um Mau Ano, de John Fante (Alfaguara)

Sugestão 7 de 2018:

O Visitante da Noite & Outros Contos, de B. Traven (Antígona)

Sugestão 7 de 2019:

Um Futuro de Fé, do Papa Francisco e Dominique Wolton (Planeta)

Sugestão 7 de 2020:

Acordo Ortográfico - Um Beco Com Saída, de Nuno Pacheco (Gradiva)

Sugestão 7 de 2021:

O Silêncio, de Don DeLillo (Relógio d'Água)

Sugestão 7 de 2022:

Diários (1950-1962), de Sylvia Plath (Relógio d'Água)

Sugestão 7 de 2023:

«O Mais Sacana Possível», de António Araújo (Tinta da China)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 11.06.24

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Livro seis: Canção de Rolando, de autor desconhecido

Edição E-primatur, 2024

213 páginas

 

É, desde já, um dos acontecimentos editoriais do ano em Portugal - na sequência do lançamento de outros títulos da E-primatur, vocacionada para a divulgação de clássicos. Poucos serão tão antigos como esta Canção de Rolando, surgida em meados do século XI e concebida por penas incógnitas para divulgação através de jograis ou trovadores em festas, romarias e justas medievais nos burgos franceses. Daí transitaram para todo o espaço europeu.

São 4002 versos octossilábicos sem rima mas semeados de aliterações que narram a epopeia de Carlos Magno (742-812) enquanto conquistador de amplas extensões de território na Península Ibérica como rei dos francos e dos lombardos numa saga que o levou a unificar grande parte da Europa Ocidental e Central. Culminaria o seu percurso bélico e político já entronizado como Imperador dos Romanos - o primeiro em três séculos - pelo Papa Leão III, em 800.

O principal marco desta narrativa em verso é a mítica batalha de Roncesvales, que opôs a retaguarda do exército de Carlos Magno, comandada pelo conde Rolando, seu sobrinho, a um vasto destacamento de forças «pagãs», assim mencionadas no texto, aludindo a sarracenos em confusa amálgama com devotos do deus Apolo auxiliados por traidores francos.

Roncesvales, localidade dos Pirenéus navarros, é hoje o primeiro marco em território espanhol para quem vem de França nas peregrinações do Caminho de Santiago. Os feitos que conduziram à morte trágica de Rolando foram-se perpetuando por gerações até ser fixado o texto definitivo deste épico, em anglo-normando, no chamado Manuscrito de Oxford, identificado em 1835. Esta é considerada a fonte mais credível entre as nove que chegaram a circular em letra impressa.

Daqui surge finalmente a Canção de Rolando em versão integral no nosso idioma, graças ao meritório trabalho dos tradutores, Amélia Vieira e Pedro Bernardo, com base no francês moderno. A obra é apresentada de forma clara, sucinta e sugestiva numa nota editorial que explica ao leitor o contexto do poema, nomeadamente a sua íntima associação ao espírito das Cruzadas, então no auge. 

As cidades e reinos concretos (Salamanca, Saragoça, Bretanha, Normandia, Dinamarca, Etiópia) mesclam-se nesta épica com lugares que derivam da pura fantasia. Numa narrativa trepidante, digna do melhor filme de aventuras - Sam Peckinpah e Quentin Tarantino gostariam de filmar muitas das cenas aqui descritas.

Rigor histórico? É o que menos importa. O Rolando de carne e osso caiu no campo de batalha, mas sobrevive através dos séculos como herói literário. Quando a lenda se torna facto, imprime-se a lenda.

 

Sugestão 6 de 2016:

Axilas e Outras Histórias Indecorosas, de Rubem Fonseca (Sextante)

Sugestão 6 de 2017:

O Tesouro, de Selma Lagerlöf (Cavalo de Ferro)

Sugestão 6 de 2018:

Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão, de Mário de Carvalho (Porto Editora)

Sugestão 6 de 2019:

Como Ser um Conservador, de Roger Scruton (Guerra & Paz)

Sugestão 6 de 2020:

Fósforos e Metal Sobre Imitação de Ser Humanode Filipa Leal (Assírio & Alvim)

Sugestão 6 de 2021:

Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente, de João Céu e Silva (Contraponto)

Sugestão 6 de 2022:

O Barulho das Coisas ao Cair, de Juan Gabriel Vásquez (Alfaguara)

Sugestão 6 de 2023:

Professor Unrat, de Henrich Mann (E-primatur)

DELITO na Feira do Livro

Pedro Correia, 09.06.24

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O livro-antologia DELITO DE OPINIÃO está disponível no espaço E-primatur/Bookbuilders da Feira do Livro de Lisboa.

No lado direito de quem sobe, a partir do Marquês de Pombal, já lá em cima. Quiosques H34, H35 e H36.

Oportunidade, também este ano, para adquirirem este nosso livro (é o da lombada amarela). Quem não conhece seguramente irá gostar.

Memórias da revolução

Cristina Torrão, 06.06.24

Tive esta ideia de escrever sobre o 25 de Abril através dos olhos de uma criança. Estava eu, na altura, a três meses de completar os nove anos e escuso de referir o impacto causado na minha vida e na da minha família.

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Não sei se A Revolução da Verónica transmite fielmente os acontecimentos. Afinal, já decorreram cinquenta anos e é sabido o tempo lançar-nos algumas armadilhas. Costuma dizer-se que não recordamos aquilo que se passou, mas o que julgamos ter-se passado. Por isso, a miúda protagonista não leva o meu nome. Porém, entre memórias, armadilhas e alguma ficção, penso que estas páginas transmitem a essência das vivências de uma criança e do esforço de adaptação aos novos tempos, surgidos, literalmente, da noite para o dia.

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A Revolução da Verónica abrange o período entre 1973 e 1975. Não podia faltar o Verão, de facto, quente, em que completei os dez anos e em que fui, pela primeira vez, ao Algarve e a Lisboa. Nem tão-pouco podia faltar o "Outono Quente", do Norte. Afinal, vivíamos paredes meias com o RASP, em Vila Nova de Gaia. Sei, de facto, o que é estar em casa e ouvir rajadas de G3, a menos de cinquenta metros de distância, consequência da troca de galhardetes entre as forças enviadas por Pires Veloso e os SUV, infiltrados no quartel.

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O livro inclui ainda um pequeno conto, A Festa da Revolução, esse sim, ficção pura. Além de referir o lado folclórico do 25 de Abril, centra-se nas vivências de uma adolescente da altura e nas consequências catastróficas, trinta anos mais tarde, geradas no contraste entre a mentalidade antiga e a mudança repentina.

A Revolução da Verónica está à venda na Feira do Livro de Lisboa, nos stands C19 e C20 (Dinalivro). Se ficaram curiosos e passarem por lá, talvez até peguem no livro, a fim de decidirem se o compram, ou não. Declaro-me, desde já, agradecida por esse simples gesto.

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Nota: A Revolução da Verónica está igualmente à venda na livraria UNICEPE, na Praça de Carlos Alberto, no Porto.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 05.06.24

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Livro cinco: A Porta, de Magda Szabó

Edição Cavalo de Ferro, 2024

237 páginas

 

Originalíssimo romance em torno de um triângulo formado por uma escritora de meia-idade (narradora e evidente alter ego da escritora), a sua idosa empregada doméstica, quase analfabeta, e um cão – animal que partilham em insólita tutela, potenciadora de um conflito larvar.

Há também o marido da escritora, que nunca emerge do plano secundário. E uma casa secreta, com um apartamento que há anos ninguém visita. Uma atmosfera ligeiramente opressiva percorre toda a obra, dando-lhe um toque inconfundível.

Parece simples, mas não é. Porque aqui existem dois níveis de interpretação do texto. O imediato, que narra uma amizade gerada em circunstâncias imprevisíveis, na Hungria comunista ainda com reminiscências do Império Austro-Húngaro. E um outro, mais subtil, que nos permite vislumbrar fragmentos do quotidiano aparentemente banal num país mergulhado no pesadelo totalitário. Não por acaso, A Porta começa e acaba com um sonho.

Aqui se encontram e confrontam Magda – homónima da autora, reforçando a verosímil tese de estarmos perante ficção ancorada em factos reais – e Emerence, a enigmática camponesa que a ajudava nas tarefas domésticas. A mulher vai semeando pérolas de sabedoria, como esta: «O melhor presente que se pode dar a alguém é impedi-lo de sofrer.» E transporta consigo um segredo que há-de ser desvendado. Ainda a tempo para o leitor, tarde de mais para ela.

Esta dupla chave de leitura valeu aplausos no estrangeiro a Magda Szabó (1917-2007), poetisa e ficcionista que em 1949 foi declarada «inimiga do Estado» e condenada à lei do silêncio no seu próprio país antes de obter o merecido reconhecimento público após a queda do comunismo, em 1989.

A Porta – com tradução portuguesa de Ernesto Rodrigues – surgiu em 1987, já na fase crepuscular da ditadura. Em 2003, valeu-lhe o prestigiado Prémio Femina, para a melhor obra estrangeira editada nesse ano em França. Galardão que a emparceira com outros nomes de envergadura: J. M. Coetzee, Amos Oz, Julian Barnes, Javier Marías, Antonio Muñoz Molina, Ian McEwan, Joyce Carol Oates – e o nosso Vergílio Ferreira, distinguido em 1990 por Manhã Submersa. Em 2005 viria a ser contemplada também com o Prémio Mondello, de Itália. Este romance «altera o modo como entendemos a nossa própria vida», escreveu Claire Messud no New York Times.

Marco na ficção húngara, A Porta perdura-nos na memória também pelo tocante protagonismo do cão com nome feminino, Viola. Talvez só nos livros de Jack London um animal seja tratado de forma tão sensível, tão carinhosa, tão admirável. Como se também ele convivesse connosco. Como se também ele fizesse parte da nossa família.

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Sugestão 5 de 2016:

Telex de Cuba, de Rachel Kushner (Relógio d' Água)

Sugestão 5 de 2017:

Coração de Cão, de Mikhail Bulgákov (Alêtheia)

Sugestão 5 de 2018:

Octaedro, de Julio Cortázar (Cavalo de Ferro)

Sugestão 5 de 2019:

Júlio de Melo Fogaça, de Adelino Cunha (Desassossego)

Sugestão 5 de 2020:

Por Amor à Língua, de Manuel Monteiro (Objectiva)

Sugestão 5 de 2021:

Gramática Para Todos, de Marco Neves (Guerra & Paz)

Sugestão 5 de 2022:

As Praias de Portugal, de Ramalho Ortigão (Quetzal)

Sugestão 5 de 2023:

Como Perder uma Eleição, de Luís Paixão Martins (Zigurate)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 03.06.24

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Livro quatro: Tempestades de Aço, de Ernst Jünger

Edição Guerra & Paz, 2023

279 páginas

 

A I Guerra Mundial gerou muitas obras literárias de grande fôlego, escritas por quem nelas participou. Como A Oeste Nada de Novo, de Erich Maria Remarque, e O Adeus às Armas, de Ernest Hemingway. Estranhamente, com escasso rasto na nossa literatura, apesar de Portugal ter participado nela, em circunstâncias trágicas: milhares de homens mal equipados, mal armados e mal alimentados foram enviados para a lama da Flandres, onde não tínhamos interesses estratégicos a defender. Lá deixámos mais de dois mil mortos, hoje silenciados. Ninguém fala deles.

Muitos desses compatriotas que serviram de carne para canhão passaram pela experiência que Ernst Jünger (1895-1998) descreve em Tempestades de Aço com abundância de pormenores. Dos mais sórdidos, dos mais trágicos, dos que perduram para sempre na memória de quem sobrevive. 

«A cada novo ataque, o inimigo demonstrava ter melhor equipamento; os seus assaltos tornavam-se cada vez mais rápidos e mais devastadores. Todos sabíamos que já não podíamos vencer. Mas resistiríamos.» Dilema existencial: matar ou morrer. 

Jünger sabia bem do que falava. Combateu na Frente Ocidental entre Janeiro de 1915 e Agosto de 1918, durante quase todo o conflito que conduziu à derrota alemã. Tenente do exército imperial, foi ferido 14 vezes e agraciado com a mais alta condecoração germânica. Viu morrer amigos, camaradas, oficiais e soldados, irmanados no mesmo juramento de honra, irmanados também na morte, carne e ossos à mercê dos bichos, com a juventude amputada sem remissão. 

Não há intuito pacifista neste romance sem ficção, surgido inicialmente em 1920, já o imperador Guilherme II rumara ao exílio. Mas também não se detecta aqui o menor indício de bravata bélica posta ao serviço de duvidosas causas ideológicas: o grande prosador alemão limita-se a relatar o que testemunhou. Guerra dentro da guerra, em que cada um batalhava como podia pela sobrevivência, com a consciência nítida de que a manhã seguinte poderia jamais chegar.

O relato vem na primeira pessoa, em registo autobiográfico. Mas o sujeito deste impressionante relato é colectivo. Desdobrado em dezenas de nomes que regaram com sangue o solo de França e da Flandres. Para conquistar uns palmos de terra devastada na mais absurda de todas as guerras. Que provocou 20 milhões de mortos e outros tantos feridos graves. Além das feridas internas, que não chegaram a ter cura. «O Estado, que nos isenta da responsabilidade, não nos pode libertar da dor; temos de ser nós a lidar com ela. Ela penetra até às profundezas dos nossos sonhos.»

«Aos tombados na guerra»: eis a sucinta e comovente dedicatória do escritor num livro que se tornou clássico instantâneo, traduzido por Maria José Segismundo dos Santos nesta edição portuguesa que resgata Tempestades de Aço do esquecimento no preciso momento em que a Europa volta a estar em guerra. Novo tropel de tempestades ameaça o continente. A paz parece a maior e a mais inalcançável das utopias.

 

Sugestão 4 de 2016:

Páginas de Melancolia e Contentamento, de António Sousa Homem (Bertrand)

Sugestão 4 de 2017:

Os Filipes, de António Borges Coelho (Caminho)

Sugestão 4 de 2018:

Não Respire, de Pedro Rolo Duarte (Manuscrito)

Sugestão 4 de 2019:

Dois Países, um Sistema, de Rui Ramos e outros (D. Quixote)

Sugestão 4 de 2020:

Que Nós Estamos Aqui, de João Tordo (Fundação Francisco Manuel dos Santos)

Sugestão 4 de 2021:

Uma História da ETA, de Diogo Noivo (E-primatur)

Sugestão 4 de 2022:

História de um Homem Comum, de George Orwell (E-primatur)

Sugestão 4 de 2023:

Biblioteca Pessoal, de Jorge Luis Borges (Quetzal)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 02.06.24

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Livro três: Memórias Minhas, de Manuel Alegre

Edição D. Quixote, 2024

403 páginas

 

Manuel Alegre é conhecido sobretudo como poeta, autor de títulos tão marcantes como O Canto e as Armas e Senhora das Tempestades. Mas tem feito frequentes incursões pela ficção literária, como na novela Cão Como Nós (2002), uma das melhores obras publicadas no nosso idioma com um animal no centro. Enquanto ia praticando o memorialismo esparso nas crónicas de O Futebol e a Vida (2006) e nos ensaios de Uma Outra Memória (2016). E se retratava como Rafael, nome de aventureiro romântico, no romance homónimo (2004).

Faltava este livro na sua extensa bibliografia, iniciada há seis décadas. Memórias sem disfarce, com a carga subjectiva que este género sempre transporta e o poderoso testemunho que transmite às gerações mais jovens. Relato de tantos episódios marcantes da sua vida, que dava um filme. Ou vários filmes. Impressões digitais de um tempo irrepetível, desdobrado em várias etapas – de Coimbra a Luanda, de Paris à Lisboa pós-1974, passando por Argel.

Acompanhamos o seu percurso desde Águeda, terra natal que já evocara em Alma, romance de 1995. Entramos com ele no casarão familiar à beira-rio. «Sou um republicano com uma costela sentimental monárquica. Meu pai dizia-se um monárquico sem rei. E eu sinto-me por vezes um republicano sem república.»

Seguem-se os anos escolares: Lisboa, Porto, enfim Coimbra – cidade dos «amores incompletos», sempre «os que mais demoram a morrer».

A natação, o futebol, os primeiros versos, o convívio juvenil com figuras que ascenderam ao Olimpo das letras, como Herberto Helder e Fernando Assis Pacheco. O activismo universitário, a militância clandestina no PCP, a residência fixa nos Açores. Depois a tropa, a mobilização para Angola. «Eu era contra aquela guerra, mas sentia a ancestral sedução do risco, do perigo e do combate.»

Memórias em 36 capítulos, pontuadas por datas lapidares. 31 de Maio de 1958: o dia em que Humberto Delgado, na campanha presidencial, mobilizou uma impressionante massa de apoiantes em Coimbra, despertando-lhe uma vocação política. 17 de Abril de 1963: o dia em que foi detido pela PIDE, em Angola. 12 de Maio de 1964: o dia em que mergulhou na clandestinidade, no Norte de Portugal, antecipando-se a nova detenção às ordens da polícia política. 2 de Maio de 1974: o dia em que regressou ao país, após uma década de exílio na Argélia. 13 de Dezembro de 1974: o dia da inauguração do congresso do PS, em que se destaca como principal orador, virando a opinião maioritária dos delegados a favor de Mário Soares, contra a corrente radical de Manuel Serra que ameaçava transformar o partido num satélite do PCP.

Estas Memórias Minhas narram-nos muitos episódios dos bastidores políticos. Um dos mais divertidos ocorreu em 1977. Soares era primeiro-ministro, num fim de tarde recebeu em São Bento o secretário-geral comunista, Álvaro Cunhal. A entrevista foi-se prolongando, à porta fechada, parecia interminável. «Abri a porta e deparei com os dois sentados em frente à televisão. Estavam a ver, regalados, Gabriela, Cravo e Canela, a telenovela que foi, em si mesma, uma revolução cultural e um factor importantíssimo de distensão social.»

Recordações de um poeta que se candidatou duas vezes à Presidência da República, em 2006 e 2011. Hoje reconhece que a segunda tentativa foi um erro, após os 20% de votos recolhidos na primeira corrida a Belém, sem siglas partidárias. Regressou a tempo inteiro à literatura, a maior das suas paixões.

Na década de 90, quando lhe faltavam cem páginas para concluir Alma, sofreu um enfarte do miocárdio durante o funeral de um amigo em Soure. Prontamente assistido em Coimbra, salvou-se. No hospital, mais tarde, relataram-lhe o que sucedera: «Já tinham ouvido gritar pelas mães, pelas mulheres, mas nunca tinham visto um tipo a pedir-lhes: Vejam lá se me salvam para eu acabar o livro.»

Depois já publicou mais trinta. E não parece ter a menor vontade de ficar por aqui.

 

Sugestão 3 de 2016:

Política, de David Runciman (Objectiva)

Sugestão 3 de 2017:

A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade (Companhia das Letras)

Sugestão 3 de 2018:

Cebola Crua com Sal e Broa, de Miguel Sousa Tavares (Clube do Autor)

Sugestão 3 de 2019:

Lá Fora, de Pedro Mexia (Tinta da China)

Sugestão 3 de 2020:

ABC da Tradução, de Marco Neves (Guerra & Paz)

Sugestão 3 de 2021:

Intervenções, de Michel Houellebecq (Alfaguara)

Sugestão 3 de 2022:

O Meu Irmão, de Afonso Reis Cabral (Leya)

Sugestão 3 de 2023:

Malina, de Ingeborg Bachmann (Antígona)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 31.05.24

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Livro dois: Kokoro, de Natsume Soseki

Edição Presença, 2023

302 páginas

 

É o mestre dos mestres da literatura nipónica. Influenciou os outros todos - incluindo dois galardoados com o Nobel, Yasunari Kawabata e Kenzaburo Oe, além do mais icónico, Yukio Mishima. Sem esquecer Haruki Murakami, que confessa sem rodeios: «É o meu escritor japonês preferido.»

Ele, Natsume Soseki (1867-1916). Traduzido em mais de 30 idiomas - incluindo o árabe, o esloveno e agora o português. Cronista de um Japão em viragem histórica, na era do imperador Meiji, que modernizou o país, removendo os últimos vestígios do sistema feudal. Foi quando o arquipélago do Sol Nascente se abriu ao mundo, emergindo como uma das potências económicas do planeta. Mas o novo cenário não removia antigos dilemas existenciais, nomeadamente o confronto entre o dever e o prazer.

Obra-prima de Soseki que muitos consideram o primeiro grande romance moderno do Japão, Kokoro (significa "Coração") é uma parábola sobre a condição humana, impregnada do fatalismo oriental - também sintoma da decadência nipónica, coincidente com a morte de Meiji em 1912, dois anos antes da primeira edição do livro. Disto nos fala a enigmática relação entre um estudante universitário de Tóquio, de que nunca saberemos o nome, e um homem já idoso, a quem chamam Mestre. «Condenado a duvidar dos homens», em contemplação de uma sociedade com «demasiada liberdade, demasiada independência, demasiado egoísmo.» Foi há mais de um século, mas podia ter sido agora. Foi no extremo oriental, mas podia ter sido aqui.

«Solitário e triste», assim se assume o Meste. Saberemos porquê no longo capítulo que encerra o romance, redigido em formato epistolar. Surpreendente e amargurada meditação sobre a amizade, o amor e a morte. 

Linguagem depurada, reduzida ao essencial, muito valorizada pela tradução portuguesa (a partir da edição francesa) de Helder Guégués, autor do blogue Linguagista. Romance enraizado na sua época, funciona como meditação de alcance universal. Resistindo ao teste do tempo, a mais implacável de todas as provas.

 

Sugestão 2 de 2016:

Nada, de Carmen Laforet (Cavalo de Ferro)

Sugestão 2 de 2017:

Singularidades, de A. M. Pires Cabral (Cotovia)

Sugestão 2 de 2018:

Deuses de Barro, de Agustina Bessa-Luís (Relógio d'Água)

Sugestão 2 de 2019:

A Língua Resgatada, de Elias Canetti (Cavalo de Ferro)

Sugestão 2 de 2020:

Três Retratos - Salazar, Cunhal, Soares, de António Barreto (Relógio d'Água)

Sugestão 2 de 2021:

Presos por um Fio, de Nuno Gonçalo Poças (Casa das Letras)

Sugestão 2 de 2022:

Primeira Memória, de Ana María Matute (Narrativa)

Sugestão 2 de 2023:

O Plantador de Malata, de Joseph Conrad (Sistema Solar)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 30.05.24

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Livro um: Canções Para o Incêndio, de Juan Gabriel Vásquez

Edição Alfaguara, 2023

231 páginas

 

O leitor português já conhecia Juan Gabriel Vásquez como talentoso romancista, digno herdeiro de Gabriel García Márquez, a quem presta homenagem implícita na sua mais célebre obra: O Barulho das Coisas ao Cair (2011) - excelente a começar no título, prosa que parece verso.

A mesma chancela editorial revela-nos outra faceta do escritor colombiano, desta vez como contista. Num volume surgido originalmente em 2018. São nove histórias que podem ser lidas como parcelas do mesmo coro polifónico, à semelhança do que fez James Joyce em Gente de Dublin, ponto cimeiro deste género literário.

No conto, como no romance, Vásquez alude à violência inscrita num quotidiano de aparente normalidade – e à culpa que que tantas vezes lhe está associada. Em lugares diversos, nas situações mais inesperadas, provocadas pela intolerância e pelo fanatismo. Compondo um perturbante retrato da Colômbia em diferentes fases do seu conturbado processo histórico.

Ele «conhece a arte do conto como a palma das suas mãos», na justa apreciação do Le Magazine Littéraire. Aqui com inesquecíveis retratos de gente à beira do abismo, consumida pelo desejo de vingança, convulsionada pelo remorso ou perdida nos labirintos da traição. O Dom Gilberto de “Mulher à Beira-Rio” - «um desses homens que falam sem olhar para ninguém e sem invocar o nome de ninguém». A Mercedes de “As Rãs” – mulher de um veterano de guerra perseguido por um segredo talvez inconfessável. A enigmática Aurelia de León, nascida sob o signo do infortúnio e desaparecida quase sem deixar rasto. O Antonio Wolf de “O Duplo”, pai que perdeu o filho e não se conforma pela inexistência de uma palavra capaz de defender esta espécie de orfandade.

Todas estas histórias funcionam como frestas em que vislumbramos o espectáculo da vida, nos seus fragmentos de luz e no seu cortejo de sombras. Com atenção minuciosa às minúcias do enredo e a cada subtileza da linguagem – aspectos que traçam a fronteira entre a escrita de ficção como mero produto de oficina e a literatura enquanto arte maior, inconfundível.

 

Sugestão 1 de 2016:

O Islão e o Ocidente, de Jaime Nogueira Pinto (D.Quixote)

Sugestão 1 de 2017:

A Máquina do Tempo, de H. G. Wells (Antígona)

Sugestão 1 de 2018:

Delito de Opinião, de vários autores (Bookbuilders)

Sugestão 1 de 2019:

O Fundo da Gaveta, de Vasco Pulido Valente (D. Quixote)

Sugestão de 2020:

As Sílabas de Amália, de Manuel Alegre (D. Quixote)

Sugestão de 2021:

No Devagar Depressa dos Tempos, de Marcello Duarte Mathias (D. Quixote)

Sugestão de 2022:

O Caminho Fica Longe, de Vergílio Ferreira (Quetzal)

Sugestão de 2023:

O Olhar Mais Azul, de Toni Morrison (Presença)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 13.06.23

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Livro dez: Perseguição, de Jorge de Sena

Edição Assírio & Alvim, 2021

108 páginas

 

Com este livro, publicado originalmente quando tinha apenas 22 anos, em 1942, Jorge de Sena estreava-se como escritor, sob a chancela Cadernos de Poesia - assumida afirmação de uma linguagem poética que transcendia os parâmetros da temática "social" então em voga. O jovem Sena e seus companheiros de jornada (Ruy Cinatti, José Blanc de Portugal, Tomás Kim e Sophia de Mello Breyner, com quem manteve sempre afinidades estéticas) defendiam uma poética mais ligada ao Ser do que à sua circunstância.

Já aqui se pressentia uma voz forte e bem timbrada. Num cruzamento algo insólito entre o surrealismo (daí as epígrafes a René Char e André Breton em duas secções do livro, como sublinha Fernando Martinho num arguto prefácio) e as formas clássicas, presentes em vários sonetos, que Sena cultivava com esmero. Em sábia anteposição ao verso livre e despojado de métrica, mais característico da sua obra poética.

 surpreendente maturidade neste livro de estreia, percorrido por três temas essenciais. O primeiro é a infância, ainda de fresca memória. Em emblemáticos poemas como "Andante" («As crianças nascem com uma coragem que perdem») ou "Felicidade" («A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela»), autobiográficos até ao osso. O segundo relaciona-se com o mar, em evidente inspiração na experiência náutica do autor, que viajou no navio-escola Sagres como cadete da Marinha de Guerra. O terceiro - o mais luminoso e memorável - é a relação nunca resolvida com Deus que há-de percorrer toda a obra deste autor maior da língua portuguesa do século XX.

É neste incessante mas angustiado diálogo com o divino que surgem as melhores páginas de Perseguição - em boa hora reeditado, num plano de relançamento individual dos seus títulos de poesia. Em "Caverna", por exemplo: «Tanta coragem, meu Deus, em perguntar por dúvida, / não vão os meus actos, amanhã pensados, / ser resposta, / vertigem à beira de um poço mais estreito que largo, / de Te querer tão puro e longe / isento do meu mundo.» Ou em "Declaração": «Ah eu bem conheço que não somos racionais, / mas sempre somos nós e sermo-nos / é o haver mistérios na alma e no mundo / e o não haver necessidade de mistérios em Ti.»

Preces em permanência que vão ecoando ao longo de gerações.

 

Sugestão 10 de 2016:

Bairro Ocidental, de Manuel Alegre (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2017:

Santos e Milagres, de Alexandre Borges (Casa das Letras)

Sugestão 10 de 2018:

Sonhos Públicos, de Joana Amaral Dias (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2020:

A Minha Intenção, de Czeslaw Milosz (Cavalo de Ferro)

Sugestão 10 de 2021:

O Retorno, de Dulce Maria Cardoso (Tinta da China)

Sugestão 10 de 2022:

De Quase Nada a Quase Rei, de Pedro Sena-Lino (Contraponto)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 11.06.23

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Livro nove: A Vida por Escrito, de Ruy Castro

Edição Tinta da China, 2023

197 páginas

 

Ruy Castro é hoje, sem favor, o maior biógrafo de língua portuguesa. Autor de obras insuperáveis neste género, como as que consagrou a Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Também autor de um dos mais belos livros já publicados sobre música - Chega da Saudade (1990), declaração de amor aos anos dourados da nossa nova, repassada de saudável nostalgia.

A Vida por Escrito é uma digressão deste veterano jornalista - carioca de gema, morador no Leblon - pelas obras que foi escrevendo em mais de três décadas de intensa produção literária. Aplicando aqui, com mestria, as regars absorvidas desde 1967, quando se iniciou na mais apaixonante profissão do mundo (dizia Camus). Regras que também seguiu ao elaborar os livros. Eis uma das principais: «Para o biógrafo, não há detalhes insignificantes.» Tudo importa.

«Mais do que um manual de como escrever uma biografia, [é] um relato da experiência de alguém que, depois de vinte anos nas principais Redacções de jornais e de revistas do Rio e de São Paulo, e já tendo passado dos quarenta, descobriu um novo mundo a ser explorado pela única ferramenta que o acompanha pela vida: a palavra.» Diz-nos o autor, em jeito de introdução a esta obra, redigida com pena ágil e leve. Com ele, escrever até parece demasiado fácil. Mas as aparências iludem: na escrita, nada é tão complexo como a simplicidade.

Há três regras essenciais: clareza, concisão e verdade. Com algum humor, tanto melhor.

 

Primeiro passo: ler tudo sobre o biografado. «A pesquisa é fundamental.» É preciso falar com muita gente: fontes em primeira mão, de preferência. Levar um guião quase exaustivo de perguntas, não desistir enquanto não estiverem todas preenchidas. Ganhar a confiança do interlocutor, se for necessário começando a falar de outros assuntos antes de chegar ao que mais importa. Confirmar os dados obtidos para não falhar no decisivo teste factual: autêntico trabalho de detective. Com uma certeza: «Sem apuração bem-feita, não há biografia.»

Só então escrever: esta frase chega quando percebemos que «as entrevistas já não rendem grandes surpresas» e decorrem dias sem apurarmos nada de novo sobre o visado. Convém respeitar a cronologia para não baralhar o leitor: a técnica acronológica serve para algum cinema e algum romance, não funciona na biografia.

Outro requisito indispensável: o biógrafo deve ser invisível, funcionando «como uma parede de vidro entre o leitor e o biografado». Ele só narra a história, não faz parte dela.

 

Depois da escrita, um laborioso e minucioso trabalho de revisão. Para eliminar «expressões apenas decorativas, exibicionismos verbais», tudo quanto for redundante ou oco. Algo indispensável no jornalismo, como bem sabe este homem que viveu três anos como correspondente em Portugal, onde assistiu ao 25 de Abril de 1974, e ao longo da carreira na imprensa entrevistou Jorge Luis Borges, James Stewart, Tony Bennett, Quincy Jones, Juscelino Kubitschek e Guimarães Rosa, entre tantos outros.

Segredo? Eis talvez o maior deles: «O biógrafo será capaz de contornar qualquer dificuldade desde que não desista ao primeiro não.» Serve para a biografia, serve também para a vida. Preciosa lição extra que Ruy Castro nos dá.

 

  Sugestão 9 de 2016:

Entrevistas da Paris Review(Tinta da China)

Sugestão 9 de 2017:

Ao Largo da Vida, de Rainer Maria Rilke (Ítaca)

Sugestão 9 de 2018:

Só Acontece aos Outros, de Maria Antónia Palla (Sibila)

Sugestão 9 de 2019:

La Llamada de la Tribu, de Mario Vargas Llosa (Alfaguara)

Sugestão 9 de 2020:

Estocolmo, de Sérgio Godinho (Quetzal)

Sugestão 9 de 2021:

Woke - Um Guia para a Justiça Social, de Titania McGrath (Guerra & Paz)

Sugestão 9 de 2022:

Carta à Geração que Vai Mudar Tudo, de Raphaël Glucksmann

Ler (21)

Encontros e compras nesta Feira do Livro

Pedro Correia, 09.06.23

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Três incursões à Feira do Livro de Lisboa. A terceira, ontem, com direito a aguaceiro: é da praxe a chuva de quase-Verão, com vento a condizer, neste certame que tanto apaixona alfacinhas e visitantes de outras paragens.

Este ano mantêm-se os 340 pavilhões, agora em representação de 981 chancelas editoriais. Ampliou-se o espaço de comes e bebes. E é visível que muita gente não se limita a deambular pelo Parque Eduardo VII: abundam os sacos de compras. 

Abraço um dos meus editores (Rui Couceiro, da Contraponto). E também o João Severino, parceiro de há longos anos, desde os tempos de Macau: está no pavilhão da Âncora com o seu recentíssimo livro de memórias, Recordador Olex - acompanhado do João Paulo Diniz, figura histórica da rádio portuguesa, que pôs no ar a senha do 25 de Abril aos microfones da Rádio Renascença. Há quase meio século.

 

Reencontro o José Manuel Barroso, velho camarada das lides jornalísticas. Deparo com a Helena Sacadura Cabral felizmente muito afadigada a dar autógrafos: interrompo-a por uns segundos para lhe dar um beijinho, satisfeito por a ver em boa forma. Sinto também orgulho ao ver as minhas amigas Filipa Martins e Maria Inês Almeida sempre com sucesso junto dos leitores.

Cruzo-me com gente conhecida. Pacheco Pereira sobe e desce a alameda, nervosamente: lembra-me a Luísa do poema "Calçada de Carriche", de Gedeão. Tozé Brito conversa, descontraído, com quem o aborda: os anos não parecem passar por ele. Saúdo um sorridente Júlio Isidro: «Viva, Senhor Televisão!»

Cumprimento a Anabela Mota Ribeiro, com quem me cruzei há largos anos no histórico edifício do Diário de Notícias quando o jornal vivia um dos melhores períodos de sempre, em absoluto contraste com o actual.

 

E trago livros, claro. Entre outros, estes que aqui mostro (um deles foi-me oferecido): Tempestades de Aço, de Ernest Jünger; Liderança, de Henry Kissinger; O Dever de Deslumbrar (biografia de Natália Correia, escrita pela Filipa); Paralelo 42, de John dos Passos (pechincha do dia: apenas 8 euros num alfarrabista). 

Nas filas de autógrafos, ontem a maior era - de longe - a do José Milhazes. Elogiado, incentivado, acarinhado e fotografado por um vasto público. Fiquei satisfeito por o ver imerso nesta onda de popularidade, rubricando exemplares das suas obras no recinto do conglomerado Leya. Trago prova do que vi. E deixo testemunho de uma frase que ali escutei: «Slava Ukraini!»

Nada mais apropriado.

 

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Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 05.06.23

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Livro oito: A Biblioteca de Estaline, de Geoffrey Roberts

Edição Zigurate, 2023

379 páginas

 

Ao contrário do que possa imaginar-se, os mais despóticos e demenciais tiranos cultivaram o gosto pelas letras. Foi assim com Adolf Hitler, como ficou documentado em 2008, ao publicar-se A Biblioteca Privada de Hitler, de Timothy W. Ryback (tradução portuguesa da Civilização, 2011), com base no que resta do espólio bibliográfico do ditador, hoje guardado na secção de livros raros do Congresso norte-americano. O verdugo austríaco terá possuído mais de seis mil volumes espalhados por três residências. Costumavam vê-lo acompanhado por livros - desde as trincheiras da I Guerra Mundial até aos dias do apocalipse, já no búnquer da chancelaria em Berlim, como testemunhou a sua principal secretária.

Hitler, como leitor, tinha gostos eclécticos: só não sentia qualquer atracção pela poesia. Apreciava sobretudo biografias, o que se adequava à sua convicção de que a História tem como alicerce a vontade humana, corporizada num líder carismático. 

Josef Estaline, que assinou um pacto de cooperação com o nazi em Agosto de 1939, partilhava características com o fundador do III Reich: havia um fascínio mútuo entre ambos. Tirânicos em grau extremo, expoentes de regimes alicerçados em partidos únicos, rodeados de uma pequena corte de fiéis, cultivando o secretismo como instrumento vital para a consolidação do poder. Também Estaline era leitor compulsivo. Com maior apetência para a história, a filosofia e os clássicos do pensamento marxista que lia e relia, sublinhando vários trechos e fazendo anotações à margem.

Tal como aconteceu com a de Hitler, a biblioteca de Estaline foi assaltada após a sua morte, dispersa e fragmentada de modo irreparável. Restam, ainda assim, largas centenas de exemplares devidamente catalogados e consultados por Geoffrey Roberts, professor emérito da Universidade de Cork, na Irlanda, e especializado em história do período soviético. Livros que a partir da década de 20 do século passado receberam o carimbo ex-libris do ditador georgiano, que lhes conferiu selo de proprietário. Pormenor irónico no regime comunista de Moscovo, que tinha como dogma a colectivização dos bens privados.

 

Roberts demorou anos a investigar o que sobrou e a indagar pistas sobre o que havia desaparecido. Chegando a conclusões interessantes e até inesperadas: o impiedoso déspota do Kremlin, que conduziu milhões de compatriotas ao cadafalso, à tortura e à morte pela fome, era dotado de sensibilidade literária. Também à semelhança de Hitler, era visto muitas vezes com um livro na mão. Um hábito que lhe foi inculcado quando esteve a estudar para padre num seminário ortodoxo antes de trocar a religião cristã pela ideologia marxista-leninista.

«Estaline lia literatura por simples ócio, prazer e edificação. Em jovem, o seu primeiro amor foi a poesia e os seus primeiros escritos publicados foram poemas patrióticos. A ficção radical conduziu o jovem Estaline à causa revolucionária», assinala o historiador irlandês - meritória tradução de Frederico Pedreira em versão portuguesa que não mutila consoantes.

Leitor omnívoro, era devoto dos clássicos russos. Também lia Shakespeare, Heine, Balzac, Victor Hugo e Guy de Maupassant. Até conhecia Walt Whitman ao ponto de lhe enaltecer estes versos: «Estamos vivos. / O nosso sangue escarlate ferve / com o fogo da força por usar.»

Nunca nas línguas originais, pois foram falhando sucessivas tentativas de se tornar fluente em idiomas além do georgiano natal e do russo adoptivo. Eis outro aspecto muito interessante deste ensaio da nova editora de Carlos Vaz Marques: os livros que menciona ajudam-nos a conhecer o homem. Sem nunca ocultar a figura tenebrosa do tirano que durante 30 anos governou com punho de ferro a União Soviética como se fosse o seu quintal.

 

Sugestão 8 de 2016:

Todos os Fogos o Fogo, de Julio Cortázar (Cavalo de Ferro)

Sugestão 8 de 2017:

Prantos, Amores e Outros Desvarios, de Teolinda Gersão (Porto Editora)

Sugestão 8 de 2018:

Quem Meteu a Mão na Caixa, de Helena Garrido (Contraponto)

Sugestão 8 de 2019:

Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins (Bookbuilders)

Sugestão 8 de 2020:

A Ideologia Afrocentrista à Conquista da História, de François-Xavier Fauvelle (Guerra & Paz)

Sugestão 8 de 2021:

Ernestina, de J. Rentes de Carvalho (Quetzal)

Sugestão 8 de 2022:

Luanda, Lisboa, Paraíso, de Djaimilia Pereira de Almeida (Companhia das Letras)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 03.06.23

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Livro sete: «O Mais Sacana Possível», de António Araújo

Edição Tinta da China, 2022

311 páginas

 

Eis uma obra que já tardava. Lança luz sobre uma das mais fascinantes revistas publicadas em Portugal no século XX: Almanaque. Teve vida efémera: começou em 1959, terminou em 1961. Mas foi quanto bastou para perdurar na memória de quantos a conheceram - happy few, naquele Portugalzinho em que Lisboa era aldeia em ponto grande, onde todos se encontravam à mesma hora nos mesmos lugares, dia após dia, noite após noite. Apenas homens: neste circuito não havia mulheres. Alguns perdidos nos dédalos do álcool que lhes foram consumindo o talento.

António Araújo tem o mérito de cartografar esta geração de artistas, literatos, malabaristas da palavra, mestres do trocadilho, nascida há cerca de cem anos e que parecia demasiado avançada para a sua época. Na linguagem emancipada que se demarcava em simultâneo do cânone do Estado Novo e da ganga neo-realeira dos comunistas. Na estética cosmopolita que cruzava a pop art com o olhar urbano digno de discípulos de Cartier-Bresson. 

 

Era um bando de jovens irrequietos. Na escrita, José Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Alexandre O'Neill, José Cutileiro, Augusto Abelaira, José Palla e Carmo, Mário Ventura, Baptista-Bastos e Vasco Pulido Valente (o benjamim, com 17 anos). Na ilustração e no desenho, Sebastião Rodrigues, Luís Filipe de Abreu, João da Câmara Leme, Paulo Guilherme e João Abel Manta. Na fotografia, Armando Rosário, Eduardo Gageiro e João Cutileiro. Em Outubro de 1959, caiu-lhes no sapatinho uma prenda antecipada de Natal: o próspero proprietário da editora Ulisseia, um mecenas cultural chamado Joaquim Aires de Figueiredo Magalhães (1916-2008) - «o primeiro editor moderno português», como lhe chamou Manuel Alberto Valente - deu-lhes a oportunidade de criar este projecto.

Gente que se dedicava às artes e às letras. Mas também às noitadas, às jantaradas, às revoluções imaginárias. «Nenhum deles tinha um percurso escolar ou profissional definido e uma carreira ou ocupação a tempo inteiro», observa Araújo.

Salazar desprezava estes intelectuais lisboetas que haviam nascido pouco antes ou pouco depois do 28 de Maio de 1926: chamava-lhes, não sem razão, «oposição de café». Gente que se cruzava no mesmo espaço - um território que ia do Rossio ao Príncipe Real, com epicentro no Chiado. Como sucedera um século antes com a geração de Eça e Oliveira Martins. Como sucedera meio século antes com a geração de Pessoa e Almada - este, não por acaso, também deixou assinatura no Almanaque com o conto "O Cágado".

Ali pelo Bairro Alto, pelo Carmo e pela Trindade, juntavam-se jornais, livrarias, galerias, editoras, tipografias, incontáveis cafés e restaurantes, os inevitáveis lupanares. E também os serviços da Censura. Numa bizarra amálgama, que acentuava o timbre aldeão da capital do país. «Assim que abriu, o Almanaque, estrategicamente situado na Rua da Misericórdia, passou a ser uma espécie de clube, onde as pessoas iam de manhã diluir o álcool de véspera e combinar almoços», recordaria Vasco Pulido Valente.

 

A revista surge num momento em que, apesar da ditadura, se lia mais do que nunca em Portugal: em 1960 há registo da publicação de 6339 novos livros, «uma triplicação notável face aos 1920 títulos de 1949», como salienta o autor. Apresentou-se como mensal e quase cumpriu por completo a promessa: saíram 18 edições, a última das quais em Maio de 1961. Já a guerra começara em Angola.

«Este ALMANAQUE é um herdeiro irreverente dessa gloriosa família de anciãos. Vem ao gosto moderno, segundo a "linha 1959", trata por tu o teatro de Beckett e Ionesco, os escritores da Beat Generation, os Pat Boone ou os Georges Brassens, os íntimos da Françoise Sagan e as verdadeiras causas do caso Pasternak. Só não conhece os segredos dos painéis de Nuno Gonçalves, mas há-de chegar lá um dia.» Palavras contidas no texto de apresentação da revista, que tinha algo de megalómano, como evocou Pulido Valente muitos anos depois: «Cem páginas, papel pesado, um preço delirante.»

Vários dos seus membros conspiravam contra a ditadura, apesar de Figueiredo Magalhães cultivar boas relações nos círculos do regime. Mas a quase lendária irreverência da revista - antecipando autores futuros, como Miguel Esteves Cardoso, Manuel João Vieira ou Rui Zink - registava-se sobretudo na forma, não no conteúdo. Como o autor deste detalhado livro conclui: «Num balanço global, avulta muito mais o perfume de um certo hedonismo burguês e diletante e o gosto pelo sarcasmo do que propriamente uma intenção de causticar as autoridades ditatoriais ou sequer o meio intelectual português de então.»

 

«O mais sacana possível» porquê?

Por ser este o espírito da publicação, em frase cunhada por Cardoso Pires para lhe definir tendência e estilo. Este dito chocarreiro condensava o espírito da revista, marco de um tempo irrepetível, de uma conjugação astral única. Todos ali tocados por um espírito boémio, vários vivendo numa espécie de adolescência em estado perpétuo que os fazia levar poucas coisas a sério.

Alguns, com toques de genialidade, podiam ter construído grandes obras se fossem tão persistentes e determinados como eram irreverentes. Ficou-lhes o rasto em títulos esparsos e neste meteórico Almanaque cuja história António Araújo tão bem resgatou do esquecimento.

 

Sugestão 7 de 2016:

O Bosque, de João Miguel Fernandes Jorge (Relógio d'Água)

Sugestão 7 de 2017:

1933 Foi um Mau Ano, de John Fante (Alfaguara)

Sugestão 7 de 2018:

O Visitante da Noite & Outros Contos, de B. Traven (Antígona)

Sugestão 7 de 2019:

Um Futuro de Fé, do Papa Francisco e Dominique Wolton (Planeta)

Sugestão 7 de 2020:

Acordo Ortográfico - Um Beco Com Saída, de Nuno Pacheco (Gradiva)

Sugestão 7 de 2021:

O Silêncio, de Don DeLillo (Relógio d'Água)

Sugestão 7 de 2022:

Diários (1950-1962), de Sylvia Plath (Relógio d'Água)

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 31.05.23

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Livro seis: Professor Unrat, de Heinrich Mann

Edição E-primatur, 2023

241 páginas

 

Desassombrado romance, muito ousado para a época (1905), em torno da degradação moral de um professor, eminente burguês de uma cidade do norte da Alemanha no final do século XIX. Obcecado por uma cantora de cabaré que primeiro idolatra com aparente paixão romântica e depois explora com ganância venal, acabando marginalizado pela sociedade conservadora de que fez parte até aos 57 anos.

Personagens credíveis, diálogos mordazes, sagaz sátira social à hipocrisia reinante no quotidiano do Império Alemão naqueles tempos supostamente festivos que precederam a I Guerra Mundial. O livro gerou celeuma ao ridicularizar um pedagogo que espalhava o terror na sala de aula, brutalizava os alunos e odiava afinal a sua profissão. Tal como não suportava a cidade onde fazia vibrantes apelos à manutenção da ordem vigente, sob uma fachada de respeitabilidade.

«Com ar sombrio, alertava os jovens professores substitutos, mais tímidos ainda do que ele, com quem se atrevia a falar, contra a funesta obsessão do espírito moderno em abalar os fundamentos da sociedade. Queria-os fortes: uma Igreja influente, uma espada firme, estrita obediência e costumes rígidos. E, no entanto, era profundamente descrente, e capaz da maior tolerância no que a si mesmo dizia respeito.» (Tradução de Bruno C. Duarte).

Percebemos afinal que ninguém necessitava tanto de ensino como este professor Immanuel Raat a quem muitos chamavam Unrat - que significa lixo, porcaria, sujidade. Acabou por fazer jus ao apodo após conhecer Rosa Fröhlich, artista de variedades com vasto currículo de actuações em espeluncas nocturnas. «A chamada moralidade está, na grande maioria dos casos, intimamente ligada à estupidez», garante-lhe ele, ao ser apontado a dedo na cidade como insaciável libidinoso. 

Professor Unrat elevou Heinrich Mann (1871-1950) aos píncaros da fama, rivalizando com Thomas, seu irmão mais novo. «Um dos melhores escritores do século», enalteceu-o Mario Vargas Llosa. Também o tornaria amaldiçoado anos depois pelo regime nazi, que proibiu as suas obras e lançou vários dos seus livros literalmente para a fogueira. Incluindo este, apontado como exemplo supremo de "literatura degenerada".

O cinema fez justiça a Professor Unrat, dando-lhe projecção universal. Sob o título O Anjo Azul, primeiro filme sonoro alemão, realizado em 1930 por Josef von Sternberg, com Emil Jannings no papel de Unrat e a sensual Marlene Dietrich como Rosa (Lola-Lola, na película). Ela exibindo as coxas bem torneadas enquanto cantava «Ich bin von Kopf bis Fuß auf Liebe eingestellt» [«Estou pronta para o amor da cabeça aos pés»]. Música de fundo numa relação implausível, condenada a não ter final feliz.

 

Sugestão 6 de 2016:

Axilas e Outras Histórias Indecorosas, de Rubem Fonseca (Sextante)

Sugestão 6 de 2017:

O Tesouro, de Selma Lagerlöf (Cavalo de Ferro)

Sugestão 6 de 2018:

Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão, de Mário de Carvalho (Porto Editora)

Sugestão 6 de 2019:

Como Ser um Conservador, de Roger Scruton (Guerra & Paz)

Sugestão 6 de 2020:

Fósforos e Metal Sobre Imitação de Ser Humanode Filipa Leal (Assírio & Alvim)

Sugestão 6 de 2021:

Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente, de João Céu e Silva (Contraponto)

Sugestão 6 de 2022:

O Barulho das Coisas ao Cair, de Juan Gabriel Vásquez (Alfaguara)