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Delito de Opinião

James Madison, pioneiro intelectual

José Gomes André, 18.05.12

Vai animada a discussão na blogosfera sobre o liberalismo americano e a figura de James Madison (entre o Samuel Paiva Pires e o Miguel Castelo Branco), que aliás até começou por se centrar na importância do contributo americano para um hipótetico federalismo europeu (ver Paulo Marcelo,Samuel Paiva PiresNuno Pombo e João Vacas, entre outros).

 

Em relação a Madison - e depois de ter escrito 400 páginas sobre o senhor - tenho dificuldade em avançar com opiniões sintéticas. Mas vale a pena tentar, pelo menos para sublinhar quão injusto é descrever a sua obra como "menor" ou "pouco original". Tal visão deriva de um erro comum - associar Madison quase exclusivamente ao "The Federalist" (1787-88) - quando, na verdade, a sua obra completa preenche mais de 50 volumes, com milhares de discursos, artigos de jornal, panfletos, cartas e peças de ocasião. Com efeito, os 29 textos que Madison escreveu para o "The Federalist" correspondem a menos de 1% da sua obra, que se espraia até 1836! Só quando consideramos esta imensa vastidão podemos apreciar verdadeiramente a sua relevante herança teórica.

 

Na realidade, Madison foi o primeiro autor a tematizar a ideia de federalismo, na sua dimensão teórico-conceptual e prática. Foi também o primeiro pensador a defender claramente as virtudes do pluralismo para uma sociedade livre, quebrando com o preconceito europeu nesta matéria (que fazia equivaler eficácia a homogeneidade). Madison foi ainda um dos primeiros autores a advogar o paradigma activo da liberdade religiosa (direito natural do indivíduo) por oposição ao conceito passivo da "tolerância" (mera concessão do governante). Foi o primeiro autor a defender abertamente as vantagens dos partidos para a vivência democrática. E foi um dos primeiros a abordar questões-chave do pensamento político moderno como o constitucionalismo, a ideia de cidadania, o princípio do "filtro representativo" e as virtudes da liberdade de imprensa. Já chega para pertencer ao Panteão dos grandes pensadores do Ocidente?

 

Quanto ao federalismo europeu e o "exemplo americano", remeto para um texto que escrevi há uns meses, destacando o seguinte trecho: "A preferir um verdadeiro federalismo, a Europa não se pode dar ao luxo de rejeitar um profundo debate teórico sobre os seus fundamentos. Neste contexto, é particularmente importante reaprender com o passado, enquanto se prepara um futuro alicerçado em soluções próprias. O caso norte-americano deve ser aqui peça modelar essencial, pelas suas inúmeras lições. Umas, históricas (federalismo americano também se ergueu sobre a cacofonia de treze Estados independentes e com poucas ligações entre si, após uma espinhosa crise institucional que se seguiu à Revolução). Outras, conceptuais: a importância de criar equilíbrios institucionais numa república federal (para não tornar opressiva nenhuma das estruturas políticas envolvidas); a necessidade de alicerçar a união política numa sanção popular; e o elogio do pluralismo, uma vez que a diversidade não é um obstáculo, é uma bênção."

 

[também no Era uma vez na América]

Federalismo

José Gomes André, 06.12.11

Poucos tópicos se prestam a tantas mistificações como este. Não há pachorra para ouvir aqueles que apregoam o federalismo como panaceia para todos os males (embora escarneçam com frequência do federalismo americano), nem para ver confundido federalismo com projectos de consolidação de Estados numa estrutura unitária centralizada.

 

Como este último caso é o mais recorrente, insisto: parem de identificar federalismo com centralização unidimensional. O que está na base dos sistemas federais é a criação de vários eixos de poder complementares, convivendo sob uma mesma entidade política autoridades distintas. Embora se reconheça a supremacia de um determinado órgão em matérias específicas, o federalismo é por natureza poliárquico e multifacetado. 

 

Pode a Europa caminhar para um governo nacional centralizado? Pode. Mas nesse momento deixará de ser "federal" para se tornar "unitária" ou "jacobina". Infelizmente, de tanto vilipendiarem o "verdadeiro" federalismo, os nacionalistas e os "soberanistas" estão a acabar por promover o pior de uma "terceira via": um centralismo mal amanhado, anti-democrático e perigoso, sobretudo se alicerçado no Directório franco-alemão.

 

Por outro lado, importa recordar que o federalismo não se resume à sua dimensão institucional. "Mais federalismo" não implica novas estruturas de poder, órgãos de decisão ou comissões governativas. O federalismo não se esgota na sua índole formal, sendo também (ou sobretudo?) uma dinâmica, um instrumento de cooperação entre entidades colectivas ou individuais para a obtenção de interesses comuns. Neste sentido, a Europa está repleta de federalismo institucional, mas tem um longo caminho a percorrer no que respeita à dimensão cooperativa do federalismo. "Mais federalismo" não tem de significar "mais tratados" ou "mais instituições", mas sim "mais colaboração" ou "mais inter-dependência" – o contrário do que temem os "soberanistas".

 

[com a vossa permissão, texto republicado 18 meses depois, pela curiosidade das circunstâncias]