Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Na minha estrela

Maria Dulce Fernandes, 29.07.22

22330859_Z39z8.jpeg


Na minha estrela há uma luz que brilha diferente. Gigantes azuis encandeiam sombras anãs vermelhas e fulgem intensa e pesadamente... são tão crédulos da fugacidade da sua existência... 
Pequenos corpos anões explodem em colossais supernovas de genialidade e maravilham a claridade com o seu prisma de cores caleidoscópicas e loucas. Pontuam no breu como velas, candeias brilhantes, ardentes clepsidras geladas de luz que marcam o compasso  dos milénios.
 
Na minha estrela há uma luz que sara, que aconchega, que afaga numa carícia áurea de caramelo como uma cefeida na nuvem de Magalhães, referência de caminhos e distâncias a percorrer.
 
Na minha estrela estou eu, inebriada de brilhos e cores, embalada pelo cintilar e pelo ardor intenso que me acaricia a fantasia e a transporta em caudas de cometas empurrados por ventos de muitos sóis para reinos de névoas distantes em luz e em cor, vagando de constelação em constelação sempre em busca dos infinitos porquês da existência do infinito.
 
Na minha estrela estão os meus amores, que me sorriem todos os dias e me mostram o caminho para que eu possa escolher atravessar os dias da vida com a mesma serenidade que um dia me elevará do buraco negro até à minha estrela.
 
 
(Imagem do Google)

A Animação é para crianças (ou não) - 10

João Campos, 24.06.22

the dark crystal poster.jpg

O Cristal Encantado
Título original: The Dark Crystal
Realização: Jim Henson e Frank Oz
Argumento: David Odell, com base numa história original de Jim Henson
Produção: ITC Entertainment e Henson Associates
Ano: 1982
Duração: 93 minutos
País: EUA

O Cristal Encantado é um dos mais originais filmes de fantasia alguma vez feitos.

Começo por pedir desculpa aos leitores pela batota, a primeira de duas que cometerei ao longo desta série de textos sobre cinema de animação (a segunda ainda poderá ser discutível, mas esta é descarada): O Cristal Encantado não é um filme de animação, mas um filme de marionetas. A sua produção envolveu a construção de cenários reais e a manipulação dos bonecos do Jim Henson Creature Workshop. Dito isto, se ao cinema de animação já custa livrar-se do estigma de desenhos animados serem infantis, para os filmes (cada vez mais raros) de marionetas essa tarefa será ainda mais difícil (sim, eu sei dos Marretas, obrigado), pelo que me parece encaixar bem aqui. E, claro, as marionetas têm uma característica em comum com a animação, para além da vida que ganham com o desempenho de voz: não envelhecem. 

Claro que o motivo verdadeiro é outro: simplesmente apetece-me escrever sobre O Cristal Encantado, sem dúvida um dos meus filmes preferidos, que em 93 minutos mostra um breve momento de um mundo secundário fascinante, e que continua a ser uma revelação quarenta anos volvidos sobre a sua estreia. Aquele mundo, e as criaturas maravilhosas que o habitam, saíram da imaginação prodigiosa de uma das pessoas que mais admiro, e que perdemos demasiado cedo: Jim Henson. Da sua mente fértil saiu a Rua Sésamo, de longe a série mais importante da minha vida, saíram bonecos que se tornaram ícones mundiais, e saíram dois filmes magníficos: O Labirinto, com Jennifer Connely e o grande David Bowie, e este, O Cristal Encantado.

Mas O Cristal Encantado é de alguma forma um corpo estranho na obra de Henson: não só pelo detalhe da construção do universo ficcional de Thra, mas também pela trama mais adulta e mais sombria - a história, afinal, tem como ponto de partida um genocídio que não vemos mas que sentimos presente. Jen, um dos últimos Gelflings vivos, recebe dos enigmáticos Místicos com quem viveu desde criança uma missão: encontrar Aughra, recuperar o fragmento do Cristal Encantado e regenerá-lo, resgatando Thra do domínio cruel dos Skeksis e reestabelendo assim o equilíbrio natural do mundo. 

É essa demanda que serve de fio condutor a O Cristal Encantando, levando o ingénuo Jen a descobrir todo um mundo de criaturas maravilhosas - algumas inocentes, outras nem por isso. A imaginação de Henson encontrou um par à altura no talento de Brian Froud, que elaborou a arte conceptual que está na base de Thra, e o talento do Jim Henson Creature Workshop deu vida aos pachorrentos Místicos, aos tenebrosos Skeksis (decerto as marionetas mais assustadoras de Henson, a par dos Garthim que eles usam em combate), aos inocentes Gelflings, aos efusivos Podlings, à rabugenta Mãe Aughra (com o seu assombroso planetário), ao maravilhoso Fizzgig - enfim, podia continuar a adjectivar cada uma das criaturas de Thra, e mesmo assim não faria justiça ao trabalho notável de Henson e Froud. Afinal, como esquecer a Mãe Aughra, ou o sinistro Chamberlain?

Este mundo, ao mesmo tempo tão detalhado e deixando adivinhar tanto que fica por mostrar, é que faz de O Cristal Encantado um filme tão singular: podemos reconhecer aqui e ali as suas várias influências, mas o todo que Henson, Oz e Froud construíram é absolutamente original, e a mestria técnica que lhe deu vida talvez não tenha ainda hoje paralelo, quarenta anos passados desde a sua estreia. Não há ali grandes efeitos especiais, tirando um ou outro efeito de luz (que envelheceram mal, ao contrário do resto): todos os cenários foram construídos, todas as marionetas foram montadas e animadas. É certo que a trama do filme encaixa com facilidade na clássica jornada do herói, mas as personagens que Jen encontra dão à sua aventura uma textura muito particular, conduzindo a um desfecho que, podendo ser algo previsível, não deixa de ser ousado. E se é verdade que há muito no filme que espectadores mais novos possam apreciar, também é possível que os Skeksis, e uma ou outra cena do filme, possam impressionar um pouco, fazendo de O Cristal Encantado um filme menos "familiar" do que o resto da sua obra.

Henson ainda chegou a imaginar uma sequela, mas as ideias que tinha partiram com ele, na sua morte prematura em 1990. O filme, porém, teve poder suficiente para perdurar, e o seu mundo secundário tem sido alargado ao longo dos anos por outros meios e noutros formatos. Em 2019 estreou na Netflix O Cristal Encantado: A Era da Resistência, uma série maravilhosa que combina efeitos digitais com marionetas extraordinárias, infelizmente só com uma temporada. Olho para as minhas estantes e encontro livros de ilustração, álbuns de banda desenhada e até uma Mãe Aughra a espreitar a um canto. E sei que regressarei ao filme, uma e outra vez, com o mesmo encantamento da primera.

the dark crystal 1.jpg

the dark crystal 4.jpg

the dark crystal 3.jpg

As mulheres que li e vi (2)

João Campos, 10.03.20

O Dia Internacional da Mulher serviu de pretexto para, em alguns grupos mais geek do Twitter, se partilharem algumas das personagens femininas preferidas de filmes, séries, bandas desenhadas e videojogos. Por imagens, claro - o Twitter convida a muita coisa, mas a prosa não é uma delas. Felizmente, os blogues ainda cá estão, e são tão amigos da imagem como da palavra, pelo que pensei valer a pena pegar nesta ideia e desenvolvê-la um pouco para além dos 140 caracteres. O objectivo era escrever um único texto que passasse por todos estes formatos, e ainda referisse alguns livros, mas o projecto logo se tornou demasiado longo para um artigo num blogue (the tale grew in the telling). Assim, um artigo dará lugar a vários, ao longo dos próximos dias, sobre autoras e personagens que me marcaram ao longo dos anos. Hoje continuamos, desta vez com Banda Desenhada.

 

Da página escrita de ontem será talvez fácil passarmos para as pranchas da banda desenhada para destacar algumas personagens femininas que me acompanharam ao longo dos anos. A primeira obriga-me a regressar à infância, e às "revistas aos quadrinhos" que li em miúdo - algumas "herdadas" da minha irmã, outras compradas para mim quando íamos com os nossos pais a alguma vila ou cidade. Havia as da Disney, claro, mas para este artigo em concreto trago a Mônica de Maurício de Sousa - a miúda rija que tantas gargalhadas me proporcionou com as "surras" que dava aos outros miúdos com o Sansão, o seu coelho de peluche. Naquela altura não tinha tantas oportunidades quanto isso de arranjar livros novos, pelo que li e reli inúmeras vezes todas as bandas desenhadas que havia cá em casa (é apropriado estar a escrever isto enquanto estou de visita aos meus pais). Não leio a Turma da Mônica há décadas, claro, mas lembro-me com nitidez de várias histórias que ficaram sempre comigo.

monica.jpg

As várias Mônicas ilustradas por Maurício de Sousa

Apesar de sempre ter nutrido um gosto muito especial por banda desenhada, passei vários anos sem dar à Nona Arte a atenção merecida (à Turma da Mônica e à Disney seguiram-se o Astérix e o Calvin & Hobbes, mas durante os primeiros anos que passei em Lisboa li relativamente pouco). Mas o interesse pela ficção científica e pela fantasia, assim como as sugestões de alguns amigos, acabaram por me fazer redescobrir as páginas ilustradas. E naquela que será talvez a melhor banda desenhada que já li encontrei uma personagem feminina que, não sendo a principal, tem uma presença marcante: falo da Morte de The Sandman (1989 - 2015, DC Comics/Vertigo). Na narrativa desenvolvida por Neil Gaiman, a clássica figura do ceifeiro esquelético coberto por um manto negro deu lugar a uma simpática rapariga gótica de ar jovial e com uma personalidade tão empática como pragmática. O protagonista, Morpheus, procura a companhia e o conselho da Morte com alguma frequência - dos seus seis irmãos, será com ela que o Senhor dos Sonhos mantém uma relação mais próxima e cúmplice, e ela ajudá-lo-á em várias ocasiões. The Sound of Her Wings, a história de The Sandman na qual Gaiman apresenta a Morte e a sua relação com Morpheus, é absolutamente magnífica.

the sandman_death.jpg

The Sandman #8: The Sound of Her Wings (1989).Texto de Neil Gaiman, ilustração de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III

Há outras personagens femininas que poderia destacar nos comics norte-americanos. Brian K. Vaughan escreveu várias nas suas bandas desenhadas, como a Agente 355 de Y: The Last Man (2002-2008, DC Comics/Vertigo) com ilustrações de Pia Guerra,  ou a Alana de Saga (2012-, Image Comics), ilustrada por Fiona Staples. Num outro título da Image Comics ainda em curso, Monstress (2015-), Marjorie Liu e Sana Takeda tecem uma trama de fantasia épica muito pouco convencional que tem em Maika Halfwolf uma protagonista fascinante, que carrega consigo, e não apenas metaforicamente falando, os seus demónios.

monstress-2.jpg

Monstress #4. Texto de Marjorie Liu, ilustração de Sana Takeda

Dos quadrinhos norte-americanos passamos para os japoneses, com uma personagem que descobri no cinema ainda nos anos 90 e que me acompanhou ao longo dos anos, primeiro em filme, mais tarde em televisão, e por fim na banda desenhada onde surgiu pela primeira vez. Falo de Motoko Kusanagi, a "Major" de Masamune Shirow em Ghost in the Shell (1989-1997). Texto fundamental da ficção científica cyberpunk (e uma das minhas bandas desenhadas preferidas), a história de  Ghost in the Shell decorre num futuro (hoje) próximo, com a cyborg Kusanagi a assumir o papel de líder operacional da Secção 9, uma unidade governamental de contra-terrorismo cibernético. É a única mulher da Secção 9, com uma liderança incontestada assente no seu carisma, na sua inteligência e, claro, nas forma como retira partido das capacidades do seu corpo cibernético. Quem tiver apenas visto o filme de Mamoru Oshii (1995) ou a série televisiva de Kenji Kamiyama (2002-2005) irá talvez surprender-se por encontrar nas pranchas hiper-detalhadas de Masamune Shirow uma Major mais descontraída e bem humorada, quando não mesmo insubordinada. 

ghost in the shell.jpg

Ghost In the Shell #01 (1989). Texto e ilustração de Masamune Shirow.

A próxima parte desta série continuará com Motoko Kusanagi, mas desta vez na suas versões animadas de cinema e televisão.

As mulheres que li e vi (1)

João Campos, 09.03.20

O Dia Internacional da Mulher serviu de pretexto para, durante o passado dia 8, em alguns grupos mais geek do Twitter se partilharem personagens femininas preferidas de filmes, séries, bandas desenhadas e videojogos. Por imagens, claro - o Twitter convida a muita coisa, mas a prosa não é uma delas. Felizmente, os blogues ainda cá estão, e são tão amigos da imagem como da palavra, pelo que pensei valer a pena pegar nesta ideia e desenvolvê-la um pouco para além dos 140 caracteres. O objectivo era ter escrito no Domingo um único texto que passasse por todos estes formatos, e ainda referisse alguns livros, mas o projecto logo se tornou demasiado longo para um artigo num blogue ("the tale grew in the telling", passe o anglicismo). Assim, um artigo dará lugar a vários, ao longo dos próximos dias, sobre autoras e personagens que me marcaram ao longo dos anos. E começamos hoje pelos livros. 

 

Já aqui falei do livro que me serviu de introdução à ficção científica literária - The Snow Queen, de Joan D. Vinge (não costumo desperdiçar oportunidades para escrever sobre este livro). À data da sua publicação em 1980, esta space opera inspirada no conto tradicional de Hans Christian Andersen foi descrita como um Star Wars feminista, e se é certo que reconheço à descrição algum mérito, nem por isso deixo de a considerar demasiado redutora: a narrativa de Vinge passa-se de facto numa galáxia distante, mas é infinitamente mais complexa e ambígua do que qualquer filme saído dos conceitos iniciais de George Lucas. Certo é que a inocente (mas determinada) Moon e a cruel (mas visionária) rainha Arienrhod ficaram sempre comigo; volta e meia lá regresso àquelas páginas, sem nunca deixar de me maravilhar.

the snow queen the left hand of darkness.jpg

The Snow Queen abriu-me as portas de todo um género que, sendo predominamente masculino, foi tendo as suas grande autoras. Ursula K. Le Guin será o nome incontornável, claro - quem nunca leu The Left Hand of Darkness (1969) está a perder um dos grandes livros do século XX, tanto pela desconstrução e pela problematização das identidades de género como pela profunda humanidade das suas personagens. E a trilogia Earthsea (The Wizard of EarthseaThe Tombs of AtuanThe Farthest Shore, de 1968, 1971 e 1972 respectivamente) figura com justiça entre as obras maiores da fantasia literária, tanto pela riqueza do mundo secundário que criou como pela capacidade de dizer tanto, e tão bem, em tão pouco espaço. Ao reler, há algumas semanas, The Wizard of Earthsea (na lindíssima colectânea ilustrada por Charles Vess), dei por mim a pensar que, para qualquer autor contemporâneo de fantasia, a trama que Le Guin desenvolve com elegância nos cinco primeiros capítulos, em poucas dezenas de páginas, seria suficiente para pelo menos um calhamaço de seiscentas páginas e longas descrições inúteis. Saber escrever também é isto.

ursula k le guin.jpeg

Ursula K. Le Guin, fotografia de Benjamin Brink/The Oregonian via AP; fonte.

Outro grande nome feminino da ficção científica é o de Alice Sheldon, ou James Tiptree Jr. - o pseudónimo masculino deu azo a muita especulação e a alguns episódios caricatos nos anos 70. Contista notável, Sheldon/Tiptree encantou-me com a sua prosa clara e com a ambiguidade, a sofisticação e a imaginação dos seus contos. Textos como The Girl Who Was Plugged In (1973), The Women Men Don't See (1973), Love is the Plan the Plan is Death (1973),  Houston, Houston, Do You Read? (1976), ou The Screwfly Solution (1977) serão leitura obrigatória tanto para apreciadores de contos em geral como para fãs de ficção científica em particular. As polémicas recentes envolvendo o prémio literário atribuído em seu nome e as circunstâncias da sua morte em 1987 em nada diminuem o seu enorme legado (e já agora, para quem quiser saber um pouco mais sobre Alice Sheldon/James Tiptree Jr., aqui deixo um artigo muito interessante que descobri enquanto fazia algumas pesquisas).

tiptree_lab.jpg

Alice Sheldon/James Tiptree Jr.; fotografia de autor desconhecido. Fonte.

Das minhas leituras dos últimos anos destacaria ainda três autoras notáveis. A primeira, Ann Leckie, cujo romance de estreia, Ancillary Justice (2013) deu um contributo notável para a revitalização da space opera literária partindo de um ponto de vista marcadamente feminista (também já cá falei dele). A segunda, Emily St. John Mandel, que não sendo uma autora de ficção científica explorou alguns temas clássicos do género no notável Station Eleven (2014), um romance pós-apocalíptico cuja narrativa explora as vidas de algumas personagens antes e depois de uma pandemia de gripe ter destruído a civilização tal como a conhecemos (uma leitura curiosa para estes dias). E, por fim, Nnedi Okorafor, norte-americana de origem nigeriana que tem pegado em décadas de convenções narrativas para lhes dar um novo fôlego de inspiração africana. Nas minhas leituras encontrei poucas alienígenas tão intrigantes com a Ayodele de Lagoon (2014), e a odisseia da jovem Onyesonwu em Who Fears Death (2010) é absolutamente espantosa.

leckie-st john mandel-okorafor.png

Os próximos textos incidirão mais sobre personagens do que sobre autoras, pelo que talvez valha a pena concluir esta breve viagem literária com uma personagem: Esmerelda (Esme) "Granny" Weatherwax, protagonista de um dos arcos narrativos da longa série de fantasia satírica Discworld, de Terry Pratchett. Líder informal (e incontestada) do círculo de bruxas da região montanhosa conhecida como Ramtops, Esme é conhecida pela sua absoluta confiança nas suas capacidades e pelos seus princípios inamovíveis; quem a procura, obtém não aquilo que procura, mas aquilo de que precisa. Não é muito frequente encontrar protagonistas com a vetusta idade de Granny na fantasia literária, pelo que ler as suas aventuras acaba sempre por se revelar refrescante (e divertido - estamos em Discworld, afinal). A galeria de personagens que Pratchett criou para Discworld é notável, mas,  pese embora a competição renhida, é bem possível que Granny Weatherwax tenha sido a sua maior criação.

granny-weatherwax-by-paul-kidby.jpg

Granny Weatherwax, esboços de Paul Kidby. Site oficial.

"The Shape of Water", ou o ponto de vista da imaginação

João Campos, 06.03.18

oscar-20180305-84.jpg

Sim, Guillermo, ganhaste mesmo - desta vez não houve engano no envelope 

 

Apesar de dar alguma atenção aos prémios norte-americanos do cinema, não costumo esforçar-me para ver todos, ou sequer a maioria, dos filmes nomeados ao Óscar para Melhor Filme. Boa parte dos filmes nomeados, sendo (regra geral) pelo menos bons filmes, ou não me despertam interesse ou não me despertam interesse suficiente para pagar o bilhete de cinema (ou não estrearam ainda por cá, como aconteceu neste ano com Lady Bird, que só chegará às salas portuguesas nos próximos dias). Por norma, acabo por ver um ou dois - os nomeados de ficção científica ou fantasia, quando os há, e um ou outro filme que me chame a atenção. Inevitavelmente, é bastante raro ganhar um filme que eu tenha visto e pelo qual estivesse a torcer. Aconteceu nos prémios de 2004, que finalmente distinguiram a extraordinária adaptação cinematográfica de Peter Jackson a The Lord of the Rings com 11 Óscares para The Return of the King. Aconteceu em 2015, com o  Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance) de Alejandro Iñárritu, que não sendo exactamente um filme de género aproxima-se um pouco daqueles territórios temáticos e tem um carácter referencial intrigante (para além de um Michael Keaton inspiradíssimo). E aconteceu em 2018, com o único filme nomeado que vi a conquistar a estatueda dourada: o belíssimo The Shape of Water de Guillermo Del Toro. 

 

É uma combinação curiosa: uma fábula fantástica enquadrada numa trama de espionagem do tempo da Guerra Fria, onde Del Toro actualiza inúmeras referências do cinema que o maravilhou noutros tempos (Creature of the Black Lagoon) e de contos intemporais (A Bela e o Monstro, e as suas múltiplas variações) numa história sobre uma mulher muda e para todos os efeitos invisível e o monstro proverbial, profundamente alienígena e ainda assim mais humano do que os homens que o mantém cativo e o torturam. Mais do que uma história de amor improvável, The Shape of Water é um filme sobre o carácter decisivo dos pequenos gestos, sobre a irrelevância das diferenças, sobre a coragem, sobre a empatia - algo tão em falta nos dias que correm. Juntamos a isto uma grande banda sonora, interpretações notáveis de um grande elenco (o prémio para Melhor Actriz Principal também teria sido bem entregue a Sally Hawkins, e chegará o dia em que se dará o devido valor às interpretações de actores como Doug Jones, eterno colaborador de Del Toro), e o virtuosismo técnico a que os filmes do realizador mexicano já nos habituaram, e temos um digno vencedor do Óscar. 

 

Não será, é certo, o melhor filme da sua carreira - essa distinção caberá sem dúvida ao extraordinário El Laberinto Del Fauno, que nunca chegou à categoria principal dos Óscares por ser falado... em espanhol. Mas nem por isso The Shape of Water deixa de ser um excelente representante tanto de géneros habitualmente desprezados pela crítica como da filmografia e da iconografia inconfundíveis de Del Toro, onde o banal se encontra em constante diálogo com a estranheza. Será sem dúvida um dos realizadores contemporâneos que mais aprecio. Dele recordo HellboyHellboy 2: The Golden Army, duas transposições notáveis e visionárias da banda desenhada de Mike Mignola numa época onde alguns fracassos ruidosos nas adaptações de banda desenhada não deixavam antever o frenesim que se instalaria no género alguns anos mais tarde. E recordo o som e a fúria de Pacific Rim, talvez o mais divertido blockbuster dos últimos anos, que me fez sentir como um miúdo na sala de cinema. É pena que Del Toro nunca chegue a concretizar o derradeiro capítulo da trilogia Hellboy que planeou, e que Ron Perlman tanto queria fazer. Como é pena que tenha acabado por não realizar a adaptação de The Hobbit, como esteve previsto; é provável que tivesse dado uma interpretação muito própria à história clássica de Tolkien, algo que Peter Jackson, amarrado aos espartilhos dos estúdios e ao seu próprio legado na Terra Média, já não conseguiu fazer.

 

Mas ainda ouviremos falar muito dele; oportunidades decerto não faltarão para que Guillermo Del Toro nos encante de novo com as suas fábulas e os seus monstros. E para que volte a demonstrar, como demonstrou em The Shape of Water e como fez questão de sublinhar no seu discurso de Domingo à noite, que a grande ficção de género não tem de se resumir ao escapismo a que muitos a condenam sem a conhecer - ela olha antes para o presente a partir do ponto de vista da imaginação. 

the shape of water (1).jpg

To light a candle is to cast a shadow (Ursula K. Le Guin, 1929 - 2018)

João Campos, 24.01.18

Ursula K Le Guin (1).jpg

 Ursula K. Le Guin em 1985 (fotografia de Brian Drake para o The Times, via Los Angeles Times)

 

In reading a novel, any novel, we have to know perfectly well that the whole thing is nonsense, and then, while reading, believe every word of it. Finally, when we're done with it, we may find - if it's a good novel - that we're a bit different from what we were before we read it, that we have been changed a little, as if by having met a new face, crossed a street we never crossed before. But it's very hard to say just what we learned, how we were changed.

Ursula K. Le Guin, na introdução a The Left Hand of Darkness (1969)

 

Para a ficção científica literária, a morte de Ursula K. Le Guin representa o desaparecimento de toda uma época: Le Guin começou a publicar no início dos anos 60, já nos derradeiros anos da famosa "Golden Age" do género; atravessou a revolução da "New Wave" no final dessa década, e continuou pelas décadas de 70 e 80. Seria talvez a última autora clássica do género: no tributo que lhe presta nas páginas do Los Angeles Times, o escritor John Scalzi descreve Le Guin como "a supporting column of the genre, on equal footing and bearing equal weight to Verne or Wells or Heinlein or Bradbury." Mas talvez seja mais do que isso. Verne, Wells e Heinlein (e Clarke, e Asimov) são clássicos pela fundação e pelo desenvolvimento do género, mas Le Guin não seguiu as pisadas dos homens que a antecederam: a sua obra tornou-se clássica não pela continuidade que deu ao cânone da ficção científica, mas pela rejeição desse cânone, pelo expandir dos horizontes de todo o género, e pela forma exemplar como demonstrou que a Ideia, pedra angular da ficção científica, pode não lhe bastar. 

 

E demonstrou-o pela palavra, em contos e livros excepcionais. Diria ser impossível esquecer The Ones Who Walk Away From Omelas, uma parábola poderosíssima escrita em poucas páginas. Ou a ambiguidade de The Dispossessed, com a sua trama dividida entre a sociedade anarquista de Anarres e a sociedade capitalista de Urras, uma reflexão pertinente num terreno pantanoso onde autores menores se afundariam aos primeiros passos. Ou The Left Hand of Darkness, com a sua desconstrução da identidade de género e o seu estudo meticuloso sobre a importância, e a irrelevância, da diferença. Ou - provavelmente o meu preferido - The Lathe of Heaven, livro-tributo a Philip K. Dick, no qual Le Guin leva até às últimas consequências a ideia de que de boas intenções está o Inferno cheio. Sempre com uma prosa excepcional e uma humanidade ímpar, que contribuíram para a elevação e afirmação de um género literário sempre considerado marginal. Para todos os efeitos, a literatura de ficção científica teve em Le Guin mais do que uma das suas maiores vozes - teve nela também uma das suas mais ferozes defensoras. 

 

Mas não se ficou pela ficção científica: a série Earthsea figura entre a melhor fantasia literária já publicada, espantosa pela sua diversidade natural e pela subtileza das suas influências orientais, que representaram uma lufada de ar fresco para um género à época dominado pela sombra de Tolkien e pelo sem-número de imitadores que se lhe seguiram. A aventura de Ged ao longo da trilogia original, em A Wizard of EarthseaThe Tombs of Atuan, e The Farthest Shore, conta com quase cinqueta anos, e não perdeu nem um pouco da sua força. 

 

Cá em casa, na biblioteca que temos vindo a construir, nenhum autor surge tantas vezes. Se tivesse de nomear o meu livro preferido de ficção científica, provavelmente não escolheria um título de Le Guin; mas se tivesse de escolher um escritor ou escritora preferido, não hesitaria na resposta. Ocorrem-me vários livros que me mudaram de alguma forma, mas apenas Le Guin o conseguiu tornar a fazer a cada novo livro ou conto que li. Ainda tenho alguns por ler, tal como a poesia, os ensaios, as inúmeras crónicas - textos dispersos felizmente compilados e editados em anos recentes. Mais do que nunca, aguardo por essas leituras com muita expectativa.

 

Ursula Kroeber Le Guin faleceu anteontem na sua casa de Portland, nos Estados Unidos. Tinha 88 anos, e escreveu livros extraordinários. 

Dentes-de-leão

João Campos, 05.10.16

No more kings. Vimes had difficulty in articulating why this should be so, why the concept revolted in his very bones. After all, a good many of the patricians had been as bad as any king. But they were... sort of... bad on equal terms. What set Vimes's teeth on edge was the idea that kings were a different kind of human being. A higher lifeform. Somehow magical. But, huh, there was some magic, at that. Ankh-Morpork still seem to be littered with Royal this and Royal that, little old men who got paid a few pence a week to do a few meaningless chores, like the Master of the King's Keys or the Keeper of the Crown Jewels, even though there were no keys and certainly no jewels. 

Royalty was like dandelions. No matter how many heads you chopped off, the roots were still there underground, waiting to spring up again.

It seemed to be a chronic disease. It was as if even the most intelligent person had this little blank spot in their heads where someone had written: "Kings. What a good idea." Whoever had created humanity had left in a major design flaw. It was its tendecy to bend at the knees. 

Terry PratchettFeet of Clay (1996)

 

Neste 5 de Outubro em que se volta a assinalar com um feriado a Implantação da República (independentemente de poder ser essa ou outra efeméride a merecer o dia de descanso), parece-me apropriado regressar a um autor muito cá de casa: Terry Pratchett. Dizer que as suas sátiras são incomparáveis no género onde situou o mundo secundário de Discworld  - a fantasia literária - seria dizer mesmo muito pouco: é muito provável que no seu auge as sátiras de Pratchett tenham sido incomparáveis, ponto (leia-se Small Gods). Poucos temas dentro e fora do género escaparam ao seu olhar atento e à sua prosa aguçada; sendo britânico, e cultor de um género literário rico em reis e rainhas, seria talvez inevitável que também a monarquia servisse de mote para alguns jogos de palavras, para umas poucas gargalhadas e para uma ou outra reflexão. Como se pode ver por este trecho retirado do décimo-nono livro da série Discworld, no qual o Comandante da Guarda de Ankh-Morpork, Samuel Vimes, se vê a braços com uma série de homicídios e com a possibilidade de a monarquia regressar àquela cidade-estado histórica (ainda não terminei a leitura e tenho evitado spoilers, pelo que para já desconheço se Lorde Vetinari, governador absoluto de Ankh-Morpork, será substituído). E na obra completa podemos encontrar outras passagens sobre o tema, como esta outra, retirada de uma nota de rodapé (as notas de rodapé de Pratchett são famosas) do quarto livro da série, Mort, publicado em 1987, e que talvez ajude a explicar a ciência subjacente ao fenómeno da sucessão: 

 

The only thing known to go faster than ordinary light is monarchy, according to the philosopher Ly Tin Wheedle. He reasoned like this: you can't have more than one king, and tradition demands that there is no gap between kings, so when a king dies the succession must therefore pass to the heir instantaneously. Presumably, he said, there must be some elementary particles – kingons, or possibly queons – that do this job, but of course succession sometimes fails if, in mid-flight, they strike an anti-particle, or republicon. His ambitious plans to use his discovery to send messages, involving the careful torturing of a small king in order to modulate the signal, were never fully expanded because, at that point, the bar closed.

 

Aos leitores, votos de um bom feriado. 

A Fantasia dos Nossos Tempos Dá Cá Uma Trabalheira

Francisca Prieto, 10.05.16

Quando eu era pequena era normal acreditar-se em quase tudo. Acreditavamos no Pai Natal e, em simultâneo, no Menino Jesus, acreditavamos no coelho da Páscoa, no homem do saco, no palhaço Batatinha, no lobo mau, na avózinha, nos glutões do Presto, em fadas e em duendes.

Como não havia cento e tal canais de televisão, muito menos internet, e não se falava ao telefone trezentas vezes ao dia, não havia hipótese de nos virem com caraminholas que trouxessem a angústia da dúvida ao nosso imaginário. Acreditavamos em tudo, piamente, e até muito tarde.

Nos dias que correm, torna-se cada vez mais difícil manter as tradições seculares no que toca a enganar a criançada.

Ora cá em casa, na senda dos ensinamentos do meu pai, o Ratón Pérez é a entidade oficial que toma conta da ocorrência cada vez que um dente de leite resolve dar o ar da sua graça.

No meu tempo a logística era simples: o dente caía, nós deixavamo-lo dentro de um copo de água na mesinha de cabeceira, e o rato lá vinha durante a noite para deixar uma lembrança.

Uma vez a minha irmã Luísa cometeu a heresia de apregoar aos quatro ventos que “isso do Ratón Pérez é uma grande treta” e teve o dissabor de, em vez da habitual lembrança, receber uma pesarosa carta em castelhano, remetida pelo próprio Ratón, a dizer que “si no creía en el, no la podria regalar”. É evidente que, em nossa casa, nunca mais ninguém se atreveu a duvidar da existência do bom e velho Pérez, pelo menos até à chegada da maioridade.

Já eu, que pertenço à geração de mães do novo milénio, vejo-me grega para prolongar o mito. Tive de me adaptar aos novos tempos e arranjar uma data de argumentos para tornar credível o facto de haver um rato se mete à estrada a partir de Espanha com um embrulho às costas.

No século XXI, como é sabido, qualquer actividade tem de ter um interesse económico, senão cheira logo a aldrabice. De maneira que o Ratón Pérez é evidentemente um coleccionador de dentes que só deixa um presente porque está interessado em aumentar o espólio. E é sabido que quando um dente se apresenta em mau estado não há qualquer hipótese de “regalo”.

Como o castelhano não é o forte cá de casa, optou-se por lhe dar uma origem galega, o que, em caso de missiva, fornece alibi perfeito para os portunhólicos pontapés na gramática da língua de Cervantes.

A água do copo tem de ser bebida quase até ao fim porque o pobre rato vem a alta velocidade desde Espanha e chega cá sedento. Por vezes, chego mesmo a ser obrigada a deixar um bocadito de queijo Emmental (que sou forçada a mordiscar lá pela uma da manhã) porque é natural que, à chegada, o amigo Ratón traga uma certa larica.

Isto tem-me dado uma trabalheira, sobretudo quando tenho de puxar pela memória para manter a coerência dos factos, mas o que é certo é que, até à data, nunca dei pelo menor resquício de dúvida face à existência do Ratón Pérez.

Já no Pai Natal ninguém acredita. Que isso de haver um velho gordo puxado num trenó voador por meia dúzia de renas está-se mesmo a ver que é fantasia.

Lalalândia (2)

João André, 12.05.15

Em Bagdad:

 

- Companheiros, amigos, palhaços, fizemos um grande trabalho! Reformámos a Justiça!!

Tradução: não funciona.

- Reformámos a Educação!

Tradução: ninguém sabe o que tem que fazer, nada começa a horas, a escola pública está a desaparecer e a privada a ser subsidiada pior que nunca.

- Reformámos a Saúde!

Tradução: a Médis está a ficar rica fazendo cada vez menos.

- Reformámos a Fiscalidade!

Tradução: espetámos com impostos em tudo o que se mexe na função pública e removemos tanto quanto possível os mesmos às empresas que não passaram a empregar mais por causa disso.

- Reformámos as Forças Armadas e a Administração Pública!

Tradução: quem tem cu tem medo e despedimos aqueles que não metem medo.

Lalalândia (1)

João André, 12.05.15

No médico

 

- Ó sôtôr, tenho aqui umas palpitações e umas dores...

- Ó amigo, isso é da obesidade, não se vê logo?

- Eu? Mas eu só como um bolo ou outro de vez em quando. Só como aquilo que preciso. Sempre no McDonald's...

- McDonald's? Isso não faz mal a ninguém. Mas precisa de perder gordura. Olhe, tome lá este saco de 50 quilos, estes comprimidos e deixe de trabalhar e comece mas é a comer mais Happy Meals. Vai ver que lhe passa.

 

...

 

- Ó sôtôr, eu ando cheio de fome, mas as palpitações pioraram e agora, sempre que tomos os comprimidos, fico cheio de dores de estômago.

- Isso não importa. Reforce a dose que é o que importa. Estou a ver-lhe ainda muito pneu. Aumente a carga para 60 quilos. Durma menos. Largue os sapatos que aumentam o conforto e não o deixam perder peso. E já agora não vá aquele curso que estava a seguir que só se senta e isso faz-lhe mal.

 

...

 

- Outra vez aqui homem? Então que se passa? Ainda não perdeu nada de especial de peso.

- Ó sôtôr, estou cada vez pior. Sinto-me mal, tenho febre, ando cheio de dores e sempre tão irritadiço que até o meu filho já se foi embora. E era ele que me ia trazendo uns trocados para casa agora que o sôtôr me mandou parar de trabalhar. Tem a certeza que isto é preciso?

- Nem tenha dúvida. É uma receita que foi encomendada pelos médicos do Hospital de Frankfurt, pelo Instituto de Medicina Familiar de Berlim e pela Universidade Médica de Bruxelas. Basta ver que os professores de Atenas não concordam para ver que é bom.

- Mas isto faz-me sentir mal.

- Não se preocupe homem. Olhe, para a febre o melhor é andar sem roupas pela rua e tomar banhos gelados. Vai ver que o frio lhe baixa a temperatura. Já agora aumente a carga para 75 quilos. Mal não fará. E comece a cavar o quintal de minha casa. Só lhe faz bem e até me faz um favor.

- Ainda isso? Depois de aumentar o preço da consulta?

- É para seu bem, acredite no que lhe digo...

 

...

 

- Ó sôtôr, sinto-me pessimamente. Não posso com dores de cabeça, o estômago dói-me tanto que estou a cuspir sangue, deve ser úlcera, a minha mulher deixou-me, os dentes estão a apodrecer-me, já não arranjo emprego de jeito, só mesmo a cavar valas, coisa sem jeito nenhum e mal paga, não tenho forças e nem sequer consigo aproveitar nada da vida.

- Mas olhe que se começa a ver a falta de gordura. Já perdeu alguma coisa. Isto ainda não acabou amigo, vai ver que vale a pena. Aguente que ao fim de uns 10 ou 20 anos vai ver como se sente perfeito, sem gordurinha nenhuma.

- Mas e os gregos? Tinham lá umas coisinhas medicinais...

- Fantasias meu caro, não se deixe levar. Aumente a dose dos comprimidos e tome ainda estes. Não são comparticipados mas ajudam mais.

- São para as dores?

- Qual dores, vão aumentá-las, mas isso só o vai ajudar a perder peso mais depressa. E cave tantas valas quanto possível. Não tire férias.

 

...

 

- Boa tarde senhor doutor.

- Sim? Em que posso ajudar?

- Sou filho daquele senhor que o doutor andou a tratar do excesso de peso.

- E então, como vão as coisas?

- Malzinho doutor, malzinho. O meu pai morreu...

- Morreu? Mas como?

- De malnutrição. De dores. De úlcera. Enfim, da cura.

- E qual era o peso?

- XX quilos.

- Está a ver como até perdeu peso? Se quer que lhe diga, o mal foi não ter levado a cura longe o suficiente.

 

Sobre a passagem de George R.R. Martin por Portugal

João Campos, 25.04.12

O autor da aclamada série de literatura fantástica A Song of Ice and Fire, adaptada para televisão pela HBO, esteve uma vez mais em Portugal. No dia 18 de Abril decorreu no Teatro Villaret, em Lisboa, a apresentação da antologia O Cavaleiro de Westeros e Outras Histórias. A 19 de Abril teve lugar a ante-estreia do primeiro episódio da segunda temporada de Guerra dos Tronos. E no dia 19, o autor esteve no Porto, numa sessão com os fãs.

 

Aos interessados, deixo aqui as ligações para alguns artigos que escrevi a propósito da visita do autor ao nosso país: a apresentação em Lisboa, as perguntas e respostas e e a minha entrevista com George R. R. Martin sobre a série televisiva Game of Thrones

The Colour of Magic

João Campos, 03.02.12

No início deste ano, defini como resolução para 2012 ler a série Discworld, de Terry Pratchett. Não necessariamente toda, claro – de 1983 até ao presente, Pratchett escreveu um total de 39 livros desta série não-linear e incrivelmente popular*. E apesar do débil estado de saúde do autor – a quem foi diagnosticada Alzheimer – parece que ainda está a tentar concluir e publicar pelo menos mais uma aventura de Discworld.

 

Discworld não obriga a uma leitura dos livros por ordem cronológica. Ao longo dos 39 volumes, Pratchett desenvolveu um sem-número de personagens e múltiplas narrativas que têm lugar naquele mundo plano e circular, assente sobre quatro elefantes gigantescos que vagueiam pelo Universo em cima da carapaça da Great A'Tuin, a tartaruga cósmica. A série inclui histórias de feiticeiros, de bruxas, da polícia da cidade de Ankh-Morpork, do detective Sam Vimes, da mais relevante academia de ensino de feitiçaria de Discworld, a “Unseen University”, entre outros. A minha opção para cumprir este desafio, porém, foi ler a série por ordem cronológica, para melhor acompanhar a evolução do autor e de todo aquele mundo fantástico.

 

Em The Colour of Magic, o primeiro livro da série, a narrativa acompanha três personagens peculiares: Rincewind, um feiticeiro inapto (sabe apenas um único feitiço, por acaso é um dos oito Grandes Feitiços, que se alojou na mente do aprendiz de feiticeiro e desde então tem afugentado – literalmente – qualquer possibilidade de este aprender qualquer outro truque, por mais elementar que seja) com especial aptidão para idiomas e para se meter nos mais loucos sarilhos imagináveis; Twoflower, o primeiro turista de Discworld, que deixou a sua nação remota e o seu aborrecido trabalho de contabilista de seguros para conhecer o mundo a partir da cidade de Ankh-Morpork; e a bagagem de Twoflower. Sim, a bagagem the Twoflower – conhecida apenas por “Luggage” – é também ela uma personagem, consistindo num baú ligeiramente maior que o tamanho médio dos baús, feito de pearwood (uma madeira raríssima e resistente a magia), que se move com dezenas de pequenas e ágeis pernas e segue o seu dono para toda a parte (mesmo para toda a parte). Twoflower quer conhecer o mundo e ver as maravilhas de Discworld, e contrata Rincewind a peso de ouro para ser o seu guia, tarefa que o feiticeiro cumpre num estilo muito peculiar (e sempre divertido). Pelo caminho encontram ladrões, assassinos, heróis, bárbaros, dragões imaginários, dríades, demónios antigos, a Morte, deuses, trolls normais, trolls marinhos, e uma sociedade que quer enviar uma espécie de nave espacial para lá dos limites do mundo (o "Rimfall") para descobrir a resposta a uma das questões que tem intrigado gerações de filósofos e feiticeiros: qual é o sexo de Great A'Tuin?

 

Dono de um sentido de humor extraordinário, na boa tradição do non-sense britânico, Pratchett usa estas personagens e as loucas situações em que se envolvem para parodiar os clichés dos géneros do fantástico. A forma como descreve feiticeiros, bárbaros, heróis, bandidos e donzelas em perigo é hilariante, pegando nos nos estereótipos tradicionais e invertendo-os, apenas para os devolver à narrativa e deixá-la seguir o seu atribulado curso. As descrições são um regalo, e é muito difícil não rir mesmo quando o autor descreve as mais triviais situações e os mais vulgares cenários. Se bem que, com franqueza, se há coisa que as situações e os cenários em Discoworld não são é justamente triviais ou vulgares.

 

Se em circunstâncias normais a série Discworld seria sempre merecedora de leitura – pela imaginação, pela qualidade da escrita e pela sátira –, numa época como esta ainda é mais recomendável. O humor, afinal, ainda está livre de impostos; e ainda que o riso não resolva todos os problemas, sempre ajuda a descontrair. Em Discworld, começando com The Colour of Magic, Pratchett dá aos leitores um stock interminável de gargalhadas.

 

*Em 2003, a BBC realizou uma sondagem ao longo de um ano para apurar qual o livro mais querido dos leitores ingleses. Sem surpresas, a obra vencedora foi The Lord of the Rings, de Tolkien; entre as 100 obras preferidas do público inglês, contam-se cinco de Terry Pratchett (Mort, Good Omens – esta escrita com Neil Gaiman –, Guards! Guards!, Night Watch e The Colour of Magic). Se considerarmos a lista dos 200 livros preferidos dos ingleses, Pratchett figura 15 vezes. Nada mau.

 

(Também aqui, onde doravante me dedicarei unicamente ao Fantástico com regularidade incerta)

Pelo menos em cinema 2012 tem de ser melhor que 2011

João Campos, 26.01.12

Os Óscares deste ano são os mais desinteressantes de que me lembro. Não vi um único filme dos nomeados - e a verdade é que não existe nenhum na lista que faça realmente questão de ver. 


Valha-me 2012, que graças a vários regressos promete ser um excelente ano cinematográfico. Ridley Scott regressa ao seu melhor género, a ficção científica, e ao universo de Alien com Prometheus, a prequela-que-não-é-uma-prequela da obra-prima de 1979. Cristopher Nolan regressa a Gotham City e ao universo de Batman - o único super-herói que passou bem da banda desenhada para o grande ecrã - com The Dark Knight Rises, o capítulo final da sua trilogia sobre o sombrio alter ego de Bruce Wayne. E, por fim, resta o muito aguardado regresso de Peter Jackson à Terra Média, com a adaptação de The Hobbit, onde poderemos ver como Bilbo Baggings, entre muitas outras aventuras, encontrou o Anel que colocou em marcha os acontecimentos de The Lord of the Rings.

 

O trailer deste dificilmente poderia ser mais prometedor.


Fantástico

João Campos, 21.11.11

Decorreu entre 18 e 20 de Novembro o Fórum Fantástico 2011. Em jeito de resumo (que não fará justiça ao evento), foram três dias de excelentes sessões sobre os géneros do fantástico na literatura, no cinema e na banda desenhada. Entre os convidados estiveram, entre outros, o escritor e cineasta António de Macedo (e é fascinante ouvi-lo, esteja ele no palco entre os oradores ou na plateia, entre o público, a fazer comentários e a colocar questões), o autor espanhol Félix J. Palma, o escritor João Barreiros, Filipe Melo (cuja obra já aqui foi mencionada), e Victor Mesquita, "guru" da banda desenhada portuguesa. As sessões, essas, oscilaram entre o bom e o excelente.

 

Para terem uma ideia melhor do que foi o Fórum Fantástico 2011, podem consultar o blogue oficial.

 

Uma vez mais, o mérito da organização vai para Rogério Ribeiro e Safaa Dib.

 

A Game of Thrones

João Campos, 30.09.11

Quem ainda não ouviu falar de A Game of Thrones, do norte-americano George R.R. Martin, irá certamente ouvir em breve, quando a adaptação do romance para série televisiva da HBO estrear por cá em Outubro, no Sy-Fy. Uma excelente adaptação, aliás, como a HBO já nos habituou. Mas deixemos a adaptação para outro dia, e falemos dos livros hoje.

 

A Game of Thrones (na tradução portuguesa, A Guerra dos Tronos), publicado em 1996, é a primeira parte da série A Song of Ice and Fire, que já conta com cinco livros publicados: A Clash of Kings (1998), A Storm of Swords (2000), A Feast For Crows (2005) e A Dance With Dragons (2011). Mais dois estão previstos, The Winds of Winter e A Dream of Spring, apesar de ser impossível fazer qualquer previsão sobre a conclusão e publicação das duas últimas sequelas. Dentro da literatura de fantasia, há muito quem considere A Song of Ice and Fire a melhor série do género desde que Bilbo encontrou o Anel e Frodo teve de resolver o problema. Talvez não seja a melhor série literária do género deste Tolkien - o britânico Philip Pullman, com a trilogia His Dark Materials, é sempre um sério candidato ao segundo lugar -, mas não fica longe, e conseguiu refrescar um género que, ao longo dos anos, usou e abusou das ideias do velho professor inglês. 

 

A verdade é que A Game of Thrones aproxima-se muito mais da nossa História medieval do que das narrativas de fantasia convencionais. George Martin assume ter retirado bastantes ideias de episódios históricos como a Guerra das Rosas, entre outros. Os elementos do fantástico estão presentes, e tornam-se cada vez mais relevantes à medida que a série avança, mas a intriga e os conflitos entre as várias casas nobres e facções políticas e militares do mundo ficcional dos Sete Reinos de Westeros constituem o verdadeiro motor de toda a história, à medida que os apoiantes das grandes casas Stark, Baratheon, Arryn, Tully, Lannister, Tyrell e Martell (e outros, tantos outros), sem esquecer os despojados herdeiros dos Targaryens, se embrenham nas malhas da intriga da capital do reino. E, acrescente-se de passagem, que intriga!

 

A estrutura narrativa é outro dos pontos fortes de A Game of Thrones, com a estrutura por capítulos a abdicar dos narradores de primeira ou terceira pessoa convencionais. Cada capítulo do livro tem como título o nome de uma personagem, e é narrado de acordo com o ponto de vista dessa personagem. Esta estrutura pode parecer estranha ao início, mas revela-se surpreendentemente dinâmica à medida que a história progride, dando protagonismo a vários personagens em localizações distantes. Sem esquecer, claro, que diferentes personagens encaram as situações de formas distintas, e também isso é visível ao longo da narrativa. 

 

Em resumo, A Game of Thrones (e o resto da série) é uma leitura cativante, que certamente não decepcionará quem gostar de uma boa história muito bem contada. Deixo contudo o aviso: George Martin parece retirar particular satisfação de quebrar convenções, e a noção de "plot armor" é praticamente inexistente na sua obra. Dito de outra forma, e em jeito de advertência a potenciais leitores: não se afeiçoem demasiado às personagens, mesmo que (aparentemente) elas sejam protagonistas. É bastante provável que venham a ter alguns dissabores (que, na minha opinião, só melhoram a leitura). 

Fórum Fantástico 2010

João Campos, 10.11.10

 

 

Começa dia 12 de Novembro, sexta-feira, na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, em Telheiras (Lisboa), o Fórum Fantástico 2010, porventura o mais relevante - e interessante - evento de ficção científica a decorrer por cá. Depois da excelente edição de 2008 e do interregno de 2009, é bom ter o FF de volta. Aos interessados, o programa encontra-se disponível no blogue oficial.