Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Os deuses vendem quando dão

Pedro Correia, 07.10.21

9096338_1ZpSf.jpeg

 

Ao ler a autobiografia de Ava Gardner, uma das mais deslumbrantes actrizes de que há memória, de novo me assaltou a sensação de que estas mulheres idolatradas por milhões em todo o mundo são perseguidas por uma sina fatídica: estão condenadas a morrer na solidão.

Foi assim com Ava, que esteve casada com três celebridades do espectáculo: Mickey Rooney, Artie Shaw e Frank Sinatra. Todos os ex-maridos lhe sobreviveram. Ela morreu no seu apartamento londrino a 25 de Janeiro de 1990, aos 67 anos, acompanhada apenas por uma velha empregada e pelo cão.

Mas foi assim também com Marilyn Monroe, Greta Garbo, Marlene Dietrich, Maria Callas, Carmen Miranda, Amália Rodrigues. Mulheres aplaudidas e celebradas por legiões de admiradores que seduziram quando estavam sob as luzes da ribalta mas que arrastavam consigo uma estranha maldição. Como se o reverso da fama que a dado momento as projectou para a imortalidade fosse o fim amargo e solitário que tiveram.

Fernando Pessoa, que conhecia bem o que era a solidão, diz tudo nuns versos que são do melhor de sempre na língua portuguesa: «Os deuses vendem quando dão. / Compra-se a glória com desgraça.» Estas mulheres - e muitos homens - souberam isso bem de mais. Quando a porta se fechava, as luzes se apagavam e a euforia da festa chegava ao fim.

Supernova (Há vinte e cinco anos)

Bandeira, 05.03.16

Prevenidíssimos, os jornais têm prontas para publicação biografias de todas as pessoas importantes do mundo. Líricos querem que nasça uma estrela sempre que alguém morre. A realidade é bem o inverso. É quando ela morre que a estrela mais brilha, e arrasa tudo o que estiver por perto, excepto o cigarro, o uísque e o berro do chefe de redacção.

Valor e preço

Pedro Correia, 09.05.14

 

Vale a pena reflectir sobre o valor noticioso do silêncio: na maior parte dos casos, o preço aumenta na razão inversa das declarações que justificam sonoros títulos propagados pelos tambores mediáticos. Incluindo aqueles que não hesitam em fazer do mau gosto uma permanente senha de identidade.

Monica Lewinsky rompe agora um silêncio de uma década em sóbrias confissões à Vanity Fair. Talvez a mais relevante seja a de que chegou a ser aliciada com dez milhões de dólares para ampliar de viva voz o escândalo que a ligou ao ex-presidente Clinton.

Numa época fértil em propostas irrecusáveis, a recusa em falar ao longo deste tempo tornou cada palavra sua ainda mais cobiçável pela comunicação social de todos os matizes. Mas haverá justo preço para a dignidade que apenas o silêncio voluntário permite preservar?

"Todo necio / confunde valor y precio", escreveu Antonio Machado. Tinha razão, como sempre acontece com os melhores poetas.

Texto publicado inicialmente aqui

O "génio" nada é sem muito esforço

Pedro Correia, 20.11.13

Muito à portuguesa, fala-se quase sempre do "génio" de Cristiano Ronaldo. Mas quase nunca se fala da sua exemplar entrega ao treino. E no entanto essa é a principal razão do seu sucesso. Porque podemos detectar vestígios de "génio" num Ricardo Quaresma, por exemplo. Mas sem muito treino diário, sem muito esforço, sem dedicação total a um objectivo, nenhum "génio" chega longe. Nem o melhor do mundo, como Cristiano Ronaldo é.

Os deuses vendem quando dão

Pedro Correia, 13.09.11

 

Acabo de ler a autobiografia de Ava Gardner, que foi uma das mais deslumbrantes actrizes de que há memória. E de novo me assalta a sensação de que estas mulheres idolatradas por milhões em todo o mundo são perseguidas por uma sina fatídica: estão condenadas a morrer na solidão.

Foi assim com Ava Gardner, que esteve casada com três celebridades do espectáculo: Mickey Rooney, Artie Shaw e Frank Sinatra. Todos os ex-maridos lhe sobreviveram. Ela morreu no seu apartamento londrino a 25 de Janeiro de 1990, aos 67 anos, acompanhada apenas por uma velha empregada e pelo cão.

Mas foi assim também com Marilyn Monroe, Greta Garbo, Marlene Dietrich, Maria Callas, Carmen Miranda, Amália Rodrigues. Mulheres aplaudidas e celebradas por legiões de admiradores que seduziram quando estavam sob as luzes da ribalta mas que arrastavam consigo uma estranha maldição. Como se o reverso da fama que a dado momento as projectou para a imortalidade fosse o fim amargo e solitário que tiveram.

Fernando Pessoa, que conhecia bem o que era a solidão, diz tudo nuns versos que são do melhor de sempre na língua portuguesa: "Os deuses vendem quando dão. / Compra-se a glória com desgraça." Estas mulheres - e muitos homens - souberam isso bem de mais. Quando a porta se fechava, as luzes se apagavam e a euforia da festa chegava ao fim.

Morrem sempre cedo de mais

Pedro Correia, 04.08.11

 

Amy Winehouse morreu com apenas 27 anos e quase ninguém pareceu surpreendido. Como se fosse algo inevitável: havia um funesto destino a marcar encontro com ela há muito tempo. Tinha um talento vocal ímpar - bem expresso nas interpretações que nos deixou em temas como Back to Black, Rehab, Love is a Losing Game e You know I'm no good - e, ao mesmo tempo, uma absoluta incapacidade para lidar com a fama.
Interrogo-me com frequência sobre a multidão de artistas do mundo da música, dos mais diversos géneros, que se afunda nos abismos do álcool, das drogas e da solidão. Abraçam o fracasso por absoluta incapacidade psicológica de encararem o êxito. Amy Winehouse é apenas a mais recente de uma longa lista que inclui Elvis Presley, John Coltrane, Billy Holiday, Elis Regina, Janis Joplin, 'Mama' Cass Elliot, Dalida, Keith Moon, Karen Carpenter, Charlie Parker, Dolores Duran, Judy Garland, Jim Morrison, Brian Jones, Chet Baker, Dinah Washington, Sid Vicious e Kurt Corbain. Entre tantos outros.

Desaparecidos na voragem do palco, entre mil focos de angústia nos bastidores. Tocados por uma irreprimível fúria de viver, morrem sempre cedo de mais. 

Com o coração destroçado

Pedro Correia, 15.12.09

 

Passar uns dias enfiado em casa devido a uma gripe gera destas coisas: às tantas apetece folhear uma daquelas revistas que ficaram abandonadas a um canto qualquer da sala, semanas a fio, por absoluta falta de interesse. Entre duas séries de espirros, pego numa dessas revistas 'cor-de-rosa', como agora se diz, que são oferecidas como brinde de certos jornais.

O que encontro? A total devassa da intimidade de alguns 'famosos', por vezes com a conivência dos ditos cujos ou das respectivas famílias.

 

Fico a saber, por exemplo, que um escritor famoso "já não se preocupa em esconder a relação" que mantém com certa senhora: "o casal" foi visto em centros comerciais, "onde não passou despercebido". Que uma conhecida jornalista da televisão "passou não há muito tempo por um processo de divórcio" e hoje garante que "a prioridade é a sua filha", após "alguns rumores que lhe atribuíram vários romances com colegas de profissão". Que a jovem actriz A está "sem namorado desde que terminou a sua relação" com o fulano B, "ainda sofre com a ruptura e diz mesmo que não tem vontade de voltar a apaixonar-se". Que a mãe dessa menina confidencia que desde a referida "ruptura" a filha "só teve um relacionamento muito curto" com o beltrano C, "após o qual se apercebeu que continuava a gostar" de B. Entretanto, sem perder tempo, B "já foi surpreendido com uma companhia feminina no Algarve". Vem com nome completo: só falta número de bilhete de identidade e de número de contribuinte. "Os dois mantiveram encontros secretos num hotel, em Lisboa, mas mais uma vez o relacionamento acabou por não ser assumido", acrescenta a folha de couve, com requintes detectivescos.

Que mais se aprende folheando esta revista de grande tiragem? Que a sicrana D "tem fechado os olhos" a numerosos pretendentes, incluindo o empresário E, "que já namorou com a jornalista F, da estação de televisão X, e com a relações públicas G". E que quatro 'celebridades' da nossa praça "lutam contra o excesso de peso seja pela idade, problemas hormonais ou gravidez": uma delas "assume ter ganho oito quilos em meio ano", sem assumir no entanto que isto se deva a problemas hormonais e muito menos à idade.

 

Parei aí, mas havia muito mais matéria do género na referida revista de bisbilhotices, igual a tantas outras que por aí circulam. São publicações que  prestam culto a "famosos" que ninguém conhece, ignoram o significado do termo "intimidade", adoram escrever o verbo "assumir", imaginam um "casal" em cada par que vislumbram ao virar da esquina, acreditam que uma pessoa se realiza essencialmente pela "relação" que estabelece seja com quem for, e não concebem que uma jovem possa viver sem ser "com o coração destroçado" após ter terminado o namoro, forjado ou real, que essas mesmas publicações garantiam ser "eterno" semanas antes. Recentemente houve mesmo uma revista que dava determinado "casal" por separado quando páginas antes, na mesma edição, assegurava que "irradiavam felicidade".

Com o coração destroçado fiquei eu ao saber de tudo isto. E só me apetece é espirrar. Felizmente não sou 'famoso': ainda me tiravam uma fotografia a assoar-me, o que não é das coisas mais bonitas de se ver. 

O ser e o nada

Pedro Correia, 31.03.09

  

Jade era uma rapariga inculta, sem instrução, nascida e criada numa família desestruturada. O pai drogava-se, a mãe também. Os horizontes dela esgotavam-se num sonho: a fama televisiva. Conquistou-a, num desses concursos que fabricam celebridades como se fossem pudins instantâneos. Jade apareceu na pantalha, sentiu-se realizada. Mostrou-se tal como era a milhões de espectadores: uma jovem inculta, grosseira. Insultou outra concorrente do programa com epítetos racistas, tornou-se a rapariga mais odiada da Grã-Bretanha. Exibindo tudo em directo – a grosseria, os modos suburbanos, a falta de instrução, o analfabetismo funcional. Chamaram-lhe todos os nomes.

Um dia adoeceu. Também em directo. O veredicto médico desenganou-a, ela chorou lágrimas verdadeiras defronte das câmaras que a devassavam. Tornou-se a rapariga mais amada da Grã-Bretanha. Todos sentiram pena dela. Decidiu casar em directo, já com as marcas da doença bem visíveis. Todo o país reparou nela: uns fizeram-lhe elogios, outros também. Um dia destes morreu. Depois de uma agonia também registada quase em directo. O povo chorou lágrimas verdadeiras por ela, até o primeiro-ministro lhe prestou um comovido tributo.
Era uma rapariga inculta, de horizontes estreitos, igual a tantas outras de tantos outros subúrbios de tantos países. Só tinha um sonho: ser famosa. Concretizou esse sonho simplesmente por aparecer na televisão. Em directo, sempre em directo. Nos dias de sorte e também nas horas amargas do infortúnio.
Jade era uma rapariga vulgar. E também um perfeito símbolo do nosso tempo, em que ser é aparecer. Há milhões de Jades por aí. Sonham com a fama instantânea, com a celebridade sem esforço, com o dinheiro caído do céu. Devassadas no ecrã. Amadas e odiadas no ecrã. Vivendo e morrendo no ecrã, para o ecrã, pelo ecrã. E em directo, sempre em directo.