Sobressalente
Apesar de me interessar por famílias da realeza, não tinha intenção de escrever sobre o livro do príncipe Harry, porque não o li, nem penso que lerei. Mas deparei com uma descrição interessante no blogue Entre Parêntesis, que me fez aumentar a empatia já por mim sentida pela pretensa ovelha negra dos “royals”. No fundo, sabia que isso iria acontecer.
Na nossa cultura, há um grande preconceito em relação a “queixinhas”. Porém, pergunto-me porque não há-de uma pessoa revelar que se sentiu, ou sente, tratada com injustiça, ou com indiferença? No fundo, sinto admiração por quem se deixa de fingimentos e ousa revelar o que lhe vai na alma, descobrindo os podres debaixo de uma fachada de glamour. Pode não dar boa impressão, causa inclusive repulsa. Mas, bem vistas as coisas, trata-se de um acto de coragem.
Carolina, a autora do Entre Parêntesis, classifica este como um livro triste - escrito por alguém perdido; alguém deixado num limbo, sem saber onde pertencia e como se posicionar interna e publicamente. Uma situação destas não é eternamente suportável. A não ser que se encontre um escape, normalmente, uma vida promíscua e escandalosa, aliás, com exemplos nesta família, uma vida na qual o próprio príncipe Harry embarcou, na sua juventude.
A Carolina também refere o caso da mãe - um trauma claramente mal resolvido. Deixem-me falar claro: isto revolta-me! Porquê? Como é que uma família com tantos recursos financeiros não procura ajuda psicológica para um rapazinho que não completou ainda 13 anos e perde a mãe de maneira tão trágica? Com medo que se descubra? Ou não admite que alguém no seu seio precise desse tipo de ajuda? O acompanhamento psicológico, numa determinada fase da vida, não resolve os problemas, mas pode ajudar (e muito) a lidar com eles.
Quando vi o filme A Rainha, com Helen Mirren, uma das coisas que mais me impressionou foi como os dois príncipes eram deixados isolados, quase escondidos. Nem pareciam pertencer à família! Claro, trata-se apenas de um filme. Porém, se, na realidade, tivesse havido inclusão dos dois jovens nas discussões familiares e mais naturalidade no tratamento do assunto, a película não teria deixado de o reflectir. Na verdade, a própria rainha sua avó, o avô Philip (totalmente alheio à tragédia) e também o pai Charles não sabiam lidar com o caso. E, depois de terem pretensamente protegido os dois rapazes, pegam neles e colocam-nos, a frio, no meio desse turbilhão que foi o enterro da princesa Diana. Naquela marcha de martírio, os rapazes apenas serviram para polir a própria imagem da avó, que todos sabiam não morrer de amores pela ex-nora. E o próprio Harry já disse que fez aquela caminhada como que em transe, alheio da realidade e sem fazer ideia de como a aguentou até ao fim.
Podem dizer-me: mas o William passou pelo mesmo e lidou melhor com o trauma. O problema é que nunca é igual. Por mais que os pais se esforcem por tratar os irmãos da mesma maneira, nunca o conseguem (alguns nem se esforçam, mas isso seria outra história). Para já, todos temos características inatas que nos diferenciam uns dos outros. E o simples facto de um ser mais velho já torna tudo diferente - nunca, mas nunca, se lida com um filho mais velho da mesma maneira como com o mais novo. Com vantagens ou desvantagens, conforme os casos e as pessoas envolvidas. Neste caso, penso ter sido fatal. William tem, desde o nascimento, uma função fundamental na família. Não digo que seja fácil ser sucessor de um trono, pode mesmo ser um fardo. Mas é algo concreto, definido. Ele sabe qual o seu lugar, sabe da sua importância. Harry, não. É o pneu sobressalente, apenas existe para o caso de as coisas correrem mal. É a peça mantida guardada, a quem ninguém dá importância.
Spare - a tradução portuguesa é Na Sombra. Prefiro sobressalente, como o spare tyre. Expressa melhor o vazio a que foi votado o príncipe. Um sentimento de não pertença que ele descreve (e que se sente) ao longo do livro. A sua válvula de escape não passa por coleccionar escândalos, ou manifestar comportamentos excêntricos. Passa por dar voz à sua revolta. Ele apenas deseja que o ouçam. Mas a família parece insistir em ser surda. Como, aliás, costumam agir as famílias em relação à sua “ovelha negra”.