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Delito de Opinião

Alberto

José Meireles Graça, 08.08.23

Jogue, Sr. Fulano, estamos à espera.

Está nervoso, Sr. Beltrano? Eu não posso andar mais depressa porque estou aqui a pedir a intervenção do meu santo Nicolau. Vamos lá a ver se ele me ajudou. (Tirando uma carta): É que não queríamos outra! Sabe o meu amigo o que tenho aqui?

Não sei nem tenho de saber, Sr. Fulano. Faz parte das regras do jogo. Jogue faz favor.

Ora bem, o que o meu santo me deu foi o valério de Ravel, está a ver? E com este valério o meu jogo ganhou um grande futurejo. Obrigado, são Nicolauzinho.

E se a carta comprada fosse realmente conveniente poderia dizer: Isto é a melhor carta Dumont! – um jogo de palavras invariavelmente acolhido com um silêncio gélido.

O jogo, a feijões, corria em minha casa e uma, às vezes duas, vezes por semana, os dois juntavam-se-me para uma disputa a cujo resultado ambos afectavam não ligar a menor importância. Beltrano afinava quando as coisas não lhe corriam de feição e Alberto havia ao longo dos anos desenvolvido todo um dialecto e manejos cujo propósito era desestabilizar o adversário num jogo que metia muita táctica e complicados raciocínios. Eu, o terceiro jogador, conhecia a música; e sabia que quando a coisa lhe estava a dar para o torto dizia, ao comprar com força uma carta: Anda cá minha douda quizofrénica!

Inúmeras vezes ouvi, em noites de vitória, um discurso solerte: Só ganhei com a ajuda do meu santo Nicolau. Na verdade ajuda-me e eu ajudo-o a ele, que bem sabe que é preciso jogar como só eu.

O grande perdedor, na maior parte das vezes, era eu, nunca tendo sido possível apurar porque, delicadamente, nunca coloquei a questão, se por intervenção de S. Nicolau, por simples azar ao jogo ou burrice. Levei a coisa à conta dos deveres de anfitrião. Conversas sobre os casos da semana poucas. Que das personalidades, partidos, autoridades, casos, novidades, Alberto via sobretudo o lado burlesco e escangalhava-se a rir e fazer rir.

Não haverá mais jogo agora. Que morreu ontem aos 86 anos, ao cabo de uma vida trabalhosa de profissional respeitado, intelectual à sua pessoalíssima maneira, devotado à família e meu tio.

Famalicão*

José Meireles Graça, 15.07.22

No Facebook, quando o assunto fervia e a propósito do escândalo do Ministério Público de Famalicão, escrevi o seguinte:

Alguém sabe onde está a promoção do MP sobre o caso da família de Famalicão? Tenho visto várias transcrições de excertos, a começar na Lusa, logo isso deve ser acessível, mas no site, que eu veja, não há textos. A julgar apenas pelas transcrições o MP acha normal o império do Estado ser enfiado pela goela abaixo dos cidadãos recalcitrantes quando calhe estes terem suficiente amor às suas convicções para tentar impedir o sistema de ensino de formatar as cabecinhas dos infantes em escolhas ideológicas que não são neutras. Ou seja, a Constituição declara o Estado laico mas o poder do dia acha que o ensino oficial deve promover a religião boazinha da chamada ideologia de género, por exemplo, entre outras obsessões. As querelas ideológicas resolvem-se, em regime democrático, por escolhas livres, mas a liberdade fica diminuída se se pretende condicionar as crianças a ver o mundo da forma que o vê uma parte dele, que é a dos paizinhos que legitimamente são de esquerda. Eduquem os vossos filhos com as caraminholas em que acreditam, abstenham-se de reivindicar o direito, que a Constituição, a lógica, o senso e a decência não consentem, de educar os filhos de quem não compre as frescuras do tempo. Ontem a Mocidade Portuguesa, hoje acampamentos do Bloco de Esquerda em formato de sala de aula e com notas?

As transcrições a que me refiro estão, por exemplo, aqui. E as primeiras observações que se podem fazer são estas: se a promoção não é pública, então excertos não deveriam andar na imprensa; se andam é porque alguém lá os pôs; quem os pôs só pode ter sido o advogado da família, ou esta, ou o MP, ou funcionários; se o que chega à comunicação social são extractos, deveria o próprio MP ter interesse na divulgação porque os interesses a proteger, se há, com o secretismo, já estão ofendidos, e nada garante que o que os jornalistas entenderam salientar tenha mais relevo do que o que ficou omisso.

O texto acima foi objecto, dentro do meu mural, de comentários aqui e ali azedos e vi-me aflito para evitar zangas. Tenho amigos claramente de direita, outros em cima do muro e outros ainda à esquerda. E nas raras vezes (três a que tenha dado atenção, para ser exacto) em que pessoas entenderam excluir-me por não “aguentarem sarcasmos” ou o meu alegado machismo considerei o facto como uma derrota: as redes são lugares tribais e as pessoas sentem-se confortáveis apenas nas respectivas bolhas mas um mundo alternativo em que toda a gente concordasse comigo seria decerto muitíssimo razoável, e progressivo, e rico, e sensato, e exornado ainda de muitas outras qualidades, mas também, como a ilha de Calipso, prodigiosamente chato.

Um destes amigos (que no diálogo em questão não participou – se o tivesse feito haveria ainda mais troca de tiro de morteiros, por ter notoriedade), que estimo, declara-se como liberal de esquerda, coisa que tecnicamente parece que existe mas nunca pude apurar o que seja. Curiosamente, é, como eu, naturalmente tolerante em relação a pessoas que subscrevam ideias que contrariem as próprias, e escreveu este fim-de-semana, na sua coluna no Expresso, sobre o caso.

Ainda bem. Que assim comento um texto que li integralmente e não um de que conheça apenas partes e que tem contornos de legalês, que é um terreno eriçado de escolhos. Que diz então Luís Aguiar-Conraria? Muitas coisas para concluir que

“A escolaridade obrigatória faz parte do consenso da sociedade, e os pais não têm o direito de impedir que os filhos usufruam desse ensino.”

Começando pelo fim, o raciocínio é capcioso: há efectivamente um consenso social em torno da obrigatoriedade do ensino; mas não há, como este conflito e a polémica em torno dele demonstram, nenhum consenso em torno da ominosa disciplina de Cidadania e é ela, e só ela, que está em causa, e não a obrigatoriedade do ensino de cadeiras do currículo tradicional. A menos que se queira entender que o “consenso social” cobre as manias do pensamento progressista-socialista-modernista que são moeda corrente e provavelmente maioritárias nos assuntos de que trata a disciplina mas de modo nenhum pacíficas.

Esta conclusão é, ademais, tão intelectualmente enviesada como outros raciocínios que a suportam como, por exemplo, quando diz

“Que hoje a direita em peso assuma as dores dos pais de Famalicão, quando impediu a escola de atender a casos particulares, é irónico”.

A observação refere-se à desastrada iniciativa da ministra Maria de Lurdes que, in illo tempore, quis arranjar um expediente para fazer passar de ano os alunos que, por excederem o máximo de faltas, chumbassem automaticamente. O expediente consistia num exame de faz-de-conta e o propósito era diminuir administrativamente o número de “retenções”, vulgo chumbos. A direita, realmente, torceu o nariz. E bem, porque todo o espectro político subscreve a massificação do ensino, mas à parte esquerda, aparentemente, não importa se isso se faz com analfabetos albardados de diplomas. A relação deste incidente pretérito com o problema actual Luís vê-a porque eram “casos concretos” aos quais os professores deveriam ter “flexibilidade” para atender. Eu não vejo relação nenhuma.

A seguir vem um bom argumento: “A possibilidade de uma família muçulmana não querer que a filha adolescente tenha aulas de Educação Física é real. Um dia acontecerá (...) mas conto que com o Estado para impor o direito desta adolescente a ter as aulas todas”.

Também eu porque a Constituição defende a igualdade entre os sexos, que resultaria negada pela excepção. E não é apenas a Constituição, é também o estádio actual do tal consenso social, que no caso se estabeleceu numa sociedade de tradição judaico-cristã, e não numa muçulmana, que não só é alienígena como não se mostra geralmente compatível com um certo número de valores (o da igualdade de direitos entre os sexos é um deles) que consideramos como um adquirido civilizacional.

Sucede que os pais de Famalicão não pretendem ofender nenhum valor social legítimo, mas antes correntes de opinião de modo nenhum pacíficas, que no caso são as de uma parte do eleitorado, que desencantou o expediente de formatar as cabeças das criancinhas nas crenças em engenharias sociais que lhes norteiam as posições políticas, com a esperança de em adultos estarem mais receptivos a adoptarem os disparates e radicalismos, com frequência ridículos, que imaginam fazerem parte de um espécie de teleologia em direcção à sociedade perfeita.

A própria polémica suscitada ilustra isto: se a esquerda, em geral, subscreve o palavreado progressista que enforma parte da disciplina, e alguma direita não, é um abuso usar o poder do Estado para obrigar os filhos da parte que tem reservas a serem educados pelos critérios, em questões de moral e certas de organização social, da que não tem.

Por exemplo: igualdade de género? Esta formulação equívoca (fora da Gramática, onde tem um significado preciso) destina-se a inculcar a ideia de que o sexo é uma construção social e não uma marca distintiva biológica, o que abre a porta a uma quantidade de abusos e tolices que não vou detalhar porque o ponto não é o bem-fundado da teoria – é que quem a defende não tem o direito de a impor, com autoridade professoral, aos filhos de quem encara semelhantes delírios como fazendo parte de modernismos passageiros quando não são masturbações intelectuais de marxistas reciclados que arranjaram um modo de vida nas universidades do mundo anglo-saxónico, de onde vêm estas modas.

O texto vai longo e por isso salto para o ponto em que o autor declara que “A primeira hipótese [chumbos] é demasiado penalizadora para os miúdos, que deveriam ter sido protegidos e não penalizados pelos pais irresponsáveis que lhes calharam”. Irresponsáveis?! Subscrevo integralmente o que dizia há dias  Rui Ramos sobre a forma como estes pais devem ser encarados, e o que no dia seguinte disse Alberto Gonçalves, e lembro que

No tempo do Estado Novo os inimigos activos do regime eram uma minoria, e dentro desta sobressaíam os comunistas, que por o serem pagaram um pesado preço. Gente dos meus lados, mas não tão lúcida quanto eu, costuma lembrar a evidência de o tipo de sociedade que os comunistas reivindicavam ser imensamente mais deletério que a que pretendiam substituir. Pois sim: o facto é que, sem o activismo comunista, acharíamos hoje que o Estado Novo praticamente não teve repressão. Acaso acha o Luís que os filhos de comunistas devem censurar aos pais terem-nos prejudicado pela defesa das suas convicções? Pergunto eu, que sou anticomunista.

Amigas dilectas minhas chamam incansavelmente a atenção para o facto de a miudagem não ligar provavelmente grande coisa à disciplina, diga o que disser o professor que lhes calhar em sorte, e que no tempo delas a Religião e Moral não as pôs nem mais nem menos católicas, nem as condicionou nas suas mundividências, que foram tributárias muito mais do que aprendiam nos recreios e em leituras avulsas e conversas; assim como a disciplina de Organização Política, se queria formar servidores do regime, falhou clamorosamente.

Isto dizem elas, com mais verve. E diz Conraria que a disciplina não deveria existir. Também acho, a menos que fosse facultativa e sem notas.

Ou seja, mesmo quem defende a existência da aberração acha que ela não tem importância, razão pela qual deve permanecer; e quem acha que ela não devia existir entende que o melhor é que exista.

Porquê? Porque o Estado não pode emendar a mão, quem a deve emendar é quem seja vítima de atropelos.

Deve ser o que entendem por cidadania.

 

* Publicado no Observador

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 15.05.22

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Hoje celebra-se O Dia Internacional da Família

"A data foi escolhida pela Assembleia Geral da ONU, que proclamou o dia 15 de Maio como o Dia Internacional da Família.

A celebração do Dia Internacional da Família visaentre outros objectivos, destacar:

  • a importância da família na estrutura do núcleo familiar e o seu relevo na base da educação infantil;
  • reforçar a mensagem de união, amor, respeito e compreensão necessárias para o bom relacionamento de todos os elementos que compõem a família;
  • chamar a atenção da população para a importância da família como núcleo vital da sociedade e para seus direitos e responsabilidades;
  • sensibilizar e promover o conhecimento relacionado com as questões sociais, económicas e demográficas que afetam a família.

O primeiro Dia Internacional da Família foi celebrado em 1994."

Nada importa mais do que a família. Nascemos e crescemos num seio familiar. Aprendemos a ser gente com a família, seguindo os seus usos e costumes. Ser gente é saber viver em sociedade, ter noção de que a liberdade que a democracia nos providencia tem regras e com base no respeito pelas instituições e pelas pessoas, construirmo-nos como indivíduos com as qualidades e defeitos inerentes a qualquer ser humano, que singra na vida dependendo grandemente das suas escolhas e motivações.

A família é o núcleo. É em casa que se aprendem os valores fundamentais, que passam de geração em geração, pois todos nascem dependentes da família, vivem com a família em dependência e precisam da família à beira do fim. Primeiro damos-lhe raízes. Depois damos-lhes asas. Finalmente damos-lhes segurança  e conforto.

"Paz e harmonia: eis a verdadeira riqueza de uma família." - Benjamim Franklin, seguramente a pensar nas provações das famílias ucranianas. 

Cresci numa família tradicional. Tal como os nossos bisavós, os nossos avós e os nossos pais antes de nós, eu e os meus irmãos aprendemos o valor do trabalho, da educação,  da responsabilidade e do respeito.  Não nos faltou coisa alguma, mas sempre tivemos a noção de que tudo o que os nossos pais nos deram foi fruto de muito trabalho. Tenho orgulho em verificar que passámos estes valores aos nossos filhos e estamos empenhados em participar activamente na formação dos nossos netos para que também possam ter uma vida boa, pautada pelos valores centenários que têm guiado a nossa família através de muitas gerações. 

 

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No dia 15 de Maio celebra-se também  O Dia do Objector de Consciência 

 

"A objecção de consciência é um direito fundamental dos/as cidadãos/ãs previsto constitucionalmente, e que permite a isenção do cumprimento do serviço militar quando obrigatório, substituindo-o pela prestação de um serviço cívico de natureza exclusivamente civil, igualmente obrigatório.

Pode requerer o reconhecimento do estatuto de objector de consciência de serviço militar o/a cidadão/ã que, estando sujeito/a a obrigações militares, não as pretende cumprir por convicção de que, por razões de ordem religiosa, moral, humanística ou filosófica, não lhe é legítimo usar de meios violentos de qualquer natureza, contra o seu semelhante, quer se trate de defesa nacional, colectiva ou pessoal."

Na realidade, quease todos nós por cá somos de algum modo objectores de consciência, porque não achamos legítimo usar "de meios violentos de qualquer natureza, contra o seu semelhante, quer se trate de defesa nacional, colectiva ou pessoal."

Todos excepto os militantes e simpatizantes do PCP, os mentecaptos a quem as estações de TV pagam para comentar a guerra e toda a escumalha que lhes bebe as palavras e as traduz no lixo que se vê, que se ouve e que se lê.

 

(Fotos Google)

O Estado das coisas

Zélia Parreira, 12.01.22

A 24 de Dezembro um dos meus filhos fez um teste rápido,  em casa, cujo resultado era duvidoso. Em menos de 2 horas, graças ao contacto imediato com o médico de família, já tinha realizado teste PCR na Área de Doenças Respiratórias e um teste antigénio na farmácia local, que confirmou a positividade à covid19 e reportou ao SNS. Em consequência dessa notificação, o SNS contactou o paciente, por mensagem de telemóvel,  pedindo que identificasse, no portal do SNS, as pessoas que se encontrassem na mesma habitação. Assim fizemos e fomos todos identificados.


Família fechada em casa, cuidados preventivos para os restantes membros da família, acompanhamento quotidiano do médico de família. Pensei "isto está muito bem organizado!".


No primeiro dia útil seguinte (27 de Dezembro) avisei a minha entidade patronal. O mesmo fizeram os meus filhos. Comprometemo-nos a enviar o comprovativo da necessidade de isolamento profiláctico logo que ele nos fosse facultado.

Perante a total inoperância da linha SNS24 durante vários dias (só conseguimos contactar a 1 de Janeiro) e corroborando os esforços do meu médico de família,  contactei a Unidade de Saúde Pública, por email e por telefone, no dia 29 de Dezembro. Desde aí,  insisti e insisti. Zero resposta. Zero declarações.

Sou funcionária pública. Tenho 5 dias úteis para apresentar a justificação da ausência ao trabalho, sob pena de me serem aplicadas sanções que podem ir até à expulsão da função pública. Nesta data, já lá vão 13 dias úteis.

Felizmente, tive o cuidado de pedir para ficar em teletrabalho enquanto estava em isolamento profiláctico. Fi-lo por uma circunstância muito simples: porque podia. Nem todos têm esta sorte e para esses, que tiverem passado por esta situação, tratou-se efectivamente de uma ausência injustificada ao trabalho.

Ainda assim,  o pedido de teletrabalho teve como fundamento a necessidade de isolamento imposta pela saúde pública, mas que a saúde pública se recusa a atestar. Ou seja, neste momento, pode dizer-se que prestei falsas declarações porque não consigo fazer prova do fundamento que aleguei.

Eu sei que houve muitos casos nas últimas semanas,  mas estamos a falar de uma unidade de saúde local. Quantos casos terá havido aqui, diariamente, para impedir a emissão dos respectivos atestados?

O seu tempo próprio

Ana Cláudia Vicente, 28.11.20

1Neste mundo, tudo tem a sua hora; cada coisa tem o seu tempo próprio.

 2Há o tempo de nascer e o tempo de morrer; o tempo de plantar e o tempo de arrancar (..)

5o tempo de atirar pedras e o tempo de as juntar; o tempo de se abraçar e o tempo de se afastar;

6o tempo de procurar e o tempo de perder; o tempo de guardar e o tempo de deitar fora;

7o tempo de rasgar e o tempo de coser; o tempo de calar e o tempo de falar (...).

Livro de Eclesiastes, 3 (1-2;5-7)

Não sei que idade terão os vossos pais, ou teriam. Os meus têm mais de oitenta. Estão a aguentar-se bem. Quando penso neles, recordo como quase nenhuma geração é poupada a aflições: conheceram primeiro a privação de alimento, a guerra; a peste ficou para o fim. Tiveram e têm o seu tempo próprio. E nós, e o nosso tempo? Não sabemos - não é coisa que consigamos realmente prever. Vivemos as primeiras décadas de vida em progressiva melhoria, comparativa abundância. Agora é hora de nos havermos com uma verdadeira dificuldade colectiva. Há semanas ou meses que convivemos com este encargo novo, cheio de cansaços e angústias surpreendentes. É vez de cuidarmos dos nosso mais velhos e dos nossos mais novos em circunstância instável. Todos os dias improvisamos, todos os dias há uma nova exigência a acrescer ao que tínhamos previsto. É isto, foi esta a fragilidade que os outros, neste mundo e noutra hora, sentiram antes de nós?

Num tempo de guardar e de deitar fora, de se abraçar e de se afastar, evoco duas grandes alegrias: trabalhar em algo que importa e  pertencer a uma boa equipa. Quis a sorte que neste ano desse por mim, todos os dias, a fazer parte de um colectivo de pessoas competentes, confiáveis e generosas. Uma pessoa aguenta quase tudo, quando assim acontece.

O silêncio e tanta gente

Maria Dulce Fernandes, 21.10.20

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A lotaria genética é algo assombroso que transcende todo e qualquer um de nós. A possibilidade de um gene recessivo de existência recente ou até pré-histórica pode determinar um distúrbio de 25% de probabilidades de se verificar geneticamente adquirido.

E aí, ainda não nascemos e a nossa vida já possui toda uma carga adicional de lutas e desafios a superar, que com o passar do tempo constituirão a normalidade que conhecemos.

A lotaria genética pode proporcionar distúrbios esteticamente agradáveis ou monstruosidades e os outros, os que não se vêem e acarretam deficiências profundas que podem ou não ser contornáveis.

A hipoacusia bilateral profunda é A deficiência auditiva por excelência. É diagnosticada por uma sucessão de exames que se iniciam aos 2 dias de vida e não terminam nunca.

Após uma série de testes audiológicos e ressonâncias magnéticas para diagnóstico definitivo, somos postos perante a perspectiva da cirurgia, o tal ouvido biónico, que nos ajudará a perceber o mundo também pelo som e a podermos ser nós a traduzi-lo pela nossa própria voz, construído em palavras que nunca falámos na impossibilidade de reproduzir algo que desconhecemos.

Quem pensará duas vezes perante a possibilidade de contornar ou até vencer a imparidade?

É aqui que entram em cena os fundamentalistas do silêncio que, sob a capa da protecção à capacidade e direito absoluto de escolha das minorias, insistem em alternativas como a linguagem gestual ou a leitura labial, e a escolha – ouvir ou não ouvir - partirá exclusivamente do indivíduo com deficiência quando alcançar a idade da decisão.

Quero acreditar que estas pessoas têm boa intenção e são apenas imbuídas de sentimentos protectores, porque de outro modo é incompreensível que nos tempos do audiovisual estejam a condenar um indivíduo a um ostracismo de idade das trevas. Aqui, a questão religiosa nem se põe. Se Deus não deu ouvidos, então terá que ser surdo, ter-lhe-á dado cordas vocais para quê senão para poder falar?

A linguagem gestual e a leitura labial nunca devem ser excluídas da aprendizagem de um surdo, porque ser bilingue e estar comunicável é fundamental. Em última instância, a decisão de não querer ouvir, aí sim, dependerá sempre, única e exclusivamente, do indivíduo em questão se assim o seu livre arbítrio permitir fazer acontecer.

A transição nem sempre é confortável. A confusão e o medo podem marcar negativamente as primeiras horas ou os primeiros dias, até chegar o entendimento de que as palavras rupestres que gesticulamos podem ser pronunciadas, reproduzidas num som que pode chegar até nós e tornar-se música para os nossos "ouvidos biónicos".

É um renascimento para um mundo sonoro, é um milagre, é magia... é isso tudo, as possibilidades são imensas e é fantástico poder acontecer.

Conversas em família (5)

Maria Dulce Fernandes, 02.09.20

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Estou, mãe? Diz. A tua neta quer falar contigo. Tem uma aventura para te contar. Ah sim? Deve ser uma grande aventura, pois se saiu daqui faz pouco tempo, mas que venha de lá a aventura. Estou, avó? Então neta, conta lá as tuas façanhas. Não é azenhas, avó, é mesmo uma peripécia. Não consigo deixar de sorrir quando ela joga estes ases vocabulares. Estou à espera, podes começar. Então… conheces aquele parque ao pé da minha casa, aquele que tem muitos espaços com água? Conheço. Então,  hoje fomos até lá para distrair o mano e sentámo-nos na beira da água. A água estava morninha e eu disse à minha mãe que me apetecia mesmo dar um mergulho. Então comecei a borrifar o meu pai e cheguei mais para dentro para alcançar mais água. Silêncio. E então? Então, não sei como, splash! Caí dentro de água! Com a minha roupa e os meus sapatos e tudo. Não acredito! É verdade, avó. Tive que voltar para casa embrulhada naquele cobertor branco com um ursinho que costuma estar por baixo, no carro do mano. Que maluquice, neta! Isso é que foi uma aventura, mas só prova que foste pouco cuidadosa e que tens que ter mais atenção durante as brincadeiras. Estás enganada, avó. Prova é que os nossos desejos se podem realizar!
Pois é… será que ver o copo meio vazio é sinal de maturidade ou apenas pessimismo?

 

Foto de Paulo Oliveira retirada do Google

Conversas em família (4)

Maria Dulce Fernandes, 22.08.20

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Altura estava excelente. A praia, o sol, o bulício qb de veraneantes, os restaurantes a meia haste pela falta da clientela que não pode ou não quer arriscar as ameaças da pandemia…

Foram duas semanas de grande diversão, mas o regresso era inevitável e na viagem de volta a casa, as saudades em suspenso ressurgiram e juntamente com elas a perspectiva da diversão continuada dos últimos dias.

Estávamos todos ansiosos e sequiosos dos abraços e dos carinhos que não têm virus que os refreie.

E lá foram eles atrás dos gatos esquivos e medrosos, mais dados a mariquices de velhos do que a afagos de crianças. A Sally, talvez para mostrar o novo look pós tosquia de Verão, foi-se chegando e dignou-se ronronar e permitir umas festinhas, o que deixou a neta feliz e encorajada para a brincadeira. Foi uma tarde divertida aquela.

Avó, achas que posse levar a Sally emprestada, só por uns dias, comigo para a minha casa? Não acho boa ideia, neta, os gatos são muito territoriais e estes não estão habituados a outras casas. Não  iriam sentir-se felizes na tua casa. Iriam sentir a falta dos seus espaços, percebes? Não. Lá na minha casa também tem espaços. É verdade que tem, mas o Dean e a Sally, como muitos outros gatos, cresceram num espaço específico, que é esta casa e que eles consideram ser o seu território, ou seja o seu lugar pessoal. Sabes o que é o olfacto? É o cheiro? Isso. Os animais reconhecem-se pelo cheiro. É por isso que eles andam sempre a cheirar os rabos, avó? ( sorriso maroto) É sim. E também reconhecem pelo cheiro os seus lugares favoritos, camas, casa de banho, bebedouro, comedouro… As cadeiras, as costas dos sofá, as pernas do avô ( sorriso rasgado). Isso mesmo. Ora tu não tens nada disto lá em casa, por isso eles iriam sentir-se meio perdidos, tristes e com medo, percebes? Como tu, nos primeiros dias de férias quando à noite as sombras, diferentes das do teu quarto, te pareciam vampiros atrás da porta. Ah, mas isso foi no ano passado quando eu era pequenina. Pois sim (sorri) mas sabes que podes vir para cá sempre que quiseres e a gataria estará por aí para ires brincando com eles, não sabes? Sei. Sabes avó, acho que eu também sou capaz de conhecer o teu cheiro! Isso é porque tu és uma gatinha tola.

Conversas em família (3)

Maria Dulce Fernandes, 13.08.20

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Agosto de 2019, Lourinhã, Dino Parque.


Avó, sei que hoje é o teu aniversário, mas será que posso ter também um presente? E que presente seria esse? Um "Pequenodaclet" em esqueleto dentro de um tijolo. Queres dizer um Pterodáctilo não é? Não. Esse não conheço. Queria mesmo um Pequenodaclet. Acho que é mais pequeno e engraçado. Deve ser bem fofinho, não achas, avó? Então não acho!

29

Maria Dulce Fernandes, 08.12.19

Quando a minha tia Luzia, a irmã do meio da minha mãe, casou com um aprendiz de alfaiate “vindo das berças" e que jogava à bola, toda a família esperava um rapagão alto e espadaúdo.
O Tio António era um alegre barrigudo, roliço e de estatura mediana, que adorava beber, comer, cantar e jogar à bola.
Fazia as delícias dos miúdos nas porradarias do Sócio Gravócio, nome inventado e imagem de marca daqueles jogos greco-romanos, em que valia tudo para o mandar ao tapete.
“Viva Eu”, do Nilton César, era o seu hino, que normalmente trauteava enquanto trabalhava, e cantava em plenos pulmões após uma refeição bem regada.
Era tão bom alfaiate como futebolista.
Poderia estar a ironizar, mas o facto é que era um excelente praticante da modalidade. No SC Nandufe era muito considerado e a sua camisola número 29 determinou a alcunha que perdurou enquanto viveu: o 29.
No rés do chão do prédio onde morava em Lisboa à sombra do Galo da Ajuda, funcionava uma mercearia explorada pelo Sr. Manuel e pela D. Lurdes, eles próprios brigantinos expatriados, em busca de vida melhor. O Sr. Manuel, homem alto e seco de carnes, troçava amiúde do nosso 29, desacreditando-o como o desportista que era devido à sua figura redonda e bonacheirona, desafiando-o constantemente para isto e para aquilo, principalmente para uma corrida desde o Armadorense, clube recreativo do bairro, até ao cemitério da Ajuda.
O Tio António ia protelando o evento, até um dia em que a contundência do Sr. Manuel o levou a aceitar a aposta.
Com cerca de duas vintenas de pessoas a assistir, partiram os corredores com o Sr. Manuel garboso e veloz a liderar a corrida. Correu-lhe bem, até meio da subida. Depois o 29 passou por ele calmamente, foi até ao cemitério, voltou para baixo e acabaram os últimos metros com o 29 perdido de riso a ajudar o Sr. Manuel a terminar.
Este feito ficou para a história do bairro, e “não és nenhum 29” ainda se ouve aos antigos ajudenses. Outros dizem que ainda lhes parece ouvir o trautear de "Viva Eu" ao virar da esquina.

Férias em família

Maria Dulce Fernandes, 16.09.19

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Quando o meu neto nasceu, estava eu para sul. Apressado como tudo neste mundo açodado, apresentou-se uma semana mais cedo, embaralhando um bocado os planos a toda a gente.
Este ano, e pela primeira vez, decidimos levar a neta mais velha de férias para aliviar os futuros pais da grande pressão (e peso, e inchaço, e…) das esperanças.
A neta mais velha tem quatro anos, uma personalidade vincadíssima, o discurso de um político, uma imaginação espantosa e uma esperteza impressionante, já para não referir a memória auditiva, que armazena tudo o que capta e reproduz depois, tantas vezes fora de contexto, para nosso grande embaraço. Está decididamente na idade do não. Não vou. Não quero. Não faço. Não como. Difícil.
A ultima vez que fui de férias com uma criança pequena foi seguramente há mais de 20 anos, altura em que a mobilidade psicossomática ainda se encontrava no auge. Confesso que estou totalmente destreinada e que apesar de nunca ter sido grande pedagoga (o meu primeiro casamento, o pacto não de obrigação mas de dever que assinei com o trabalho, deixou-me sempre aquele amargo de boca de ser mãe em part time), tinha a firme convicção de que seria como andar de bicicleta… também nunca fui grande ciclista.
Após acurada pesquisa, decidimo-nos por um “resort" na nossa zona de eleição, conceito tendência, que tende a substituir o all inclusive, que por sua vez substituiu a pensão completa, muito em voga nas zonas balneares nos anos 60 da minha meninice.
Espaço bem aproveitado, com cerca de treze vilas, doze quartos ou suites por vila, restaurantes, restaurantes temáticos, bares, auditório, excelente animação diurna e nocturna a cargo do Chapitô, cinco piscinas e o Kids Club.
O Kids Club é um conceito giro para dar algum descanso aos pais ou avós com crianças. Algum descanso traduz-se, no meu entender, por um par de horas. Uma tarde, pontualmente, vá lá.
Eu que nunca fui uma mãe muito presente nem uma avó disponível, mas que sou galinha o suficiente para ser até considerada um tanto sufocante, não consigo entender o conceito de férias em família de quem deixa os filhos por conta de outrem desde que o espaço abre até que encerra, preocupando-se mais com a carta de bebidas à descrição, em aterrar numa espreguiçadeira, comer, beber e dormir, do que em saber se os filhos estão bem, quem os cuida, se se alimentam… Tal e qual largar um acessório enxovalhado na 5 a Sec e ir recolhê-lo no último minuto do expediente.
É a festa da vida levada ao exagero… que o vinho escorra pelas gargantas e a festa dure até às tantas. E mais duraria se não fosse imposto um contacto telefónico que obrigava os progenitores extremosos a irem levantar os rebentos descartados, bastas vezes horas depois do encerramento do espaço infantil.
Podem achar que são coisas de velha, concepções e juízos retrógrados, mas será que pode haver sossego se há cuidados? Pode, desde que exista uma noção clara dos direitos e dos deveres. Um filho é um bem precioso e não uma obrigação mensal, como a factura da luz. As crianças são cansativas, insanas e exasperantes? Sem dúvida, mas há lá melhor coisa nesta vida?

Cheeese!

Teresa Ribeiro, 30.08.19

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Muito antes das redes sociais, que nos empurram para uma noção de felicidade mais concorrencial, já nos fotografávamos a sorrir. Há puristas que consideram mentirosas essas fotos sociais e de família, mas eu fui sempre benevolente em relação à questão. Se fotografar é parar o tempo, então é natural que se deseje ter dele o ângulo mais favorável.

Nunca valorizei tanto as mentirosas fotos de família como quando comecei a perder as pessoas que me faziam mais falta. A minha família, como tantas famílias normais, era disfuncional, mas o que preciso reter dela são as imagens que mais combinam com as minhas saudades e essas, são as felizes.

O reflexo de fotografar tudo o que mexe, 365 dias no ano, que veio com os telemóveis, retirou, de alguma forma, estatuto às fotografias. São muitas, demasiadas, acumulam-se, anulam-se, esquecem-se demasiado depressa. É pena. O tempo não gira com mais vagar só porque somos vorazes a fixá-lo. Mas o hábito de mentir para a fotografia mantém-se incólume. A velha necessidade de recriar os momentos que vivemos e de sorrir, sorrir sempre. 

Instantes em sépia com capa de muitas cores (15)

Maria Dulce Fernandes, 20.06.19

Bisa

 

Eu sou uma pessoa de sorte, tive quatro mães: a minha Avó Adelaide, a minha Mãe, a minha Madrinha Maria Emília e a minha Bisavó Júlia, qual delas a melhor. Sou um patchwork de todas elas, mas no feitio intempestivo sou igualzinha à (bis)Avó Júlia, um furacão com pelo na venta.


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A minha bisavó era uma força da natureza: de saia comprida, lenço preto e xaile, era o protótipo da matriarca dos primórdios do século 20, que enviuvou cedo e trabalhava de sol a sol para sustentar os três filhos. Era uma cozinheira de mão cheia, e quando jovem e antes da Implantação da República, trabalhou nas cozinhas do palácio nas Necessidades, onde conheceu os soberanos reinantes, o Rei D. Carlos e a Rainha D. Amélia.

Como viver em pecado era contra os princípios da Rainha, a minha Bisavó Júlia e o meu Bisavô Alberto, carpinteiro também no Palácio e que nunca cheguei a conhecer, levado muito novo pela Consumpção, foram ”aconselhados” a casar pelo seu capelão, e ofertados pela Rainha depois do enlace, de camas de ferro com florões espectaculares para os rapazes dormirem (pois que já tinham dois filhos), camas essas que perduraram gerações fora, até serem vendidas com o espólio da casa do Fiandal, quando o meu pai faleceu.

Teve três filhos: o Álvaro (o protótipo do dandy, chapéu de lado e suaves maneirismos), o Américo, homem bonito, calmo e um tanto mulherengo, e a Adelaide, o patinho feio, que compensou a falta de beleza física com a muita determinação e perseverança que possuía, e que teve dois maridos e quase um terceiro.

O filho favorito era o filho do meio, o meu Avô Américo, ao qual a Mãe e os meus irmãos foram buscar os olhos azuis. O Avô casou com uma criada de servir de seu nome também Adelaide (a Avó), casamento que não foi do total agrado da Bisavó, o que preconizou uma vida nada fácil para o casal. O Avô, que era serralheiro e arbitro de futebol, era também o menino da mãe, ficando por isso, a morar com ela em Belém. Tiveram três filhas, a Maria Emília (a Madrinha), a Luzia e a Ivone (a Mãe).

A Mãe foi o rapaz que o Avô sempre desejou mas não teve. Era o terror das redondezas, e completamente adorada e apoiada pela Bisavó, impunha a sua vontade e ditava as suas leis com tal vigor que foi cognominada “O Veneno”. Ainda nos dias de hoje, se eu passar pela igreja da Memória, qualquer velhinho que descanse num qualquer banco do jardim me poderá facilmente reconhecer como “a Filha do Veneno” ou à minha filha mais velha como “a Neta do Veneno”.

A Mãe, apesar de maria rapaz e a mais novinha do trio, foi a primeira a casar, e então nasci euzinha, a menina na mão das bruxas, o ai Jesus de todos, mas não era o rapaz que ansiavam. Apesar dum bocado masculinizada pelo Avô no vestir e nos cortes de cabelo (o que tirava a Mãe do sério), foi com o advento do Nascimento do Rapaz que a família rejubilou verdadeiramente. O Avô ficou encantado, o Pai realizado, a Mãe triunfante, a Avó feliz e a Bisavó tão maravilhosamente deslumbrada que tornou o meu irmão o propósito de toda a sua existência. Transferiu toda a ternura que as agruras da vida lhe reprimiram no peito para aquele pequeno ser e amou-o incondicionalmente enquanto viveu.

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Sobreviveu ao Avô, a quem um devastador AVC roubou anos de vida, e ainda embalou o meu irmão mais novo com canções de ninar. Passou os últimos anos numa Casa de Repouso, a que agora chamamos Lar da 3ª idade, donde fugia sempre que podia, para poder estar junto dos seus meninos.
A minha herança genética veio praticamente toda dos albicastrenses do lado da família do Pai.
Penso que o mau feitio e a maneira de encarar a vida herdei inteirinhos da Bisavó Júlia, e estou grata por poder contar com o seu ADN nas horas mais complicadas da minha existência.

 

P.S.: Quem possa pensar que transparece uma ponta de ciúme nestes meus escritos, desengane-se. EU fui a primeira e única Princesa Com Sorte da família

Cá Por Casa

Francisca Prieto, 19.02.18

Adolescente Prieto, ó mãe, tenho uma coisa para pedir. Então diz lá. É que lá na escola, como estamos na quaresma, não fazem pão com chouriço à sexta. Ai sim? Pois, em vez de pão com chouriço, fazem pão com Nutella. E é tão bom, mas tão bom, mãe. É um granda pão, assim cheio de Nutella. Queria pedir-lhe se na próxima sexta feira posso levar dinheiro para comprar seis pães, mãe. Assim, todos os dias levava um para comer na escola.
E eu ah e tal, que Cristão e tal.

Porque é Natal

Francisca Prieto, 22.12.16

Nos últimos dias tenho querido escrever sobre o Natal, mas confesso que com a brutalidade que vai por este mundo fora, fico com a sensação de que só consigo falar de banalidades.
Quando sabemos de gente que é assassinada à luz do dia, de famílias que levam com bombas em cima da cabeça e autocarros que trespassam multidões, parece que qualquer menção a rabanadas é uma falta de respeito.
Não me interpretem mal. Gosto de ouro, de incenso e de mirra. Mas parece que entre o avanço da idade e a desgraça que vai no mundo, estas coisas vão tendo cada vez menos importância.
Fica-nos um aperto por quem passa mal. Mas talvez esse aperto nos faça voltar ao essencial. À reflexão de como podemos ser melhores no ano que se avizinha, à mensagem que queremos passar aos nossos filhos sobre a importância dos gestos de amor, à escolha de ofertas que tenham a nossa marca e que despertem uma alegria no coração de quem as recebe.
Há vários anos que, em casa dos meus pais, cada pessoa só recebe um presente. Com a pelintrice que foi assolando toda a família, o orçamento da oferenda já vai num louco máximo de 10 euros. Mas é incrível como todos os anos temos sido capazes de puxar pela criatividade de maneira a continuar a fazer da manhã de dia 25 uma animação. Há sempre alguém que descobre uma foto hilariante, ou um pimenteiro gigante para quem não passa sem temperos fortes, ou um garrafão de nutella para o guloso máximo, ou um disco da Tonicha, ou seja lá o que for. Na verdade, não é o ouro que nos une (felizmente, que senão era uma tragédia), é o sentido de humor e a cumplicidade que temos uns com os outros.
Que este Natal seja mais um tempo para trocarmos gargalhadas, que é, afinal, a nossa dádiva de afecto. E que em 2017 tenhamos todos energia para contribuir para um mundo mais sereno.

Cá Por Casa

Francisca Prieto, 15.09.16

Noite de calor insuportável. Chego à cozinha e dou com as Prietas de impermeáveis vestidos, uma delas a jantar de gorro de orelhas. Explicam-me que fizeram uma breve interrupção nas suas investigações. Que são espias russas e que já encontraram uma data de pistas para a resolução do enigma. Mostram-me a lista, escrevinhada à pressa num pedaço de papel rasgado de um bloco:

  • Duas balizas de futebol
  • Uma bicicleta
  • Um carro amarelo

E eu digo, tá bem, e fico descansada por terem tido o bom senso de se agasalharem enquanto investigam casos sérios na Sibéria.

Uma mãe preocupa-se sempre com os agasalhos dos filhos, mesmo que pertençam ao KGB.

Cá por Casa

Francisca Prieto, 07.09.16

Mãe e filho, pela estrada fora, com o ipod (da mãe) em versão shuffle. Às tantas, calha-nos o Space Oddity do David Bowie. Quando me preparava para suspirar de nostalgia pelo Major Tom, oiço uma voz enfadada a perguntar se não dava para mudar para a Mega Hits.
É por estas e por outras que decidi instituir um regime totalitário na minha viatura.

Amor Vulcânico

Francisca Prieto, 04.09.16

Este ano calhou ir aos Açores e passar de esguelha pela ilha do Faial. Fiz questão de visitar o Vulcão dos Capelinhos. Não porque me interesse particularmente por catástrofes naturais, mas porque me lembro de sempre ter ouvido dizer que o meu pai tinha sido um dos operadores de câmara destacados para cobrir o acontecimento. Em 1958, com a RTP a dar os primeiros passos da televisão em Portugal, lá embarcou o pai Zé António nesta aventura, com os parcos recursos que na época existiam.

Consta que foi durante as filmagens que tomou a resolução de casar com a minha mãe, de maneira que a boda se celebrou um ano mais tarde. Depois nascemos nós em escadinha, e ainda hoje permanecem juntos com um companheirismo e sentido de humor invejáveis.

Ora eu sou uma sentimentalona incorrigível, de maneira que, estando nas redondezas, não podia perder a oportunidade de visitar o local onde uma decisão deste calibre tinha sido tomada. Lá fui, com marido e filhos e, apesar da paisagem crua, não consegui deixar de me comover quando vi a minha filha Rita saltitar por entre as pedras com uma fita cor de laranja no cabelo. De alguma maneira, passados quase sessenta anos, dei com uma neta a marcar o amor dos avós, levando um traço de cor a este local de cinzas.

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