Na vida não é normal julgar as pessoas sem as conhecermos. Na política também não. Na vida, às vezes, temos a possibilidade de conhecê-las. Na política, na vida pública, na maioria das vezes, acabamos por nunca conhecê-las. Pensamos conhecê-las. O que não quer dizer que ao fim de alguns anos (ou horas) não as conheçamos de ginjeira.
Acontece que nessa mesma política o que fica registado dos que não conhecemos pessoalmente são as suas intervenções, as suas declarações, as suas entrevistas, os seus diplomas e os seus currículos. Isto é, dos que os têm. São essas pequenas coisas, esses detalhes, por vezes umas frases desgarradas, que nos permitem que os conheçamos melhor. Um pouco como se passa com os treinadores de futebol. Veja-se o que se está a passar com Carlos Queiroz, em que com excepção do próprio, que apenas considerou deselegante, e de Pinto da Costa, que achou normal, ninguém pensou que o seleccionador nacional se lembrasse de falar na mãe de um dos médicos da Autoridade Antidopagem de Portugal nos termos em que falou. Pode ser injusto, mas toda a gente se irá recordar disto, dos sopapos com que brindou um comentador em pleno aeroporto ou da forma como confundiu um polvo siciliano com uma taça de farófias.
Os exemplos na política são imensos. Alguns políticos há que conseguem ser mais conhecidos dos que outros. Seja por defenderem o sexo na horizontal, passarem a tese ao papel sob a forma de “poema” ou publicitarem os condomínios da linha de Sintra nas praias algarvias. O caso do neófito líder do PSD, Passos Coelho, arrisca-se a bater todos os recordes. Quando a uma pose de estadista e uma inteligência fulgurante se junta o privilégio de uma entrevista cristalina ao Expresso, o povo agradece, embora desconfie da esmola.
Durante anos resguardado da incidência directa das luzes, na sombra do partido, de Ângelo Correia ou de uma empresa, tomando cafés em bairros da periferia, Passos Coelho conseguiu ser político profissional, estudar, fazer uma “carreira” e disputar a liderança nos congressos do PSD até sair vencedor. Pelo caminho preparou-se para ser primeiro-ministro. Já o ouvi sublinhar. E por esta ordem. O que não será muito normal, apesar de haver quem considere isso mais meritório do que andar a assinar papéis na Câmara de Castelo Branco. A começar por todos aqueles que aceitaram ser liderados por ele e a acabar naquela equipa de sábios que integrou a comissão que apresentou uma proposta, projecto, ante-projecto, sei lá, uma coisa dessas, de revisão constitucional do PSD.
Este fim-de-semana, o Expresso ajudou-nos a conhecer um pouco melhor o homem que, criticando o actual primeiro-ministro, quer ocupar a cadeira do poder. Se quanto à crítica estamos de acordo, embora no meu caso isso me possa causar, e vá causando, alguns olhares reprovadores (enquanto não mandarem o Ramos Preto tratar de mim estou safo), já quanto à troca de lugares não estarei tão certo.
Vejamos então, alguns excertos, a todos os títulos notáveis, dessa peça, dada por quem fez questão de esclarecer publicamente que andou durante anos a preparar-se para ser primeiro-ministro:
“Já houve uma moção de censura e podíamos tê-la votado. Se quiséssemos derrubar o Governo ele já tinha caído”. A lógica desta afirmação é irrepreensível. Denota um esforço de adaptação do seu discurso ao estilo que ele próprio tem vindo a censurar em José Sócrates. A teoria do “se” que Passos Coelho aqui desenvolve aproxima-se da teoria da conditio sine qua non em matéria verificação do nexo de causalidade na responsabilidade civil. Paulo Teixeira Pinto ou Duarte Lima já lhe deverão ter explicado o que isto é na fase preparatória do seu líder. Seria o equivalente a José Sócrates dizer que “já houve uma diminuição no desemprego; se quiséssemos acabar com ele, o desemprego já não existiria”. Mas num contexto destes para que serviria uma moção de censura votada pelo PSD?
A resposta vem logo a seguir: porque é claro que quem não quer fazer cair o Governo, quem não quer assumir essa responsabilidade, não o faz cair. Pede a outro que o faça. Pede a alguém que por ele assuma as responsabilidades. Daí que quando questionado sobre a hipótese que deixou no ar de uma noite algarvia de eleições antecipadas tenha prontamente esclarecido que “foi uma intervenção profiláctica”.
Aqui está mais uma coisa em que Passos Coelho demonstra boa preparação. Todos sabem que uma intervenção profiláctica visa evitar um mal maior. Logo, quando Passos Coelho está a colocar condições (são só duas) para aprovar o próximo orçamento ou agitar o fantasma da dissolução do parlamento, está apenas a procurar evitar males maiores. Quer dizer; a ter intervenções profilácticas, porque na verdade ele não quer, no seu íntimo e no dos que o apoiam, chumbar o orçamento (“um, dois, três, longe vá o agoiro”, costuma dizer bem alto ao Zeca Mendonça, não vá Cavaco Silva ouvi-lo por interposta pessoa), nem quer que o parlamento seja dissolvido e haja eleições antecipadas. Por isso apelou à intervenção do Presidente da República e fixou-lhe (é de homem) nove de Setembro como data-limite para promover eleições antecipadas, assim acautelando a eventual não aprovação do orçamento. A data, alcança-se do raciocínio de Passos Coelho, é também ela uma data profiláctica. Comprovar-se-á esta tese dentro de três dias, visto que nem ele, nem ninguém (salvo José Lello, mas todos perceberam que isso é por causa de Manuel Alegre), quer eleições antes de 2013. Ele mesmo já confessou não ter pressa em chegar ao poder, confissão profiláctica que a todos no tranquiliza (e ao professor Marcelo) porque antes de 2013 não haverá eleições.
O brilhantismo do diagnóstico de Passos Coelho e da sua receita, que nisso leva a palma em relação aos que o antecederam na última década à frente do PSD, já se tinha feito sentir aquando da aprovação do PEC.
Os idiotas dos jornalistas ainda acreditaram que nessa ocasião o PSD estava preocupado com a situação do país, com o interesse nacional, e que por isso deixara passar o PEC. Até neste blogue houve quem ingenuamente acreditasse. A começar por mim. Nada de mais errado: “os deputados do PSD não aprovaram o PEC, abstiveram-se”. E, acrescentou, “deixaram claro que só o faziam por razões que tinham que ver com a nossa imagem externa”. Aqui temos uma outra vertente do seu pensamento. O país ficou a pensar que a abstenção do PSD, no tão criticado pacote que a todos nos lixou, era genuína. Nada de mais errado. Passos Coelho quis desfazer já todas as dúvidas. Trata-se de uma variante da forma como ele assume as suas responsabilidades: a abstenção profiláctica mantém o país na ignorância porque na sua essência estavam apenas preocupações de imagem. Externa. O importante é a imagem de José Sócrates na GQ, de Ferreira Leite na Vanity Fair, de Idália Moniz na Vogue e a de Cavaco Silva na Hola.
E o estilo profiláctico não deixou de fora a revisão constitucional. Ninguém esperaria outra coisa de um político deste jaez. Como também sublinhou na referida entrevista, a revisão só não foi avante porque “é verdade que o PSD não tinha o processo concluído”. E era suposto ter?, pergunto eu. Todos perceberam que se tratou de uma proposta profiláctica. O que o PSD queria era pôr as pessoas a discutir. Tanto assim que “o PSD empenhou-se pouco a explicar a revisão constitucional”. É óbvio. Só os imbecis do PS, do Bloco de Esquerda e do PCP é que não viram isto. Vá lá que o CDS desconfiou e ficou nas lonas. O faro político de Portas já então percebera a natureza profiláctica do debate. E o seu oportuníssimo timing. O CDS resguardou-se para os referendos. É que se o PSD se tivesse empenhado tinha requisitado Fernando Lima a Belém e o Mário Crespo à SIC, antes de colocar a proposta em “debate”. Foi o que ficou por dizer sobre esta matéria.
E tudo é tão claro que Passos Coelho esclareceu a razão de ser das alterações – profilácticas – que pretende introduzir em matéria laboral: “a maior parte dos empregadores associa à lei laboral uma morosidade tal para despedir alguém que prefere manter a precariedade a ficar amarrado aos contratos sem termo”. Como é que ainda não tinham visto isto? O Nuno Rogeiro anda numa visita guiada a Loulé, mas, que diabo, e o Pedro Lomba? Dorme na forma? Como foi possível? O que Passos Coelho quis dizer é que como os empregadores não querem gastar dinheiro a pagar indemnizações, sempre que querem despedir alguém sem justa causa, preferem optar por extinções “amigáveis” de postos de trabalho para depois contratarem, para desempenhar as funções extintas, uns fulanos a recibos verdes. Só que depois vêm os tipos dos sindicatos, das comissões de trabalhadores e da ACT e fica tudo encalacrado. É uma porra! Um patrão nunca mais se livra da embrulhada e arrisca-se a acabar como aquele empresário da Alisuper, irmão de uma senhora que governa Silves há uma data de anos com um olho no Castelo e outro na Fábrica do Inglês, metido em tribunais e com os bancos à perna. Uma chatice.
Pedro Santana Lopes deve sentir-se pequenino ao lado de um líder desta estirpe. Passos Coelho está tão bem preparado para ser primeiro-ministro que até o “defunto”, salvo seja, Marques Mendes já anda a fazer maratonas no caminho de e para a praia. Quem diria, o pequenino. E Nogueira Leite sentenciou os blogues ao ostracismo. A confiança num líder em ascensão é uma coisa linda. Percebe-se, pois, que Passos Coelho concluísse a entrevista ao Expresso com uma frase magistral, uma frase que reflecte a sua valia e constitui uma farpa em José Sócrates, uma verdadeira súmula do seu pensamento político: “só tenho convicções das coisas que conheço”.
Eu também. Das que não conheço proponho medidas profilácticas. E rezo. E quando ainda assim não é suficiente meto uma “cunha” ao ministro Teixeira dos Santos, peço € 100,00 emprestados ao BPN, e marco uma consulta no professor Bambo (não convém que se saiba, por causa do professor Leite Campos, mas quando estou à rasca o Bambo não me cobra o IVA). É que a gente nunca sabe o que nos espera. Por muito que nos preparemos.