O instituto falimentar*
John Jarvis era, de longe, o maior cliente, o mais antigo, e com o tempo tinha-se tornado num amigo – fins-de-semana no Algarve (em sítios que enfim, como por exemplo a Quarteira), em Lloret de Mar (que depois más-línguas me afiançaram ser local privilegiado dos gays que nem eu nem ele éramos) e encontros profissionais em Guimarães, Porto e a terra dele, que era Stockport, ou Londres aquando da feira local para os artigos que comercializava. Nunca assuntos de trabalho ocuparam mais de duas ou três horas; e nunca ficava menos de três dias, que ocupava a passear até ao momento grave que era o da escolha do restaurante.
Não que fosse difícil: peixe, marisco e quantidades assinaláveis de vinho branco, tudo arredondado à sobremesa com um Porto respeitável. De hotéis preferia os que tivessem um porteiro fardado de general; todos os meses viajava, mesmo que não houvesse razões ponderosas para o fazer; fazia-se acompanhar da secretária, e por isso sempre lhe reservei dois quartos single, até ao dia no Algarve em que por acaso descobri que ficavam apenas num; e nas opiniões, no aspecto, no comportamento, era um inglês da velha guarda que podia figurar num romance de Agatha Christie, no papel de um respeitável guarda-livros.
Uma vez telefonou-me para informar com admirável contenção que se iria apresentar à falência no dia seguinte. Sempre havia religiosamente pago a 90 dias, o seu volume de compras implicava uma dívida permanente vultuosa, e não havia seguro de crédito por (um saber de experiência feito) semelhante precaução só ser viável no caso de ser inútil. Tal comunicação originou uma momentânea falta de ar que, abençoadamente, não tinha na origem hábitos tabágicos. E daí parti para um curso acelerado do que é, em Inglaterra, a insolvência de uma PME.
O juiz nomeou no mesmo dia uma empresa para administrar a coisa. E esta, pouco mais de uma semana depois, enviou-me uma notificação informando de qual era o meu crédito registado, listando as existências em armazém e o respectivo valor contabilístico, bem como o preço de venda previsto caso a caso (uma percentagem daquele valor), esclarecendo quais os créditos garantidos e privilegiados (muito pouco para trabalhadores por, suponho, a firma ter um fundo de pensões privado), igualmente em detalhe, fixando um curtíssimo prazo para reclamação e solicitando ofertas, se houvesse interesse; e marcando uma reunião de credores, para o efeito da qual enviavam uma minuta de procuração, no caso de não poder ou não querer comparecer. Disse nada e cerca de um mês depois recebi o mesmo mapa com a indicação do que já havia sido vendido, e por quanto, incluindo nas contas a remuneração mensal daquela empresa e a parte, já paga, aos credores que passavam à frente.
Foi assim, mês a mês, até que à volta de um ano depois recebi, como os outros credores comuns, a parte que me cabia – cerca de 30% da dívida original. O restolho que ainda ficara fora vendido ao preço da uva mijona por se achar, com razão, que era sucata.
Exemplar, não é? – outro mundo. Entre nós os trabalhadores que, no papel, têm uma quantidade impressionante de direitos, veem-nos reconhecidos sem que todavia vislumbrem um cêntimo; os outros credores, se ao menos quiserem recuperar o IVA que suportaram em vendas cujo preço nunca receberam, têm um caminho de pedras à sua frente; um dia haverá um leilão onde – credo – não haverá cambões; e em todos os momentos as receitas obtidas ficam “à guarda do processo”, não vá rateios parciais originarem um recurso indevido ao consumo de bebidas perniciosas e frequentação de casas de meninas. Periodicamente, o administrador apresenta um relatório ao juiz, que o santifica com a sua aprovação, e quem quiser meter o nariz no processo o que tem a fazer é constituir advogado, que a condição de não perceber nada do assunto qualifica juízes e os ilustres causídicos mas os credores não.
Todas as empresas que insolvem têm activos que importa regressem o mais cedo possível à vida económica – arrastar os pés neste processo, favorecendo muitas coisas obscuras e pouco sadias, é equivalente a uma destruição deliberada de valor. E agora que se fala tanto de economia circular (uma repristinação do velho bordão salazarista “guarda o que não te faz falta, encontrarás o que te é preciso”), talvez o legislador devesse querer pôr os olhos nisto. Há dias a comunicação social anunciou que a IL conseguiu (com abstenção do PSD e voto contra do Chega!) eliminar a obrigação de colar no para-brisas o selo do seguro, ou seja, simplificar a vida do cidadão através da eliminação de uma exigência abusiva. Talvez a IL, já que está com a mão na massa de legislar o óbvio, queira olhar para isto: é matéria muito menos simples mas em que um módico de experiência, senso e conhecimento das realidades culturais e das práticas dos nossos tribunais no que toca ao instituto falimentar, poderiam obrar milagres. Vou mesmo mais longe: não é impossível que alguns economistas, em vez de se dedicarem a análises macroeconómicas invariavelmente erradas, pudessem fazer trabalho de mérito – e que Deus me perdoe por esta heresia.
Há dias foi detido um administrador de insolvência por uma vigarice qualquer – acontece de longe a longe. E pessoas de pouco siso julgarão que todos ou a maior parte dos casos chegam ao conhecimento do público e das autoridades. Erro de paralaxe mental, o mesmo quanto à corrupção e aos ratos: se vemos um numa casa é sinal de que há mais, diz-nos a experiência mas não os olhos.
Reformas precisam-se. Dou umas dicas: i) À tentação de copiar exemplos como o inglês só se deve ceder partindo do princípio que o que pode correr mal correrá – as nossas tradições de serviço público não são as inglesas; ii) A intervenção de juízes é necessária mas deve ser limitada a momentos cruciais (o inicial e o final) e eventuais conflitos insanáveis; iii) os líderes do processo devem ser, no papel do juiz, os credores, de preferência sem mediação de advogados; iv) Os poderes dos administradores devem ser consideravelmente coarctados, e os seus deveres reforçados. A delegação de poderes públicos em privados é desejável e eficiente desde que não se perca de vista que deve beneficiar o interesse dos lesados, e disso são estes os melhores intérpretes.