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Delito de Opinião

Carlos do Carmo, sílaba a sílaba

Pedro Correia, 04.01.21

 

O ano começou da pior maneira, logo no primeiro dia, com a notícia do falecimento de Carlos do Carmo, aos 81 anos.

Retirado dos palcos desde Novembro de 2019, o intérprete de Estrela da Tarde cantou Lisboa como ninguém. Como testemunham os inúmeros registos gravados da sua voz de timbre inconfundível, onde cada palavra se entendia na perfeição e cada sílaba soava de forma imaculada.

Ele não comia vogais. Nem mutilava consoantes.

 

 

«É um grande privilégio cantar a língua portuguesa», declarou o intérprete de Duas Lágrimas de Orvalho numa entrevista de 2016 à RTP conduzida por Fátima Campos Ferreira e em boa hora reposta em antena no canal público por estes dias. 

 

 

Neste dia triste de luto nacional em que lhe dizemos "até sempre", esta é a dimensão do seu legado que mais deve ser valorizada: o tributo que prestou à língua de Camões, Pessoa, Sophia, O' Neill e Cesariny. Tão desprezada, tão escarnecida, tão maltratada até por aqueles que tinham como dever cívico e obrigação institucional defendê-la. 

Vamos continuar a escutá-lo. Como ele merece. E o nosso belo idioma também.

Pedro Jóia e Mariza

Alexandre Guerra, 07.08.18
Pedro Jóia é um dos melhores guitarristas portugueses e um dos músicos nacionais mais sólidos na sua técnica e criatividade. De formação clássica, tendo estudado, inclusive, com o mestre Paulo Valente Pereira, e fortemente influenciado pelo flamenco, tem explorado a sua guitarra muito para lá desses estilos, não esquecendo o fado ou o jazz. Embora já conhecesse o seu trabalho, vi-o há uns anos ao vivo e fiquei impressionado pelo seu virtuosismo. Num texto de Nuno Pacheco, assinado hoje no Público, Pedro Jóia relembrava “Live… One Summer Night” (1984) de Paco de Lucía, como o álbum que o inspirou para se lançar na música. Curiosamente, este foi também um dos primeiros cds que comprei há muitos anos e que voltei a ouvi-lo. Uma maravilha.
 
Uma maravilha é também o tema “Quem Me Dera”, do mais recente álbum de Mariza, e que conta, precisamente, com o contributo de Pedro Jóia, com quem, julgo, trabalha há alguns anos. Uma relação que faz todo o sentido, porque foram, provavelmente, os primeiros dois músicos nacionais que fizeram com o fado tradicional aquilo que os espanhóis já tinham feito há uns anos com o flamenco original e os brasileiros (com a ajuda de Stan Getz), há décadas, com a bossa nova, ou seja, pegar na sua essência e dar-lhe uma nova roupagem, um som e uma linguagem mais actual.
 
Foi assim que Mariza colocou o fado no topo das tendências internacionais da “world music”. Mas não o fado tradicional. Mariza abriu caminho para um novo fado, com uma nova abordagem. Fenómeno semelhante já tinha acontecido com o flamenco ou a bossa nova, que começaram a ser exportadas para o resto do mundo em novos formatos, com “arranjos” que partiam de uma base original, mas eram depois cunhados pelos estilos contemporâneos dos artistas.
 
As aclamadas homenagens de Pedro Jóia aos guitarristas Armandinho e Carlos Paredes são um bom exemplo dessa transformação subtil. Aliás, só o simples facto de os arranjos serem feitos para guitarra clássica (na verdade, não é exactamente uma guitarra clássica tradicional) denota logo uma mudança substancial face ao som típico da guitarra portuguesa. Mas a essência do fado está lá, ouve-se, sente-se. A mesma essência que se impregna na nossa alma quando se ouve esta versão de “Quem me Dera", desprovida dos artifícios e de todos os efeitos de "estúdio". É apenas o talento e a paixão dos artistas...
 

O padrão

Sérgio de Almeida Correia, 19.08.14

Os nomes são o que menos importa, embora um deles seja de antologia. São casos que se repetem, aqui e ali, de cada vez que há lugares em disputa num partido. Ou porque moram todos na mesma casa, ou porque pura e simplesmente não existem e quem controla as estruturas de base de alguns partidos não tem idoneidade política, ética e moral para andar por lá. Mas, apesar disso, continua a gozar do apoio dos compinchas, da protecção dos que dependem e dos seus votos, e dos dirigentes que enterrando a cabeça na areia lhes vão aparando os golpes. À socapa.

É um padrão que se repete de Norte a Sul e que não é exclusivo dos partidos. Olhe-se para a banca. Veja-se o que se passa em muitas grandes empresas e até na gestão das finanças de algumas autarquias. Assumem formas moluscóides que se reproduzem com grande facilidade em determinados meios e gozam de aceitação e condescendência social. Da família da alta finança, cujos filhos estudaram na Suíça, ao laparoto da concelhia do partido que quer garantir a senha de presença e os "contactos" na assembleia da terriola, salvo raríssimas excepções de meia dúzia de postergados que preferem o anonimato e a desesperança a terem de vergar, o modelo aplaudido é sempre o mesmo. Com ou sem variantes.

Aquilo que devia dar cadeia justifica-se com o facto das eleições serem concorridas, a dimensão do negócio, a interpretação mais favorável ou o currículo do candidato que por acaso, e só mesmo por acaso, é filho de quem é. As regras que se acomodem. Nós somos assim e temos orgulho em ser assim. Estamos conversados.

Tempo houve em que a culpa era dos fascistas. Depois passou a ser do Otelo e dos comunistas. De caminho foi dos retornados, antes de passar a ser da abstenção e da União Europeia, e de dar lugar à Constituição, ao BPN, ao BES, sem esquecer a Lusófona, a Internacional, a Lusíada, e toda a série de falcatruas, cambalachos e maroscas que tomou conta do país e encheu os bolsos de quem manda. Agora estamos no ponto em que a culpa é da participação. A malta entusiasma-se, quer participar, e aqui vai disto. É o salve-se quem puder.

Podem continuar a fazer reformas como até aqui, a promover primárias, directas, prós e contras, comissões de inquérito, novos acordos ortográficos, a constituir fundações e a endeusarem desportistas ricos, que sendo muito bons no que fazem não deixam de ser quem são, e miúdas giras. Daquelas que usam telemóvel "xpto" com a boca cheia e levam a faca à boca enquanto mostram os aveludados seios fartos nos matutinos e revistas da sociedade.

Enquanto permitirem a sobrevivência do modelo, enquanto tivermos um padrão que é intrínseca e estruturalmente desonesto em quase todas as suas manifestações, tudo continuará recorrentemente como até aqui. E para o caso é irrelevante que estejamos a falar do primeiro magistrado da nação, do diplomata jubilado que assessora autarquias e promove "golden visas" para chineses ou de um trolha. A pobreza sente-se na bolsa, na vida, no quotidiano noticioso, nas declarações dos dirigentes, nos casos do dia. Da política ao desporto.

Não há, não pode haver, nunca haverá excelência, rigor, educação, cultura, decência, numa palavra apenas, civilização, entre ervas daninhas. Se não matarem o padrão; enquanto, parafraseando o Rui Rocha, não se livrarem do cabrão lusitano não entrarão no reino dos céus. Por mais que gemamos a cantar o fado ninguém terá piedade de nós.

Modo de Vida (22)

Adolfo Mesquita Nunes, 02.12.11

Cheguei atrasado ao fado, um pouco como quem se encontra na religião depois de a ter negado. Não dou grande importância ao atraso, até porque permitiu a boa sofreguidão na descoberta, mas não o nego. Não entendo por isso aqueles que, de uma década para a outra, fingem nunca ter desdenhado a coisa. E desdenhado é favor, que houve quem fosse saneado ou esconjurado ou relegado só por, na linguagem de agora, ter dado voz ao sentir português.

Fado, património do mundo

Ana Vidal, 27.11.11

 

É oficial: o Fado foi reconhecido pela UNESCO como Património Imaterial da Humanidade. Estão de parabéns todos os portugueses, quer gostem ou não deste género musical. E estão de parabéns, particularmente, os principais impulsionadores desta candidatura, com especial destaque para Rui Vieira Nery.


Por mim, ergo com muito gosto a bonita guitarrinha estilizada que recebi na homenagem que a Sociedade Portuguesa de Autores fez recentemente a todos os que de alguma forma estão ligados ao Fado: autores, intérpretes e instrumentistas. É uma honra fazer parte desse universo.

"O Fado" (1910)...

João Carvalho, 26.11.11

... de José Malhoa (1855–1933), é uma bela representação das origens e ambientes mais tradicionais e tantas vezes marginais do fado.

 

 

O fado está também representado no DELITO DE OPINIÃO pela nossa Ana Vidal, autora de belos poemas musicados e cantados por vozes fadistas de primeira água.

O génio de Fontes Rocha

Pedro Correia, 22.08.11

 

Há uma semana, aos 84 anos, deixou-nos para sempre José Fontes Rocha - o maior génio vivo da guitarra portuguesa. Tal como sucedia com Carlos Paredes, este instrumento musical era nele o complemento perfeito das próprias mãos, tornando-se um objecto mágico que dedilhava com insuperável perícia.

Tive a sorte e o privilégio de escutar ao vivo a arte de Fontes Rocha na fase culminante da sua carreira, quando integrava o Quarteto de Raul Nery acompanhando Amália Rodrigues pelos palcos mais prestigiados do mundo (incluindo o Lincoln Center, em Nova Iorque). Poucos anos antes essa arte ficara bem expressa -- e acessível às gerações futuras -- naquele que é não só o melhor álbum de Amália mas o mais deslumbrante disco desde sempre editado com música portuguesa: Com Que Voz. Os extraordinários dotes interpretativos e vocais da fadista casavam na perfeição com o exímio talento de Fontes Rocha, a quem os guitarristas mais jovens justamente chamavam mestre.

Num característico sinal dos tempos, não li um obituário digno do seu papel na nossa música em nenhum dos principais jornais portugueses, todos muito entretidos com as habituais irrelevâncias de Verão. Até por isso lembro, em jeito de contraste, um magnífico documentário que vi recentemente na RTP 2 intitulado As Cordas de Amália, da autoria de Cristina Margato. Um documentário que reunia Fontes Rocha (então com 82 anos), Raul Nery (88) e Joel Pina (89) lembrando em conjunto os tempos áureos em que acompanhavam Amália pelo mundo. Fala-se agora tanto na necessidade da definição de serviço público de TV: este documentário, para mim, é um exemplo de relevante serviço público. Tal como a magnífica série documental sobre a guerra de África (1961-75) rodada por Joaquim Furtado, ou a biografia televisiva em três episódios de José Afonso assinada por Joaquim Vieira, com um belíssimo título: Maior que o Pensamento. Ou um recente documentário sobre a vida e obra de Vitorino Nemésio que vi também na RTP2. Ou um debate moderado por Paula Moura Pinheiro entre Fernando Pinto do Amaral e Eugénio Lisboa a propósito de David Mourão-Ferreira, esse poeta hoje tão injustamente esquecido. Ou Filipa Melo, em Nós e os Clássicos, à conversa com Jorge Silva Melo sobre um dos melhores romances portugueses do século XX: Húmus, de Raul Brandão. Ou Filipa Leal declamando de modo insuperável o poema Portugal, de Alexandre O'Neill.

Isto é serviço público.