As análises eleitorais apreciam as percentagens, mas o número total de votos ajuda a visualizar factos escondidos. Exemplo: em dez anos, o País perdeu quase 600 mil eleitores. Nas legislativas de domingo votaram menos de 5,1 milhões de pessoas, o menor valor em duas décadas. Ora, em 2009 e 2005, o número de votantes andou em redor de 5,7 milhões. As taxas de abstenção em percentagem são, portanto, uma ilusão. Claro que muitos portugueses emigraram e a população está em queda, mas isso não justifica o desaparecimento de 10% dos eleitores em dez anos e de 3% nos quatro últimos. Só há uma explicação: a abstenção subiu.
Nos valores absolutos há outros dados: o PSD perdeu cerca de 740 mil votos em relação a 2011 e os partidos que fizeram a gerigonça perderam, no total, 55 mil votos em quatro anos. Sim, ao contrário do que foi dito, a geringonça perdeu eleitores, à custa sobretudo do Partido Comunista, que teve o seu pior resultado do século. Neste domingo, a direita tradicional teve também, de forma objectiva, o seu pior resultado. Não há volta a dar: com 1,4 milhões de votos, Rui Rio conseguiu atingir os mínimos do PSD.
Pelo lado dos vitoriosos, o triunfalismo não parece adequado. Em 1999, o PS venceu as eleições com 2,3 milhões de votos e foi o pântano; desta vez, os socialistas ganharam com 1,8 milhões de votos e, sendo minoritários, dispõem de várias combinações de poder. Tudo mudou, mas a erosão socialista continua. O PS ganhou 300 mil eleitores em relação a 2011, mas esse foi o ano da bancarrota. Embora tenha recuperado um pouco, António Costa está neste momento ainda a 720 mil votos do máximo da maioria absoluta de José Sócrates. Com um acréscimo de 120 mil após quatro anos de Governo, o PS ficou 130 mil eleitores abaixo da barreira dos 2 milhões. Até agora, todos os vencedores estiveram acima desse limite (2015 foi o ano em que a regra se perdeu, já que a governação caiu nos braços do segundo partido).
Por outro lado, tornou-se mais fácil entrar no parlamento: os três novos partidos parlamentares tiveram em redor de 65 mil votos cada, mas o BE entrou em 2002 com 132 mil. Obviamente, os eleitores vivem em regiões urbanas e a campanha concentra-se nas regiões onde não existe voto útil, mas parecem resultados frágeis, mesmo que estas formações cresçam, como aconteceu com o PAN e os próprios bloquistas. Apesar de ter perdido 58 mil votos face a 2015, o Bloco de Esquerda continua a ser um partido em crescimento, pois em vinte anos triplicou a votação. O melhor resultado foi em 2009, com a atracção de eleitores que provavelmente tinham contribuído, quatro anos antes, para a maioria absoluta dos socialistas (2,6 milhões de votos, o melhor resultado partidário do século).
Os números também sugerem que não há bipolarização, pelo contrário, existe fragmentação. Longe vão os tempos em que o arco da governação dominava o sistema. Somando PS, CDS e PSD desde 1999, obtém-se um número sempre superior a 4 milhões de votos, excepto a partir de 2015, quando os partidos de poder começaram a perder fôlego. Nas legislativas de 2019, o trio da elite não foi além de 3,5 milhões de votos, havendo 1,6 milhões nos restantes partidos, que podemos definir como de protesto: dito de outra forma, o protesto passou de 15% em 1999 para 31% em 2019. E, em duas décadas, os partidos da governação perderam um milhão de votos.
Em resumo, estas eleições tiveram menos eleitores, deram origem a maior fragmentação do parlamento, representaram os piores resultados da direita numa geração e acentuaram a tendência de redução do espaço dos partidos tradicionais, um dos quais, o CDS, luta pela sobrevivência. Com o descontentamento a crescer e o voto de protesto a consolidar-se, a democracia pode já estar em crise ou mudança.