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Delito de Opinião

Desigualdades da pandemia

Luís Naves, 30.11.20

Os trabalhos precários foram os primeiros a ser extintos, começa a falar-se de fome. Os que tinham posições bem remuneradas continuam a ter empregos bem pagos, os outros vão passar dificuldades. Na desigualdade da pandemia, há dados sobre o que se passa na América e não deve ser diferente da nossa realidade. Sabe-se que muitas pessoas deixaram de conseguir pagar comida, rendas, escola ou contas de electricidade. Em contraste, os milionários que se confinaram nas suas fortalezas enriqueceram, pois desta vez a crise não atingiu a riqueza em bolsa. A massa salarial total anterior à pandemia ficou mais ou menos na mesma, mas o número de desempregados aumentou em sete milhões (chegaram a ser mais 18 milhões nos EUA). Ao mesmo tempo, entre Março e Outubro, os 644 bilionários americanos enriqueceram 931 mil milhões de dólares, mais um terço do que tinham. Sozinho, Jeff Bezos ganhou 90 mil milhões com esta crise, quase metade do PIB português. Em resumo, está a decorrer uma gigantesca transferência de riqueza, semelhante à que ocorreu após a crise de 2008, mas muito mais rápida. Isto soma-se a um processo profundo e inquietante. Entre 1940 e 1970, nos EUA, houve um paralelismo exacto entre os aumentos de produtividade e o aumento dos salários. Depois, começou uma estranha divergência. Entre 1979 e 2018, a produtividade americana cresceu 69,6%, mas os salários apenas 11,6%. Esta parece ser a origem do descontentamento contemporâneo e a notícia é que vem aí uma nova vaga: o mundo está a partir-se entre confinados e desconfinados, entre consumo de luxo e consumo intermitente, entre os que têm voz e os que não têm.

O cartel do pensamento

Luís Naves, 15.11.20

Sempre me perguntei: para quê escrever quando as nossas palavras são iguais às dos outros? Infelizmente, a pergunta não é deste tempo, em que acelera o fecho das mentes. As opiniões de hoje são de tal maneira idênticas entre si, que se torna difícil aceitar convicções fora de limites estreitos. Existe uma espécie de cartel do pensamento que combate ferozmente as teses heterodoxas. Por outro lado, assistimos a um fenómeno de banalização, em que triunfa a informação fútil e onde muitos falam de cátedra sobre coisas que não compreendem. O ambiente é propício a manipulações, teorias da conspiração e cepticismo. Também vivemos numa época má para a resistência. As pessoas parecem ter receio de participar em discussões e desconfiam à partida da fiabilidade das informações que lhes chegam pelos canais tradicionais, cada vez mais fragmentados. Foi o que aconteceu no antigo regime, o público sentia-se enganado e não acreditava naquilo que lia. O que nos leva a um incidente menor. Ontem, pessoas que se manifestavam contra o recolher obrigatório ameaçaram agredir um jornalista. O repórter teve de abandonar o local protegido pela polícia, apenas porque o seu cálculo do número de presentes não coincidia com o palpite de quem protestava. Ao desconfiarem do mensageiro, os ingénuos manifestantes perderam uma oportunidade para debater a questão que motivava o protesto. A frustração não os fez avançar um milímetro. O que estava em causa era como preservar um sector vital da economia evitando a desordem e contendo ao mesmo tempo a expansão de um vírus perigoso. Há milhares de restaurantes em perigo de fechar nas próximas semanas ou meses? Empregos e negócios ameaçados? O que se pode fazer? Aparentemente, os meios de comunicação ainda não levam nada disto a sério e o público parece apático. E aqui chegamos à outra faceta do mundo contemporâneo: a hipocrisia. Se formos ao fundo da rua, ao restaurante que frequentamos, estaremos solidários com o proprietário, vamos lamentar que ele despeça um dos empregados e achar mal que aumente os preços. Depois, quando fechar portas, encolhemos os ombros e dizemos cá para nós, em voz baixinha: ‘que pena, aquele sítio era tão porreiro’. 

Analogias

Luís Naves, 14.11.20

Nos meios de comunicação e textos de opinião são feitas frequentes analogias entre o nosso tempo e os anos 30 do século passado. No entanto, ao contrário do que aconteceu nessa década, não temos movimentos fascistas e comunistas com força para derrubar o sistema democrático nem crise económica suficientemente devastadora para justificar tais movimentos; não há países humilhados em tratados internacionais nem necessidade de inverter derrotas militares ou de ocupar territórios vizinhos. A luta de classes está desacreditada e a ideia de raça superior é ridícula. O capitalismo e a democracia não mergulharam em crise existencial e o totalitarismo não encanta nenhuma alma. Assim, o paralelo mais correcto parece ser com 1900. O nosso sistema é marcado por mudanças tecnológicas, má distribuição da riqueza, rupturas culturais, oligarquias em torres de marfim, globalização acelerada, direitos humanos ao serviço da ideia imperial, bons e os maus nacionalismos, legião de descontentes, aceleração das comunicações e triunfo do capitalismo sem fronteiras. Há ONG de hoje que parecem missionários de 1900, temos também radicais anarquistas, terrorismo de baixa intensidade, corrida aos armamentos e equilíbrio de poder entre dois grupos de impérios. As semelhanças são fantásticas. Por isso, torna-se mais estranha a desajeitada fixação nos anos 30. Qual é o objectivo de agitar este fantasma? Talvez seja a intenção de desvalorizar o voto de milhões de pessoas que tentam contestar o poder surdo das oligarquias. A nossa democracia corre o risco de ser subvertida não por grupos radicalizados que defendem tirania estatal ou a teoria da raça superior, mas por liberais que querem suprimir o voto do povo ignorante e criar uma sociedade dividida racialmente, sem fronteiras e com salários sempre baixos, com a gente comum agarrada à droga da dívida eterna.

O segundo Carter

Luís Naves, 07.11.20

Não seria surpreendente que Donald Trump viesse a ser visto no futuro como uma espécie de Richard Nixon, um presidente que suscitou ódios tremendos e saiu pela porta pequena, mas que fica na História dos EUA por três motivos demasiado sérios: a saída do padrão ouro, a viagem a Pequim e a negociação do fim da guerra do Vietname. Estes três acontecimentos estão entre os mais importantes da segunda metade do século XX e abriram caminho a uma época de prosperidade, ao triunfo na guerra fria, à alteração radical do equilíbrio de poder e à ascensão económica da China. Além da importância histórica destes momentos, os republicanos recuperaram do escândalo Watergate em apenas cinco anos, a ponto de conseguirem uma maré vermelha que elegeu Ronald Reagan. Na segunda metade da década de 70, a América viveu dias difíceis, com o descrédito das instituições, a inflação galopante, os choques petrolíferos e a estagnação da economia. O presidente deste período, Jimmy Carter, foi talvez o pior da série da Era pós-45. É possível fazer uma analogia parcial com o presente: Trump sai pela porta baixa, mas travou o processo de globalização, possivelmente a acção política mais relevante das duas primeiras décadas deste século. Sendo um dos presidentes mais odiados de sempre, ele conquistou milhões de americanos que se consideram prejudicados pelo sistema que ajudou à sua derrota. Quanto a Joe Biden, tem tudo para ser uma espécie de Carter, pois é o mínimo denominador comum em que assentam as ambições dos múltiplos grupos que o elegeram. Num contexto de crise geral, o homem forte foi humilhado, entra o homem fraco, o ressentimento fará o resto.

Trapalhada e perigo

Luís Naves, 06.11.20

Está a terminar a contagem dos votos nos Estados Unidos e Joe Biden prepara-se para vencer a Casa Branca, por margem mínima, talvez com irregularidades à mistura. Esta vitória parece ser o triunfo da máquina sobre a emoção. Trump representa uma rebelião de eleitores que se consideram vítimas do sistema, desencadeou devoção e ódios na mesma proporção, foi torpedeado sem contemplações. Biden é um político profissional que usou de forma habilidosa as ferramentas ao seu dispor. As manifestações nunca passaram certos limites de violência, a politização da pandemia foi a grande oportunidade, a tudo isto somou-se o voto por correspondência, mecanismo pouco seguro, onde o aparelho político terá sido decisivo. O Partido Democrático tem agora de pagar as facturas e esta pode revelar-se a parte difícil, pois parece que os dirigentes não aprenderam e vão preferir o ajuste de contas com a era Trump e com os deploráveis que votaram no presidente derrotado. Se Biden venceu, tem uma enorme dívida com os afro-americanos, mas não se vê como pode satisfazer esta comunidade. É também interessante verificar (e não é só Trump a dizer isto) que o Partido Republicano pertence agora aos trabalhadores e o democrático é o das elites, a América virada ao contrário. Se o processo não descarrilar na fase judicial, tudo indica que os americanos terão um líder idoso, com passado sem brilho, que fará avançar interesses não eleitos: o poder financeiro, a comunidade de espiões e diplomatas, o negócio das novas tecnologias, os barões da globalização desenfreada e os ideólogos e propagandistas da contracultura. Biden não entusiasma ninguém e o mais certo é não completar o mandato. O que estas eleições também revelam é um problema mais profundo da América: será o quinto presidente consecutivo com escassas qualidades pessoais. A intervenção de Trump, ontem, só confirmou a crise institucional: nunca se viu nada assim, um presidente tratado como se fosse líder da oposição numa ditadura, a acusar os adversários de fraude em larga escala. Se for verdade, a democracia está em perigo; se for mentira, isto é uma trapalhada sem nome. 

O ataque dos índios

Luís Naves, 30.10.20

Nos melhores westerns costuma haver uma cena em que uma das personagens diz qualquer coisa inócua, seguindo-se a brutal irrupção do ataque dos índios. Em Stagecoach, de John Ford (um dos exemplos) alguém que viaja na diligência diz aos outros passageiros: como não nos voltamos a encontrar, proponho um brinde. Todos concordam, ele está a beber da sua pequena garrafa, de repente ouvimos um som sibilante e o velhinho mais simpático do grupo cai morto e trespassado por uma seta. A ideia do filme é desviar a atenção do perigo para, de súbito, podermos ser surpreendidos. Funciona muito bem na narrativa, mas na vida real é uma coisa patética. Ontem, houve um atentado islamista em Nice: um terrorista entrou numa igreja católica e esfaqueou várias pessoas, matando três. O caso está a causar certa comoção, porque a França esteve sob fortes críticas das autoridades de países muçulmanos (incluindo o presidente turco) a propósito dos supostos excessos retóricos na reacção à morte de um professor de liceu, degolado há uma semana por um islamista, após ter mostrado as caricaturas de Maomé na aula. A indignação dos fanáticos nem se entende bem, pois a resposta francesa foi a do costume, com manifestações e discursos, vigílias e textos indignados, muitas palavras, mas nenhuma acção concreta. Pelo contrário, houve tentativas de relativizar o problema, como se o país não estivesse sob o ataque de fanáticos. Um bispo português, num twitter mais do que lamentável, culpava os europeus por não respeitarem as religiões (ainda bem que isto não foi na igreja dele). Um comentador da rádio pública fazia uma salgalhada entre o ataque do terrorista em Nice e a defesa que os conservadores polacos estão a fazer das suas igrejas, no contexto da contestação ao tribunal constitucional da Polónia, que emitiu uma decisão controversa sobre a lei de aborto, desencadeando manifestações contra os católicos. Para este radialista, em ambos os casos estamos perante o mesmo tipo de obscurantismo religioso. É cada vez mais evidente que nós, europeus, capitulámos na defesa da nossa liberdade. De alguma forma perversa, a culpa é nossa, por não sermos suficientemente tolerantes com estes maluquinhos que nos querem cortar a goela. Deixámos de entender o perigo que enfrentamos e, provavelmente, esta é uma excelente altura para surgir alguém a propor um brinde, já que é improvável que nos voltemos a encontrar.

Alguns números

Luís Naves, 07.10.19

As análises eleitorais apreciam as percentagens, mas o número total de votos ajuda a visualizar factos escondidos. Exemplo: em dez anos, o País perdeu quase 600 mil eleitores. Nas legislativas de domingo votaram menos de 5,1 milhões de pessoas, o menor valor em duas décadas. Ora, em 2009 e 2005, o número de votantes andou em redor de 5,7 milhões. As taxas de abstenção em percentagem são, portanto, uma ilusão. Claro que muitos portugueses emigraram e a população está em queda, mas isso não justifica o desaparecimento de 10% dos eleitores em dez anos e de 3% nos quatro últimos. Só há uma explicação: a abstenção subiu.
Nos valores absolutos há outros dados: o PSD perdeu cerca de 740 mil votos em relação a 2011 e os partidos que fizeram a gerigonça perderam, no total, 55 mil votos em quatro anos. Sim, ao contrário do que foi dito, a geringonça perdeu eleitores, à custa sobretudo do Partido Comunista, que teve o seu pior resultado do século. Neste domingo, a direita tradicional teve também, de forma objectiva, o seu pior resultado. Não há volta a dar: com 1,4 milhões de votos, Rui Rio conseguiu atingir os mínimos do PSD.
Pelo lado dos vitoriosos, o triunfalismo não parece adequado. Em 1999, o PS venceu as eleições com 2,3 milhões de votos e foi o pântano; desta vez, os socialistas ganharam com 1,8 milhões de votos e, sendo minoritários, dispõem de várias combinações de poder. Tudo mudou, mas a erosão socialista continua. O PS ganhou 300 mil eleitores em relação a 2011, mas esse foi o ano da bancarrota. Embora tenha recuperado um pouco, António Costa está neste momento ainda a 720 mil votos do máximo da maioria absoluta de José Sócrates. Com um acréscimo de 120 mil após quatro anos de Governo, o PS ficou 130 mil eleitores abaixo da barreira dos 2 milhões. Até agora, todos os vencedores estiveram acima desse limite (2015 foi o ano em que a regra se perdeu, já que a governação caiu nos braços do segundo partido).
Por outro lado, tornou-se mais fácil entrar no parlamento: os três novos partidos parlamentares tiveram em redor de 65 mil votos cada, mas o BE entrou em 2002 com 132 mil. Obviamente, os eleitores vivem em regiões urbanas e a campanha concentra-se nas regiões onde não existe voto útil, mas parecem resultados frágeis, mesmo que estas formações cresçam, como aconteceu com o PAN e os próprios bloquistas. Apesar de ter perdido 58 mil votos face a 2015, o Bloco de Esquerda continua a ser um partido em crescimento, pois em vinte anos triplicou a votação. O melhor resultado foi em 2009, com a atracção de eleitores que provavelmente tinham contribuído, quatro anos antes, para a maioria absoluta dos socialistas (2,6 milhões de votos, o melhor resultado partidário do século).
Os números também sugerem que não há bipolarização, pelo contrário, existe fragmentação. Longe vão os tempos em que o arco da governação dominava o sistema. Somando PS, CDS e PSD desde 1999, obtém-se um número sempre superior a 4 milhões de votos, excepto a partir de 2015, quando os partidos de poder começaram a perder fôlego. Nas legislativas de 2019, o trio da elite não foi além de 3,5 milhões de votos, havendo 1,6 milhões nos restantes partidos, que podemos definir como de protesto: dito de outra forma, o protesto passou de 15% em 1999 para 31% em 2019. E, em duas décadas, os partidos da governação perderam um milhão de votos.
Em resumo, estas eleições tiveram menos eleitores, deram origem a maior fragmentação do parlamento, representaram os piores resultados da direita numa geração e acentuaram a tendência de redução do espaço dos partidos tradicionais, um dos quais, o CDS, luta pela sobrevivência. Com o descontentamento a crescer e o voto de protesto a consolidar-se, a democracia pode já estar em crise ou mudança.

O baile do acaso

Luís Naves, 31.08.19

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Sempre me fascinou aquela ideia de que existem almas gémeas para cada um de nós e nestes dias modernos até se escrevem algoritmos para tentar iludir o grande baile do acaso em que vivemos e onde é possível que dois parceiros ideais se cruzem muitas vezes no meio da multidão sem jamais se encontrarem de facto. Há quem se apaixone em numerosas ocasiões na vida, há quem infelizmente não tenha ilusões sobre o amor, cada um sofre à sua maneira. Um dia, de forma cruel, podemos encontrar a nossa alma gémea já em fase adiantada dos anos e podemos talvez pensar no que teria acontecido se o destino nos fizesse encontrar a ambos mais cedo, mas será demasiado tarde para desfazer o que foi, as crianças que nasceram e cresceram em vez das que nunca existiram, as memórias que ficaram em vez das que nunca foram inventadas. Sempre me fascinou este mito enraizado de se esconder na escuridão furtiva do tempo aquela pessoa perfeita que era só para nós. Sempre me fascinou o mito de que há uma estação do nosso caminho onde fatalmente nos devemos encontrar os dois, desviando cada um a sua linha de vida, para ser tudo divino até à estação terminal onde morreremos tranquilos, na beatitude do amor autêntico e completo, o único que não passando pelas coisas corriqueiras da biografia humana é, por isso mesmo, inatingível.

Murmúrios e sussurros

Luís Naves, 29.08.19

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Não me interpretem mal, o sol brilha até com excesso de intensidade e vemos pessoas felizes ou em boa disposição; abrimos as redes sociais e chegam numerosos ecos de vidas satisfeitas e preenchidas; pelas televisões encontramos gente cheia de certezas e os políticos falam com confiança sobre o futuro, que tratam por tu. No entanto, por todo o lado há certos sinais ligeiros de inquietação, como se estivéssemos dentro de um romance negro, um mau romance, digo eu, pois o autor não soube colocar na paisagem brumas perturbadoras, nem o barulho alternado de remadores que se aproximam por um mar invisível, nem vozes sussurradas capazes de despertar receios. Esta história mal contada tem apenas alguns sinais ambíguos de pessoas desconhecidas que nos aparecem de súbito à frente, aparentemente desesperadas ou já sem fôlego; ou aqueles fantasmas que se arrastam sem destino pelos centros comerciais em busca do ar condicionado; ou aqueles velhos muito pobres, tão pobres que nunca fazem de pedintes. Por todo o lado vemos estes pequenos sinais que já não são notícia, da empresa em dificuldades que provavelmente terá de fechar, das vidas gastas, dos alucinados que se põem aos gritos na via pública, enquanto o mundo satisfeito mergulha nas importantes discussões da influência e no triunfo da futilidade.