Onde a ironia toma conta; Laura compensa o vazio; os recados estão pela casa; o silêncio é a solução;tudo não passa; a vergonha pode impedir a acção; Paulo ouve uma doente; a mãe quer salvar o filho mais novo; uma confronta e a outra segue o mesmo modelo; o mar é infinito; tudo ainda pode acontecer; se esclarece o básico;
ficar pendurada é a realidade; o verbo confrontar não se desfaz; se conhece melhor a peça; Jaime berra sem dizer nada; Martim é personagem principal; a traição é fundadora; um acidente é fatal; a conversa é recordada; o futuro é um lugar imediato
Paulo podia ligar a Carmen mas para isso seria preciso ter o número de telemóvel da ex namorada do irmão, a ex namorada de um período longo, mesmo muito longo. Mas ele preferira ignorá-la. Maldizê-la. Não quis ver nada de bom em Carmen e, de ressaca, incapaz de dormir, bebendo cafés duplos na pastelaria do costume, a tentar acertar quantas consultas podia desmarcar, sentiu-se infantil. Precisava de saber o número daquela mulher.
Jaime tinha dois dias de férias. Estavam marcados há muito tempo. Deitara-se tarde, andara por aí e, pelas duas da tarde, tomou duche e decidiu que precisava de ver a mãe. Não havia nenhuma razão. Geralmente, visitava-a ao sábado, uma vez por mês. Não era muito, não era pouco, era o possível. Paulo raramente ia. Falavam ao telemóvel, explicava-lhe o irmão como se fosse natural. Jaime sabia que Laura lhe tinha falhado há muito tempo – porventura falhara aos dois, mas Jaime preferia não o entender assim. Estacionou a dois quarteirões da casa da mãe.
Laura não estava preparada para nenhuma visita. Não era sábado. A casa estava a desfazer-se, os dois gatos miavam à volta da tijela de água. O cabelo estava por lavar. O odor que saía dela era algo incompatível com a ideia que se tem de uma mãe. Jaime olhou à volta e percebeu várias coisas. O terceiro marido não vivia ali. Por todo o lado, em vários móveis, estão fixos post it com frases como
Comer
Lavar os dentes
Dar de comer aos gatos
Sábado Jaime
Era o caos. Laura tentou não olhar o filho mais novo, apressou-se a retirar algo de cima do sofá, um monte de coisas que Jaime não entendeu o que eram. Entre eles o espaço para palavras tinha sido eliminado. Incapazes de dizer. Confuso, Jaime deu água aos gatos. Tirou o casaco e começou a arrumar. Não sabia o destino da maioria das coisas e esse desentendimento com o mundo da mãe, levou-o a um caos ainda maior: cada gaveta era uma surpresa, um susto. Um cheiro repugnante vinha de algures. Laura manteve-se no sofá e, por momentos, fez-se adormecer.
Havia comportamentos distintos dentro dela. Era capaz de distinguir os ruídos do filho que arrumava a casa. Sentia um dos gatos, provavelmente o Baltazar, que se aninhara perto do seu corpo. Não precisava de se esforçar muito para relembrar os filhos a brincar na praia. Teriam cinco anos, talvez seis. Sim, o Paulo já andava na escola, era um menino bem comportado, sempre atento ao irmão. Tinha exigido dele o que ninguém podia imaginar e isso, só isso, a consumia com uma culpa que era galopante. Não passava, desobedecendo a essa crença universal de que tudo passa.
Jaime considerava se deveria telefonar ao irmão. Afinal, era o especialista, como é que ele dizia? Especialista em saúde mental. O que seria isso, numa equação exacta, lógica, matemática, Jaime desconhecia. Ser saudável era ter o colesterol equilibrado, não era estar isento de pensamentos, ideias, impulsos negativos. Saúde mental. Matutou no termo enquanto fazia a cama da mãe de lavado. Tinha a máquina da roupa já cheia, teria de esperar. A visita prolongar-se-ia até ao infinito. Jaime sentiu-se infeliz. Quis telefonar ao irmão. Teve vergonha.
Paulo tentava explicar à sua paciente que o melhor seria rever a matéria dada. Na verdade, o que lhe apetecia dizer era
Conheço a sua tipologia de ginjeira.
Mas não o disse. A mulher à sua frente ainda tinha auto-estima. O casaco combinava com a mala, os sapatos de salto alto estavam impecáveis, não eram sandálias de borracha. Podiam ser. Ela não era ainda um farrapo, era apenas alguém que precisava de uma reorganização, de ver a vida através de outra janela, outra perspectiva. E foi isso que Paulo foi afirmando, aqui e ali interrompendo o discurso perto do lacrimejante, até que passaram os sessenta e cinco minutos, os minutos da sessão e a tolerância, e teve de se despedir.
Laura, no sofá, pegou no telemóvel e escreveu
O teu irmão está cá. A casa está uma desgraça. Eu também. O teu irmão vai ficar desfeito, tens de o vir buscar. Desculpa.
Não esperava uma resposta. Paulo era demasiado contido para responder, como se as palavras nunca coubessem realmente no sentido pretendido. Laura ficou só à espera que chegasse. Jaime continuou a arrumar. Silencioso.
Uma das teorias de vida que as unia: enfrentar. Carmen e Carlota já tinham perdido a conta ao número de vezes que relataram, nos tais almoços regulares, os confrontos com A ou com B, a necessidade de ver e analisar o problema. De falar sobre. Fosse o que fosse. Não lhes restava, portanto, grande hipótese, não podiam defraudar o seu próprio objectivo de frontalidade. Era preciso confrontar os acontecimentos.
Carlota chegou mais cedo. Queria ter a certeza de estar sentada, de ver a amiga chegar, de perceber como estava, como iria ser a conversa. Na presunção de que a conhecia como a palma da mão. Presunção idiota, claro, já que Carmen estava sentada no restaurante, na mesa do costume, a fumar um cigarro e, ao contrário do que tinha imaginado, não usava os óculos escuros para esconder um mar infinito de mágoa ou de raiva.
Carmen ergue-se para a beijar. Um gesto banal, costumeiro, sem agressões. Havia algo de diferente, Carlota não saberia dizer o quê e, de repente, o empregado já estava a sorrir e a dizer coisas, Carmen fez o pedido, olhando a amiga só para ter a validação necessária.
Hoje, para variar, acho que bebemos um copo de vinho tinto. Alentejo de preferência.
Que tal?
O quê?
O meu irmão?
Bem... Quer dizer, só estive com ele na noite da festa, nem sabia que era o teu irmão.
E se soubesses teria feito alguma diferença?
Não, acho que não.
Pois, ainda bem.
E tu saíste com o Paulo? Ele não te odiava?
Odeia-me menos.
Ah.
Paulo pediu um uber. Recebeu uma sms a dizer que o motorista Hugo estaria à porta do consultório dali a quatro minutos e quatro minutos era manifestamente pouco para o que precisava de fazer, porém não se apressou. A ideia de a mãe destruir mais um dia era-lhe insuportável. Pensava em Jaime perdido na casa desleixada. No tempo que passaria a explicar que a mãe tinha uma depressão diagnosticada, que o terceiro marido a tinha deixado há mais tempo do que ela aceitava ou dizia. Laura disfarçava sempre
Não, não, estou sozinha. Há muito trabalho, sabes? Ele tem de trabalhar.
Paulo acatou durante uns meses. Depois recebeu uma chamada da gestora de conta da mãe, conta que tinham os dois no mesmo banco, desde sempre, parecia-lhe, embora ainda conseguisse recordar o dia preciso em que lhe dissera
Mãe, vamos a abrir uma conta no banco os dois, para que não fiques pendurada.
Pendurada, Paulo?
Pendurada, mãe.
Carlota estava preparada para um ataque. Carmen imaginara uma amiga tagarela, a fazer graças sem riso, a empatar, porém tinham despachado no primeiro assalto as palavras mais duras. Carlota teria achado piada a Martim. Paulo odiava Carmen um pouco menos e, embora não tivesse dito a ninguém, ficara com a certeza, ao ver o tal V irritante que o Facebook coloca nas mensagens lidas, que ela lera a mensagem que lhe escrevera
Carmen. Ficaste bem? Não te liguei, não tenho o teu número. Beijo Paulo
Não percebeu exactamente a necessidade da assinatura. Percebia nas entrelinhas uma justificação e isso fê-la sorrir. Adiava o momento de responder por inépcia, por não ter as palavras certas. Carmen teria partilhado este acontecimento com Carlota sem hesitação. Haveria um burburinho quase adolescente e uma troca de possibilidades. Concluiu que a amizade não estava aí, nessa dimensão feliz das confidências. Seria preciso manter o confronto, para que ambas conseguissem regressar ao um estado normalizado de serem uma na outra aquilo que sempre tinham sido.
Carlota fechou os olhos e suspirou. Disse:
Vamos ficar mal, uma com a outra, por causa do teu irmão?
Tu não conheces a peça.
Não. Tens razão. E agradeço a tua sms.
Tinha de te avisar.
Bolas, Carmen, pegavas no telemóvel, dizias qualquer coisa na festa...
Desculpa.
Não faz mal.
Carmen tentou explicar à amiga. Tinha recordações antigas e essas surgiram com facilidade. Carlota percebeu de imediato que havia ali uma competição: superar o Martim era o jogo solitário de Carmen desde miúda. Não gostava daquele lado imprevisível, sempre fora controlada; não apreciava a facilidade com que Martim se livrara de todas as chatices e trabalhos, ela trabalhava que nem uma louca; não percebia as opções de vida do irmão, culpava-o de viver uma vida boa sem mérito, baseado apenas na presunção de que ela era, implicitamente, melhor. Carlota percebeu tudo. E manteve-se em silêncio.
Quando chegou a casa da mãe, Laura fingia dormir no sofá, Jaime estava sentado na poltrona, a televisão sem som. Paulo fez-lhe um gesto quase imperceptível, um código entre eles que era claro: precisavam de conversar. A varanda do quarto de Laura era o local mais seguro e ambos o sabiam. Paulo abriu a varanda e puxou de um cigarro. Jaime olhou-o e conseguiu conter-se para não perguntar em voz alta, para não desatar aos berros a exigir uma explicação para aquela vivência caótica da mãe, como se tivesse sido, em qualquer altura da vida, de outra forma.
O que queres que te diga? Tem uma depressão. E o tipo foi-se embora.
E não me dizias nada?
Jaime, as coisas entre nós, a mãe e eu, são sempre mais complicadas e não quis que te...
Ah, poupavas-me.
Pois, Jaime, é o que faço desde que existes.
Obrigado por mo recordares.
Não é isso. Tu sabes.
Não, Paulo, não sei.
A nossa mãe tem problemas. Será sempre um problema.
Mas tu vais ajudar?
Claro.
Martim gostava da ideia de se saber mais do que outros. O mais inteligente, o mais sábio, o mais. O comparativo de superioridade era-lhe essencial. Acreditava que o facto de projectar uma imagem de vencedor lhe permitia viver assim, de jogo em jogo, recolhendo as fichas, encaixando sucessos, validando-se através da miséria dos outros. Os outros com tanta coisa que falha. A conversa cansada das mulheres sempre cansadas. Os traumas de infância deste e daquele. As fobias e as doenças, nunca esquecer as doenças.
Martim tinha-se preparado para ser um super herói sem questões. Tratava-se de ser a personagem principal do seu filme.
Carlota não era mais do que uma mulher numa noite. Era-lhe indiferente para lá do prazer ou da sedução. Incapaz de se comprometer, Martim nunca amara ninguém. O ódio era-lhe mais conveniente e isso podia agradecer ao pai e à mãe. À traição do pai e da mãe.
A memória é mestre nos enganos. Ao longo dos anos, Martim testemunhou branqueamentos, esquecimentos, lapsos de histórias, reconstruções. Aprendeu a detectar omissões e mentiras teria uns cinco anos. Foi quando ouviu, por acidente, sem ter essa intenção, a conversa que mudaria a forma de ver o dia seguinte.
Ele nunca saberá.
Não acho uma decisão acertada. Não temos...
Desculpe, sou mãe dele e não há mais conversas.
Maria Luísa, por favor, seja razoável. Não há uma única fotografia dele em bebé, da gravidez.
Existem as da Carmen, podemos sempre mentir, por favor...
O Martim vai descobrir.
Não tem como.
Martim dispôs-se a compreender. Apesar dos poucos anos, iria fazer seis, diziam que seria passar o verão, e ele teria idade para ir para a escola. Os sonhos com outra casa pareceram-lhe exactos. Não eram construções. Ele não pertencia àquela espaço. Tivera outro colo e havia ainda a lembrança ténue de um sorriso que se abria e partia numa gargalhada, o corpo dele a voar para cair nos braços de alguém.
Quando a melhor defesa é o ataque
Os pais de Martim e de Carmen era, assim, pais biológicos dela, pais adoptivos dele e o mundo não sabia. O facto de ter descoberto a mentira com seis anos de idade fez com que Martim se tornasse, no mínimo, uma criança difícil. Estava zangado e não entendia, queria que lhe explicassem e ninguém o fazia. Era agressivo e fazia exactamente o contrário lhe pediam. Quando tinha ocasião destruía as coisas da irmã, Carmen, e batia-lhe. A miúda ficava a vê-lo arrancar cabelos às bonecas e não percebia como é que a mãe não o castigava. Martim atacou tudo e todos até chegar à suprema arrogância de optar pela indiferença.