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Delito de Opinião

Arranca, arranca, arranca, arranca

Pedro Correia, 28.03.24

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Dois títulos da primeira página do caderno de economia do Expresso, de 15 de Março.

Este jornal ignora verbos comuns como iniciar e começar.

Só sabe "arrancar". Nada mais.

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O mesmo parece acontecer com a SIC, outro órgão do grupo Impresa. Eis duas notícias difundidas neste canal na passada segunda-feira. Os editores parecem desconhecer outros vocábulos: "arrancar" serve para tudo.

Sonharão por lá com amputações, mutilações, decapitações? Ignoro.

Sei, isso sim, que a compressão lexical galopa, cada vez mais veloz.

Ou arranca, para mantermos o registo monovocabular destes conspícuos títulos jornalísticos.

A presidência e as eleições

jpt, 09.03.24

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1. A muito generalizada ideia de que o Presidente da República deve pairar sobre o sistema político, qual divindade do regime, nisso implicando como que uma "neutralidade axiomática", é uma aberração, tamanha a contradição que implica. O povo - o eleitorado, se se preferir - elege alguém exactamente para que intervenha. Com viés, esse que deverá ter sido explicitado no seu programa/manifesto eleitoral e fundamentado na sua biografia prévia ao exercício presidencial. A partir daí pede-se tino, ou seja respeito pela lei e fidelidade ao bom senso. 

Assim sendo, é perfeitamente curial que um presidente intervenha, de forma  mais ou menos explícita, num processo eleitoral que decorra sob sua tutela. A bem da sua figura de "primeiro magistrado da Nação" (o que é uma metáfora) talvez não convenha que ande pulando nas arruadas comicieiras dos seus preferidos. Mas só isso. De resto, com lisura - de preferência sem requebros "florentinos" - pode, e até deve, interferir no processo político.

Mas o que não é simpático é a forma "soprada" de intervenção, uma névoa de "diz-que-diz", ademane de "mentideros". Pois não sendo explícita não é falsificável, refutável. Disso lamentável exemplo é a primeira página da edição de ontem do "Expresso" - não só jornal de que Rebelo de Sousa foi director mas também consabida caixa de ressonância dos seus "recados". Pouco importa se o jornal já não tem a influência política que tinha em outras eras tecnológicas - o Pedro Correia anuncia aqui que líderes partidários já nem acedem a serem entrevistados pelos seus jornalistas, demontração da sua crescente irrelevância. E até pouco importará se a "notícia" tem fundo de verdade ("Belém" soprou) ou não (o "Expresso" inventou) - até porque poucos acreditarão que a "caixa" tenha sido inventada na sede do jornal. E também pouco importa se este "diz-que-diz" beneficiará algum dos outros partidos candidatos. Importa que isto não é uma forma democrática, "aberta", de intervir. É, evidentemente, mais uma "marcelice", das muitas. E o regime democrático terá de se depurar deste "marcelismo".

2. Em adenda, e sobre o que vai acontecer amanhã: é-me antipático o partido CHEGA, dado o seu pendor discriminatório, a sua demagogia, para além da evidente contradição entre o que vai escarrapachando nos dizeres programáticos e o conteúdo das inflamadas declarações do seu presidente. Mas ao olhar para as sucessivas sondagens que vêm sendo publicadas, e independentemente da sua fiabilidade, há algo que me parece óbvio: em relação aos resultados de há dois anos parece que o CHEGA crescerá. Atraindo mais 7, 8, 9, 10 por cento do eleitorado, talvez até mais se crermos nas expectativas do professor Ventura. Muito provavelmente será o grande vencedor, relativo, destas eleições, e mais ainda se se pensar que há 4 anos elegeu um deputado com cerca de 2% dos votos nacionais. É mais do que provável outros políticos e imensos comentadores surgirão a declará-lo derrotado: por  não ter chegado aos tais 20%, fasquia alta que ostentou, se calhar por não se ter tornado necessário para fazer maiorias, etc. Mas isso será esconder a realidade, incompreender o país. Tal como o é elidir que o partido meramente contestatário cresceu exponencialemente durante o consulado de Costa, desde o seu início propagandeado até ao máximo pelas forças da velha geringonça, pois usado como "legitimidade anti-fascista" daquela espécie de "Frente Popular", e agora usado como arma de arremesso contra os oponentes de "direita", ditos até quasi-CHEGA. No fundo, esse mais que provável apagar da vitória de Ventura será fazer política como o "Expresso", com "marcelismos" por assim dizer. É o modo da gente ufana...

(A proibição de "falar de política" num dia de "reflexão" é um patético anacronismo, um paternalismo estatista inadmissível no ano do cinquentenário do regime democrático. Que a nova Assembleia da República saiba comemorar os 50 anos do 25 de Abril formalizando a consciência dos efeitos benéficos da democracia. Entre os quais a liberdade de imprensa, a disseminação da educação e nisso a consciencialização da população, para além da pacificação da sociedade. E por isso a desnecessidade das restrições apostas ao tal putativo "dia de reflexão").

A derrota das sondagens

Legislativas 2024 (6)

Pedro Correia, 10.02.24

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Expresso, 30 de Dezembro de 2021

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Expresso, 28 de Janeiro de 2022

Vamos passar mais uma campanha eleitoral a ouvir falar de sondagens. De manhã à noite, de forma seguidista. Sem nunca haver uma perspectiva crítica destas pesquisas de opinião que induzem tanta gente em erro e espalham desinformação. Com base em amostras muito reduzidas e pouco representativas dos eleitores, talvez porque o dinheiro para as pagar não dê para mais. 

Voltou a acontecer, na recente eleição para a Assembleia Regional dos Açores, no passado domingo. Quatro dias antes, a 31 de Janeiro, uma sondagem da Universidade Católica divulgada em parangonas por dois meios de informação estatais (RTP-Antena 1) e pelo jornal Público atribuía a vitória nos Açores ao PS, com 39%, seguindo-se a coligação liderada pelo PSD, com 36%.

Acertou? Nem por sombras. Tiro ao lado, uma vez mais - desta vez com desvio de 9 pontos percentuais nas duas principais forças políticas, invertendo a ordem em que ficaram. O PS perdeu, não ganhou: teve 36% - menos 3 pontos do que a sondagem indicara. E a coligação encabeçada pelo PSD não foi derrotada: subiu mais 6 pontos do que a Católica tinha previsto, alcançando 42%.

 

Um fracasso quase tão clamoroso como o da sondagem do ISCTE para o Expresso que em 28 de Janeiro de 2022, dois dias antes das legislativas que deram vitória a António Costa por maioria absoluta contra Rui Rio, vaticinavam "empate técnico" entre socialistas e sociais-democratas: 35% para as rosas, 33% para as laranjas. 

Não aconteceu nada disto, como sabemos. O PS triunfou por quase 14 pontos percentuais de diferença: 41,4% contra 27,7%. Desmentindo em toda a linha o que ficara escrito não apenas na manchete do semanário publicada 48 horas antes do escrutínio, mas também outra, divulgada a 30 de Dezembro.

«Com a passagem dos anos de hipervalorização mediática dos estudos de opinião, fui ganhando a consciência de que sobre os mesmos não se exerce um módico de reflexão jornalística. Quer sobre o resultado produzido, quer sobre a metodologia e, em especial, sobre o questionário.» Palavras oportunas de Luís Paixão Martins no seu livro Como Mentem as Sondagens.

 

Por mais que estas coisas sucedam, iremos continuar a ouvir horas e horas e horas de peroração nas pantalhas sobre sondagens como se fossem modelos de rigor. Mesmo quando feitas por empresas que já falharam em toda a linha. 

Qualquer semelhança entre isto e jornalismo é mera coincidência. Deviam difundi-las em reality shows, não em telejornais.

Um país esquizofrénico

Pedro Correia, 06.12.22

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A primeira página do Expresso da semana passada propicia-nos a imagem de um país esquizofrénico. Este, o nosso. Em que o «preço das casas tira 76 mil pessoas de Lisboa e Porto», em que «só 7% das empresas sobem salários ao nível da inflação», em que o «cabaz de alimentos nunca esteve tão caro» e em que até o presidente do grupo Jerónimo Martins reconhece que «muitos já não têm com que comprar» nesta doce nação agora no oitavo ano consecutivo sob a batuta de António Costa.

Isto por um lado. Por outro, com títulos colados a estes, celebra-se o «turismo em alta no Natal e no Ano Novo» e divulgam-se «126 ideias de sugestões e prendas». Uma dessas sugestões do Expresso pode adquirir-se pela módica quantia de 1420 euros - muito acima do salário médio de um português. É um elegante "cadeirão Harold", com «estofo aveludado em verde, com pés em nogueira e acabamento em mate». A perfeita prenda natalícia.

País esquizofrénico. Imprensa esquizofrénica também.

O Prémio Pessoa

jpt, 28.07.22

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Não deixa de me provocar um sorriso, isto do jornal "Expresso" (imprensa dita "de referência") e do banco público Caixa Geral de Depósitos, patrocinarem um prémio - dito como destinado a personalidades de grande relevo artístico, cultural ou científico - atribuível a um tipo que não só clama pela necessidade de mais exorcistas como protege pedófilos.

Isto, em termos empresariais, seria uma catástrofe. Se não fosse em Portugal.

O "Expresso" e os ataques ao jornalismo

jpt, 07.01.22

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Passado o Dia de Reis estamos livres das benevolências próprias às dos "adoradores da Páscoa". Ou seja, podemos ser nós próprios. Usando os nossos pecadilhos. E, acima de tudo, assumindo os nossos pecados. Acima de tudo o da Ira..., quantas vezes desmesurada, o verdadeiro frémito assassino.
 
Vem-me este pois nos últimos 27 anos o PS esteve 20 anos sozinho no poder. E o jornal "de referência" Expresso, a três semanas das eleições, enceta o ano com esta capa servil. E ainda clama contra "ataques ao jornalismo". A classe média funcionária compra. E aprova...

Bom jornalismo

Pedro Correia, 19.04.21

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Poucas coisas me agradam tanto como valorizar bons trabalhos jornalísticos. É o caso do impressionante depoimento do psiquiatra Daniel Sampaio, 74 anos, divulgado na última edição do Expresso que justificou merecido destaque na capa do semanário. O irmão mais novo do antigo Presidente da República viu a morte de perto quando permaneceu internado durante 50 dias, com Covid-19, na unidade de cuidados intensivos do Hospital de Santa Maria. Duas semanas ventilado, em coma induzido. Quando lhe retiraram os tubos sentiu-se paralisado de pernas e braços. «Estava um corpo completamente inerte. Só mexia as mãos.»

Fez uma finta à traiçoeira doença e felizmente voltou para relatar esta experiência duríssima. Ainda muito debilitado, no aspecto físico e até na voz, como relata Christiana Martins, que com ele falou. Era para ser uma entrevista, em formato clássico de pergunta e resposta, mas a opção acabou por ser outra. Ao verificar o profundo impacto daquela declarações, a jornalista - que foi uma das mais prestigiadas profissionais do Público antes de transitar para o Expresso - assumiu a melhor opção: retirou-se de cena e deixou o entrevistado falar, sem interrupções, na primeira pessoa do singular. 

«Mais frágil, chegou a pensar desistir, mas também dono de uma resistência de que nunca se sonhou capaz. Agarrou-se à família e agradece a quem por ele rezou a um Deus que ele, não crendo, respeita», escreve a Christiana numa breve introdução. 

Eis um testemunho arrepiante. De que destaco alguns trechos, com a devida vénia a Daniel Sampaio e à jornalista que tão bem o entrevistou.

 

«Tenho de assumir que fui displicente. (...) Descuidei-me, é preciso dizê-lo, porque é necessário respeitar as regras.»

«Fiquei sozinho em casa durante cinco dias. Com o apoio dos filhos que traziam a comida. Fiquei a ler, mas já devia estar com o oxigénio muito baixo porque não me lembro de nada, apaguei essa fase da minha vida.»

«Quando olhei [para o oxímetro], estava em 90 e à noite com 88 [é perigoso estar abaixo de 95]. Avisei os meus filhos que, chamaram o INEM. A 28 de Janeiro, fui para as urgências de Santa Maria. (...) Ainda ouvi dizerem que tinha de ir para os cuidados intensivos, onde acabei por ficar 15 dias ventilado, em coma induzido.»

«Na segunda semana comecei a ficar muito lúcido, a ler, a fazer fisioterapia e a melhorar, e passei para a enfermaria. Negativei da Covid-19 ainda nos cuidados intensivos. Mas antes apanhei uma bactéria hospitalar. Foi grave porque comecei a ter febre alta, confusão mental e senti-me mesmo muito mal.»

«Estive na enfermaria de 26 de Fevereiro a 19 de Março. No total foram 50 dias de internamento, foi brutal.»

«Éramos quatro naquela enfermaria e foi muito difícil quando um de nós morreu. Todos percebemos a meio da noite que ele iria morrer. A morte está sempre presente na covid grave.»

«A doença é muito ameaçadora. Uma ameaça difusa. Eu não tinha dores nem me sentia mal, mas não podia largar o oxigénio. Tínhamos de lutar para que o pulmão funcionasse melhor e sabíamos que em muitos casos não se consegue.»

«Demorei cerca de três semanas até ter algum controlo sobre o meu corpo. Só comecei a andar uma semana antes de sair do hospital. Cheguei a temer nunca recuperar.»

«À noite só dormia com medicação e mesmo agora o meu sono ainda está alterado. Também fiquei com uma arritmia no coração, que dizem que será reversível.»

«Estive quase destruído. A infecção bacteriana quase me derrubou, pensei que ia morrer. Mas eu não queria morrer, pensava que ainda tinha alguns anos de vida, que queria fazer muita coisa e que tinha família, bons amigos. Sabia que, se não fosse destruído, ia ficar uma pessoa melhor.»

«Eu tenho muito respeito pela ideia de Deus, não sou crente, mas confesso que muitas vezes pensei em Deus e se ele me podia ajudar. Tive imensa gente a dizer que estava a rezar muito por mim, eu agradecia e foi muito reconfortante.»

"Impedidos de beber café ao balcão"

Pedro Correia, 05.04.21

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Vivemos no tempo das lamúrias e das queixinhas. Que, mesmo quando não existem, são inventadas para efeitos jornalísticos.

Leio no Expresso (destaque de páginas centrais, na última edição) que alguns chineses residentes em Portugal se sentem melindrados ao ouvirem designar por "vírus chinês" esta pandemia que já provocou mais de 16 mil vítimas mortais no nosso país - o presidente da Câmara de Viseu, ontem falecido aos 59 anos, foi uma das mais recentes. 

Não entendo esta queixa. Se o vírus que tem feito paralisar o mundo - com um rasto de quase três milhões de mortos e mais de 130 milhões de infectados à escala global - começou na China, denominá-lo pela origem geográfica não é matéria de opinião: é questão de facto. Estigmatizados devem sentir-se os espanhóis, ao verem ainda baptizada de "gripe espanhola", mais de um século depois, a pneumónica que causou dezenas de milhões de vítimas entre 1918 e 1920, sem que a sua origem nada se relacionasse com Espanha.

 

Chegamos ao ridículo de ouvir contínuas alusões à "estirpe inglesa" do coronavírus, ou à "variante sul-africana", ou à "variante do Brasil", sem que isto suscite acusações de "discriminação" ou "xenofobia", enquanto se silencia o ponto geográfico inicial da Covid-19 para cumprir a etiqueta politicamente correcta. 

E ainda assim alguns chineses se queixam.

Mas queixam-se afinal de quê? E queixar-se-ão mesmo?

 

Recorro ao Expresso. "Há casos de imigrantes chineses impedidos de beber o café ao balcão, por receio de contágio dos empregados", destaca o jornal em maiúsculas. Deixando-me mais perplexo.

Então não temos estado todos impedidos de "beber café ao balcão", durante estes 14 estados de emergência?

Então os imigrantes chineses, oriundos do país que mais produz e consome chá no mundo, desatam a beber bicas ou cimbalinos mal chegam a Portugal?

E são eles que receiam ser contagiados pelos empregados, como esta "escrita automática" dá a entender, ou o contrário?

 

O semanário cita, como fonte identificada, o director de "um jornal chinês em Portugal, o Europe Weekly" (curioso nome "amaricano" para um jornal publicado por chineses no nosso país), que só admite haver "um ou dois episódios esporádicos" de alegada xenofobia. O empresário Y Ping Chow, líder da comunidade chinesa aqui radicada, assegura nunca ter havido agressões. Ao vigilante SOS Racismo "não chegou nenhuma denúncia por parte de membros desta comunidade".

Mesmo assim, o Expresso reserva duas páginas ao tema, sob o título bombástico "Pandemia desperta racismo contra chineses". E transforma um caso isolado, de um suposto estudante chinês que terá sido atingido "com excrementos na cabeça" (!), sabe-se lá por que motivo, num plural em antetítulo sob a cabeça "discriminação", também em caixa alta.

 

Viesse isto noutro periódico e estariam alguns a gritar contra o jornalismo tablóide. Mas como surge estampado nas centrais do Expresso, deve ser um louvável exemplo de "jornalismo de referência". Seja lá o que isso for.

À atenção do Diácono Remédios

Pedro Correia, 05.03.21

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A jornalista Liliana Valente assinou, no Expresso da semana passada, a melhor reportagem que já li sobre a angústia e até o pânico que a pandemia provocou nos bastidores do Governo. Contou, para o efeito, com a colaboração de vários membros do Executivo naquilo que deve ter sido um laborioso e paciente exercício de jornalismo desdobrado por vários meses.

Merece ser felicitada por este trabalho, sob o título "Um ano a governar em aflição", inserido em quatro páginas do caderno principal. Pode haver quem imagine ser fácil, mas garanto que não é. 

 

Esta reportagem suscita reflexões de diverso tipo. Desde logo porque, entre os depoimentos recolhidos, há quem assuma a existência no Governo de uma "ala mais sanitarista", composta até por "hipocondríacos que não deviam estar ao leme" em situação de pandemia. Isto estimula a curiosidade dos leitores: quem serão os membros desta ala?

Mas o depoimento mais interessante - e, este sim, identificado - surge da boca de Tiago Antunes, secretário de Estado adjunto de António Costa, que a dado momento declara o seguinte: "Muitas vezes foi preciso assustar as pessoas e explicar que as coisas estavam piores do que se imaginava, muitas vezes foi preciso antecipar a opinião pública e influir na psicologia colectiva."

 

Destaco as expressões "assustar as pessoas" e "influir na psicologia colectiva". Sugerindo evidente manipulação da opinião pública.

Apetece-me perguntar ao Diácono Remédios, que na sua recente carta aberta no Público veio em socorro do Governo Costa e a vergastar os jornalistas que ousam perturbar o sossego de Suas Excelências, se não vai escrever outra cartinha, agora a propósito deste assunto. Fico a aguardar.

Do meu baú (6)

Pedro Correia, 09.02.21

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É sempre arriscado fazer previsões no jornalismo. E muito mais sobre os destinos da Igreja Católica, que são por natureza insondáveis, tais como os do Pai Eterno. Exemplo? Aqui está ele: veio publicado na primeira página do Expresso e transmitia uma certeza inabalável aos leitores «João Paulo II vai abdicar». Nem uma interrogação, sempre defensiva nestes casos, nem um daqueles verbos auxiliares - como poder ou admitir - que se utilizam para suavizar arestas quando a convicção está longe de ser absoluta. 

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A "notícia" - chamemos-lhe assim - veio estampada na primeira página daquele semanário, a 26 de Março de 1994. E baseava-se numa única "fonte" - chamemos-lhe assim também - identificada como tal: o correspondente no Vaticano da revista católica espanhola Vida Nueva. «O jornalista refere que destacadas figuras do aparelho do Estado da Santa Sé apontam mesmo alguns problemas clínicos com que o Papa se debate, como a falta de irrigação cerebal [sic] e células cancerígenas», escrevia o conceituado periódico. Acrescentando: «De facto, ultimamente João Paulo II tem vindo a perder vivacidade nas aparições públicas, desde que sofreu o atentado a tiro na Praça de S. Pedro, no dia 13 de Maio de 1981, que lhe atingiu o abdómen, e que o obrigou a diversas intervenções clínicas». 

O referido atentado, note-se, ocorrera quase 13 anos antes. E João Paulo II, apostado em contrariar o Expresso, manter-se-ia mais 11 anos sentado no trono de Pedro, terminando o seu pontificado não por renúncia mas por morte natural, a 2 de Abril de 2005. Aliás, depois desta bombástica "revelação" da primeira página, ainda visitou 47 países (incluindo a sua célebre deslocação a Cuba, em 1998, e a não menos badalada viagem a Fátima, em 2000, para a beatificação dos pastorinhos), publicou quatro encíclicas e divulgou oito exortações apostólicas

Falta acrescentar que a Santa Sé nem se deu ao incómodo de desmentir o Expresso. A História encarregou-se disso.

Do meu baú (5)

Pedro Correia, 08.02.21

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Se há exercício no jornalismo que se aproxima da quiromancia ou da cartomância, é este de predizer o futuro. O Expresso gosta de praticá-lo, a cada final de ano. É um pouco como praticar trapézio sem rede - embora as respostas surjam em regra muito arredondadas, para nelas caber tudo e o seu contrário, o que facilita de algum modo a tarefa.

Mas o que por vezes mais interessa são as perguntas. Repare-se na questão n.º 9 destas «100 perguntas para 2020» dadas à estampa na edição de 28 de Dezembro de 2019 daquele semanário. Uma questão afinal desdobrada em duas, sobre um tema sem a menor relevância neste mês de Fevereiro de 2021: «Joacine sai do Livre? E do Parlamento?» Poderá isto interessar a alguém excepto à própria deputada?

O jornal responde não respondendo, como acontece na grande maioria dos temas que aqui suscita: «A palavra à deputada Joacine.» Assim é demasiado fácil: qualquer um é capaz de escrever o mesmo.

 

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Os temas dividem-se em blocos que muito nos indicam sobre a hierarquia noticiosa do Expresso: política, sociedade, mundo, desporto e cultura. A economia está ausente porque foi tratada em local próprio, já aqui lembrado.

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No segundo bloco, destaque para dois temas relacionados com o SNS. Eis uma questão: «As urgências vão continuar a dar problemas?» Como hoje sabemos, raros assuntos estiveram tão em foco como este ao longo do ano que passou. Aqui o jornal não foge à questão, respondendo desta forma: «O atendimento de doentes urgentes será sempre o problema agudo do sistema de saúde. Com a saída de médicos (para a reforma, privados ou estrangeiro) as equipas do SNS não chegam para a procura e é utópico pensar que um dia irão chegar.» Isto porque - menciona-se na resposta à pergunta seguinte, a n.º 23 - «as condições de trabalho na rede pública - edifícios e equipamentos obsoletos, horários sobrecarregados, progressões congeladas e baixos salários, por exemplo - não irão mudar o suficiente para devolver atractividade ao SNS.»

E ainda ninguém adivinhava o que iria passar-se.

 

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Algumas perguntas, face ao sucedido, perderam razão de ser. Esta, por exemplo: «A selecção portuguesa irá revalidar o título europeu?» A resposta, como quase todas, vem arquitectada num estilo que permite diversas leituras no fim do ano. Mas neste caso não havia fuga possível: não chegou a acontecer o Campeonato da Europa de Futebol, tal como não ocorreram os anunciados Jogos Olímpicos de Tóquio.

Ou esta, pergunta n.º 85: «O concerto do ano vai ser o dos Faith No More?» Na resposta, dava-se como garantido que o regresso desta banda «irá consumar-se no festival NOS Alive». 

Como hoje sabemos, tudo ficou adiado para 2021. Se não chover.

 

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Ao nível ambiental, o Expresso não hesita em profetizar que «os episódios de seca tendem a ser mais extensos e intensos devido às alterações climáticas», registando-se nomeadamente «menos chuva». Podemos queixar-nos muito do sucedido em 2020, mas não da progressão da seca, pelo contrário: há muitos anos que o guarda-chuva e os impermeáveis não eram tão indispensáveis por cá.

Relacionada de algum modo com esta, surgia a pergunta n.º 71: «Greta vai entrar na política?» Assim, de repente, deixaria hoje vários leitores confundidos: é que esta activista sueca, tratada com tanta familiariedade pelo nome próprio, andou praticamente desaparecida ao longo de 2020 - e assim tem continuado nestes quase 40 dias de 2021. O Expresso proclamava-a «ícone de uma geração», com manifesto exagero. Porque, infelizmente, esta não se tornou a Geração Greta: tornou-se a Geração Covid.

 

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Tendo sido 2020 marcado pela pandemia do novo coronavírus, que causou mais mortos portugueses do que as guerras que travámos em África entre 1961 e 1974, pela queda mais abrupta alguma vez registada no PIB nacional, por dez inéditos estados de excepção e longas semanas de confinamento forçado, aliás ainda sem fim à vista, isto demonstra como são fúteis estes exercícios de jornalismo: entretêm alguma coisa, mas informam quase nada.

Repare-se só, a título de exemplo final, na pergunta n.º 98, em que o Expresso responde de algum modo em ca(u)sa própria: «A SIC vai consolidar a liderança nos canais generalistas?»

Resposta: «É provável que sim. (...) Tem vindo a reforçá-la ao longo dos meses, deixando o canal público e a estação de Queluz de Baixo para trás. Cristina Ferreira tornou-se num activo estratégico para o canal, mas os números provam que não é o único.»

Cristina Ferreira - «activo estratégico» da SIC em Dezembro de 2019 e hoje accionista e directora da TVI - confirma que o melhor mesmo é os jornalistas deixarem a quiromancia para os quiromantes. 

Tristes Olhos Castanhos

Maria Dulce Fernandes, 07.02.21

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Foi há cerca de 56 anos que o cantor romântico dos "Olhos Castanhos" , numa actuação em directo no programa TV Clube, resolve  "informar" o país da absurda discriminação e grande disparidade de cachets perpetrada pela RTP, entre artistas nacionais e estrangeiros. Tão abrupta e surpreendente foi a intervenção, que ninguém sabia o que fazer e a emissão continuou no ar durante algum tempo.

Claro está que o ano era 1964 e a censura, apanhada de surpresa nada pôde fazer senão mandar parar a emissão em directo, mas nessa altura o "mal" já estava feito.

O caso "Chico Zé" teve  repercussões populares à boca pequena a nível nacional e, como seria de esperar, a sua carreira em Portugal acabou ali.

Teve um revivalismo anos mais tarde após a Revolução de Abril, mas nunca voltou a atingir a popularidade de que gozava antes de 1964.

Para ler

https://expresso.pt/cultura/2021-02-06-O-dia-em-que-o-cantor-Francisco-Jose-desafiou-a-RTP-em-direto

https://museu.rtp.pt/livro/50Anos/Livro/DecadaDe60/RTPAos10Anos/Pag30/default.htm

 

Foto Google/Expresso

Janeiro negro: retrato do País em opiniões no "Expresso"

Pedro Correia, 17.01.21

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«É provavelmente a maior operação de branqueamento na política a que já assistimos. Quiseram "salvar o Natal" e agora morrem 150 pessoas a cada 24 horas... É como se um avião caísse todos os dias. Salvou-se o Natal e perdeu-se Janeiro, perdeu-se Fevereiro e não sabemos o que esperar de Março... Perderam-se vidas humanas, mortes que podiam ter sido evitadas. (...) A 14 de Janeiro somos o quinto país em todo o mundo com mais mortes por milhão de habitantes. Atingimos o tenebroso recorde de 156 vítimas diárias e há seis dias consecutivos que estamos acima das cem mortes.»

João Vieira Pereira

 

«Quando 10 mil portugueses morreram a mais no ano passado de outras doenças porque o SNS não conseguiu tratá-los, quando as enfermarias e as UCI estão à beira do colapso e quando é facil antecipar que os centros de saúde não terão capacidade para administrar vacinas a todos quando elas estiverem disponíveis em quantidade, insistir em recusar a utilização "a preço justo" da capacidade instalada do sector social e do sector privado é mais do que obsessão ideológica, é um atentado contra a vida dos portugueses.»

Miguel Sousa Tavares

 

«Os dois melhores retratos dos nossos erros são a app StayAway Covid e a absurda batalha "ideológica" sobre público e privado numa pandemia. A primeira, porque explica que é inútil criar tecnologia quando ninguém a alimenta (a percentagem de casos inseridos é ridícula); a segunda, porque mostra o vazio das nossas discussões políticas, que se arrastaram para os debates das presidenciais. Em vez de se montarem sistemas de resposta robustos, fazem-se guerras ideológicas. Depois, a realidade bate-nos à porta.»

Ricardo Costa

 

«Na frente sanitária, o que começou por ser apresentado como um milagre ("o milagre português") transformou-se nos dias de hoje num dos piores resultados do mundo, no que se refere ao ritmo de progressão das infecções, a que se seguirá o aumento do número de ambulâncias com doentes à espera de vaga nos hospitais superlotados e o aumento do número de mortos. Por muito que relevem, e relevam, razões exteriores, e objectivas, que talvez nada nem ninguém conseguiria superar, estão à vista de toda a gente os resultados da imprevidência, da falta de planeamento, da infantilização de um povo inteiro, que se quis deixar ser tratado como uma criança, para celebrar o Natal.»

Daniel Bessa

O estado da arte

jpt, 25.10.20

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Raramente leio o "Expresso". E nunca leio Clara Ferreira Alves. Ontem uma amiga convocou-me: "Lê a crónica da CFA". Li. E recomendo-a, pois é uma boa descrição do actual "estado da arte" português. Trata-se de "O Torso Dispensável".

(Como o texto tem acesso reservado a assinantes poder-se-á ler uma transcrição parcial, mas quase completa, aqui.)

Do meu baú (4)

Pedro Correia, 20.10.20

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É sempre arriscado fazer previsões para o ano que vai seguir-se. Sobretudo quando a bola de cristal está embaciada.

Razões acrescidas para felicitar o risco corrido por quem escreveu e editou o último suplemento de 2019 do semanário Expresso. Parecia um exercício de trapézio sem rede - e era mesmo.

Mal havia decorrido o primeiro trimestre do ano em curso e já muitas previsões estavam estilhaçadas.

 

O prestigiado periódico não fez a coisa por menos, substituindo a prudência jornalística alicerçada em factos por exercícios de adivinhação, submetidos ao mote 50 perguntas para 2020.

Tentando responder a esta questão de âmbito mais genérico: «O que vai acontecer em Portugal e no mundo do ponto de vista económico ao longo do próximo ano?»

Selecciono aqui algumas dessas previsões:

- «Em 2020 perfila-se margem para [o turismo] crescer em valor.»

- «A segurança, o clima, a gastronomia e sobretudo a simpatia das pessoas irão continuar a cativar estrangeiros de várias origens e também para a compra de casas.»

- «Tudo indica que os salários vão subir.»

- «O Estado vai ter excedente [financeiro] se a economia crescer acima de 3% em termos nominais.»

- «A Alemanha não vai entrar em recessão.»

- «Outras cidades poderão seguir o caminho de Lisboa ou do Porto, que fixaram este ano limites [ao alojamento local] nas suas zonas históricas.»

- «Por vontade do Governo, sim, mas logo se verá [se começa a construção do aeroporto do Montijo].»

 

Relendo hoje o suplemento, datado de 28 de Dezembro de 2019, parecem ter passado longos anos - e não apenas dez meses.

Começando logo pela manchete: «Classe média resistiu à crise».

 

Outros títulos da mesma edição:

- Preços sobem menos que salários no próximo ano

- Três anos para mudar Coimbra, do Choupal até à Lapa

- Há 3964 imóveis à venda no arquipélago dos Açores

- Six Senses investe 10 milhões no luxo

- Há cada vez mais pessoas a viajar e Hong Kong está no topo

 

Mas valha a verdade: nem todas as previsões do Expresso saíram furadas. Esta ampla antevisão de 2020 vaticinava, com acerto, que continuaríamos a pagar "buracos" na banca e que a guerra comercial China-EUA prosseguiria.

Prognósticos que até o conceituado Professor Karamba seria capaz de ter emitido. Em 2019 ou noutro ano qualquer.

 

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Costa: «Os gajos são cobardes»

Pedro Correia, 25.08.20

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Foto: António Pedro Santos / Lusa

 

Em Abril de 2016, o primeiro-ministro exonerou o titular da pasta da Cultura, lançando-lhe um solene aviso: os membros do Executivo «nem à mesa do café podem deixar de se lembrar que são membros do Governo». Isto porque João Soares, em escrita ligeira de Facebook, prometera umas "bofetadas" (retóricas) em dois comentadores que o haviam criticado.

«Costa põe João Soares na ordem e obriga-o a pedir desculpa», apressou-se a titular o Diário de Notícias.

 

Quatro anos depois, ignorando as suas próprias advertências, Costa comporta-se com uma leviandade que, em comparação, remete a do ex-ministro da Cultura à gaveta das traquinices infantis.

Perante pelo menos três jornalistas do Expresso, em frase à margem de uma entrevista mas que ficou registada numa gravação remetida (por dolo, irresponsabilidade ou negligência profissional) por aquele semanário a dois canais televisivos, o chefe do Governo disse esta frase, aludindo aos médicos que prestaram serviço em Reguengos de Monsaraz: «É que o presidente da ARS mandou para lá os médicos fazerem o que lhes competia. E os gajos, cobardes, não fizeram.»

Foram palavras proferidas off the record, mas não deixam de ser indignas de um primeiro-ministro - sobretudo de um primeiro-ministro que já tinha sido profundamente infeliz em Junho, quando afirmou que a escolha de Lisboa como palco da Liga dos Campeões era «um  prémio para os profissionais da saúde» que há seis meses combatem o Covid-19 em Portugal. Como se a pandemia tivesse alguma coisa a ver com o futebol.

 

O Costa de 2020 devia seguir o conselho do Costa de 2016: um primeiro-ministro nem à mesa do café deve deixar de se lembrar que é membro do Governo.

Eu, se fosse o João Soares, recordava-lhe isto agora.

Bom jornalismo

Pedro Correia, 23.06.20

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I

Gosto de bons títulos. E não é de agora: sempre gostei. 

Um bom título deve captar a atenção do leitor, deve atraí-lo, deve seduzi-lo. 

Se for necessário, alguém interrompe outras tarefas na azáfama de uma Redacção e concentra-se nisto até encontrar o título ideal. Por vezes, é o próprio autor do texto. Mas acontece, quase sempre, que seja um editor de caderno ou de secção. Ou até um membro da direcção com mais talento para esta função, o que nem sempre acontece. Conheci directores e subdirectores que mal sabiam fazer um título. Ou até uma simples legenda.

 

Um título bem conseguido é uma forma de mostrar consideração e apreço por quem nos lê.

Seja onde for. Também num blogue. E sempre com regras: aqui no DELITO, por exemplo, uma "regra" tácita e de adesão voluntária recomenda que um título não tenha mais de 32 batidas, incluindo espaços. Evitando assim que uma palavra salte, solitária, para uma inútil e redundante segunda linha. Nada recomendável até por motivos estéticos.

 

Quando havia mais tempo e mais gente para elaborar jornais, as pessoas organizavam-se de acordo com as suas aptidões. Havia os repórteres, que andavam quase sempre fora e ligavam a dar dicas ou a ditar entradas de notícias, e os redactores, com mais talento para a escrita, que se encarregavam da versão final dos textos.

Na hora do fecho, com a primeira página prestes a concluir, convocava-se sempre um especialista em títulos. Que podia ser alguém que nem estava munido com carteira profissional. Houve até um arquivista com especial talento para a arte de titular que acabou por tornar-se jornalista deste modo: forneceu tantas sugestões certeiras para manchetes com sucesso à equipa directiva que um dia saltou do arquivo para um lugar destacado na Redacção.

 

II

Há muito tempo que o Expresso abdicou de fazer bons títulos - criativos, chamativos, sintéticos, sem distorcer factos - e optou pela forma mais preguiçosa e previsível de titular. Aquilo a que costumo chamar "títulos de funcionário": aplica-se o molde chapa cinco e fica despachado. 

Exemplos de "títulos de funcionário": aqueles que usam e abusam de títulos de livros ou filmes ao ponto de se tornarem insuportáveis lugares-comuns. Foi o caso, durante anos, da expressão "à beira de um ataque de nervos", decalcada de um filme de Almodóvar.

Ou os que empregam locuções verbais que pela sua natureza já estão mais que vistas e gastas, incluindo as que incluem o verbo haver, o verbo ir, o verbo ser ou o verbo estar.

Ou os que recorrem até à náusea aos pronomes relativos, sobretudo o famigerado "que", quase sempre substituído com vantagem por elegantes dois pontos.

Ou os intermináveis, cheios de vírgulas e palavras inúteis, que cansam o leitor ao ponto de o dissuadirem de passar do título ao texto.

Ou, na política, os que insistem em "dar murros na mesa", em "querer" ou "não querer" ou em "disparar" contra tudo quanto mexe ou em "arrasar" seja o que for - bocejantes expressões mil vezes escritas, mil vez lidas, ao ponto da saturação total. E reveladoras de uma confrangedora pobreza lexical nestes tempos de galopante supressão de vocábulos, condenados à extinção pela iliteracia dominante.

 

Basta-me folhear a mais recente edição do Expresso para encontrar "títulos de funcionário". 

Eis alguns: «Vai começar uma "revolução científica" no Vale do Côa»; «Portugal vai ter mais um centro para refugiados»; «Emergência social dispara em 2 meses»; «Tempo arrasa agricultura»; «Merkel quer resposta rápida»; «Costa quer entendimento à esquerda até 2023»; «Marcelo não quer público nos jogos da Champions»; «Comércio quer aumentar lotação, DGS recusa, "neste momento"».

Isto já para não falar dos títulos incompreensíveis. Deixo uns exemplos, também colhidos desta edição: «Fusão junta SRS Advogados e AAA» (na primeira página); «Leão adia LEO para 2023»; «Avança inquérito sobre origem etnicorracial dos portugueses»

 

III

Mas, felizmente, há excepções. E a que aqui trago é bem honrosa: refiro-me ao título de capa da revista do próprio Expresso, nesta sua mais recente edição. Sob o rosto de Amália Rodrigues no auge da carreira, comprovando a prodigiosa fotogenia da grande diva do fado, nascida vai fazer cem anos. 

«Amália - Nem chegaste a partir» - eis o título-legenda. Justo, conciso e feliz. Quase um verso. Aliás, é mesmo um verso, extraído da letra que David Mourão-Ferreira escreveu para o Barco Negro, a que ela deu expressão eterna: «Eu sei, meu amor, / Que nem chegaste a partir / Pois tudo em meu redor / Me diz que estás sempre comigo.»

 

Para atingir este clímax não basta conhecer todas as potencialidades do nosso belo idioma, tão cheio de ambiguidades e cambiantes, tão vocacionado para uma ampla gama de vocalizações, tão propício a ser cantado. É preciso também ter cultura e conhecer a fundo o tema sobre o qual se escreve.

Sendo o jornalismo uma actividade cuja carpintaria se desenvolve com frequência no anonimato das salas de trabalho, ignoro a quem devemos, enquanto leitores, este título tão digno de elogio. Mas foi seguramente alguém que leu com muita atenção o primeiro dos três textos que justificam esta capa. Um texto de Jorge Calado que vivamente recomendo, em que o autor equipara Amália a Maria Callas e Ella Fitzgerald, convicto de que ela «habita o panteão das maiores vozes do século XX»

Porquê? «Amália ampliava as vogais, arrastava as consoantes, esticava a linha vocal sem a partir, antes percorrendo todas as notas intermédias num alucinante legato cromático que nos deixava estupefactos e em transe, como ela.» E cá surge a referência explícita à canção que ela estreou no filme francês Os Amantes do Tejo, rodado em Lisboa: «Ouça-se, por exemplo, o que Amália faz com a palavra "loucas", do Barco Negro (em que virou do avesso a Mãe Preta, de Maria da Conceição), e a seguir compare-se com o "Amami, Alfredo" da Callas em La Traviata

 

Felizmente ainda surge por vezes um texto que basta, só por si, para nos levar a comprar um jornal sem arrependimentos. É o caso deste, que bem justifica o belo título que lhe serve de chamariz.

O Expresso

jpt, 04.04.20

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Quem me conhece (ou blogo-conhece) saberá que eu abomino Marcelo Rebelo de Sousa mais do que as brigadas do Al Shabaab odeiam as barracas de bifanas e coiratos no Campo Grande em dia de jogo do Sporting. E que quanto a Costa e seus sequazes tenho frémitos de os enviar para a arena do José de Alvalade (o nome é esse mesmo) rodeados de leões.

Dito isto fica a questão: será que nem os idólatras notam o desvario de uma capa destas? Que não é preciso ser tão rasteiro?

Por outro lado é um aviso: vêm aí tempos ainda mais difíceis para a imprensa. Há que garantir que Armando Vara se disponibiliza a deixar as grandes empresas pagarem publicidade. Não é nada mais do que isso.