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Delito de Opinião

Zanardi

Sérgio de Almeida Correia, 20.06.20

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(foto BMW, daqui)

 

Se há quem admire nesta vida, um dos indiscutíveis é seguramente Alessandro Zanardi.

A notícia que todos recebemos do acidente que sofreu ontem, numa prova de estrada destinada a deficientes, constitui mais uma desgraça que se abate sobre a vida de um homem com o seu talento, a sua força, a sua perseverança.

Já não bastava tudo o que lhe aconteceu ao longo da vida, a forma como foi superando obstáculos que para a maioria seriam absolutamente intransponíveis, indo buscar força e motivação onde se suspeitaria só existir desespero e resignação, para agora ter um acidente da magnitude do de ontem. Capotar com o triciclo de handbike duas vezes, acabar batendo num camião que seguia em sentido contrário, e o helicóptero não poder aterrar no local do acidente tendo de ser primeiro transportado de ambulância para um heliporto, não é apenas um azar, mais um, na vida de Zanardi. É a continuação de uma condenação inaudita, sem sentido, de um homem bom, de um exemplo de tenacidade, e de um verdadeiro herói de carne e osso.

Se, como dizem para aí, Deus é grande, é incompreensível que alguém tenha de sofrer o que Zanardi enfrenta.

Espero que uma vez mais consiga recuperar, e que nos volte a dar a todos um motivo para continuarmos a acreditar nalguma coisa. Forza, Alex.

Eanes exemplar

Pedro Correia, 02.04.20

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Como o Sérgio já assinalou, Ramalho Eanes concedeu ontem uma notável entrevista à RTP. Entrevista presencial, desde logo: o general deslocou-se pessoalmente ao estúdio da televisão pública apesar de pertencer a um grupo de risco nesta fase mais assanhada do coronavírus: tem 85 anos, embora pareça mais jovem - tanto pelo físico como pelo intelecto. «Nos tempos incertos vai-se ao local», declarou sem mais rodeios.

Com esta decisão - assumida sem a menor hesitação, como a jornalista Fátima Campos Ferreira assinalou - o antigo Presidente da República deu desde logo uma lição aos heróis de sofá que pululam por aí, muitos deles com idade para serem seus filhos e até seus netos. "Heróis" da treta, que exercem a função comentadeira no conforto doméstico, devidamente calafetados, e aí dão livre curso às suas bravatas verbais.

Deu igualmente uma lição àquele jovem deputado que há dias compareceu de máscara no plenário da Assembleia da República - hoje seguramente um dos lugares mais "higienizados" do País - esquecendo que àquela mesma hora faltavam máscaras em todos os hospitais portugueses. Imagem lamentável: só admito ver um político de máscara em local de grave risco sanitário, nunca na sala de sessões do Parlamento.

O general, em palavras lúcidas e inspiradoras, apontou a estes apavoradinhos o rumo a seguir: «Nós, os velhos, quando chegarmos ao hospital, se for necessário, oferecemos o nosso ventilador a um homem que tenha mulher e filhos.»

 

Eanes foi exemplar por tudo quanto afirmou. 

Anotei outras das suas reflexões e transcrevo-as aqui. Para mais tarde recordar.

 

«A primeira coisa que esta batalha nos exige é que sejamos virtuosos - isto é, que sejamos humildes. Que percebamos que somos falíveis e muito frágeis. Uma fragilidade que só se compensa através de uma comunicação autêntica com os outros.»

«O medo é razoável, mas é nossa obrigação ultrapassá-lo. Nesta altura temos que pensar que estamos com os outros. Temos que pensar menos no eu e mais no nós. De maneira que todos quantos carecem de apoio tenham a nossa solidariedade.»

«Esta crise demonstra que nenhum país, por si, consegue resolver os problemas. A própria China, poderosa, no início da crise recebeu o apoio da França e até da Itália.»

«Isto levar-nos-á, necessariamente, a uma nova reflexão. Primeiro, a uma nova reflexão sobre os nossos sistemas políticos. E sobre o homem: porque é que o homem se tornou tão egoísta, tão individualista, que até se esqueceu que o mundo é de interligação permanente? Como é que vamos gerir a globalização? A globalização é interdependência, mas deixou de ser solidariedade.»

«O homem, com os avanços da ciência e da tecnologia, julgou ser capaz de tudo. E esta situação pandémica demonstrou que afinal continua o tal ser frágil, falível, que está em permanente ligação com os outros.»

«Isto vai levar-nos a repensar as próprias funções do Estado. O Estado não pode ser o Estado mínimo, como se diz: tem que ser o Estado necessário. Que não olha apenas para a situação presente e para as eleições: olha para o futuro da sua comunidade.»

«Esta crise é um momento de silêncio, de reflexão, de comunhão. Se não for assim, estamos a perder uma oportunidade única que nos é oferecida - com dramatismo, com dor, com desgosto.»

E quando tinhas 16 anos?

João André, 20.12.19

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A Time escolheu Greta Thunberg como pessoa do ano. Penso que ela não liga muito a isso e que se ligar será só pela forma como irão falar da sua causa.

Haverá muitas pessoas, incluindo neste blogue, que menorizarão a escolha. Falarão em como ela é obcecada, ou que devia ir para a escola, ou que isto ou aquilo.

A única coisa que lembro é: começando por se sentar no passeio com um cartaz, esta miúda de dezasseis (16!) anos colocou milhões de jovens envolvidos numa causa que lhes é importante: o seu futuro. Falou com líderes políticos, económicos e discursou, fluentemente, nas Nações Unidas. Conseguiu ainda atrair o ódio dos ogres políticos deste mundo (sim, como Trump ou Bolsonaro - os Putins ou Kims são piores).

Para quem ainda lhe cause urticária o que Thunberg conseguiu, deixo a pergunta: e tu, o que fizeste aos 16 anos?

Aristides de Sousa Mendes

Sérgio de Almeida Correia, 28.01.19

"As we mark Holocaust Remembrance Day on Sunday, we should honor this man who engaged in what one historian called "perhaps the largest rescue action by a single individual during the Holocaust.", Richard Hurowitz, New York Times, 27 de Janeiro

Pese embora o esforço que alguém fez para obscurecer a sua indelével marca, é reconfortante saber que passados todos estes anos um dos mais conceituados e lidos jornais do mundo honra a sua memória, mantendo-a viva para os seus leitores.

Um exemplo que nunca será demais recordar, em especial porque ele não o fez a troco de dinheiro, de títulos ou da glória, ao contrário de algumas sumidades locais que gostam de mostrar a sua beneficência.

Uma lição

Pedro Correia, 13.01.15

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Na gala em Zurique onde ontem Cristiano Ronaldo recebeu a terceira Bola de Ouro da sua carreira (já tinha sido galardoado em 2008 e 2013), perguntaram-lhe qual foi o melhor golo da sua carreira.

Resposta imediata do nosso campeão: «O próximo.»

Nesta resposta percebe-se bem o que leva Ronaldo a superar todos os obstáculos. Em vez de contemplar o passado, como é hábito entre os portugueses, fixa sempre novos objectivos a conquistar no futuro.

Uma lição para todos nós.

Será isto o que nos espera?

Sérgio de Almeida Correia, 06.02.14

Em quaisquer circunstâncias, a indiferença foi sempre um estado de espírito ou uma atitude que me assustou. Somos feitos de matéria, temos vontade, aparentemente pensamos e somos seres capazes de tomarmos decisões, o que nos distinguiria de outras espécies que ocupam o mesmo espaço neste planeta onde habitamos. As imagens do vídeo que aqui trago, divulgado pelo La Reppublica, não devem ser vistas como um mero caso de violência urbana numa cidade que tem fama, injustamente para muitos dos seus cidadãos, de ser um dos locais de acolhimento dos camorristas. O roubo por esticão vulgarizou-se por todo o lado, a falta de segurança não é um exclusivo de Nápoles, a violência faz parte do quotidiano de muitos países, Portugal não foge à regra. Os relatos diários de alguma imprensa confirmam-no. Fosse por isso e não vos traria aqui estas imagens. O que me leva a convocar-vos para as verem é o facto de perante uma cena como a que foi filmada e presenciada por algumas dezenas de pessoas, a única que saiu em defesa da vítima foi, imagine-se, um jovem emigrante. No caso tratou-se de um pedinte de origem africana, aquilo a que muitos entre nós chamam um "sem abrigo". De todos os que ali estavam naquele momento talvez fosse aquele que tinha mais a temer pelas consequências, pela origem, pelo estigma da cor da pele. Porém, foi ele o único que se levantou, que ofereceu resistência, que se indignou, que cumpriu um dever de cidadania sem que esta lhe seja conferida. Para tantos que hoje gritam contra a emigração, contra a presença de estrangeiros, que culpam os outros pela crise, pela falta de empregos, pelos salários baixos, e que insistem em fechar as fronteiras enquanto olham de soslaio e com desdém para os que fogem a um destino de miséria e tentam encontrar na Europa o que lhes foi negado na terra de onde provavelmente nunca teriam querido sair, estas imagens devem obrigar a uma reflexão. Sei que esta não mudará quase nada no nosso dia-a-dia, mas talvez possa ajudar-nos a olhar para alguns que connosco se cruzam com outros olhos. O outro somos nós. A vítima também.    

Nós o povo

João André, 29.01.14

Eis um exemplo que deveríamos importar. Assim de repente consigo pensar logo numa série de nomes que adicionaria a uma petição semelhante, arriscava-me era que depois se tornassem juízes em causa própria.

 

Por outro lado, num mundo dos avatares inventados também é possível imaginar o governo a criar a petição para a expulsão de todos os reformados e desempregados do país.

O que faria Francisco Sá Carneiro?

Pedro Correia, 12.07.13

 

Trataria, desde logo, de clarificar a situação. Abandonando ambiguidades e consensos pastosos, que nada resolvem e tudo complicam.

Apresentaria uma moção de confiança no Parlamento. Que separasse águas e tornasse evidente a legitimidade política do Governo na única sede perante a qual é politicamente responsável à luz do que estipula a nossa lei fundamental: a Assembleia da República.

A política, para ser eficaz, exige clareza.

Um gesto destes perturbaria o tacticismo pessoal de alguns vultos majestáticos ocupados em escrever livros de memórias antes do tempo? Talvez.

Paciência. A democracia é assim.

 

Coisas tristes

Ana Margarida Craveiro, 19.07.11

Na sexta-feira passada, o jornal Sol publicou um texto de Jaime Nogueira Pinto, de homenagem a Maria José. Entre vários aspectos, falava de como Maria José Nogueira Pinto tinha encarado a obrigação de despedir um certo número de pessoas. Na altura, chamou os funcionários em causa, e interessou-se pelo seu destino, seu e das suas famílias. Porque havia um sentido de responsabilidade enquanto pessoa - e enquanto cristã - que a impelia a esse cuidado, a esse interesse. Ao despedir aquelas pessoas, recaía sobre ela um peso diferente, e soube honrá-lo.

 

Hoje, descubro pelo telejornal que uma empresa transportadora despediu 136 homens e mulheres por sms. Assim, sem qualquer espécie de dignidade. Como se todos, administradores e trabalhores, fossem bestas não humanas. E a morte de Maria José Nogueira Pinto, e o seu sentido de justiça, parece ainda mais triste. 

Cavaco devolve 75% do dinheiro da campanha

Laura Ramos, 19.02.11

 

Evidentemente que é obrigatório.

Evidentemente que decorre da lei.

Evidentemente que talvez nem merecesse ter destaque.

Mas merece.

Porquê?

 

Simplesmente porque não gastou e podia tê-lo feito.

 

Declarou que o estado da Nação não lhe permitia uma campanha perdulária. E não a fez.

Recomendou aos seus apoiantes, urbi et orbi, uma intransigente contenção nos actos de aplauso e nas reuniões de propaganda, e cumpriu.

Anunciou que não faria outdoors. E não fez.

Escolheu jantares em locais sem brilho, quase inóspitos, a lembrar os tempos da crise de meados de 80 (quando nos afundávamos também num duplo perigo de ruína financeira e de alienação partidária). E arrancou as palmas mais sentidas quando se referiu ao respeito pelos portugueses e à elementar exigência de moralidade nos gastos que era requerida aos poderes públicos (sim, eu vi toda esta insidiosa perseguição ao voto, galopante...).

 

Não há autoridade sem exemplo.

Mas neste caso, infelizmente tão isolado, tivemos uma pequena lição.

Não gostam do termo, ó subalimentados do bom senso?

Pois é... mas isto não é demagogia: - é dinheiro sonante que voltou aos cofres do Estado e não nos vai ser arrancados dos bolsos.

 

- Já agradeceram?

Decência

Ana Vidal, 04.11.10

SERES DECENTES


Fernando Dacosta

Tempo Livre | OUT 2008

 

Quando cumpria o seu segundo mandato, Ramalho Eanes viu ser-lhe apresentada pelo Governo uma lei especialmente congeminada contra si.

 

O texto impedia que o vencimento do Chefe do Estado fosse «acumulado com quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência» públicas que viesse a receber. Sem hesitar, o visado promulgou-o, impedindo-se de auferir a aposentação de militar para a qual descontara durante toda a carreira. O desconforto de tamanha injustiça levou-o, mais tarde, a entregar o caso aos tribunais que, há pouco, se pronunciaram a seu favor. Como consequência, foram-lhe disponibilizadas as importâncias não pagas durante catorze anos, com retroactivos, num total de um milhão e trezentos mil euros. Sem de novo hesitar, o beneficiado decidiu, porém, prescindir do benefício, que o não era pois tratava-se do cumprimento de direitos escamoteados - e não aceitou o dinheiro.


Num país dobrado à pedincha, ao suborno, à corrupção, ao embuste, à traficância, à ganância, Ramalho Eanes ergueu-se e, altivo, desferiu uma esplendorosa bofetada de luva branca no videirismo, no arranjismo que o imergem, nos imergem por todos os lados. As pessoas de bem logo o olharam empolgadas: o seu gesto era-lhes uma luz de conforto, de ânimo em altura de extrema pungência cívica, de dolorosíssimo abandono social. Antes dele só Natália Correia havia tido comportamento afim, quando se negou a subscrever um pedido de pensão por mérito intelectual que a secretaria da Cultura (sob a responsabilidade de Pedro Santana Lopes) acordara, ante a difícil situação económica da escritora, atribuir-lhe. «Não, não peço. Se o Estado português entender que a mereço», justificar-se-ia, «agradeço-a e aceito-a. Mas pedi-la, não. Nunca!»


O silêncio caído sobre o gesto de Eanes (deveria, pelo seu simbolismo, ter aberto telejornais e primeiras páginas de periódicos) explica-se pela nossa recalcada má consciência que não suporta, de tão hipócrita, o espelho de semelhantes comportamentos. “A política tem de ser feita respeitando uma moral, a moral da responsabilidade e, se possível, a moral da convicção”, dirá. Torna-se indispensável “preservar alguns dos valores de outrora, das utopias de outrora”. Quem o conhece não se surpreende com a sua decisão, pois as questões da honra, da integridade, foram-lhe sempre inamovíveis. Por elas, solitário e inteiro, se empenha, se joga, se acrescenta - acrescentando os outros. “Senti a marginalização e tentei viver”, confidenciará, “fora dela. Reagi como tímido, liderando”. O acto do antigo Presidente («cujo carácter e probidade sobrelevam a calamidade moral que por aí se tornou comum», como escreveu numa das suas notáveis crónicas Baptista-Bastos) ganha repercussões salvíficas da nossa corrompida, pervertida ética. Com a sua atitude, Eanes (que recusara já o bastão de Marechal) preservou um nível de dignidade decisivo para continuarmos a respeitar-nos, a acreditar-nos - condição imprescindível ao futuro dos que persistem em ser decentes.

 

Nota: Repesquei esta crónica sobre o General Ramalho Eanes porque me parece importante relembrar atitudes de "seres decentes", nos dias que correm. Habituámo-nos, em tempos, a gozar-lhe a pronúncia ou a desdenhar-lhe a postura militar. Mas, muito mais importantes do que essas minudências, são a dignidade e a verticalidade que sempre demonstrou ter. Sobretudo num país que nos dá, diariamente, sinais de afrontar ou ignorar olimpicamente virtudes tão difíceis de cumprir. É justo evocarmos as honrosas excepções, e é bom que nos fiquem na memória.