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Delito de Opinião

Pensamento da semana

João Campos, 18.12.22

Agora que acabou a bola, a malta cá no rectângulo há-de reparar que se tem andado a discutir a eutanásia, mais uma vez e espero que pela última vez. Sem surpresa, nesta discussão sobre "direitos fundamentais" ou "causas fracturantes" (a designação depende do ponto de vista) a posição "conservadora" esquece-se de um detalhe: aqui, como na questão do aborto, o que está em causa não é o direito à eutanásia para a população, mas sim para a população desfavorecida. Quem tem "meios", poderá sempre fazer o que bem entender (independentemente daquilo que defende em público). Quem não tem, ou toma o assunto nas próprias mãos enquanto pode, como tantos homens no Outono da vida fizeram na minha terra há vinte ou trinta anos, ou ficam à mercê do sofrimento.

Sobre o tema, um último contributo: o documentário de 2011 da BBC2 com Terry Pratchett, um dos maiores e mais populares escritores ingleses dos últimos cinquenta anos, que deu voz ao direito à morte assistida após o diagnóstico de uma forma rara e precoce de Alzheimer que o levou demasiado cedo. Fica o link.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana.

Esquerda, direita

Pedro Correia, 16.11.21

Um partido espanhol recém-surgido, denominado España Vaciada (EV), já figura nas sondagens. Promete ser o representante dos esquecidos e negligenciados nas províncias mais pobres e despovoadas do país vizinho. Começando a alarmar os estados-maiores das principais forças políticas. Segundo uma recente pesquisa de opinião, poderá roubar seis deputados ao PP e cinco ao PSOE, conseguindo 15 representantes no parlamento.

Isto confirma que a política está em permanente mudança nos dias que vão correndo. Partidos como o EV - prefigurados no Teruel Existe, que já elegeu um deputado nas anteriores legislativas afirmando-se representante da Espanha profunda - não são de esquerda nem de direita. 

Aliás o que significam hoje a esquerda e a direita na política? Onde se situam Rui Rio, hipotético chefe da "direita", que vota a favor da legalização da eutanásia na Assembleia da República, e Jerónimo de Sousa, suposto representante da "esquerda", que vota contra a mesma iniciativa legislativa? Lamento decepcionar os cultores de etiquetas, mas esses conceitos geométricos ficaram lá para trás.

Eutanásia social

Pedro Correia, 29.09.20

Está em curso uma autêntica eutanásia social. O morticínio que tem acontecido nos chamados "lares de idosos" - muitos dos quais clandestinos, perante a criminosa indiferença de tantas autoridades autárquicas, de norte a sul do País - é algo que devia chocar todos os portugueses. Das quase duas mil vítimas mortais por Covid-19 oficialmente já registadas, cerca de 40% ocorreram naqueles antros. Vitimando gente indefesa, que na grande maioria dos casos nem pode sair daquelas instalações, onde na prática vigora um regime de reclusão forçada desde que foi declarada a pandemia.

Só em Reguengos de Monsaraz, como num filme de terror, morreram 18. Nunca a bela palavra lar foi tão conspurcada e pervertida.

Infelizmente este assunto, como se tornou hábito, vem sendo tratado apenas enquanto dado estatístico na generalidade dos órgãos de informação. E siga para bingo, pois tristezas não pagam dívidas e há que continuar a promover "spots da moda" e inserir publirreportagens nos telediários recomendando "passeios inesquecíveis" (com gel e máscara).

E colar mais um arco-íris na janela com a frase "vai ficar tudo bem". Num país em que mais de 12 milhões de consultas e cirurgias permanecem por fazer.

País real e prioridades legais

Pedro Correia, 20.02.20

Conservadores e progressistas

Alexandre Guerra, 19.02.20

O “caso” Terry Shiavo espoletou um dos maiores embates ideológicos dos últimos anos nos Estados Unidos, no âmbito das chamadas questões fracturantes, provocando um feroz debate entre conservadores e progressistas. Foi há quinze anos e desde então, que me recorde, nenhum outro assunto fracturante voltou a inflamar e a dividir a sociedade norte-americana daquela maneira.

O tema começou por assumir contornos privados, com a decisão de Michael Shiavo, marido de Terry, uma paciente que estava num estado vegetativo há 15 anos (mas não em coma), em deixá-la morrer naturalmente, tendo para isso que ser retirado o tubo através do qual se ia inserindo no seu organismo os líquidos necessários para a sua sobrevivência. Para Michael tratava-se de uma questão de dignidade da sua mulher, face a uma situação que os médicos consideravam já não ter retorno. No entanto, rapidamente esta questão extravasou para a esfera pública, até porque os pais de Terry se opunham à decisão de Michael, com quem disputavam legalmente há vários anos esta questão.

Quando a 18 de Março de 2005 foi retirado o tubo que garantia a vida de Terry, rapidamente o poder político interveio. O Congresso americano, na altura dominado maioritariamente pelos republicanos, subscreveu uma lei especial proposta pelo então Presidente George W. Bush, na qual se exigia que o tubo fosse recolocado e se atribuísse aos pais a guarda legal da filha. Enquanto Terry se ia lentamente entregando à morte, a América mergulhava nesta discussão. A clivagem foi evidente e na arena política, em termos gerais, republicanos e democratas defenderam posições contrárias. Era sobretudo o combate dos combates entre conservadores e progressistas.

Os conservadores recusavam-se a aceitar o acto de Michael e Terry porque, em última instância, poderia colocar em causa um modelo de sociedade ao qual estavam acomodados e que, apesar de tudo, no seu entendimento, funcionava em relativa harmonia. […] Esta posição identificava-se, de certa maneira, com uma política conservadora no sentido sociológico da palavra. Ordem e estabilidade são os dois conceitos basilares do espírito conservador e assim a “política conservadora advoga a permanência de uma ordem político-social quer histórica quer eterna e não reconhece a possibilidade de um regime novo e melhor que os do passado, pretextando que os caracteres fundamentais das sociedades são sempre os mesmos, sejam quais forem as épocas”. […]

Por outro lado, os progressistas estavam receptivos à descoberta de algo novo, resultante das liberdades individuais, e dispostos a aceitar as respectivas consequências sociais, desde que estas se apresentassem como benéficas para a Humanidade. Na verdade, estes viam no gesto de Michael e Terry a ideia de um progresso contínuo e ascendente da Humanidade. Na linguagem restrita da Sociologia ou da Ciência Política, “o progressismo tanto se pode opor ao marxismo como ao conservadorismo”. Do mesmo modo que um “reformista pode ser dito progressista na medida em que defenda um melhoramento progressivo do sistema sócio-político”. Veja-se, por exemplo, a definição que Raymond Aron atribui à política progressista: “A que se recusa a afirmar exclusivamente quer o fim quer a constância da História, admitindo as transformações, irregulares mas indefinidas, em direcção a um termo situado no horizonte, ele próprio justificado por princípios abstractos.” 

No caso concreto da Terry Shiavo, os conservadores seguiram a linha de pensamento tradicional, recusando qualquer prática consciente de privação da vida de um ser humano, mesmo que este esteja condenado a um estado vegetativo até ao fim dos seus dias. No campo democrata, ia-se criticando a intervenção política e legislativa nesta matéria, sublinhando que se estava perante uma clara interferência do poder do Estado na esfera privada. Os congressistas democratas sustentaram ainda que o Congresso não podia fazer o papel de médico ou de Deus, além de que estava a ir contra as decisões dos tribunais. E a verdade é que quase três semanas depois de Bush ter apresentado a sua lei, um tribunal federal considerou-a inconstitucional. A 31 de Março, os pais de Terry anunciavam a morte da filha.

Este caso tinha chegado ao fim, mas as consequências políticas perpetuaram-se. Como, aliás, escrevia na altura o correspondente da BBC em Washington: “The death of Terri Schiavo this week has not ended America's painful ethical and political debate over individuals' right to die.” Mas, o problema vai mais longe e Justin Webb acrescentava: The founding fathers, with a wisdom which truly does echo down the ages, decided that there would be a separation of powers. General laws would be made by politicians representing the people, but then interpreted and applied by judges. The reason is simple, to limit the power of government to interfere in any individuals life.”

Ora, este princípio aplica-se não apenas ao caso Terry Shiavo, mas a todos os temas fracturantes que possam emergir na sociedade, neste caso a americana, mas em qualquer outra. Então em última instância serão os tribunais a regular os processos de ruptura? Em princípio sim, se se estiver a falar num Estado de Direito. Porém, o poder político e os grupos de pressão tentarão sempre instrumentalizar o debate, de acordo com a sua doutrina. É lógico assumir que Governo e oposição se digladiem na defesa das suas ideologias, o que se reflectirá na produção legislativa.

Poder-se-á então afirmar que todos os democratas são progressistas e todos os republicanos são conservadores? Que a esquerda é mais progressista e a direita mais conservadora? Certamente que não. Mas é possível estabelecer um modelo ideológico característico para cada um daqueles campos político-partidários. Os conservadores tendem a enquadrar as questões partidárias no campo da moral e da ética e, como tal, são menos tolerantes a determinados desvios nos princípios basilares. Além de que são menos permissivos a fenómenos ocasionais que possam colocar em causa os valores da harmonia familiar e social. Por outro lado, as correntes progressistas tendem a observar o fenómeno social e humano sob a perspectiva positiva e científica, evitando reflectir sobre as eventuais consequências negativas, neste caso sociais ou morais e, até mesmo, políticas. Aceitam de forma natural o avanço científico e social.

Artigo adaptado de um excerto do livro “A Política e o Homem Pós-Humano – Novas biotecnologias e as células estaminais embrionárias: ruptura no pensamento político” (GUERRA, Alexandre [Lisboa, Alêtheia Editores, 2016])

Sobre a "terrível influência das religiões" no debate de ideias

João Pedro Pimenta, 19.02.20

 

Já me tinha saltado à vista em 2018, por ocasião da mesma discussão, e na altura fiquei calado. Mas voltei a reparar agora. Parece que há muita irritação da parte de alguns defensores da despenalização da eutanásia por haver pessoas que são contra por razões religiosas. Vai daí, lançam-se numa diatribe a favor da "laicidade do estado" (os mais suaves) ou contra "a intromissão das religiões", "os ratos de sacristia" ou a "igreja do cardeal Cerejeira" que "parece querer voltar aos tempos da Inquisição".


Convém relembrar o óbvio: a laicidade do estado significa a separação entre este e as instituições religiosas, não a supressão destas ou a sua hostilização por parte dos poderes públicos. Quanto à inquisição contemporânea e outros delírios, que eu saiba numa sociedade pluralista as religiões têm o seu lugar e as pessoas podem perfeitamente defender os seus princípios baseados na sua fé, políticos incluídos. Por isso sim, há pessoas contra por razões religiosas e isso é perfeitamente legítimo. Assim como a maioria é influenciada por razões políticas ou de outra ordem, e têm igual legitimidade. Aliás é curioso verificar como por vezes a defesa da "liberdade religiosa" para alguns parece ser ou a defesa de apenas determinados cultos ou uma atitude de "sim, tenham lá a fé que quiserem mas exprimi-la em público ou expressar ideias baseadas nela é que não pode ser". Sobretudo numa altura em que tantas opiniões são exprimidas com base em variados conceitos novos e não poucas vezes intrigantes quanto ao contexto - no outro dia lia algo sobre "uma abordagem ao colonialismo do ponto de vista LGBT(?)". Por isso, protestar contra a influência da religião no pensamento dos seus seguidores não é laicidade nenhuma, é apenas desagrado com algo que o emissor não aprecia, mas que numa sociedade aberta (ou diversa, como se diz agora), terá de aceitar, assim como as confissões tiveram de aceitar a legalidade da blasfémia. Caso contrário, não contem comigo para regressar às políticas da 1ª República de má memória.

A eutanásia

jpt, 16.02.20

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Como deveria ser sabido a eutanásia foi uma prática corrente. A estatização da sociedade reduziu-a, tal como aumentou de forma espantosa os serviços médicos (das maternidades aos paliativos, passando pelas vacinas). E espalhou a química. Vivemos melhor, com menos dores (físicas e morais), e muito mais tempo. Com tudo isto muito regulamentado (por legislação, por protocolos médicos).

Dito isto, a eutanásia a ser praticada será sempre nessas condições: muito especiais, previstas e controladas. Não haverá comités populares para acabar com os velhinhos, doutores neoliberais a poupar dinheiro ao SNS, enfermeiras demoníacas a terminar espécies determinadas de pacientes (genderizados, racializados, classificados) ...

A reacção negativa à eutanásia é muito primitiva. Lembra-me aquilo do aborto (perdão, ivg): seguir-se-ia um aumento gigantesco de malvadas mulheres a esventrarem-se, cultuando fetos devastados. Mas ... reduziram os abortos (perdão, as ivgs).

Vivemos melhor? Óptimo. Deixai-nos lá morrer melhor. Em liberdade. Naquilo do livre-arbítrio. Ou, dizendo de outra forma, tende (bom) juízo.

Sobre a Eutanásia (3)

Paulo Sousa, 15.02.20

Surpreende-me a convicção dos intervenientes do debate sobre a Eutanásia, e digo isto em relação aos dois lados da barricada.

A dimensão humana e civilizacional do assunto não permite uma visão a preto e branco.

Se eu tivesse certezas sobre a proibição absoluta da eutanásia agarrar-me-ia aos argumentos que são queridos a muitos dos seus defensores. Quantos dos que defendem a liberalização desta práctica não rejubilaram quando o Tribunal Constitucional travou as medidas do governo da Troika, dizendo que defender a CRP era defender o regime e a democracia, 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais, Grândola Vila Morena, etc...

A esses defensores da CRP lembraria apenas o seu artigo 24º - 1. A vida humana é inviolável.

Se por outro lado eu defendesse a liberalização da eutanásia e conseguisse ignorar a rampa deslizante que comprovadamente ocorreu e continua em curso nos países pioneiros desta práctica, argumentaria que independentemente da convicção de cada um a questão não se levanta se o devemos fazer, mas sim se aceitamos que quem o pretenda o possa fazer.

Emmanuel Kant defendeu a separação entre a moralidade e o direito, e é esse o mundo em que vivemos. Aceitamos que seja legal multar um camionista em 800€ por ultrapassar o limite de carga em 20Kg, ou que um chefe de família que recebe o ordenado mínimo seja multado em 150€ porque não é acompanhado da factura da compra de uma bilha de gás, apesar de todos concordarmos que estes dois casos são absolutas imoralidades. Aceitamos que o aborto seja legal mesmo que o achemos imoral. Na mesma linha se eu tivesse certezas absolutas, que não tenho, defenderia que mesmo que eu recusasse a eutanásia para mim e para os meus, poderia aceitar que outros, mesmo violando o art.24º da CRP, decidissem de forma diversa.

Não vejo ninguém a usar estes argumentos e, mais uma vez, fico surpreso com tanta certeza exibida num assunto tão propício a dúvidas.

Tudo aponta para que os deputados defensores da eutanásia despachem o assunto num espírito de "another day in the office" ignorando uma máxima do bom senso que consiste em dar a cada coisa da nossa vida a devida proporção. A vida, mesmo para quem sofre irremediavelmente, tem muito mais importância do que a que lhe estão a dar num debate de esguelha assim como quem vai a caminho de um almoço importante.

Para questões difíceis como esta importa especialmente definir um critério duradouro que possa ser explicado e válido daqui a várias gerações. Nos dias de hoje recorrer aos dez mandamentos em busca de um critério cobriria, obviamente, de ridículo quem o fizesse, mas o art. 24º da CRP é claro e sucinto. Sem que seja reescrito, alterado ou modernizado, como preferirem, sou desfavorável a este arranjo parlamentar.

Sobre a Eutanásia (2)

Paulo Sousa, 14.02.20

Os Xás da dinastia Pahlavi da Pérsia, actual Irão, pretendiam modernizar e ocidentalizar o país. Sabiam que isso iria criar uma grande fricção com os sectores mais tradicionalistas mas não vacilaram. Ainda antes da Segunda Guerra Mundial exigiram que as mulheres deveriam ter no mínimo 15 anos para se casarem, passaram a permitir os divórcios, e deram iguais direitos de acesso à educação aos dois sexos. Além disso, proibiram o véu islâmico.

Quem é que nos dias de hoje, observando estas medidas com os olhos de 2020 aqui encontraria desequilíbrios? Acontece que a proibição do véu islâmico levou a que inúmeras mulheres preferissem não sair de casa a ter de o fazer com a cabeça descoberta. E isso levou a que ficassem dentro de casa durante os resto dos seus dias.

Algumas décadas mais tarde, as senhoras que sobreviveram a esta proibição, os seus filhos e filhas, celebraram efusivamente a Revolução dos Aiatolas.

Este é um exemplo de como uma medida que pretendia “modernizar” um país, imposta rigidamente de cima para baixo, sem respeitar as convicções dos seus cidadãos, acabou por marcar negativamente uma geração. As mulheres iranianas vivem agora sufocadas com uma proibição simétrica.

Lembrei-me disto agora que esta maioria de circunstância quer aproveitar o momento para impor uma prática sobre a qual o país não está claramente decidido. Está tão convicta que é “agora ou nunca” que não aceita um referendo. Tal como o Xá Pahlavi não duvidam que as suas convicções devem ser a convicções dos cidadãos e desprezam quem não pensa da mesma maneira.

No minuto seguinte lembram-nos que devemos combater os populistas, que criticam a classe política por viver desligada das convicções dos cidadãos.

Da vida animal e da vida humana

Pedro Correia, 14.02.20

 

Medida 673 do programa eleitoral do PAN:

«Rever os critérios legalmente estabelecidos para o abate de animais de companhia por parte dos CRO [centros de recolha oficial], clarificando os casos em que é possível a occisão dos animais, nomeadamente, afastando essa possibilidade por motivos de doença infecto-contagiosa que seja tratável, assim como por motivos comportamentais reversíveis, permitindo que, nesses casos, seja possível a recuperação do animal e o seu encaminhamento para adopção ao invés do abate.»

 

Medida 702 do programa eleitoral do PAN:

«Proibir o abate [de pombos] como método de controlo da sobrepopulação.»

 

Medida 871 do programa eleitoral do PAN:

«Despenalizar a morte medicamente assistida, por decisão consciente e reiterada da pessoa, com lesão definitiva ou doença incurável e irreversível e que se encontra em sofrimento duradouro e insuportável.»

Sobre a Eutanásia (1)

Paulo Sousa, 13.02.20

Sempre que mais um tema dos chamados fraturantes regressa ao debate, lembro-me imediatamente da cabeça de vaca de que já aqui falei.

Há outra imagem que pode ilustrar o que se está a passar. Quando os criadores de gado sul-americanos transportam uma manada e têm de atravessar um rio com piranhas lançam um boi velho ou doente à frente e, enquanto o cardume o devora, eles sorrateiramente aproveitam para passar com a restante manada. Chamam-lhe o boi de piranha.

O factor cabeça de vaca, ou se preferirem boi de piranha, é perfeitamente conhecido do nosso hábil Primeiro-Ministro. No Governo de José Sócrates, em que António Costa era o número dois, o casamento gay teve esse mesmo efeito. Todos debatíamos e elaborávamos sobre princípios e critérios enquanto o país acelerava convicto rumo a mais uma falência das finanças públicas.

Em 2020 novamente enquanto durarem os rígidos rituais do debate, desta vez sobre a eutanásia, não se falará de:

Sou pró vida boa

Teresa Ribeiro, 13.02.20

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Inesquecível, aquela cena em que o Conde de Almásy, interpretado por Ralph Fiennes, pede à enfermeira Hana, a personagem de Juliette Binoche, que o mate. Não falam. Ele pede-lho com o olhar e ela desaba em lágrimas. O seu paciente inglês, um destroço humano com o corpo totalmente queimado, fartara-se de tanto sofrer. Por isso, a soluçar, ela obedece e liberta-o.

Quantos dos que hoje integram os movimentos "pró vida" se terão comovido com esta cena? E quantos destes terão, no escurinho do cinema, compreendido e aceite a decisão daquela enfermeira? O cinema, porque nos torna omniscientes enquanto espectadores, é por vezes muito eficaz a desatar os nós morais que nos tolhem o raciocínio.

"O Paciente Inglês", a obra-prima de Anthony Minghella, não passa, porém, de um filme. Falemos pois da realidade. Por exemplo, a de Ramón Sampedro, o marinheiro que ficou tetraplégico após um acidente de mergulho. A sua história é muito conhecida porque deu um outro filme: "Mar Adentro", de Alejandro Amenábar. E deu um filme porque ele teve de lutar, durante oito anos, para conseguir fazer suicídio assistido, tendo até escrito um livro em que partilha os seus estados de alma. Chamou-lhe "Cartas desde o Inferno".

Ramón Sampedro viveu durante 30 anos preso a uma cama e a um corpo inerte. Só de imaginar que tal me pudesse acontecer, angustia-me. Que sofrimento atroz! Enquanto faço este simples exercício, que é o de tentar colocar-me na pele do outro, penso naqueles que se sentem no direito de proibir o suicídio assistido e então pergunto-me: com que autoridade?

Instalados no conforto das suas vidinhas sem dor, dizem que o que é preciso é apostar nos cuidados paliativos, sabendo que o que não faltam são exemplos de pessoas que recebem cuidados paliativos de excelência e que mesmo assim querem morrer. Os cuidados paliativos não resolvem tudo, essa é a verdade. Mas os donos da ética preferem ignorá-lo, ocupados que estão a colocar os seus princípios humanistas acima da incómoda realidade.

Os comentários da semana

Pedro Correia, 03.06.18

«Quem deu cabo da decisão democrática e informada sobre a eutanásia forma os partidos, todos. O PS, logo à partida, porque não a tendo no programa, a agendou só para não perder a liderança para o BE, por oportunismo e também porque, se fosse aprovada, era propaganda que lhe saía barata e até pode poupar alguns euros.


O BE, porque com o seu radicalismo idiota e discurso pedregoso, insensível, impede qualquer debate sereno e equilibrado.

O CDS porque faz vir a beatice cristã ao de cima; ai os valores da vida, ai deus que não gosta nada disto, ai os velhinhos com injecção atrás da orelha.

O PCP porque é cada vez mais labrego, para não dizer salazarento, nas questões civilizacionais. E porque a eutanásia é um acto liberal, neo-liberal mesmo, o grande capital monopolista portanto, veja-se a Suíça.

O PSD porque está numa fase ventoinha em que muda como os ventos, o Cavaco isto, o Rui Rio aquilo, o Pacheco Pereira aqueloutro, incapaz de argumentar com solidez seja o que for.

O único processo democrático seria um debate nacional alargado, entre cidadãos e entre instituições, sem a mínima intromissão partidária. Onde se soubesse, clarinho, preto no branco, como se têm passado as coisas nos países que permitem o suicídio assistido e nos países que têm internamento geriátrico ou cuidados continuados acessíveis.

Sou liberal, radicalmente a favor de um liberalismo regulado onde todos os abusos sejam erradicados. Portanto a favor do direito ao suicídio assistido, assumido pelo próprio, prevenido com todas as garantias e contra todos os 'buracos' que os legisladores costumam engenhosamente disfarçar. Um só caso de morte duvidosa tem de fazer parar todo o sistema para repensar. É essa a lei que eu quero.»

 

Do nosso leitor Mário Ricca Gonçalves. A propósito deste meu postal.

 

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«— Ó Sr. Dr., a minha nora disse-me para lhe pedir a eutanásia, porque ela e meu filho querem sair do Montijo e vir viver para a minha casa em Frielas e eu já tenho 75 anos e já não preciso de estar vivo mais tempo. Sempre é mais perto — e estão do lado de cá. Como é que alguém diz não aos mais pequenos? Bom, não interessa, está decidido. Como é que avançamos com isto? As aulas do meu neto começam em Setembro e dava jeito já estarem na minha casa em Agosto.
— Bom, isto não é assim... Você tem de fazer um requerimento e depois pagar as tramitações e depois há uma entrevista e normalmente espera-se um mês ou dois até aparecer um médico voluntário.
— Então e se for você?
— Bom, isso logo se vê... Tem é de pagar €936,82 à cabeça. Antes da eutanásia, claro.
— Mas que diabo... €936, 82???! Eh pá, como é que dá isso?
— Tem um custo fixo para o Estado e depois há umas taxas novas. O custo fixo é de 732,94, depois tem a Taxa do Processo Histórico de 93,44 para os Projectos Sociais Esquerda. O requerimento ainda leva o selo "PAN+Catarina Martins", que é 5 euros. Ah, espere lá. Há também uma Taxa Medina, que é uma taxa municipal de 105,44 para remoção de resíduos hospitalares especiais.
— Mas, foda-se, eu moro em Loures!!!»

 

Do nosso leitor V. A propósito deste texto do João Villalobos.

Quem deu a táctica ao PSD

Pedro Correia, 30.05.18

«Como cidadão, sem responsabilidades políticas, o que posso fazer para manifestar a minha discordância é fazer uso do meu direito ao voto contra aquelas que votarem a favor da eutanásia. Nas eleições legislativas de 2019 não votar nos partidos que apoiarem a legalização da eutanásia e procurar explicar àqueles que me são próximos para fazer a mesma coisa.»

Cavaco Silva, à Rádio Renascença (25 de Maio)

 

«Não é difícil concluir que nem a eutanásia se pode confundir com o suicídio assistido, nem a elevação deste à categoria de instrumento legal, admitido socialmente para lidar com a dor, em qualquer dos seus superlativos, pudesse ser tomado como “natural” e razoável. Vai uma distância grande entre constatar a existência do suicídio como resultado de uma escolha sempre problemática, e que nos choca, e a sua celebração legal como forma razoável de lidar com as situações difíceis da vida.»

Pedro Passos Coelho, ao Observador (26 de Maio)

 

«O não faz sentido nenhum, neste momento, aprovar mais uma medida legislativa das chamadas questões fracturantes, depois de várias outras que a Assembleia da República já decidiu nesta legislatura e com esta maioria parlamentar, sem que os eleitores tivessem sido avisados para o efeito. Não tem nexo que seja o PSD, por causa da liberdade de voto, a viabilizar o cumprimento de mais um ponto do acordo entre o PS e o Bloco de Esquerda.»

Pedro Santana Lopes, ao Expresso (26 de Maio)

 

«Lamento um pouco notar que, relativamente aos movimentos e às pessoas que defendem o não, há um excesso na pressão sobre os do sim.»

Rui Rio, aos jornalistas, citado pela Lusa (25 de Maio)

A votação da eutanásia.

Luís Menezes Leitão, 30.05.18

Rui Rio começa a ter um problema semelhante ao que Freitas do Amaral teve no CDS. Este não gostava do eleitorado que tinha e em consequência esse eleitorado deixou de se rever nele. Com excepção dos líricos do costume, os deputados do PSD demonstraram na votação da eutanásia saber perfeitamente quem são os seus eleitores. O PCP, para escândalo geral da esquerda folclórica, também há muito o percebeu.

"As coisas são como são"

João Villalobos, 29.05.18

Como costuma dizer-se; "É a vida". Existiram posições públicas de parte a parte, existiu uma votação nominal escrutinável d@s deputad@s dos diferentes partidos e o resultado foi, democraticamente, o que foi. A história parlamentar ensina-nos que as causas chamadas fracturantes surgem e regressam, com resultados diferentes, ao longo do designado processo histórico. Saber respeitar as decisões e nem por isso deixar de lutar por aquilo que entendemos poder ter sido - ou possa vir a ser - uma decisão diferente, é a base do nosso modelo constitucional. Dito isto, e por enquanto, o senhor presidente da República já ficou sem mais uma razão para dor de cabeça. "As coisas são como são", escrevia em jeito de assinatura Victor Cunha Rego. Convém relê-lo, nestas como em outras alturas.

Direitos inalienáveis...?

João Pedro Pimenta, 29.05.18

Não tenho, por princípio, uma opinião muito favorável à eutanásia (não se confunda com outras figuras, como a ortotanásia, ou seja, permitir o curso da vida sem suportes desnecessários). Menos ainda quando um grupo de partidos decide legalizá-la sem que tal estivesse inscrito nos respectivos programas eleitorais, sem um debate realmente aprofundado, por mera vontade de fazer acelerar uma legislação "progressista", que ainda por cima existe em pouquíssimos países, e não será por acaso. Ou seja, uma questão da maior gravidade pode passar por uma questão de afirmação política, quando nem sequer se deu oportunidade aos eleitores de exprimir uma opinião que fosse - e recordo que o PS recusou num primeiro momento a votação do casamento de pessoas do mesmo sexo por não ter inscrito a questão no seu anterior programa eleitoral.

 

Mas tenho acima de tudo uma dúvida: caso a eutanásia seja mesmo despenalizada, deixaremos de poder falar em "direitos inalienáveis"? É que francamente, não conheço direito menos inalienável do que a Vida. Caso deixe de o ser, façam o favor de, doravante, apagar a expressão de todas as normas, códigos e manuais onde ela exista.

Voto secreto e consciência livre

Pedro Correia, 28.05.18

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Não sei quem faz assessoria de comunicação a Rui Rio, mas não está a resultar. Alguém lhe soprou ao ouvido que é necessário "aparecer", para dizer não importa o quê. É um péssimo conselho.

Há uns dias, o líder do PSD insurgiu-se contra o facto de o policiamento dos estádios ser pago com "os impostos dos portugueses". Estava mal informado pelo tais que lhe sopram ao ouvido. Esse policiamento é assegurado pela Federação Portuguesa de Futebol, entidade autónoma do Estado, financiada em larguíssima medida pela UEFA.

Hoje voltou a errar o alvo. Mas com maior gravidade. Ao defender o "voto secreto" no hemiciclo na apreciação dos quatro diplomas sobre a legalização da eutanásia que amanhã estarão em debate no Parlamento. Para Rui Rio, os deputados devem "agir em função da sua consciência" e, para o efeito, terão de sentir-se "completamente livres" neste processo de decisão - algo que, no seu entender, apenas o voto secreto assegura.

Extraordinário raciocínio, nada lisonjeiro para os 89 parlamentares do PSD. Rio, que não tem assento na Assembleia da República, entende que um deputado só se sente "completamente livre" quando decide por voto secreto, sem se submeter ao escrutínio da opinião pública em geral e dos seus eleitores em particular, passando incólume pelos pingos da chuva.

Eis uma amostra do tal "banho de ética" que o sucessor de Passos Coelho prometeu trazer à política portuguesa. Banho, sim. Mas apenas no sentido de meter água.