Chiça!
O autor da moeda do Eusébio já foi detido para interrogatório? Por muito menos o António Costa foi duramente punido pelos eleitores nas últimas legislativas.
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
O autor da moeda do Eusébio já foi detido para interrogatório? Por muito menos o António Costa foi duramente punido pelos eleitores nas últimas legislativas.
«O Eusébio no Panteão? Claro que choca! É uma vergonha! É uma bacoquice, é uma pelintrice.»
J. Rentes de Carvalho, em entrevista ao DN
É ou foi Ronaldo o melhor do mundo? Provavelmte sim, em determinadas épocas ou períodos. Sempre, se lhe perguntarem a ele ou se ele perguntar ao seu espelho. Mas essa corrida, com Messi, Robben, Ribéry ou Neymar, diz-nos pouco. Os terrenos onde se travam as suas batalhas principais são a Champions. É mais coisa de Real Madrid, Barcelona e Bayern do que de Portugal contra o resto do mundo. O duelo que verdadeiramente nos interessava que Ronaldo vencesse é aquele que disputa com Eusébio. Infelizmente, parece nunca mais chegar lá. A Eusébio sobra-lhe Coreia, entroniza-o a epopeia, ali onde Ronaldo fica de escasso. E nós trocaríamos de bom grado o seu título individual de melhor do mundo num determinado momento pela eternidade de ter feito o que sempre lhe falta para ser o melhor futebolista português de todos os tempos.
Nesta hora, de Newark a Macau, de Lisboa a Maputo, "Somos Eusébio", "Somos Benfica", e não nos arrependemos.
Apenas uma semana mais tarde começo a compreender que este é um mundo onde Eusébio já não vive de corpo presente. Até agora era uma realidade estranha, como se fosse uma piada nem de bom nem de mau gosto, uma espécie de notícia falsa, à qual se reage com um comentário simples de «isso não é possível pá, Eusébio não morre, é uma impossibilidade». E não falo da imortalidade que lhe estará reservada, falo da imortalidade daquelas personagens de ficção, como na banda desenhada em que Bruce Wayne terá sempre os seus 30 anos de idade e não envelhece de 1950 a 2010. Eusébio não pode morrer porque Eusébio nunca existiu.
Eu vi de perto o Eusébio da Silva Ferreira uma única vez, em Leiria, quando uma equipa de reservas do Benfica foi jogar com uma selecção distrital (que era o União de Leiria com mais um ou dois jogadores extra para compor o quadro). Aproximei-me, pedi-lhe um autógrafo, deu-mo e continuou a conversar com outras pessoas. Ainda o terei algures lá em casa, mas nem sei onde. Para mim foram mais preciosos o do Chalana (na altura regressado ao Benfica) e o do Hernâni. Eusébio da Silva Ferreira, o homem que me deu o autógrafo, não era Eusébio, o tipo que deu 4 aos norte-coreanos.
É por isso que a história do Panteão não me aquece nem me arrefece. Muito sinceramente, é uma discussão, neste momento, insensível. Eusébio antes de ser o Pantera Negra ou o King era Eusébio da Silva Ferreira, filho, pai, marido, avô, amigo. As pessoas que choram a morte de Eusébio da Silva Ferreira fazem-no independentemente do desaparecimento de Eusébio. Essas pessoas têm o direito de sepultar quem amam onde querem e sem intereferência de um povo que lhes quer retirar esse direito. Eusébio da Silva Ferreira deveria ficar sepultado onde está, no cemitério do Lumiar, o qual é público e onde qualquer pessoa pode entrar. O túmulo de Eusébio, o jogador e símbolo público, deve estar onde sempre esteve: na forma da estátua em frente do Estádio da Luz. Seria justo a Federação Portuguesa de Futebol pensar numa qualquer homenagem para o mundial e organizar algo com a federação moçambicana. Mais que isso não vale a pena.
Eusébio foi um futebolista e um embaixador do futebol do Benfica e de Portugal. Nessa qualidade, tem muitas homenagens. Eusébio da Silva Ferreira foi apenas um homem. O Panteão não é para ele.
Eusébio, um dos maiores jogadores de sempre do futebol português, merecia o tributo das bancadas nos instantes que antecederam o Estoril-Sporting. Infelizmente o tempo é mais propício à javardice parola e exacerbada, como ficou demonstrado por elementos das claques presentes no estádio António Coimbra da Mota ao trocarem o minuto de silêncio por estrondosas vaias e cânticos tribais.
Vítor Damas, um grande símbolo de sempre do Sporting que também já não se encontra entre nós, foi adversário leal e um bom amigo de Eusébio. Tenho a certeza de que seria o primeiro a deplorar esta inaceitável atitude de adeptos incapazes de reconhecer mérito em figuras de outros clubes e de respeitar com decoro e dignidade a memória de quem partiu.
Que Sophia merece o Panteão, acho que nem se discute. Pergunto-me é quais serão afinal os critérios de selecção, e sobretudo fico aparvalhada com esta forma de dar notícias... como se ela estivesse em competição com o Eusébio para ver quem chega lá primeiro. Este país ensandeceu de vez??
(Para já não falar no crescente analfabetismo dos jornalistas. Quando a TSF escreve, assume e assina por baixo a palavra "transladada", acho que está tudo dito.)
Actualização: afinal as palavras "trasladação" e "transladação" são sinónimos, ambas estão correctas. Agradeço aos comentadores que fizeram a correcção. Sempre a aprender.
Eusébio travado em falta na jogada mais emocionante do Portugal-Coreia do Norte (1966): ainda não hava cartões vermelhos
É o mais célebre jogo de sempre da selecção nacional de futebol -- aquele de que todos falavam mas poucos tinham visto. Até agora. Porque a TVI24, numa verdadeira missão de serviço público, lembrou-se em boa hora de o transmitir na íntegra a pretexto da morte de Eusébio, marcador de quatro dos cinco golos portugueses dessa partida.
Aconteceu na quarta-feira e apesar das imagens serem a preto e branco -- o Portugal-Coreia do Norte realizou-se a 23 de Julho de 1966 -- a emissão resultou num enorme sucesso: o canal de notícias da TVI no cabo obteve o maior número de sempre de espectadores, com 4,8% de audiência média e uma quota de audiência de 9,8%. Quase meio milhão de pessoas acompanhou o desafio no serão de anteontem.
Eu fui uma dessas pessoas. E tenho de felicitar a TVI24 pela proeza. Desde logo porque não se limitou a transmitir o mítico jogo dos quartos de final do Campeonato do Mundo de 1966, considerado o melhor desse certame. Teve também a excelente ideia de reunir em estúdio três jogadores dessa selecção, dois dos quais participaram no jogo: o benfiquista José Augusto e os sportinguistas Hilário e José Carlos. Com Fernando Correia -- que já relatava jogos de futebol há 48 anos -- encarregado de recriar um pouco do ambiente daquela época, em que os portugueses acompanhavam os jogos de futebol sobretudo através de relatos radiofónicos pois eram raras as partidas transmitidas pela televisão.
Hilário e José Augusto nunca tinham visto na íntegra as imagens daquele desafio em que foram dois dos mais destacados participantes. E portanto os seus comentários ao longo do jogo tornaram-se noutro espectáculo dentro do espectáculo da emissão, muito bem conduzida pelo jornalista Joaquim Sousa Martins.
A visão integral do jogo permitiu desfazer alguns mitos, que passarei a enumerar:
- Naquele desafio, por bandas de Portugal, jogaram "Eusébio mais dez". Não é verdade: Eusébio foi excelente, mas vários outros jogadores destacaram-se. Desde logo Simões, incansável no corredor esquerdo. E José Augusto. E Jaime Graça. Sem esquecer Hilário: nenhum dos três golos norte-coreanos ocorreu no lado esquerdo da nossa defesa, onde ele era um baluarte;
- Aquela selecção quase só tinha jogadores do Benfica. Falso. Do Benfica, neste jogo, eram cinco: Eusébio, Coluna, José Augusto, Torres e Simões. Havia três do Sporting (João Morais, Hilário e Alexandre Baptista), dois do Belenenses (José Pereira e Vicente Lucas) e um do Vitória de Setúbal (Jaime Graça);
- Os coreanos dominaram, pelo menos na primeira parte. As imagens não mostram nada disso. Excepto no quarto de hora inicial, quando a pressão ofensiva da equipa adversária foi mais notória, Portugal dominou sempre a partida. Sem nunca se desviar da rota do golo.
- Naquele tempo jogava-se um futebol muito mais lento. Pelo contrário, este jogo desenrolou-se a uma velocidade estonteante, do primeiro ao último minuto. Sem tempos mortos, mesmo quando havia interrupções por faltas. Sem manobras ardilosas dos jogadores para retardarem o tempo de jogo. E numa espécie de antecipação do "futebol total", com frequentes incursões dos avançados em manobras defensivas. Futebol-espectáculo por excelência.
Os 11 que jogaram contra a Coreia do Norte: Alexandre Baptista, Jaime Graça, Hilário, Vicente, Morais, José Pereira (em cima), José Augusto, Torres, Eusébio, Coluna e Simões (em baixo)
Por uma questão de idade, nunca tinha visto este jogo. Mesmo muitos portugueses que já eram adolescentes ou adultos naquela época não chegaram a assistir ao Portugal-Coreia do Norte porque os televisores não tinham nessa época a difusão que hoje têm.
Está de parabéns a TVI por ter concretizado esta missão de serviço público. Que devia envergonhar a RTP, detentora de um canal Memória que é capaz de passar na íntegra o jogo Cascalheira de Cima-Alguidares de Baixo de há vinte e três anos mas nunca voltou a difundir o Portugal-Coreia do Norte, cujas imagens certamente a televisão do Estado possui em arquivo.
Fica agora um pedido extra aos responsáveis da TVI24: e que tal difundirem o Portugal-Brasil, também do Mundial de 1966? Será novo sucesso garantido, tenho a certeza.
Também aqui
"E há mais. Há que Eusébio era um génio da sua profissão e de repente (tirando Garrett e Amália) o rodeiam de uma série de mediocridades, que nunca se distinguiram por terem ajudado a humanidade ou os portugueses. Sim, senhor, Eusébio merece um Panteão. Mas não aquele. Um Panteão no estádio do Benfica, ou perto dali, que as pessoas pudessem visitar sem medo de se irritar ou contaminar. Quanto ao Panteão Nacional, do que ele precisa com urgência é de um “saneamento” sucessivo, que o aproxime um pouco da realidade."- Vasco Pulido Valente, Público, 10/01/2014
A propósito deste post da Helena Sacadura Cabral e do que sobre o mesmo comentei, confesso que não obstante o que outros já decidiram, começo cada vez mais a inclinar-me para esta solução que Vasco Pulido Valente propõe. Talvez que a família de Eusébio e o Benfica também tenham algo a dizer.
Juan Belmonte foi um dos nomes maiores da tauromaquia. Para além de ter imposto, nas primeiras décadas do século passado, um estilo de toureio que rompeu com os cânones da lide de então, ficou conhecido por ser um leitor entusiasta, tendo entre os seus autores preferidos Stendhal e Doistoievsky. Para além de dominar a arte do temple na arena, tinha também um refinado sentido de humor. Certo dia, Valle-Inclán, figura maior da literatura espanhola, entusiasmado com determinada actuação, ter-lhe-á dito que para ser considerado o maior de todos os tempos só faltaria morrer na praça. Ao que Belmonte terá respondido, templando cada palavra: far-se-á o que for possível, Don Ramón. Num outro episódio, Belmonte, acompanhado de um amigo, assistia a uma corrida de touros com fins de beneficência. A presidir ao evento encontrava-se o Governador Civil daquelas paragens. A certa altura, este terá localizado Belmonte entre o público e foi ao seu encontro, ali o submetendo a uma calorosíssima recepção. Passados longos minutos, e tendo o Governador Civil finalmente regressado ao palanque presidencial, o amigo interpelou-o: Don Juan, e de onde vieram tais conhecimentos? Belmonte terá explicado que, em tempos, o agora frondoso Governador Civil, tinha sido seu bandarilheiro. O amigo, algo céptico, insistiu: e como é, D. Juan, que alguém que foi um simples bandarilheiro chegou a Governador Civil? Não foi preciso outro pretexto para Belmonte desferir uma das suas mais célebres estocadas: degenerando, caríssimo companheiro, degenerando. É nesta monumental faena de Belmonte que não posso deixar de pensar perante o triste espectáculo a que temos assistido a propósito da morte de Eusébio. A começar nas intervenções de Assunção Esteves, passando pelas declarações de Mário Soares e acabando na desconchavada colagem de José Sócrates à figura do futebolista, temos tido episódios maus de mais. Como terá esta gentinha chegado, em diferentes momentos, aos mais altos cargos da Nação? Confesso que só me ocorre a explicação de Belmonte. Degenerando, caríssimos companheiros. Degenerando.
A presidente da Assembleia da República não acerta uma. Já era despropósito suficiente aceitar pronunciar-se sobre a possível trasladação dos restos mortais de Eusébio para o Panteão Nacional no próprio local onde decorria o velório. Pior foi falar em dinheiro numa situação destas, com uma chocante falta de sensibilidade, invocando os "custos muito elevados" dessa trasladação. E esteve ainda pior quando desceu ao concreto, aludindo às "centenas de milhares de euros" que isso acarretaria aos cofres do Parlamento - tudo isto antes de se realizar o funeral de Eusébio para o cemitério do Lumiar. No fim, o seu gabinete viu-se forçado a clarificar a questão num comunicado em que já se menciona uma quantia bem menor: 50 mil euros.
O que nos reconduz ao princípio: Assunção Esteves nunca devia ter falado como falou, no local onde falou, nas circunstâncias em que falou. E sobretudo nunca devia ter falado do que não sabe. Ao menos para evitar ser desmentida pelo seu próprio gabinete.
"He was the prototype of a complete 21st-century striker, decades ahead of his time; a superb athlete (he ran the 100 metres in 11 seconds at the age of 16) with explosive acceleration who could leave defenders trailing in his wake. He could also dribble, was good in the air and possessed a fearsome and highly accurate right foot."
O obituário com que todos sonham. As imagens que perdurarão. Graças ao The Guardian.
Num mar de declarações sentidas pela perda de um dos mais marcantes e famosos portugueses do séc. XX, sobressaiu o desastre proferido por Mário Soares, que destacou Eusébio como um "homem de pouca cultura", "que só percebia de futebol" e sobre o qual "não sabia estar doente", embora "soubesse que ele bebia whiskey todos os dias, de manhã e à tarde". (para quem não acredita, vejam vídeo)
Apetece perguntar o que se dirá quando Soares falecer. Eu proponho: "Morreu um gordo, com pretensões de intelectual, conhecido pela sua incontinência verbal".
Havia nele a máxima tensão
Como um clássico ordenava a própria força
Sabia a contenção e era explosão
Não era só instinto era ciência
Magia e teoria já só prática
Havia nele a arte e a inteligência
Do puro e sua matemática
Buscava o golo mais que golo – só palavra
Abstracção ponto no espaço teorema
Despido do supérfluo rematava
E então não era golo – era poema.
Quando a minha mãe esteve internada no no recém-inaugurado Hospital da Luz, no quarto ao lado estava o Eusébio. Era sempre complicado passarmos a barreira de segurança que preservava o doente famoso de jornalistas, fotógrafos e meros penetras, tínhamos de provar a nossa identidade para passar da sala de entrada do piso ao corredor dos quartos (o hospital fervilhava de esquemas para furar essa barreira). Íamos sabendo da evolução do estado dele pelas enfermeiras e pelas notícias cá fora, e um dia soubemos que ele tinha tido alta e ia sair nessa tarde. Por acaso cheguei ao hospital muito cedo nessa manhã, ainda não tinha começado o circo mediático. Passei a sala e entrei no corredor ainda silencioso, completamente deserto. Hesitei, voltei a hesitar, mas a curiosidade foi mais forte: não resisti e espreitei pela porta aberta do quarto de Eusébio, como se me tivesse enganado na porta. Estava sozinho e acordado, olhou-me, disse "bom dia" e sorriu. Nem um pingo de enfado, contrariedade ou irritação perante aquela inesperada invasão da sua privacidade. Nem um gesto para chamar o segurança, ausente por momentos. Só um sorriso simpático, quase um convite para entrar. Dei-lhe de volta o meu melhor sorriso e os bons-dias, pedi desculpa pelo "engano" e desejei-lhe as melhoras. Saíu nessa tarde, a minha mãe saíu poucos dias depois. Não voltei a vê-lo. Mas hoje, no dia do anúncio da sua morte, lembrei-me deste episódio e deixo aqui a história. É a minha homenagem a um homem grande a quem a fama nunca corrompeu nem roubou a simplicidade.
Quando eu nasci o nosso Benfica tinha acabado de conquistar a segunda Taça dos Campeões Europeus. Não sei desde quando é que me reconheci como sendo mais um dos que faziam parte da tua tribo, mas lembro-me bem dos domingos passados dentro do carro do pai Eurico, primeiro num Peugeot, esporadicamente num Mercedes, mas a maior parte das vezes dentro do velhinho Fiat 1500 que tantas vezes nos transportou até ao velho campo do Sport Lisboa e Beira, onde o Shéu despontou. Não raro, quando havia festa lá em casa, aproveitava sorrateiramente para sair e ia para dentro do Fiat ouvir o relato. Nessa altura, era através dos relatos da Emissora Nacional, do Rádio Clube e da Radio Pax que eu me encontrava contigo. Não raro quando me descobriam, já a noite tinha caído nas margens do Chiveve, encontravam-me em pranto, agarrado a uma bola vermelha e branca. E quando me perguntavam o que se tinha passado eu explicava que só tínhamos ganho por 3-0, que tu só tinhas marcado dois golos, que isso era imperdoável. Abalado, lá me obrigavam a sair do carro, porque já eram horas de jantar e o menino não podia estar ali no quintal àquelas horas, sozinho, agarrado a uma bola, chorando dentro de um carro. No velho ciclo, de cada vez que marcava um golo, ou quando fugia de casa, na Ponta Gea, do outro lado do Grande Hotel, e ia jogar futebol na praia com a criadagem da zona, o que irritava solenemente a Mélita, nunca era eu quem marcava. Quando isso acontecia, instintivamente, eu gritava "Golo do Eusébio!". Tal e qual como fazia o saudoso Artur Agostinho. Naquele momento tu incarnavas em mim e quem marcava eras sempre tu, não eu. Depois, quando o "pequenino" me arrastava para casa, ao final da tarde, para me obrigar a tomar banho antes de jantar, lá seguia satisfeito perguntando-lhe se tinha visto o meu golo, ao que ele respondia que o menino tinha marcado "um golo à Eusébio". Nada me deixava mais satisfeito.
Mais tarde, já a viver em Lisboa, à medida que crescia, ia ouvindo as histórias do nosso Benfica, contadas pelo meu padrinho Fernando Luís. Era eu quem nessa altura, depois dele ter cegado, lhe lia religiosamente "A Bola". Um dia foi a avó Gertrudes que me levou a ver a sala de troféus e me comprou o primeiro emblema. Exultei com a oferta. Foi nessa altura que fiquei a saber tudo sobre a construção do velho Estádio da Luz, do azulejo com o nome numa das torres de iluminação, do falecimento do marido dela em pleno Estádio, a acender um charuto, das epopeias de Berna e de Amesterdão. Da final de 68 ainda me lembro bem. E também de todos aqueles jogos que jamais esquecerei, alguns que tanto me fizeram sofrer como contra o Celtic e contra o Ajax. Eras sempre tu, não Deus, aquele em quem eu acreditava nos momentos de verdadeira aflição. Houve uma altura em que me cruzava contigo muitas vezes na Óscar Monteiro Torres. Tinhas o pequeno Saab amarelo e frequentavas o desaparecido Quartier Latin. Então, eu nadava no Benfica, no Areeiro, e na piscina do Ateneu. Inclusivamente, houve uma ocasião em que tiveste um ligeiro acidente no cruzamento com a Augusto Gil, quando tentavas encontrar um lugar para estacionar. E até nesse dia eu lá estava, apreciando a forma como sem elevares o tom de voz chamavas a atenção para o condutor do veículo que te abalroara sem respeitar a prioridade e ignorava que tinhas jogo no sábado, em Aveiro. Perguntavas repetidas vezes ao infractor o que seria se tivesses jogo naquele dia e tivesses ficado lesionado. E ele, sem saber muito bem o que dizer, perante a tua figura de estrela, pedia desculpas atrás de desculpas.
Depois de teres deixado de jogar continuei a ver-te no velho Estádio da Luz, de toalha à volta da mão. E depois no "Tia Matilde", como no dia em que acabei o mestrado e fui lá almoçar, e na nova Catedral onde a Eusébio Cup tinha sempre um sabor especial. E naquela jornada gloriosa de romagem ao Bessa, quando lá fomos empatar para nos sagrarmos campeões. A festa que foi. O autocarro alugado à saída de Cascais com os companheiros de sempre. A família Azevedo Gomes, o Pedro Teodoro, o Catarino, o Zeca e a família, os Borges Coutinho, o almoço na Mealhada antes do jogo, os incentivos que vinham do banco, os cânticos na bancada, o regresso a Lisboa, a festa que foi.
O ano passado, depois de tudo o que aconteceu no campeonato, foram as tuas palavras que me levaram à última hora a embarcar com os outros "fundadores" para Amesterdão, para ir ver a final da Liga Europa. Mal sabia eu que seria a última final europeia a que irias assistir. Quando fomos para lá, depois de eu ter saído na véspera de Faro, ainda pensei que te iria encontrar no aeroporto ou no avião. A ti não te vi, embora tivesse estado com o Toni e tivéssemos tirado uma fotografia juntos. Depois, no regresso, calculo que todos tenhamos sentido o mesmo. Em matéria de lágrimas sempre fomos muito parecidos. Uns chorões, como diria Jorge Sampaio.
Quando hoje ao início da tarde, aqui em Macau, o meu cunhado me deu a triste notícia, confesso que fiquei sem palavras. Não tanto porque tivesses partido numa altura em que ainda tanto nos podias dar. Nem sequer porque aqueles tipos foram incapazes de te dar um título em 2013. Mas porque sei que não poderei voltar a estar contigo, que não me será permitido despedir-me de ti como tu merecias que eu fizesse e eu esperava poder fazer, em especial depois do falecimento da senhora D. Amália. Para te retribuir tudo aquilo que me deste dentro e fora do campo. Pelo exemplo de profissionalismo e humildade mesmo numa altura em que as dores eram recorrentes, pela forma como foste capaz de ultrapassar os momentos mais difíceis com o estoicismo que só os verdadeiros deuses conseguem, ensinando às novas gerações que o futebol sendo um jogo de paixões é também um jogo de gente educada e disciplinada e que no fim podemos todos conviver civilizadamente sem que a clubite nos tolha a razão. Se houve alguém que me tivesse ensinado que o futebol é uma escola de valores foste tu. E por tudo isso só te posso estar agradecido.
Mas saber que te vais embora sem que me dês a oportunidade de te dizer adeus, num momento em que tanta falta nos fazem, a todos, aos portugueses, não apenas aos benfiquistas, referências como tu, é algo que me deixa profundamente triste. Apesar de tudo, conforta-me saber que quando te sentares no trono forrado a ouro que São Pedro te reservou, poderemos contar contigo para finalmente nos iluminares, infiéis incluidos, com toda a tua graça, arte e sabedoria. Pelo menos a partir de hoje teremos a certeza de que tu estarás em toda a parte, no meio de nós, dentro e fora do campo, zelando para que se escreva direito por linhas tortas. Se por outras razões não fosse, isso já seria o suficiente para te perdoar todas aquelas lágrimas que verti quando sozinho e em silêncio te escutava dentro do Fiat.
O meu avô, o mais apaixonado benfiquista da família, não me perdoaria se não te mandasse hoje um beijo. Não gosto de futebol, mas de ti sempre gostei. Porque tinhas esse ar de ídolo desamparado e fazias brilhar os olhos dele e os do meu pai, os dois homens da minha infância, amores da minha vida. RIP