Joe Biden, hoje, no discurso do Estado da União no Congresso norte-americano
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Joe Biden, hoje, no discurso do Estado da União no Congresso norte-americano
Depois de se dizer que era mero boato, Tucker Carlson, que acabou despedido da Fox por confessar em privado que tinha dito disparates em notíciário, lá entrevistou Vladimir Putin, para "esclarecer os americanos da verdade", como se Putin não a tivesse divulgado em inúmeras ocasiões, embora nem sempre com a mesma base. Escolheu bem o dia: o mesmo em que a candidatura de Boris Nadezhin, o único contra Putin, acabou recusada, como acontece sempre que há um candidato contra o incumbente.
Biblioteca Morgan, Nova Iorque, EUA
Teve uma vida cheia - e lúcida e activa até ao fim. Morreu ontem, tranquilamente, na sua casa do Connecticut. Já centenário, há quatro meses fez uma última visita a Pequim, onde foi recebido por Xi Jinping, que o enalteceu como amigo perpétuo da China.
Catedrático emérito da Universidade de Columbia, talvez o maior especialista em política internacional nos escalões dirigentes norte-americanos da última metade do século XX, Henry Alfred Kissinger, nascido em Maio de 1923 na Alemanha e radicado na América desde 1938, levou uma perspectiva europeia ao Departamento de Estado. Antecipando o que mais tarde, na viragem do milénio, sucederia com Madeleine Albright durante a administração Clinton.
Como conselheiro especial do presidente Richard Nixon, de quem se tornou braço direito para a política internacional, com prolongamento para a administração Ford, subiu tão alto quanto lhe era possível em Washington. Foi o primeiro judeu a desempenhar as funções de secretário de Estado - terceiro posto na hierarquia do Executivo. Faltou-lhe apenas ter sido candidato à presidência, o que lhe estava constitucionalmente vedado por não ter nascido com a nacionalidade norte-americana.
Este europeu transposto para o Novo Mundo era herdeiro directo dos "realistas" que retalharam o mapa mundi ao longo de um século -- da Convenção de Viena, em 1815, à cimeira de Versalhes, em 1919. Com duas convicções básicas: nenhum país tem aliados permanentes, só interesses permanentes; e não haverá vencedores em guerras na era atómica. Assim promoveu o degelo nas relações entre Washington e a China comunista primeiro e com a União Soviética logo a seguir. As duas mais espectaculares acções norte-americanas das últimas décadas na política externa.
Legou-nos detalhadas memórias em três volumes e várias obras ensaísticas dissecadas nos circuitos universitários e nas chancelarias internacionais, além de conquistarem leitores fiéis entre os cidadãos comuns. Diplomacia, por exemplo, é um trabalho académico de grande fôlego, confirmando o autor num patamar de erudição muito superior ao da média entre a elite política no seu país adoptivo.
A originalidade de Kissinger, nos salões e gabinetes de Washington, radicou-se na sua visão da política externa americana inspirada nos cem anos anteriores dos meandros da diplomacia europeia. Também influenciado, naturalmente, por circunstâncias da sua biografia pessoal: ter nascido numa família hebraica entre as duas guerras mundiais e conhecer a experiência totalitária não em abstracto mas no concreto. O regresso à Alemanha devastada pela guerra, enquanto cumpria o serviço militar já como cidadão norte-americano e exerceu funções de tradutor nas forças armadas, levou-o a perceber como são débeis os pilares daquilo a que chamamos civilização e como se havia tornado irrisória a influência europeia nos destinos mundiais.
A sua tão propalada realpolitik limitou-se, no fundo, a seguir os trilhos abertos por Ialta, na cimeira que dividiu o globo em esferas de influência. O planeta multipolar dos nossos dias, com emergentes potências de âmbito regional, baralhou toda a lógica anterior, que a geração de Kissinger preferia, pois a política de blocos, ideologicamente antagónicos mas perfeitamente identificáveis, assegurou meio século de relativa paz em diversas regiões do globo.
Consumado xadrezista, Kissinger valorizava na política externa as linhas de continuidade estratégica em função das quais as alianças entre nações assumiam uma geometria variável ditada por conveniências tácticas. A aproximação simultânea de Washington a Moscovo e Pequim, sob o seu comando, aconteceu como via de exploração das divergências entre russos e chineses que à época fracturavam o mundo socialista e acabaram por disputar as boas graças dos EUA.
Neste aspecto foi hábil sucessor dos mestres da diplomacia oitocentista na Europa, desde logo Metternich, e opositor da visão messiânica dos Estados Unidos na promoção das boas práticas democráticas à escala planetária.
Culto, cosmopolita, viajado, com solidez intelectual e uma perspectiva abrangente do mundo, Kissinger adquiriu fácil relevância no contexto norte-americano, ou seja numa diplomacia globalmente sofrível - para não dizer medíocre. No tempo em que desempenhou funções de relevo em Washington, só 17 senadores tinham passaporte, o que revela muito sobre a classe dirigente dos Estados Unidos.
Há que lembrar, de qualquer modo, que se revelou fraco profeta em relação a Portugal, ao vaticinar em 1975 que o nosso país sucumbiria a uma "ditadura comunista" capaz de funcionar como "vacina" para o conjunto da Europa. E não esqueço o aval, directo ou indirecto, que deu aos generais indonésios para invadirem Timor.
Era uma figura compreensível no contexto da Guerra Fria - e sobretudo à luz desse contexto merece ser valorizada. Pelo menos sabia apontar qualquer país no mapa, teste em que provavelmente muitos dos seus antecessores e alguns dos seus sucessores falhavam.
Já tive a sorte de visitar Biblioteca Pública de Nova Iorque. É um edifício imponente, que juntamente com o Bryant Park, preenche todo um quarteirão. A fachada neoclássica da biblioteca está virada para a 5ª Avenida, o que só pela centralidade sublinha a importância que o acesso público à cultura e ao conhecimento tem para os norte-americanos.
Reparei a primeira vez nela através do filme "O dia depois de amanhã" passado num futuro distópico em que o mundo fica mergulhado num inverno gelado e quem se consegue refugiar no seu interior, e para se aquecer, acaba por ter de recorrer à queima livros. Muito razoavelmente, começam pela secção de fiscalidade.
No filme acima referido este átrio central, invadido de neve por uma das janelas partidas, tem bastante destaque.
Conforme está designado à entrada pelos seus criadores o acesso desta biblioteca é gratuito, mas para além de se tratar de um espaço público é também um local que foi construído para encantar pela arquitectura e decoração. Só por isso já merece a realmente a visita.
A foto do postal inicial é da principal sala de leitura. É mesmo uma maravilha.
Faz amanhã 60 anos, um reverendo baptista de baixa estatura e vontade inquebrantável, militante anti-racista, pronunciou um dos melhores discursos do século XX. Martin Luther King culminou a gigantesca marcha de Washington, que congregou cerca de 250 mil pessoas, com a última de dez intervenções proferidas nas escadarias do Memorial Lincoln - local emblemático por evocar o presidente norte-americano que libertou os EUA da escravatura e pagou com a vida por isso.
Falando perante aquele que era então o mais vasto auditório de sempre no seu país, com as três estações de televisão nacionais transmitindo em directo, King começou o discurso lendo um texto que levava escrito, mas - segundo reza a lenda - quando já havia muitas pessoas a dispersar naquela tarde de 28 de Agosto de 1963, a cantora Mahalia Jackson incentivou-o em voz bem audível: «Fala-lhes do sonho, Martin!»
Ele largou os papéis, passando a falar de improviso. Destes dois momentos conjugados nasceu um discurso extraordinário, pontuado de referências bíblicas (com citações do Salmo XXX, 5 e do livro de Isaías, XL, 4-5) em defesa da igualdade racial e em sonoro protesto contra todos os actos de discriminação de que os cidadãos americanos de pele negra continuavam a ser alvo um século após a guerra civil, sobretudo nos estados do sul governados por caciques do Partido Democrático.
«Sonho que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos esclavagistas serão capazes de se sentar à mesa da fraternidade. Sonho que um dia até o Mississipi, um estado que sufoca sob o calor desértico da injustiça e da opressão, se transformará num oásis de justiça e liberdade. Sonho que um dia os meus quatro filhos viverão numa nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo seu carácter», declarou King nesta obra-prima da oratória política, peça essencial para a promulgação da legislação que reconheceria direitos civis a todos os norte-americanos, promulgada dez meses mais tarde pelo presidente Lyndon Johnson.
James Reston, um dos mais categorizados jornalistas do New York Times, fez a cobertura do acontecimento, no qual John Kennedy, então inquilino da Casa Branca, chegou a pensar participar antes de ter sido fortemente dissuadido pelos seus conselheiros, receosos de que a marcha pelos direitos raciais degenerasse em tumultos na capital dos Estados Unidos. Mas Reston, apesar do seu inegável instinto jornalístico, não foi capaz de descortinar a força mobilizadora do discurso do futuro Prémio Nobel da Paz, tendo-lhe reservado um modesto 19.º parágrafo na peça de reportagem que o mais influente diário norte-americano dedicou no dia seguinte à memorável manifestação de Washington - prova evidente de que nem sempre o jornalismo está em condições de ser o primeiro rascunho correcto dos livros de História.
Em 2023, com tantas segregações ainda em vigor - de modo explícito ou implícito - nos mais diversos locais do globo, faz falta uma nova Mahalia Jackson a incentivar: «Fala-lhes do sonho, Martin!» E faz falta, acima de tudo, um novo Luther King, transformando a resistência passiva e a não-violência em poderosos instrumentos de combate cívico em defesa dos direitos humanos, com a sua retórica de profeta iluminado, capaz de mobilizar incontáveis multidões através dos continentes só com o poder da palavra.
Este episódio já descrito como miraculoso, que foi descoberto no distante e rural Missouri, noutros tempos seria suficiente para uma beatificação meteórica, elevação de um templo e romagens devotas.
A incorruptibilidade de um corpo inumado não é coisa com que se brinque, ainda mais por se tratar da fundadora de uma congregação beneditina.
A diocese de Kansas City pede calma e orações aos fiéis. Há que dar tempo ao tempo.
A madre Cecília, actual superiora da congregação, afirma tratar-se da primeira afro-americana a ser encontrada incorrupta nos EUA.
Aguardam-se reações da vanguarda woke. Por cada dia a mais, que a Congregação das Causas dos Santos demore a elevar a Madre Wilhelmina, no mínimo a figura venerável, só confirma o poder do patriarcado (neste caso literal) que governa o Vaticano.
O médico do Presidente dos EUA, com a devida autorização de Joe Biden, divulgou um boletim muito detalhado sobre o estado clínico do inquilino da Casa Branca. Que parece em excelente forma, para quem tem 80 anos.
O documento foi difundido pela CNN e pode ser visto e analisado aqui.
Exemplo de clareza e transparência, condimentos fundamentais num sistema democrático. Temos muito a aprender com isto.
(créditos: Reuters/BBC)
Se há coisa que neste momento a opinião pública internacional saiba é que o caso dos balões chineses traz “água no bico”, e há uma guerra de propaganda e desinformação em curso.
Que chineses e americanos se espiam mutuamente há muito tempo não constitui novidade alguma.
Que balões chineses fizeram no passado incursões sobre o espaço aéreo de outros países, incluindo os EUA, também é verdade. Que estes também são useiros e vezeiros em actividades de espionagem e contra-espionagem é igualmente conhecido.
Diz o dono dos balões que os agora detectados são civis, com fins pacíficos e para recolha de informação meteorológica.
Se assim for, então não se percebe qual o interesse, como agora aconteceu, de andarem a sobrevoar zonas militares sensíveis. E que no passado isso também tivesse sido feito sobre a Índia, Vietname, Japão, e Filipinas, por exemplo. Quanto a Taiwan o problema não se coloca, pelo menos nos mesmos termos, visto que é território chinês.
Independentemente do que tem vindo a saber-se, o "statement of regret" das autoridades chinesas soou a falso.
Convém ter presente que cada Estado “tem a soberania completa e exclusiva sobre o espaço aéreo que cobre o seu território” (cfr. art.º 1.º da Convenção sobre a Aviação Civil Internacional) e está internacionalmente convencionado que o limite do espaço aéreo superior de um Estado se situa a 100 km de altitude, na chamada linha de Karman, ou Kármán, nome do engenheiro e físico que estudou a densidade da atmosfera terrestre. É esta linha que define os limites entre a aeronáutica e a astronáutica.
Sabendo-se isto, que não é objecto de grande discussão quanto ao que aqui está em causa, embora os EUA admitam que o espaço aéreo superior se situe aos 80 km, não há qualquer dúvida que os balões chineses violaram o espaço aéreo dos EUA e de outros países sobrevoados.
Recorde-se, ainda, que o art.º 8. da Convenção prevê que “as aeronaves susceptíveis de ser comandadas sem piloto só poderão sobrevoar sem piloto o território de um Estado contratante mediante autorização especial desse Estado e nas condições estipuladas na autorização”. Não foi o caso.
Mesmo admitindo tratar-se de aeronaves não tripuladas, e que nem sempre será fácil o seu controlo, podendo acontecer que se desviem das suas rotas por factores imponderáveis (admitamos que sim), não é crível que o Estado que envia um balão com equipamento sofisticado (caro) para realizar actividades de pesquisa meteorológica, perdendo o controlo e sabendo que a sua aeronave entrou no espaço aéreo de terceiros, estando de boa fé, não avise de imediato o Estado sobrevoado, dando notícia de que a sua aeronave invadiu o seu espaço aéreo por factores fora do seu controlo, e pedindo desculpa pelo incidente, até para minorar prejuízos e poder recuperar a aeronave e o respectivo equipamento – para fins pacíficos – na primeira oportunidade.
Não deixa de ser estranho que o balão se tivesse “desviado” para zonas sensíveis, sobrevoando instalações militares de alta segurança de um terceiro Estado. E que nada se dissesse até que o incidente fosse público. O mesmo acontecendo com um balão que apareceu na América Central e do Sul.
Considerando a recorrência de situações deste tipo por parte do proprietário dos balões, e havendo razões, do ponto de vista da espionagem, para o uso destas aeronaves (um balão livre sem tripulação ou tripulado é para todos os efeitos uma aeronave), em vez de satélites, não será internacionalmente aceitável o silêncio até à descoberta.
Já quanto à natureza, excessiva ou adequada, da reacção, que é aquilo de que os chineses se queixam, talvez a investigação ao equipamento recolhido possa vir a trazer alguma luz sobre essa matéria. Estejamos atentos.
Escândalo Watergate começou com um assalto a 17 de Junho de 1972
A minha geração foi irremediavelmente influenciada pelo caso Watergate. Sonhei ser jornalista precisamente porque Watergate aconteceu. Dissequei-o nos mais ínfimos pormenores e na minha galeria de heróis figuram não só o duo Bob Woodward-Carl Bernstein (Robert Redford-Dustin Hoffman, na excelente versão cinematográfica de Alan J. Pakula) mas também Ben Bradlee, o director que confiou no talento e na sagacidade dos seus repórteres, e Katharine Graham, a proprietária de jornal que soube mostrar-se imune a todas as ameaças. Incluindo as da Casa Branca, reforçadas pela grosseria de Richard Nixon.
Woodward e Bernstein, os jornalistas que revelaram aos americanos e ao mundo todas as implicações do caso Watergate, tornaram-se celebridades. Fala-se muito menos em Bradlee, que aceitou dirigir o Washington Post quando este era uma espécie de parente pobre na alta roda da imprensa norte-americana, sempre à sombra do mítico New York Times.
A verdade é que nenhum dos artigos de Woodward e Bernstein (a dupla que ele baptizou de “Woodstein”, nos longos serões de trabalho no jornal durante a revelação do escândalo que conduziria à demissão do presidente Nixon) teria sido possível sem a firmeza de Bradlee, que lhes deu destaque em sucessivas manchetes. Contra pressões de todo o tipo.
Nas suas memórias, Bradlee relata-nos a odisseia do relançamento do Post, que à época era apenas o terceiro jornal mais vendido na capital americana. Ele arejou o grafismo, destacou a imagem, criou um suplemento chamado Style, que dava prioridade ao lazer, valorizou o espaço de opinião, criou um provedor de leitores (em 1969!) e deu novo impulso à reportagem. Bastando-lhe adoptar como lema a velha lição que recebera da professora da instrução primária: «O melhor possível hoje, melhor ainda amanhã.»
A qualidade foi sempre um objectivo a atingir. «A detecção de talentos nunca cessa num periódico», defendia Bradlee, «decidido a que cada jornalista fosse o melhor da cidade no seu ramo de actividade».
Este foi um dos segredos do sucesso do jornal, a par das normas de exigência postas em vigor. O Post deixou de usar a ambígua expressão «segundo as nossas fontes», instituiu a norma da verificação dos factos junto de duas fontes autónomas e recomendou aos seus repórteres que nunca esquecessem o sábio preceito de Camus, que também foi jornalista: «Não existe a verdade. Só existem verdades.»
Neste caso, a verdade jornalística contrariou em toda a linha a suposta verdade oficial. A partir de um assalto ao edifício Watergate, faz hoje 50 anos. Ali funcionava a sede nacional do candidato democrata George McGovern, rival nas urnas do republicano Nixon, que já formalizara a recandidatura à Casa Branca.
Parecia ser mero caso de polícia, com a detenção de cinco supostos larápios de meia-tigela, a tal ponto que a cobertura jornalística foi confiada a Woodward, jovem repórter que costumava frequentar esquadras à cata de novidades. Mas transformou-se num escândalo político em cascata que foi cercando o presidente. Em 17 de Novembro de 1973, já muito acossado, Nixon fez uma alocução televisiva em que declarou categoricamente: «I'm not a crook» [«Não sou vigarista»] Ninguém tomou esta declaração pelo seu valor facial, mas pelo seu oposto.
Nove meses depois, o inquilino da Casa Branca - o mais poderoso político do planeta - viu-se forçado a resignar ao cargo. Nunca antes tinha acontecido algo semelhante nos EUA, nunca aconteceu depois.
Dir-me-ão uma vez, dir-me-ão cem vezes: o caso Watergate é irrepetível. Mas quanto mais único, quanto mais insólito, quanto mais raro, mais me serve de referência. E continuará a ser o maior dos motivos por que um dia, já há muito tempo, decidi ser jornalista.
Ingenuidade, dirão talvez. Felizmente podemos ser ingénuos em qualquer idade.
Dustin Hoffman (Bernstein) e Robert Redford (Woodward) no filme Os Homens do Presidente
Cartão de Boas Festas, Natal de 2021, do congressista republicano Thomas Massie (Kentucky).
Cartão de Boas Festas, Natal de 2021, da congressista republicana Lauren Boebert (Colorado).
Cartão de Boas Festas, Natal de 2021, do senador republicano Rick Brattin (Missouri).
Cartão de Boas Festas, Natal de 2015, da deputada estadual republicana Michele Fiore (Nevada).
A escandalosa violência armada nos Estados Unidos é algo com que convivemos, recebendo-a amansada pela indústria de entretenimento cinematográfico e televisivo. Ainda assim custa a perceber a placidez daquele país com os constantes massacres civis, em particular nas escolas. Agora aconteceu mais um. Tétrico. E mais uma vez as notícias falam da problemática liberalidade na aquisição de armas nos EUA, rigidamente defendida por sectores políticos predominantemente do partido Republicano. Não vou repegar na questão, que é ciclicamente abordada. Apenas frisar o meu espanto face a esta desregulação, lá naquele país, que provoca tamanhas desgraças.
Felizmente estas temáticas são-nos estranhas, pois seguimos país com baixo nível de criminalidade e sendo esta também pouco violenta. Mas há uma ponte para o ambiente daqui. Pois desde a década inicial de XXI, com o advento do bloguismo e depois das redes sociais, que pude constatar o assumir em Portugal da dicotomia "direita"/"esquerda" como mimetizando o embate "republicanos"/"democratas" nos EUA. E nisso havia um frenesim de uma certa direita (e muito de uma "jovem direita", quais jovens turcos) - que então até se apresentava como "liberal" (que eu conheci nos blogs Blasfémias e Portugal Contemporâneo, para falar apenas naqueles que ainda seguem) - em se assumir como "republicana". Isso via-se com a adesão acrítica a Bush filho, à raiva contra Obama (que aparecia como um perigoso esquerdista....). E depois com um progressivo encanto, implícito ou explícito, com a "alt-right" e com o Tea Party. Daí ao apreço ao boçal Trump - cujo mercantilismo era surpreendentemente amado pelos tais "liberais" -, ainda que este tenha um conteúdo político algo diferente, foi um pequeno passo nas teclas.
É certo que isso mostra um enviesar destro na política europeia, a desagregação das "esquerdas" (tantas delas verdadeiramente sinistras) nestas duas últimas décadas. O qual abre espaço para que europeus (e do Sul, ainda para mais) possam pensar como "esquerda" o anafado Partido Democrata norte-americano, e usem o espectro político dos EUA como analogia para debater o processo político nacional (ou europeu). Mas muito mais do que isso permite perceber que estes (portugueses) adeptos "republicanos" não percebem - nem querem perceber - quem apoiam ou, pelo menos, em quem se revêem. Há década e meia poderiam rir-se um pouco dos dislates da candidata Sarah Palin, mas pouco mais criticariam.
De facto esta "alt-right", boçal, violenta, ignorante, não se reduz a uns "ressentidos" com a "globalização", o velho operariado do "midwest", o sempre referido "lixo branco". Pois é também a expressão política (e cultural, naquele patético "criacionismo", um fundamentalismo cristão que a nossa tradição católica despreza há... séculos) de enormes interesses de elites económicas, amplamente cosmopolitas. Que inclui, mas nele não se esgota, o comércio interno armamentista. E expressa-se através deste tipo de políticos, que se ilustram deste modo.
Como é que há gente que aqui no rincão sai à rua (às teclas) defendendo este tipo de gente, priorizando-os como aliados, e até condutores, é coisa compreensível. Mas inaceitável.
A perversão da Segunda Emenda
Virgínia Tech University
Columbine Highschool
Clevland Elementary School
Marjory Stoneman Douglas High School
Thurston Highschool
Sandy Hook Elementary School
Northern Illinois University
Santa Fe High School
Califórnia University
Robb Elementary School
De entre centenas de tiroteios por ano que são notícia nos Estados Unidos, grande percentagem acontece em escolas e universidades. Em 2021, registaram-se 61 incidentes com armas de fogo, tendo os tiroteios causado 103 mortos e 140 feridos. Estes números referem-se a mass shootings, como os acima referidos.
Enquanto os lobbies das armas de fogo continuarem a lucrar milhões, as crianças assassinadas serão apenas apontamentos colaterais na tabela de vendas.
(Foto Google )
Martin Luther King no Memorial de Lincoln, em Washington (1963)
Não há paz sem liberdade. E não há liberdade sem esperança. Um político de excepção vislumbra motivos de esperança mesmo entres os clarins da guerra. Um desses políticos foi Abraham Lincoln, autor da mais memorável mensagem de esperança, proferida em plena Guerra Civil norte-americana, a 19 de Novembro de 1863.
Foi o chamado Discurso de Gettysburg: demorou apenas cerca de três minutos. Três parágrafos, 255 palavras - não era necessária nenhuma mais. As forças da União haviam ali derrotado quatro meses antes o insurgente exército confederado do Sul que se batia contra a abolição do esclavagismo, cortando amarras com a política humanista do Norte. Mas Lincoln, embora galvanizado por essa vitória militar recente, pôs de lado a retórica triunfalista e deixou no cemitério local um apelo digno de um estadista: «Compete-nos a nós, os sobreviventes, garantir que aqueles que caíram no campo de batalha não morreram em vão e que nesta nação, sob os auspícios de Deus, renasça a liberdade - e que o governo do povo, pelo povo e para o povo não desapareça da face da Terra.»
Cem anos mais tarde, este discurso teria sequência num outro, proferido junto ao Memorial Lincoln, em Washington, por Martin Luther King. «Tenho o sonho de que um dia esta nação se erguerá e viverá o significado autêntico do seu credo -- termos por verdade evidente que todos os homens foram criados iguais. Tenho um sonho -- o sonho de que um dia, nas rubras colinas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos donos de escravos se sentarão juntos à mesa da fraternidade», declarou o reverendo justamente distinguido em 1964 com o Nobel da Paz.
No tempo de Lincoln ainda não havia Nobel. Mas ele tê-lo-ia merecido, mais do que todos os presidentes americanos que viriam a ser galardoados no século e meio seguinte -- de Theodore Roosevelt a Barack Obama. Pela força inspiradora do seu exemplo. Pela eloquência dos seus vibrantes apelos em defesa da dignidade humana. Pela tenacidade e pela coragem de que deu provas no cumprimento de um ideal: nenhum ser humano merece ser condenado à escravatura.
Um ideal que lhe custou a vida: viria a ser assassinado em 1865. Mas o seu apelo de Gettysburg ainda hoje ecoa -- nos EUA e no mundo.
ASSALTO AO CAPITÓLIO NOS EUA
Aconteceu logo no início do ano, a 6 de Janeiro de 2021. Todos assistimos, incrédulos e atónitos. Nunca se tinha visto algo assim: uma turba enfurecida subia as escadarias do Capitólio, em Washington, e invadia o histórico edifício, perante a impotência das forças de segurança, colocando em risco senadores e congressistas. Precisamente quando ali se travava um debate fundamental: o que viria a confirmar em definitivo o resultado da eleição presidencial de Novembro de 2020.
Estes milhares de insurrectos, apoiantes declarados de Donald Trump, invadiram e vandalizaram a sede do poder legislativo dos EUA com a intenção deliberada de castigar figuras públicas como a democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes, o líder da maioria no Senado, Chuck Schumer, e o próprio vice-presidente Mike Pence, a quem acusaram de traição por conceder a vitória a Joe Biden, seu adversário político. Algo que Trump ainda hoje não fez.
A sessão foi interrompida, com o mundo a assistir em directo. Mas viria a ser retomada nessa mesma noite, quando a forças da ordem conseguiram travar a multidão em fúria e deter alguns dos cabecilhas, impedindo danos maiores. Com cinco mortos registados, entre eles quatro polícias.
Este brutal assalto ao Capitólio foi para nós o Acontecimento internacional de 2021, com oito votos em 25 emitidos pelos autores do DELITO DE OPINIÃO que participaram nesta escolha.
Venceu à tangente. Em segundo lugar, com sete votos, foi mencionado o regresso dos talibãs ao poder no Afeganistão, perante a humilhante retirada das forças ocidentais, incluindo as norte-americanas. Aconteceu em 15 de Agosto: foi outro facto que fez chocar o mundo.
Em terceiro lugar, com três votos, a realização dos Jogos Olímpicos de Tóquio, fora da data inicialmente prevista: deviam ter acontecido em 2020 e acabaram por ocorrer só no ano seguinte, entre 23 de Julho e 8 de Agosto. Com uma particularidade: as provas desportivas disputaram-se sem público devido às fortíssimas restrições impostas pela pandemia. Facto inédito, a merecer destaque.
Houve ainda votos isolados em vários outros temas, que passo a referir:
- Chegada da missão Perseverance à superfície de Marte.
- Escalada dos regimes autoritários e totalitários em diversos países: China, Rússia, Bielorrússia, Afeganistão, Turquia e Nicarágua.
- Tensão crescente na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia.
- Falta de capacidade própria da UE em questões de defesa.
- Missão militar SACD em Moçambique.
- Agravamento da crise de cadeia logística desencadeada pela pandemia.
- Itália, campeã europeia de futebol.
Facto internacional de 2010: revelações da Wikileaks
Facto internacional de 2011: revoltas no mundo árabe
Facto internacional de 2013: guerra civil na Síria
Facto internacional de 2014: o terror do "Estado Islâmico"
Facto internacional de 2015: a crise dos refugiados
Facto internacional de 2016: Brexit
Facto internacional de 2017: crise separatista na Catalunha
Facto internacional de 2018: movimento #MeToo
Facto internacional de 2019: sublevação popular em Hong Kong
Facto internacional de 2020: pandemia de Covid-19
American Psycho, ou Psicopata Americano, é um romance, chamemos-lhe assim, escrito no início dos anos noventa por Bret Easton Ellis que retrata de forma crua, amoralmente ostensiva e exaustivamente descritiva a idade de ouro dos yuppies na segunda metade dos anos oitenta, no pré-crash de 1987. A narrativa centra-se no modo de vida de Patrick Bateman, um financeiro de Wall Street com menos de trinta anos, de início mais nas suas obsessões materiais - a casa, a decoração, os aparelhos de alta fidelidade, os produtos de beleza e de higiene, o culto do corpo, os fatos, as gravatas, os restaurantes de luxo, as drogas, as amantes e as prostitutas - e mais à frente na sua faceta (ainda) mais negra que justifica o título da obra, tudo entrecortado pelas detalhadas críticas musicais dos músicos favoritos da personagem, que surgem como curiosa Hybris normalmente em situações inesperadas.
O livro, já de si um sucesso comercial e de crítica, foi adaptado ao grande ecrã em 2000, com Christian Bale a compor um impressivo Bateman num desempenho que projectou a sua carreira. Como já se percebeu, o protagonista espelha uma ganância e uma obsessão materialista tais (de que é exemplo o seu acesso de fúria só porque os correligionários têm cartões de apresentação mais caros e polidos que os dele, o que terá consequências funestas) que é capaz de transformar Gordon Gekko, outra personagem fictícia deste peculiar mundo dos yuppies, num voluntário caridoso. É claro que nem todas as partes das descrições torrenciais de Ellis puderam ser transpostas para o filme, mas o essencial manteve-se.
Uma das alusões na obra a figuras reais, mais presente no livro que na película, é o culto do peculiar universo que rodeia Bateman pelos bilionários ostensivos, em geral, mas com uma especial admiração: Donald Trump. Sim, Trump e as festas que ele dá, os locais que frequenta e os seus carros. Trump é o modelo, a bússola e farol, aquilo que esta mole de gente endinheirada, entediada e amoral pretende ser.
Recordei-me de novo do livro/filme e das suas alusões a propósito do primeiro aniversário da invasão do Capitólio por aquela horda estranhíssima e alucinada, que deixou como resultado cinco mortos e uma imagem de ultraje e vergonha à democracia americana, mais própria de um país do interior de África. Tinham vindo de vários pontos dos Estados Unidos, numa das alturas mais gélidas do ano, para ouvir o discurso de Trump em frente ao congresso. Um discurso aliás de acusação e de incitamento directo contra a câmara legislativa, na senda da não aceitação do resultado das eleições de dois meses antes e das alusões a supostas fraudes. As palavras eram demasiado explícitas para que não se possa ligá-las ao que sucedeu a seguir. Aliás, até parecia que alguns adoradores trumpistas, mesmo deste lado do Atlântico, já o estavam a pressentir, referindo-se a "demonstrações do triunfo do "America First" que iriam surgir em Washington. Até tinham razão, como se viu.
Trump flutua entre um instinto político eficaz e uma mitomania que se torna pública muitas vezes. Era sem dúvida este último sentimento que o dominava naquele dia. Provavelmente, no embalo daquele discurso a meio caminho entre um ditador sul-americano e o general Custer lançando ordens contra os índios, não previu que as consequências pudessem ser tão funestas. Mas foram (por pouco não o foram para o próprio Mike Pence) e são indissociáveis do seu discurso de raiva que levou aquela mole desvairada habituada a "informar-se" no Qanon a cometer um acto tão grotesco.
O contraste entre esta gente e a retratada em American Psycho é gritante, a começar pela forma de trajar e a acabar na capacidade económica. As respectivas mundividências também são abissalmente diferentes. O que as une é a admiração e a confiança quase ilimitada em Trump, embora por razões diversas. Mas é bem mais compreensível vinda dos segundos, já que Trump é ele próprio um símbolo do materialismo (e de muito exibicionismo, como se observa na sua Trump Tower e no seu avião, por exemplo) e da ganância de um lado mais perverso do "sonho americano", além de ser nova-iorquino e de ter vivido quase sempre na Big Apple. Já da parte dos invasores do Capitólio é bem menos lógico, pois falamos de gente mais proveniente do Midwest e do Deep South, menos cosmopolita e mais susceptível a propaganda e com muito menos poder económico. Trump e a fauna de Wall Street estão a anos-luz desta massa de proletários sem rumo, em muitos casos desprezando-os até, e são o oposto aos princípio cristãos (com uma interpretação muito própria do cristianismo, é certo, muito WASP) e aos modelos de família por eles defendidos.
Em suma, Patrick Bateman admira Trump não só pelas suas posses mas sobretudo por não olhar a meios para atingir os seus fins e por possuir um ego do tamanho do mundo - pela fortuna, antes de mais, e depois pelo poder político - o que o faz sentir-se quase uma divindade omnipotente perante os outros seres que o rodeiam. Combina o dinheiro, o poder e o sexo, a avaliar pelas suas bravatas. Aquela frase de que "podia dar um tiro a alguém na Quinta Avenida que não perdia um voto" seria certamente do agrado de Bateman e poderia perfeitamente ser dita por ele. Ao criar a personagem, Ellis pôs muito de Trump nela, embora não pudesse prever que uma tal levaria à invasão do Capitólio. Com a diferença de que Patrick sabe certamente muito mais de música popular contemporânea do que Donald.
Quando me falam da superioridade dos políticos de outrora face aos actuais lembro-me sempre de Henry Wallace. Quem era? O segundo dos três vice-presidentes de Franklin Delano Roosevelt. Só por 82 dias não chegou à presidência dos EUA.
Esses três meses fizeram toda a diferença. Com Wallace na Casa Branca, a história do mundo contemporâneo teria sido bem diferente.
Rezam as crónicas que Henry Agard Wallace era um dos políticos intelectualmente mais brilhantes da sua geração. Serviu a administração Roosevelt como secretário da Agricultura (1933-1940) e ascendeu à vice-presidência no ano seguinte. Não havia ninguém mais à esquerda que ele em Washington: fez uma longa viagem à URSS em Maio e Junho de 1944, a convite de Molotov, ministro dos Negócios Estrangeiros soviético, e veio de lá maravilhado com o «progresso» e o «desenvolvimento» do país, na altura aliado dos Estados Unidos contra a Alemanha nazi.
No Partido Democrata, nunca gozara de grandes simpatias. Roosevelt só o impusera como vice-presidente entre os seus pares quando ameaçou não se recandidatar à Casa Branca. No Verão de 1944, no entanto, o presidente estava a morrer: o seu cardiologista dera-lhe, no máximo, um ano de vida. As mãos tremiam-lhe tanto que por vezes era incapaz de segurar uma chávena. Mas decidira concorrer a um quarto mandato para enfrentar os meses finais da II Guerra Mundial. O problema era o seu número dois: à luz da Constituição americana, o vice-presidente ascende automaticamente à Casa Branca por morte do presidente. O partido não queria Wallace, que andava «sempre nas nuvens», se fechava no seu gabinete a aprender espanhol e dizia comunicar com o espírito de um antigo chefe Sioux. O frágil Roosevelt, quase moribundo, recandidatou-se, vencendo a eleição de Novembro de 1944. Mas levou o senador Harry Truman como seu vice-presidente.
Prestaram juramento a 20 de Janeiro de 1945. A 12 de Abril, Roosevelt morreu, vítima de uma hemorragia cerebral. Truman era o novo presidente.
Wallace não se conformou. Quatro anos depois, desvinculado dos democratas, apresentou a candidatura à Casa Branca em nome do Partido Progressista. Dizia-se então «cem por cento pacifista», defendia o desarmamento integral do arsenal atómico norte-americano e a ajuda maciça de Washington à «reconstrução» da URSS. Na convenção progressista em Filadélfia, chegou a defender que o Ocidente abdicasse da defesa de Berlim «em troca da paz» com Estaline.
«[Ele] Não consegue ver nada de mal no facto de haver 4,5 milhões de soldados russos estacionados na Polónia, na Áustria, na Hungria, na Roménia e na Manchúria», anotou Truman no seu diário, nessa amarga campanha de 1948.
Wallace – que contou com o apoio formal do Partido Comunista norte-americano – obteve 1,1 milhões de votos nessas presidenciais, correspondentes apenas a 2,4% do total do escrutínio, ganho por Truman. Um fiasco global. Só em Nova Iorque conseguiu um apoio significativo: meio milhão de votos.
«É uma bênção que o vice-presidente se chame Harry Truman e não Henry Wallace», escreveu o futuro secretário de Estado Dean Acheson ao filho, pouco depois da morte de Roosevelt, com notável premonição.
Com um presidente Wallace, Washington teria abdicado perante Moscovo nos primeiros lances da Guerra Fria. O controlo soviético da Europa seria ainda mais acentuado. Não teria havido NATO nem Plano Marshall. Não teria havido um presidente firme, como Truman foi.
Talvez por dominar a língua russa, chegou a dizer-se dele que seria um agente encoberto do KGB. Colunistas célebres, como H. L. Mencken, não o pouparam nas suas sátiras. Admirador de Estaline, ultra-esquerdista para os padrões americanos, Wallace virou no entanto à direita logo no início da década de 50. Radicalmente à direita. Desvinculou-se do Partido Progressista e apoiou a Guerra da Coreia como qualquer falcão.
Em 1956, aplaudiu a candidatura presidencial do republicano Dwight Eisenhower. Quatro anos mais tarde, esteve com Richard Nixon contra John Kennedy. Um longo caminho fora percorrido desde os dias em que o ex-braço direito de Franklin Roosevelt defendera o desmantelamento das forças armadas norte-americanas e a partilha com os soviéticos do segredo do fabrico da bomba atómica.
Nos últimos anos de vida, Henry Wallace dedicou-se à agricultura, especializando-se em milho transgénico. Há quem diga que era essa a sua verdadeira vocação.
Imagens:
1. Franklin Roosevelt, Harry Truman e Henry Wallace no dia em que este deixou de ser vice-presidente dos EUA (20 de Janeiro de 1945)
2. Wallace na capa da Time (30 de Setembro de 1946)
Nesta minha estadia alargada em Portugal e apenas com acesso a oito canais televisivos (que são só seis, pois dois estão de férias), quase me limito aos da RTP. Acontece que a RTP Memória passa, nesta altura, a série “Walker, o Ranger do Texas”, não pertencente às minhas preferências, mas de algum agrado do meu marido (o meu sogro era fanático). E como é de minha opinião que podemos aprender com tudo, mesmo com coisas de que não gostamos, ou com as quais não concordamos, tenho visto alguns episódios. Pensei que me pudessem servir de reflexão. E serviram mesmo.
“Walker, o Ranger do Texas” é baseada num velho pressuposto: há alguém que tem sempre razão. A série assenta numa personagem de moral indiscutível, inteligência a toda a prova, forma física infalível e técnicas de combate invencíveis. Para ser ainda mais politicamente correcta, esta personagem reconhece as qualidades das artes marciais, é sensível aos ensinamentos cherokee e muito amiga dos negros (conquanto estes não lhe contestem a supremacia e estejam dispostos a desempenhar o papel do "banana", quando dá jeito). Concluindo: estamos perante um homem que sabe sempre tudo e age sempre de forma correcta, de acordo com os princípios que lhe foram ensinados na infância e na juventude, por pessoas (entenda-se, homens) igualmente sem defeitos e de uma moral ímpia.
Homens assim não existem. O Walker é tão fictício, que podia ser representado por uma figura de desenhos animados. Esta série está ao nível de “Uma Casa na Pradaria”, ou dos contos de fadas dos Irmãos Grimm. O Ranger Walker mais não é do que a fada da Gata Borralheira, um ser com toque de Midas, pronto a resolver os problemas de gente em aflição.
E qual é o problema, perguntam vocês. Não se pode sonhar um bocadinho? Claro que pode. Desde que se tenha consciência disso. Não levamos as peripécias da família Ingalls a sério, assim como sabemos não existirem fadas. Mas muitos acreditam no Walker! E acreditam que o mundo pode ser como o da série: nunca há dificuldade em distinguir o Bem do Mal, todos têm o seu papel bem definido na vida e, caso esta ordem seja ameaçada, há sempre um justiceiro que põe tudo no lugar, um justiceiro que nunca cai em tentação, nunca se deixa corromper, nem nunca comete abusos. Quando o Walker pega numa arma, dispara sempre na direcção certa e atinge sempre o alvo certo. Quando o Walker faz um juízo sobre uma pessoa, nunca se engana (e raramente tem dúvidas). O Walker só agride alguém que o merece, nunca perde a calma nem a paciência com outros. Não há dinheiro no mundo que leve o Walker a fechar os olhos a uma incorrecção, a um desvio que seja.
Estes sonhos transformados em realidade são aproveitados por manipuladores. Até há pouco tempo, os EUA tiveram um Presidente que convenceu muitos norte-americanos ser capaz de construir uma América à medida da série do Walker, um mundo onde não há lugar para desvios, onde todas as famílias vivem felizes e seguras para sempre, onde as crianças têm sempre paciência para ouvirem os sermões dos adultos e onde as mulheres, profissionalmente, têm o rigor da Procuradora Alex Cahill e, em família, são dóceis, cumprindo o papel que dela se espera (mas, sinceramente, alguém consegue ver a Alex Cahill despenteada e desmaquilhada a levar com os salpicos de óleo, enquanto frita peixe?).
«Casaram e viveram felizes para sempre» - este é o final de chave de ouro nas histórias da Carochinha. Na vida real, todas as famílias escondem os seus podres.