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Delito de Opinião

"Cancelamentos culturais" na América (7)

Pedro Correia, 09.12.24

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«Uma pintora "de pele branca" não está autorizada a mostrar alguém "não branco" nas suas telas. A exigência não saiu de um autocrata demencial nem de uma polícia com pendor totalitário: veio de outra pintora, em carta aberta subscrita por dezenas de signatários com pergaminhos intelectuais. Em Nova Iorque, que tem como símbolo a Estátua da Liberdade.

Foi em Março de 2017, durante a Bienal do Museu Whitney de Arte Americana. Acolhendo trabalhos de 63 artistas e colectivos artísticos - metade dos quais "racializados", segundo o novo esperanto politicamente correcto. Não era o caso de Dana Schutz, então com 40 anos: em 2016, esta pintora do Michigan concluíra um quadro a que chamou Caixão Aberto (Open Casket, no original). Versão abstracta de uma fotografia tristemente célebre - a do jovem negro Emmett Till, linchado em 1955, no Mississípi, aos 14 anos. No velório, a mãe do rapaz pediu que o esquife se mantivesse aberto e autorizou que fosse fotografado. "Para todos verem o que lhe fizeram", justificou.

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Nada serviu de atenuante: ouviram-se apelos ao boicote da Bienal. "Ela não tem nada a dizer sobre a comunidade negra nem sobre os traumas dos negros", reagiu o pintor afro-americano Parker Bright. A artista britânica Hannah Black, negra também, foi mais longe: apelou sem reservas à "destruição da tela". (...) A carta teve 34 signatários - incluindo as pintoras Juliana Huxtable e Addie Wagenknecht, o crítico Mostafa Heddaya, a "influenciadora de arte" Kimberly Drew e a académica Christina Sharpe. Reivindicando a "remoção do quadro com a urgente sugestão de que seja destruído".»

 

Do meu livro TUDO É TABU (Guerra & Paz, 2024), pp. 55-56

"Cancelamentos culturais" na América (6)

Pedro Correia, 04.12.24

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«Acabou-se o estado de graça para Quentin Tarantino em Hollywood. O realizador antes celebrado pela sua criatividade iconoclasta passou a integrar o vasto leque de suspeitos  - logo, culpados - de transgressão das boas normas. E até já se apela ao "cancelamento" (sem eufemismos, à anulação) do seu trabalho na indústria cinematográfica.

O mote foi dado em Julho de 2019 num artigo do The Guardian, sob um título bem expressivo: "O fim da relação: chegou a hora de cancelar Quentin Tarantino". O texto de abertura não deixava lugar a dúvidas: o realizador trata com "extrema violência as personagens femininas" de filme para filme. "Isto tem de acabar" - eis o veredicto.

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Em Agosto de 2019 a revista Time deu-se ao incómodo de contabilizar as falas de todas as películas que ele realizou. Para concluir: "Os dados indicam claramente que os homens preenchem a maioria dos diálogos na obra de Tarantino. (...) Mesmo os filmes protagonizados por mulheres e com mais personagens femininas atribuem tendencialmente mais diálogos a homens: em Kill Bill Volume 2, por exemplo, os homens têm mais 17,5%; em Jackie Brown, sobe a uns espantosos 39,8%.»

 

Do meu livro TUDO É TABU (Guerra & Paz, 2024), pp. 91-92

"Cancelamentos culturais" na América (4)

Pedro Correia, 24.11.24

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«Foi sucesso de bilheteira: o maior da Disney na década de 40. E recebeu aplausos da crítica - além de um Óscar pela melhor partitura. "O fascínio de Dumbo é trazer de novo à tona aquele reino animal quase humano onde Walter Elias Disney é o rei de todos eles", escreveu a revista Time. Em 2017, ficou registado na lista oficial do património cinematográfico dos EUA pelo seu "significado cultural, histórico e estético".

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A mudança foi rápida. E drástica. Em Outubro de 2020, a multinacional do espectáculo tomou a iniciativa de acompanhar a exibição do filme, na sua plataforma Disney+, de uma solene advertência aos espectadores: "Este programa inclui representações culturais obsoletas. Estes estereótipos estavam errados naquela época e continuam errados hoje."

O espectro do racismo, como subtexto real ou imaginário, passou a contaminar Dumbo. Devido à aparição de um bando de corvos cantores, em hipotética associação aos americanos de origem africana. Mas não só: o aviso da Disney+, inserido no início do filme, abrangeu outras longas-metragens do seu vasto espólio, como Peter Pan (1953), A Família Robinson (1960) e Os Aristogatos (1970).»

 

Do meu livro TUDO É TABU (Guerra & Paz, 2024), p. 126

"Cancelamentos culturais" na América (3)

Pedro Correia, 19.11.24

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«Dave Chappelle já vinha sendo visado por ter língua demasiado solta. Mas os apelos ao seu linchamento moral apenas surgiram em 2021 quando ousou fazer piadas sobre os órgãos sexuais de transgéneros na sua sexta série anual de espectáculos para a Netflix, intitulada The Closer.

"Todos os seres humanos nesta sala, todos os os seres humanos da Terra, tiveram de passar pelas pernas de uma mulher para virem ao mundo. Não estou a dizer que as mulheres trans não são mulheres. Estou apenas a dizer que aquelas vaginas... Entendem-me?"

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Em Maio de 2022, em Hollywood, foi atacado por um indivíduo que saltou da plateia para o agredir - na sequência imediata de uma piada. No mês seguinte, nova punição, bastante menos arriscada, mas talvez mais humilhante: ao contrário do que fora anunciado, o teatro da Escola Artística Duke Ellington em Georgetown (Washington), onde Chappelle estudou e concluiu o ensino secundário em 1991, não levaria o seu nome.»

 

Do meu livro TUDO É TABU (Guerra & Paz, 2024), pp. 169-170

Pensamento da semana

Pedro Correia, 17.11.24

 

Os trabalhadores norte-americanos recusam ser figuras exóticas em exposição num parque temático "identitário" pago pela elite financeira de Wall Street, incensado pela nata tecnológica de Silicon Valley e celebrado pelo estrelato de Hollywood. Isto ficou bem expresso nas urnas, sem "empate técnico" algum.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

"Cancelamentos culturais" na América (2)

Pedro Correia, 14.11.24

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«O terceiro disco que Patti Smith lançou (Easter, 1978) levou-a à fama, com temas como "Because the Night". Mas incluía outro que causou estranheza, logo pelo título: "Rock n'Roll Nigger". Por incluir uma palavra depreciativa ou até ultrajante, associada ao calão racista. A cantautora justificou esta opção por alargar o campo semântico de "nigger", equiparando-o a excluídos ou desfavorecidos de qualquer espécie. Ou a rebeldes com causa, vistos com desconfiança pela sociedade.

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Em Outubro de 2022 "Rock n'Roll Nigger" desapareceu das plataformas musicais: eclipsou-se em simultâneo do Spotify, do Tidal, da Apple Music e da Amazon Music. Iam longe os tempos em que Patti Smith era enaltecida como "poetisa do punk", com aura revolucionária. E em que cantou para o Papa Francisco no Vaticano, mesmo sem ser católica. A questão não estava só no vocabulário. Seria um problema de "apropriação branca": um marginal de pele mais clara não pode identificar-se com características identitárias de grupos a que é alheio.»

 

Do meu livro TUDO É TABU (Guerra & Paz, 2024), pp. 171-172

"Cancelamentos culturais" na América (1)

Pedro Correia, 09.11.24

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«A retirada do nome de Lincoln de uma escola secundária do distrito de São Francisco, na Califórnia, foi anunciada em Janeiro de 2021 por um Conselho da Educação que, com chancela oficial, desde 2018 examinava as designações de todos os estabelecimentos de ensino dessa zona. Decidiu mudar 44 - cerca de um terço do total. Pelos motivos mais diversos.

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A lista original de expurgados incluía seis outros antigos presidentes norte-americanos: George Washington, Thomas Jefferson, James Monroe, William McKinley, Theodore Roosevelt e Herbert Hoover. Além do escritor escocês Robert Louis Stevenson, autor de A Ilha do Tesouro. Também Paul Revere, herói da independência dos EUA, o músico Francis Scott Key (que compôs o hino patriótico "The Star Spangled-Banner"). E ainda o poeta abolicionista James Russell Lowell.»

 

Do meu livro TUDO É TABU (Guerra & Paz, 2024), p. 128

O dia mais longo do ano

Pedro Correia, 05.11.24

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Imagem do único debate entre Donald Trump e Kamala Harris, em Filadélfia a 10 de Setembro

 

Nestes dias os canais televisivos foram sendo invadidos por tudólogos que a cada quatro anos se transformam em especialistas da vida interna dos EUA. Alguns saltitam do futebol para a geoestratégia mundial, passando por voos rasantes à política doméstica. Fazem aquilo que é possível esperar de um tudólogo: espreitam as tendências dominantes do eleitorado hoje disponíveis em pesquisas rápidas nos motores de busca. Com tanta ânsia de aparecer, acabam por empurrar os verdadeiros especialistas para horários impróprios, remetendo-os ao último lugar da fila. Quem perde com isso são os canais que lhes dão guarida.

Hoje é a data do escrutínio oficial na corrida à Casa Branca. Mas a eleição decorre há semanas: cerca de 78 milhões de americanos, incluindo o ainda presidente Joe Biden e a candidata democrata, Kamala Harris, optaram pelo voto antecipado. Nas semanas precedentes, esses pára-quedistas da pantalha andaram a picar sondagens, pulando desta para aquela sob o invariável signo do "empate técnico". Com as atenções centradas nos sete estados flutuantes ou oscilantes, logo crismados de swing states em "amaricano" com sotaque tuga.

Entquanto debitavam banalidades, os tudólogos mal repararam em dois aspectos cruciais na letra pequenina das pesquisas de opinião. O primeiro relaciona-se com o índice de rejeição de cada candidato: nas eleições actuais, grande parte de quem vota mobiliza-se mais contra aquilo que não quer do que a favor de alguma pessoa ou sigla. O segundo é a crescente clivagem sexual nas opções de voto: mulheres e homens tendem a dividir-se cada vez mais. Acima das diferenças raciais ou de classe social.  

Tudo isto é ignorado pelo tais especialistas em coisa nenhuma que pululam nas pantalhas, embora seja realçado por quem verdadeiramente percebe da dinâmica eleitoral nos EUA, reflexo da própria mobilidade social no país. Fica como pista de reflexão neste dia mais longo do ano, em que as atenções mundiais estão viradas para aquele que ainda é o Estado mais poderoso do planeta.

Dia tão longo que pode arrastar-se por semanas ou meses. Já faltou mais para sabermos.

"Admirável mundo novo"

Cristina Torrão, 21.10.24

People have the power

jpt, 16.10.24

[People have the power (Patti Smith sings "People Have The Power" with a choir made up of 250 volunteer singers at NYC's Public Theater. This was done in 2019. Daveed Goldman on guitar and Stewart Copeland playing the frying pan.)]

Isto tudo se liga, se articula... e contradiz! No seu  mural de Facebook o Henrique Pereira Dos Santos traz esta versão coral da "People Have The Power" da Patti Smith - a qual, vos garanto por empírico conhecimento, cruza gerações. Canção hino que tantas vezes cantámos, nas pistas ou por aí afora, às vezes exultantes como se gente, outras cantarolando em ira amesquinhada. 

Tudo se liga, tudo se contradiz!, digo eu. Estou a ler o imprescindível "Tudo é Tabu" do Pedro Correia (Guerra e Paz Editores) , um rol de 100 casos de censura promovida pela vigente e descabelada ideologia "identitarista", e ontem cruzei o 75º caso, exactamente o respeitante à Patti Smith, até ela alvo do cretino modo "cancel"!

Ao mesmo tempo vou, cá de longe, recebendo as novas sobre as eleições em Moçambique - país onde a "People Have The Power" se canta "Povo no Poder" -, mais um episódio da inenarrável e despudorada apropriação do voto popular, do "Power" do "People". Até quando?, a que custos?, como se chegará ali ao "Basta" ("Chega" é uma palavra agora politicamente poluída, entenda-se...)?

Mas tudo se liga, tudo se contradiz! Pois cantarolo a canção sentado no meio deste meu Povo pensionista, decrépito, cujo poder se restringe a votar nesta pobreza mental e moral, como se vê na gritaria socialista e fascista à volta do orçamento, no dia em que juristas forçam a arrastar um homem doentíssimo num tribunal apenas para justificarem o seu lacaio imobilismo, servis a este estado do Estado.

Tem o "people" o "power"? Tem, estive ontem a ver as sondagens americanas, Estado a Estado... É quase certo que Trump ganhará.

"...the people have the power / to redeem the work of fools"?

É mesmo melhor cada um tomar o combustível que lhe apetece (Vodka tónico para mim, sff) e ir para a pista, dançar e cantar. Sem esperança. Mas não desesperado.

EUA: as sete eleições menos fracturantes

Pedro Correia, 08.10.24

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Carter e Reagan em 1980, quando as divergências políticas não dispensavam a cortesia

 

Estas foram as sete eleições presidenciais menos fracturantes nos EUA até hoje, com vitórias esmagadoras de seis candidatos, um deles repetente aqui:

 

1804

Foi a quinta eleição presidencial norte-americana. Vencedor: o recandidato Thomas Jefferson, grande artífice da Constituição de 1789 e um dos "pais fundadores" da nação. Liderando o Partido Democrata Republicano, bateu por larga margem o antigo embaixador Charles Cotesworth Pinckney, do Partido Federalista. A sua popularidade deveu-se ao bom desempenho da economia e à expansão do país, com a aquisição do amplo território da Luisiana a França, em 1803, por 15 milhões de dólares. Foi quanto bastou para duplicar a área dos EUA, correspondente a 15 estados actuais, assegurando o domínio da cidade de Nova Orleães e do delta do Mississippi. Jefferson, que era presidente desde 1801, triunfou em toda a linha nesta reeleição: 105.524 votos contra 38.519 do opositor, 162 contra 14 delegados no colégio eleitoral, 15 estados conquistados e apenas dois perdidos. Percentagem nacional: 73,2%. 

 

1864

Abraham Lincoln, republicano, vencera a eleição em 1860. Quatro anos depois tornou-se o primeiro chefe do Executivo reeleito desde 1832. Aconteceu em plena Guerra da Secessão e o sufrágio decorreu apenas em 25 estados, sem a participação dos onze que haviam formado a Confederação sulista. Lincoln concorreu sob a sigla União Nacional, que reunia republicanos e democratas apostados em prosseguir a luta armada contra os esclavagistas. O seu opositor era o antigo general George McClellan, liderando a facção pacifista do Partido Democrata. O presidente esmagou no colégio eleitoral: 212 delegados contra 21. Venceu em 22 estados com 55,1% (percentagem global), beneficiando do triunfo unionista na Batalha de Atlanta, que assinalou uma decisiva viragem na guerra. Mas seria assassinado antes de concluir o segundo mês do novo mandato.

 

1936

Franklin Roosevelt foi o presidente que permaneceu mais tempo na Casa Branca: 12 anos, tendo iniciado o mandato em 1933. E três vezes reeleito, cenário que deixou de ser possível em 1951, quando entrou em vigor a 22.ª emenda constitucional. A sua mais expressiva votação ocorreu em 1936, numa espécie de referendo popular às medidas sociais do New Deal que puseram fim à Grande Depressão. Triunfo esmagador do democrata nesses anos que antecederam a II Guerra Mundial: 523 delegados contra apenas oito do seu rival, Alf Landon, governador republicano do Kansas. No voto popular, Roosevelt recolheu 27.747.636 boletins (60,8%), muito acima dos 16.679.543 (36,5%) do opositor. Landon, orador medíocre e sem carisma, só venceu em dois estados: Vermont e Maine.

 

1964

Os EUA viviam ainda sob o trauma do assassínio de John Kennedy, ocorrido menos de um ano antes. O sucessor, o vice-presidente Lyndon Johnson, havia sido derrotado nas primárias democratas de 1960 e enfrentava o primeiro teste nas urnas a nível nacional. Sem oposição interna e com a economia em alta, o inquilino da Casa Branca defrontou o senador Barry Goldwater, oriundo da ala mais conservadora do Partido Republicano. O desfecho não deixou margem para dúvidas: Johnson conquistou 44 estados, além do distrito federal. Goldwater venceu apenas no seu Arizona natal e noutros cinco: Alabama, Carolina do Sul, Geórgia, Luisiana e Mississippi. Em delegados, a diferença foi abissal: 486 contra 52. Em percentagem nacional também: 61,1% contra 38,5%.

 

1972

Richard Nixon chegou a ser um presidente extremamente popular. Isto ficou evidente na sua reeleição, ao tornar-se o primeiro candidato republicano a dominar todos os estados do Sul, anterior feudo eleitoral do Partido Democrata. Beneficiou do alargamento do direito de voto nos EUA dos 21 para os 18 anos, introduzido em 1971 na 26.ª emenda constitucional, e da promessa de pôr fim aos recrutamentos para a guerra no Vietname. Enfrentou George McGovern, senador do Dakota do Sul e membro da ala democrata mais esquerdista. Obteve o maior triunfo de sempre numa corrida à Casa Branca, primeiro em 49 dos 50 estados: McGovern só venceu no Massachusetts. Conseguiu 47.168.710 votos (60,7%) e 520 delegados, contra apenas 29.173.222 (37,5%) e 17 delegados do seu opositor.

 

1980

Ronald Reagan era corredor de fundo. Foi governador da Califórnia durante dois mandatos e em 1976 disputou as primárias republicanas em competição cerrada com o presidente Gerald Ford, que venceu no partido mas perdeu a nível nacional. Quatro anos depois representou os republicanos na corrida à Casa Branca. Contra o chefe do Executivo, Jimmy Carter, quando os EUA enfrentavam grave crise económica, energética e reputacional. Reagan impôs-se com 489 votos do colégio eleitoral enquanto Carter só conseguia 49. Venceu em 44 estados, com 50,7%. Pela primeira vez desde 1932 um presidente recandidato ficava pelo caminho. E desde 1888 não acontecia nada semelhante a um inquilino da Casa Branca pertencente ao Partido Democrata.

 

1984

Reagan foi reeleito por larga margem. Beneficiando da recuperação económica dos EUA e da sua mensagem de contagiante optimismo, simbolizada no slogan «Amanhecer na América». Mesmo sendo, aos 73 anos, o mais velho candidato presidencial à época. Enfrentou Walter Mondale, que fora confrontado em primárias no Partido Democrata por Gery Hart e Jesse Jackson. O desfecho pouco surpreendeu: o antigo actor de Hollywood atraiu 525 delegados e 58,8% do voto popular. Mondale, ex-vice-presidente com Carter, só obteve 13 mandatos - dez do seu estado natal, Minnesota, e três do distrito federal, praça-forte democrata. Era a segunda maior vitória de um candidato no colégio eleitoral desde 1820 - e a maior de um republicano. Reagan triunfou até em tradicionais bastiões do partido rival: Nova Iorque, Oregon, Rhode Island, Massachusetts, Washington e Havai.

EUA: as cinco eleições mais renhidas

Pedro Correia, 05.10.24

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John Kennedy e Richard Nixon: apenas 120 mil votos os separaram nas presidenciais de 1960

 

Estas foram as cinco eleições presidenciais mais renhidas nos EUA até hoje, com desfechos decididos à tangente e por vezes envoltos em enorme polémica:

 

1824

Primeira corrida presidencial norte-americana em que o vencedor acabou por não ser o mais votado. Outras quatro se seguiram: a mais recente aconteceu em 2016, quanto Donald Trump saiu eleito. John Quincy Adams - à época secretário de Estado - triunfou sem maioria nas urnas, obtendo apenas mais um delegado no colégio eleitoral. Num escrutínio inicialmente inconclusivo, com desfecho transferido para a Câmara dos Representantes, ao abrigo da 12.ª emenda constitucional, e entre alegações de fraude. O general Andrew Jackson, derrotado, viria a desforrar-se quatro anos depois, ao vencer Adams. Curiosamente, militavam ambos no há muito extinto Partido Democrático Republicano.

 

1876

Dois governadores opuseram-se nesta disputa eleitoral: o republicano Rutherford Hayes, do Ohio, e o democrata Samuel Tilden, de Nova Iorque. O escrutínio foi marcado por duras acusações mútuas de fraude e o apuramento dos votos arrastou-se de Novembro de 1876 a Março de 1877. Só ficou decidido após controversa deliberação das duas câmaras do Congresso. Tilden (50,9%) obteve maior percentagem do que Hayes (47,9%) e mais 250 mil votos populares. Mas o republicano, tendo eleito só mais um delegado (185-184), conseguiu vencer. Sem convencer.

 

1880

Foi a primeira eleição presidencial após o longo período de Reconstrução na metade Sul do país iniciado com o fim da guerra civil, em 1865, e prolongado até 1877. Numa época em que havia muito menos eleitores e até menos estados do que hoje, impôs-se nas primárias republicanas o congressista James Garfield. Derrotou nas urnas, por uma unha negra, o democrata Winfield Scott Hancock, general unionista e herói nos campos de batalha. Apenas 1898 votos os separaram na eleição directa: o vencedor recolheu 48,3% dos sufrágios, só uma décima acima do rival. Nunca houve diferença tão ínfima na história das corridas à Casa Branca.

 

1960

Depois de derrotar Hubert Humphrey e Lyndon Johnson nas primárias, o senador John Kennedy emergiu como candidato do Partido Democrata. Enfrentou nas urnas o republicano Richard Nixon, que durante oito anos fora destacado membro da administração Eisenhower, como vice-presidente. Houve apenas cerca de 120 mil votos a separá-los num escrutínio que mobilizou 68,8 milhões de norte-americanos. Kennedy (49,7%) venceu por 303-219 no colégio eleitoral. Mas Nixon (49,6%) sagrou-se vencedor em mais estados: 26 contra 22.

 

2000

Jamais uma disputa em era contemporânea foi tão acesa como a que opôs o republicano George W. Bush (47,9%), governador do Texas, ao democrata Al Gore (48,4%), vice-presidente dos EUA. A tal ponto que, tendo ocorrido a 7 de Novembro, só cinco semanas depois seria proclamado o vencedor: Bush triunfou no colégio eleitoral com 271 votos contra os 266 de Gore, registando-se imensa polémica em torno do apuramento dos resultados na Florida, estado governado por Jeb Bush, irmão de George. A questão subiu ao Supremo Tribunal, mas Gore recusou prolongá-la, reconhecendo a derrota a 13 de Dezembro. No entanto, recolheu mais cerca de meio milhão de votos: pela primeira vez desde 1888 um presidente era eleito sem maioria de apoio popular.

Happy birthday, Mr. President

Jimmy Carter, nascido em 1 de Outubro de 1924, é hoje centenário

Pedro Correia, 01.10.24

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James Earl Carter Jr. - popularizado como Jimmy Carter quando foi governador da Geórgia, antes de chegar à Casa Branca - festeja hoje cem anos. É o primeiro antigo chefe do Executivo norte-americano a atingir tão bonita idade. Até agora os mais idosos tinham sido George Bush, falecido em 2018 aos 94 anos, Gerald Ford, falecido em 2006 aos 93, e Ronald Reagan, também desaparecido aos 93 anos, em 2004. Todos estes, curiosamente, do Partido Republicano - ao contrário de Carter, personalidade eminente do Partido Democrata.

«Jimmy Who?», titulou um influente diário no final de 1974, quando este filho de um cultivador de amendoins anunciou a intenção de concorrer à presidência. Dele se diz ter sido um dos piores presidentes dos EUA no século XX. Devido a factos tão diversos como a espiral da inflação, a grave crise energética, o acidente na central nuclear de Three Mile Island e o assalto de extremistas islâmicos à embaixada dos EUA em Teerão, fazendo 53 reféns num humilhante cativeiro que durou 444 dias.

 

Iniciou funções em Janeiro de 1977, mas ficou excluído de um segundo mandato. Sofreu derrota esmagadora contra Reagan na eleição de Novembro de 1980: só obteve 49 votos no colégio eleitoral, contra 489 do seu concorrente. O republicano sagrou-se vencedor em 44 estados, enquanto Carter apenas triunfou em seis, além do distrito federal. 

O melhor na sua carreira política aconteceu após sair da Casa Branca. Com as iniciativas que promoveu em prol dos direitos humanos, da educação, da justiça social, do desenvolvimento económico e do combate às doenças endémicas um pouco por todo o mundo. Sob o lema «Aliviar o sofrimento».

Em 1982 fundou o Centro Carter, respeitado organismo não-governamental que tem acompanhado diversos processos eleitorais - e que recentemente denunciou a vergonhosa fraude eleitoral na Venezuela

 

Em 2002 foi justamente galardoado com o Nobel da Paz. O mesmo que em 1978 havia distinguido Anwar Sadat e Menachem Begin pelos Acordos de Camp David que selaram o estabelecimento de relações diplomáticas entre Israel e o Egipto, velhos inimigos, abrindo uma luz de esperança no Médio Oriente. 

Marco histórico que hoje nos parece sem paralelo, face aos tristes acontecimentos registados em 2024. Carter foi o grande promotor deste processo de paz. Também se destacou pelo histórico tratado assinado em 1977 com o Panamá que determinou a devolução a este país da plena soberania do canal do mesmo nome, então sob domínio norte-americano.

Já figura histórica ainda em vida. Facto raro, que merece ser assinalado. Como cantava Marilyn Monroe, Happy birthday, Mr, President.

 

ADENDA

Jimmy Carter: a vida em imagens. Excelente desfile de fotografias editadas pela CNN.

Só um em oito

Pedro Correia, 25.08.24

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Joe Biden e Donald Trump defrontaram-se em 2020, mas o duelo não irá repetir-se agora

 

Talvez alguns não saibam e outros já não se recordem. A uns e a outros, vale a pena chamar a atenção: nas últimas oito eleições presidenciais nos EUA, só por uma vez o candidato do Partido Republicano obteve a maioria do voto popular.

Aconteceu com George W. Bush, em 2004.

 

As restantes foram assim.

1992
Clinton: 44,9 milhões de votos (43%)
Bush: 39,1 milhões de votos (37,4%)

1996
Clinton: 47,4 milhões de votos (49,2%)
Dole: 39,2 milhões de votos (40,7%)

2000
Bush: 50,4 milhões de votos (47,9%)
Gore: 50,9 milhões de votos (48,4%)

2008
Obama: 69,5 milhões de votos (52,9%)
McCain: 59,9 milhões de votos (45,7%)

2012
Obama: 65,9 milhões de votos (51,1%)
Romney: 60,9 milhões de votos (47,2%)

2016
Trump: 62,9 milhões de votos (46,1%)
Clinton: 65,8 milhões de votos (48,2%)

2020
Biden: 81,2 milhões de votos (51,3%)
Trump: 74,2 milhões de votos (46,8%)

 

Irá esta tendência acentuar-se?

Poderá Trump alcançar aquilo que não conseguiu em 2016 e 2020?

O interesse aumenta à medida que prossegue a contagem decrescente para a eleição de 5 de Novembro.