De Adis rumo ao Sul - Fotografia minha
Camiões e violência étnica
De Adis Abeba para Sul a viagem inicia-se numa estrada profundamente danificada. Há buracos com o comprimento de autocarros. Literalmente. A isto acresce a inobservância de todas as regras de trânsito: carros, motos, bajaj (tuk-tuk de uso local), pessoas e animais circulam nas mesmas vias, frequentemente em sentidos conflituantes. A sinalização é escassa e decorativa. Uns quilómetros depois surge um troço de autoestrada imaculado, produto da engenharia chinesa.
Antes de chegar ao lago Koka e de volta à penosidade de uma estrada secundária, dois camiões jazem incendiados na berma da estrada. Na Etiópia, a vida acontece na berma da estrada: é na berma da estrada que se constroem as casas de barro prensado, é na berma da estrada que se monta um pequeno negócio abrigado por chapa de zinco, é na berma da estrada que se vê a vida passar. Assim, a presença daqueles camiões neste local não era desleixo. Pergunto a Ermiyas, o meu camarada etíope de viagem, a causa. Íamos sozinhos no carro, mas a frase “mau governo” sai entre dentes. Para perceber o porquê da frase e a razão pela qual foi dita em surdina importa entender primeiro a organização político-territorial do país.
A Etiópia é um estado federal onde a cada um dos nove estados federados corresponde a uma etnia maioritária - no total, existem no país mais de duas dezenas de grupos étnicos. Oromos e amharas são os mais numerosos, sendo, respectivamente, 34% e 27% da população. A etnia tigrínia, que representa pouco mais de 6%, tem um estado próprio e é a força preponderante na Frente Democrática e Revolucionária do Povo da Etiópia (FDRPE), a coligação que detém o poder político federal. Este arranjo político-institucional é fruto de uma tentativa de domesticar a violência.
Em 1974, quando depôs o imperador Haile Selassie, o golpe da junta militar comunista (Derg) pôs fim a um sistema autocrático e feudal e, em simultâneo, destapou um conjunto de tensões políticas e étnicas há muito latentes, às quais respondeu com terrorismo de Estado. Com diferentes velocidades e intensidade, estas tensões transformaram-se em conflitos armados. À luta pela independência da Eritreia, em curso desde a década de 1960, juntaram-se outras protagonizadas por movimentos de base étnica como, por exemplo, a Frente de Libertação Afar, o Partido Revolucionário do Povo Etíope, a Frente Islâmica de Libertação da Oromia, a Frente de Libertação Oromo e a Frente de Libertação Nacional Ogaden.
A Etiópia torna-se então o cenário de diferentes guerras civis que com frequência se misturaram e sobrepuseram. Do lado do Estado, as purgas e os assassinatos transformaram o regime militar ditatorial numa tirania de corte personalista liderada pelo infame Major Mengistu Haile Mariam. Neste período de tirania militar, que foi de 1974 a 1991, momentos houve em que a Etiópia foi palco – e vítima – de um estado de guerra total. Os avanços e recuos destes conflitos foram determinados pelas identidades étnicas, pela demografia, pela geografia, mas também pela influência das potências enfrentadas na Guerra Fria.
Findo o regime militar em 1991 e obtido o reconhecimento internacional da Eritreia em 1993, o país virou-se para dentro à procura de soluções. Desde o final do reinado de Halie Selassie que a fragmentação da sociedade em diferentes etnias, línguas e culturas estava no centro da contestação social. As tentativas dos diferentes regimes em forjar uma unidade nacional mediante a eliminação da preponderância das identidades étnicas saíram sempre goradas – e o custo dessas tentativas foi medido em cadáveres.
Vila na periferia de Gondar - Fotografia minha
A solução de um estado federal que conferisse autonomia política e administrativa às principais etnias foi a via encontrada para acomodar as diferentes identidades e evitar maior desagregação territorial, sendo esta a base do actual regime.
Da teoria à prática há sempre uma distância considerável e, por isso, os méritos do federalismo são mitigados por quatro problemas de gestão política. Primeiro, a descentralização é débil. O poder político está concentrado no Estado Federal, em particular na FDRPE, no poder desde 1991, controlada pela etnia tigrínia. Segundo, a ausência de liberdades políticas. A imprensa não é livre, o acesso à internet é controlado e a oposição é oprimida, algo que foi bastante visível em 2015, ano em que foram realizadas as últimas eleições legislativas onde a FDRPE ficou com 500 mandatos parlamentares num total de 547 – os 47 de diferença foram conseguidos por partidos leais à coligação no poder. Terceiro, muitos dos representantes locais são encarados pelos seus constituintes como fantoches do poder central, cooptados por via da corrupção. Por último, e embora se tenha encontrado uma forma equilibrada de distribuir os recursos do orçamento de Estado, a maior parte dos fundos e projectos internacionais de apoio ao desenvolvimento bem como a construção de infraestruturas estão localizados na região Tigré ou nas zonas definidas pela etnia que a controla.
Às tensões étnicas e nacionalistas do passado acresce então o sentimento de marginalização económica e política. E, devido à natureza autoritária do poder incumbente, não existem no sistema político etíope mecanismos e canais eficazes através dos quais os cidadãos possam exprimir o seu descontentamento e encontrar soluções. Era a tudo isto que Ermiyas se referia quando respondeu “mau governo”.
Os dois camiões ardidos eram então uma recordação do sucedido onze meses antes, em Outubro de 2016, mês em que os oromos celebraram o festival anual Irreechaa, evento onde se celebra o fim da época das chuvas e se pedem colheitas prósperas à natureza. Milhões de oromos acorrem à localidade de Bishoftu, relativamente próxima do lago Koka, por onde passava em viagem. Ter-se-ão infiltrado na massa de peregrinos manifestantes anti-governo e a polícia reagiu com brutalidade: os números oficiais referiam cerca de 50 mortos, embora diferentes organizações não governamentais coloquem a cifra na ordem dos 100. O caos e a violência deixaram um rasto de destruição que o passar dos meses foi apagando. Em Setembro sobravam dois camiões ardidos, uma espécie de memento mori que a todos recordava os efeitos da violência étnica (e a brutalidade que o regime usa para a reprimir).
O episódio do festival Irreechaa foi antecedido por meses de protestos oromos contra o Executivo. Iniciados em Novembro de 2015, e motivados por causas diversas – desde um plano para expandir a cidade de Adis Abeba que retiraria terrenos de cultivo à região oromo a manifestações contra o permanente clima de intimidação que rege a vida política –, os protestos alastram-se a várias cidades da Oromia. Entretanto, a etnia amhara iniciou os seus próprios protestos contra o Governo e dele obteve a mesma reacção. Em Outubro de 2016 o Governo Federal decretou o Estado de Emergência, findo em Julho de 2017. A Comissão Etíope para os Direitos Humanos, organismo dependente do Governo e por ele criado para refrear as acusações de autoritarismo vindas do estrangeiro, fez o balanço dos protestos ocorridos em 2016 e concluiu que há 600 mortos a lamentar.
Semanas depois de ter visto os dois camiões, e já numa região diferente, ouviria a frase “mau governo” outra vez. A 18 de Setembro de 2017, de caminho a Harar, no Este do país, sou aconselhado a não seguir viagem. “Há refugiados em direcção a Harar porque as coisas estão complicadas junto à fronteira com a Somália”, disse-me Agu, diácono numa igreja ortodoxa. De facto, era notória agitação e o nervosismo das pessoas que se iam juntando na rua. Pouco a pouco formou-se uma caravana de gente apeada que transportava como podia o pouco que tivera tempo de arrumar. Perguntei a razão. Foi então que ouvi o fatídico “mau governo”.
A causa imediata eram confrontos entre somalis e oromos. Naquele primeiro dia as autoridades federais contabilizaram 18 mortos, um número contestado pelos representantes locais, que registaram mais de 30. O número de refugiados internos andava na ordem das dezenas de milhares. Porém, a violência foi menos intensa do que em Fevereiro e Março daquele ano, quando os confrontos entre oromos e somalis provocaram centenas de mortos – o número exacto nunca foi apurado.
Com estradas cortadas, esperámos junto à rádio por novidades. Enquanto houve notícias, Agu traduziu o que ouvia para inglês. Faltava saber o que esteve na génese dos confrontos. Mas disso não falavam na rádio. “Isto é instigado a partir de Adis. Metem-nos uns contra os outros para aparecerem [a FDRPE e os tigrínia] como os únicos capazes de garantir a unidade da Etiópia”. A tese tem alguns argumentos válidos e adeptos nas regiões Oromia e Amhara, mas é impossível de demonstrar. Vale por ilustrar a desconfiança que existe em relação à FDRPE.
Sem prejuízo do progresso alcançado desde 1991, a Etiópia está no 134º lugar do Global Peace Index 2017, uma lista que avalia o nível de segurança em 164 países. Nos diferentes parâmetros, analisados numa escala de 1 (muito baixo) a 5 (muito elevado), a Etiópia é especialmente mal classificada em Conflitos Internos Combatidos (4.3), Acesso a Armamento (4.0), Intensidade de Conflito Interno (4.0) e Protestos Violentos (3.5). Em relação a 2016, a Etiópia caiu 16 lugares e piorou na generalidade dos indicadores. Foi, de resto, o país que mais pontuação perdeu.
Invertida a marcha em segurança graças à amabilidade daquele diácono que me cuidou como se fossemos família, segui viagem em direcção ao orfanato onde passaria os próximos dias.
Estes factos e dados reportam a 2017. Eleições recentes alteraram o status quo - sem prejuízo dos sinais positivos que resultaram das eleições, o real significado da alteração ainda está por ver.