No passado fim-de-semana a ETA entregou as armas. Ao contrário do que sucedeu com o IRA ou com as FARC, o desarmamento da ETA foi unilateral, sem contrapartidas. Foi uma rendição. A organização terrorista chega aos dias de hoje sem ter ganho nada: nem independência, nem a junção do País Basco a Navarra, nem a transferência de presos etarras para estabelecimentos prisionais bascos, nem a internacionalização do “conflito”, nem amnistias. Nada. Chega aos dias de hoje sem apoio popular - o pouco que existiu é agora negligenciável. A única coisa que conseguiu foi deixar um rasto de terror feito à custa de mais de 800 cadáveres.
O estertor do terrorismo etarra faz-se de duas datas: 10 de Janeiro e 20 de Outubro de 2011. A 10 de Janeiro de 2011 a organização terrorista ETA anuncia um cessar-fogo "permanente, geral e verificável", três palavras que nunca estiveram juntas em anteriores interrupções de hostilidades. A 20 de Outubro do mesmo ano, a ETA anuncia o "cese definitivo", o fim. Para decretar o óbito de 40 anos de terror faltava apenas que a organização entregasse as armas e, depois, anunciasse oficialmente a sua dissolução. No passado fim-de-semana cumpriu-se a primeira etapa. Aguardamos o cumprimento da segunda.
O estado da arte deve-se a diferentes factores que, juntos, criaram a tempestade perfeita. Em primeiro lugar, um processo negocial, o terceiro em 40 anos de terror. Já trouxe ao DELITO a história desta negociação: Negociador (Borja Cobeaga, 2014) é a adaptação cinematográfica criativa do livro onde Jesús Eguiguren, o principal negociador, conta como conversas exploratórias entre ele, do Partido Socialista Basco, e Arnaldo Otegi, uma das figuras mais conhecidas e activas da esquerda abertzale, evoluíram para rondas negociais entre o Governo, a esquerda abertzale e a ETA. Este processo, à semelhança dos anteriores, fracassou. Ainda assim, conseguiu cavar as clivagens existentes na esquerda pró-etarra e, assim, afastar a estrutura partidária da estrutura terrorista. Além do filme e do livro, o processo é agora explicado em El fin de ETA (Justin Webster, 2016), um documentário notável, muitíssimo bem feito, disponível em Portugal no Netflix. Espero trazê-lo em breve ao DELITO.
Em segundo lugar, a pressão policial e judicial. No ano 2000, a ETA contava com cerca de 1000 operacionais; seis anos depois este número desceu para aproximadamente 50. A aplicação da lei foi essencial para que a imensa maioria dos terroristas com experiência operacional e política acabassem presos. O vazio de poder na cúpula da ETA foi então preenchido por jovens impreparados, muitos vindos directamente da kale borroka (guerrilha urbana), gente com manifesta inépcia política.
A nova liderança terrorista é o terceiro factor: o seu fanatismo exacerbado impediu-a de ver a realidade e de perceber que à medida que o tempo passava a organização ficava cada vez mais isolada. A ETA continuou a matar, visando com frequência vítimas de oportunidade, os mais fracos ou mais desprotegidos, pessoas como Isaías Carrasco. Mostrou que a única forma de fazer política que conhecia era matar.
Tudo indica que a ETA chegou felizmente ao fim. Porém, manda o conhecimento do modus operandi da organização que esperemos pelo anúncio oficial de dissolução. Recorde-se que a 30 de Dezembro de 2006, em pleno processo negocial, a ETA detonou um carro-bomba no Terminal 4 do aeroporto de Barajas, em Madrid, matando duas pessoas e destruindo por completo um bloco de estacionamento. Recorde-se também que em Outubro desse ano a ETA roubou cerca de 300 armas e munições na véspera do dia em que o Executivo espanhol levou o Caso Basco e representantes das forças políticas separatistas ao Parlamento Europeu. O Governo esforçava-se por encontrar soluções, arriscava muito do seu capital político ao abrir a porta à internacionalização do “conflito”, mas a ETA aproveitava o momento para se rearmar. Por último, recordemos que a ETA defendeu e aplicou aquilo a que chamou de “socialização do sofrimento”, um conceito mórbido segundo o qual a violência tinha de chegar a todos: políticos, polícias, jornalistas, professores, enfim, a todos os que se opunham publicamente à utilização da violência como instrumento de acção política.
Compreende-se, assim, o cepticismo de vários sectores da sociedade espanhola. Além do mais, existe o risco de que os partidos independentistas recuperem o legado político da ETA, ainda que sem recorrer ao terror. Se tal acontecer, será praticamente impossível sarar a chaga social aberta ao longo de 40 anos de terrorismo. Também por isso é importante que a ETA assuma publicamente a sua dissolução.