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Delito de Opinião

Estrelas de cinema (33)

Pedro Correia, 11.02.23

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A DIFERENÇA ENTRE OLHAR E VER

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Por vezes acontece. Um cineasta torna-se clássico aos nossos olhos em tempo real. É o caso de Steven Spielberg, com Os Fabelmans.

Claro que vários outras longas-metragens dirigidas por ele, antes deste suave drama familiar, indiciavam já uma ascensão ao patamar supremo: basta pensarmos em títulos tão diversos como TubarãoOs Salteadores da Arca Perdida, A Lista de Schindler ou O Resgate do Soldado Ryan. Mas um realizador, para adquirir o estatuto de verdadeiro clássico, precisa de nos transmitir algo de essencial a seu respeito, não apenas sobre o mundo tal como o observa ou imagina. Charles Chaplin partilhou connosco uma comovente recriação da sua infância n'O Garoto de Charlot. John Ford revisitou as suas raízes irlandesas, genuínas ou míticas, no magnífico O Homem Tranquilo, com John Wayne enfim removido da figura de cowboy

 

Spielberg regressa neste filme à sua Ítaca privada. Já havia figurado nas entrelinhas do ecrã, recorrendo ao simbólico alter ego Elliott, o menino solitário que tem um extraterrestre como melhor amigo, em E. T. (1982), mas nunca se desvendou tanto como aqui. O resultado supera as expectativas: este é o seu filme mais intimista - e também capaz de exibir um vibrante retrato da época em que cresceu, naqueles Estados Unidos dos finais da década de 50 ainda sulcada de preconceitos que acentuaram a timidez do miúdo, sobretudo após a mudança do Arizona para a Califórnia. O futuro génio do cinema foi vítima de assédio escolar. Por ser judeu, por ser filho de pais separados, por "parecer diferente". Refugiou-se atrás de uma câmara de filmar para ocultar a introversão: o palco cabia a outros.

Disto nos fala este filme tão revelador. Mas não em tom de lamúria ou indignação, próprio da vozearia tribal dos nossos dias: este retrato de uma família de classe média com as suas luzes e sombras é percorrido por uma terna nostalgia. Ao som da partitura do quase lendário John Williams, decano dos compositores de cinema, hoje com 91 anos. E muito valorizado com a presença luminosa de Michelle Williams, numa interpretação digna do Óscar da Academia, no papel da mãe: ela estimula a vocação artística do seu único filho rapaz. Um dia, ao filmá-la de surpresa, o jovem Sammy percebeu que a relação entre os pais estava longe de ser idílica.

 

Sammy é Steven na adolescência, interpretado por Gabriel LaBelle como se tivesse nascido para ser um seu duplo. Nenhum actor antes dele, na extensa filmografia de Spielberg, se aproximou tanto daquele menino inibido que procurava disfarçar a insegurança com uma câmara super 8 na mão.

Mas Os Fabelmans ultrapassa o efeito de catarse, sem se confinar a cascatas confessionais. Chega mais longe: eis-nos perante uma celebração do cinema como festa da vida, como partilha inigualável de momentos mágicos que nos iluminam para sempre numa sala escura. 

Enfim, um clássico recém-estreado. Comprova-o a cena final, em que um cineasta presta tributo a outro confiando-lhe o papel de um terceiro: David Lynch, que Spielberg desafiou a encarnar John Ford como convidado especial para coroar o filme. O mesmo Ford que já havia marcado presença por via oblíqua, quando Sammy surge como espectador do inesquecível O Homem Que Matou Liberty Valance

 

Podia ser lenda, mas aconteceu de facto. Um dia, tinha ele 16 anos, visitou o mestre no seu gabinete em Hollywood. Ao saber que aquele adolescente sonhava ser cineasta, o filho de um imigrante irlandês ensinou-lhe a diferença entre olhar e ver, apontando-lhe dois quadros na parede.

Num par de frases, Ford mostrou-lhe a importância do plano e da perspectiva. Um realizador de talento é capaz de vislumbrar aquilo que os outros nem supõem ao contemplar a mesma imagem.

E é assim a história do cinema: uma incessante passagem de testemunho. De génio para génio, de geração em geração.

 

The Fabelmans. De Steven Spielberg. Com Gabriel LaBelle, Michelle Williams, Paul Dano, Judd Hirsch, Seth Rogen. Produção norte-americana (2022). Duração: 151 minutos.

 

Estrelas de cinema (32)

Pedro Correia, 20.03.22

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A CIDADE FRACTURADA

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Belíssima digressão ao passado do cineasta (e actor) norte-irlandês Kenneth Branagh naquele que é o mais autobiográfico dos seus filmes. Invocando a infância na provinciana Belfast do final da década de 60, quando a capital do Ulster começava a ser sacudida pelo terrorismo do IRA, gerando reacções duríssimas dos unionistas num conflito também com contornos religiosos que fracturou a cidade entre católicos e protestantes, durou 30 anos e provocou milhares de vítimas.

Branagh recorda essa época traumática filtrada pelo olhar inocente dum rapazinho (Jude Hill, num desempenho excepcional) que tenta, sem o conseguir, compreender o complexo mundo dos adultos. Incluindo o pai (Jamie Dornan), apostado em emigrar para a Austrália, e a mãe (interpretada pela belíssima Caítriona Balfe), agarrada às raízes, fiel aos quarteirões onde nasceu e cresceu, sem espírito de aventura. 

Filme nostálgico, comovente, tocante, que nos faz sorrir e enternecer quase em simultâneo sem cair no artifício retórico ou na demagogia visual - e muito menos de romantizar a chamada "guerrilha urbana". Rodado num soberbo preto-e-branco (excepto nos planos de abertura e fecho) que muito o valoriza, devolvendo-nos à memória do melhor cinema clássico. E com uma soberba banda sonora em que se destaca Van Morrison, tão actual hoje como em 1969.

Está na corrida aos Óscares, já recebeu o Bafta de melhor filme britânico do ano. Como um John Ford contemporâneo, aqui inspirado em obras como O Vale Era Verde, Branagh fala-nos do mais intemporal e perene de todos os vínculos: o elo familiar. Capaz de superar até o amor à terra e de nos tornar menos imperfeitos a cada etapa da existência. Onde quer que vamos, irá connosco. Acompanha-nos como uma bússola, transformando a vida em destino. 

Sem efeitos especiais, sem a soberba característica das superproduções hollywoodescas, Belfast faz ascender o local à escala do universal. Esta é uma das virtudes maiores dos grandes filmes.

 

Belfast. De Kenneth Branagh. Com Jude Hill, Jamie Dornan, Caítriona Balfe, Judy Dench, Ciarián Hinds. Produção britânica (2021). Duração: 97 minutos.

 

Estrelas de cinema (31)

Pedro Correia, 20.06.19

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NÁUFRAGOS DO DESTINO

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Numa das mais emblemáticas cenas deste filme surge um velho gato, trôpego e coxo, em precário equilíbrio nos telhados de zinco da parte mais pobre de Macau – aquela que nunca surge nos bilhetes-postais, oculta pelas faiscantes luzes de néon. É uma perfeita metáfora visual: aquele gato representa de algum modo o velho português que ali desembarcou num dia remoto e nunca mais de lá saiu, atraído pelo aparente milagre da multiplicação de cifrões, que lhe permitiu ser proprietário de um hotel. Os tempos eram outros, as designações também: um estabelecimento chamado Império não tem lugar nos nossos dias. O velho português, viciado em jogo, foi-se arruinando: restam-lhe memórias ao som de melodias nas vozes de Amália e Milu. A guitarra que tanto gostava de dedilhar jaz sem préstimo a um canto do quarto desde que uns agiotas lhe partiram os dedos. Tornou-se proprietário de uma ruína – aliás, metade de uma ruína, pois a co-proprietária é a sua antiga mulher chinesa, que um dia o abandonou, levando o filho de ambos. Nunca mais a viu.

 

Hotel Império é um filme actual de Macau. Mas podia ser um filme antigo, rodado nesta cidade onde os portugueses ancoraram durante séculos como se estivessem sempre de passagem e que podemos entrever em fragmentos de velhas películas de Hollywood, como Macau, de Josef Von Sternberg, ou A Colina da Saudade, de Henry King. Ivo Ferreira, cineasta de 43 anos residente há mais de uma década no Oriente, parece sentir uma irreprimível nostalgia de uma época que não viveu. Uma época de que se conservam vestígios cada vez mais precários, simbolizados na velha modista que fugiu da China e ali encontrou refúgio, do cantor de ópera chinesa que interpreta temas fora de moda para audiências cada vez mais reduzidas, do casino flutuante no Porto Interior que fecha as portas para sempre.

É uma sentida homenagem a uma urbe que foi sendo povoada por inúmeros náufragos do destino. Incluindo Maria, a filha do velho dono do hotel, que tem a mãe sepultada em Portugal. É o único elo que ainda a liga a um país que não recorda: vive aculturada na cidade adoptiva, há-de perder o que lhe resta dos verdes anos imersa nos dédalos daqueles bairros chineses de raízes precárias, habitados por gente que também não é dali. As suas escassas amigas são “massagistas” – eufemismo para designar prostituição num território onde «tudo está à venda», como sublinha Edgar, o português sem escrúpulos que saca dinheiro graúdo com pequenas golpadas.

 

Hotel Império é, no fundo, uma declaração de amor a Macau – aos velhos que passeiam gaiolas com passarinhos nas manhãs repassadas de humidade, à geomante que promete predizer o futuro alheio, aos plácidos praticantes de tai-chi na Fortaleza do Monte, aos jantares de sopa de cobra na Rua da Felicidade, ao ruído das pedras de má-jong ecoando no calor da noite.

Um filme de notável economia verbal, sob a evidente influência estética de um Wong Kar-wai ou um Wim Wenders, e que presta merecida homenagem à fotogenia de Margarida Vila-Nova, irrepreensível no papel de Maria – incluindo nas falas em cantonês, que bastariam para atemorizar outras actrizes ocidentais. Chorando de alegria ou dor, de olhar melancólico ou semblante magoado – ainda jovem mas já tão intemporal. Náufraga do destino ela também.

 

Hotel Império. De Ivo M. Ferreira. Com Margarida Vila-Nova, Rhydian Vaughan, Sun Jiajun, Eliz Lao, Cândido Ferreira, Tiago Aldeia. Produção luso-chinesa (2018). Duração: 82 minutos.

 

Estrelas de cinema (30)

Pedro Correia, 24.04.19

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A PAIXÃO QUE VEIO DO FRIO

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Não devemos exigir aos filmes algo diferente daquilo que nos propõem dar. No caso de Snu, é inútil alimentar-se a expectativa de um quadro detalhado da sociedade portuguesa da década de 70, primeiro asfixiada por uma ditadura que dava já evidentes sinais de esgotamento, depois por um alucinado processo revolucionário que prometia transformar este recanto lusitano numa réplica da Albânia implantada na Europa ocidental.
Aqui o essencial decorre à margem de contextos ideológicos no plano mais estrito, centrando-se no singular romance entre uma editora dinamarquesa residente em Portugal desde 1961 e um primeiro-ministro nascido em berço conservador que, sendo casados com terceiros, desafiam etiquetas e convenções para assumirem a partir de 1976 uma relação apaixonada e vertiginosa de que ninguém suspeitaria à partida. Como se tivessem a premonição de que estavam condenados a morrer demasiado cedo. Isto numa época em que o Código Civil exigia um período mínimo de seis anos de separação efectiva do casal para que esta pudesse ser convertida em divórcio sem acordo mútuo dos cônjuges.


Viajamos ao Portugal de há 40 anos. Já num país pós-revolucionário, mas ainda cheio de preconceitos atávicos, distribuídos em perfeita simetria pela família original de Francisco Sá Carneiro – a mulher, Isabel, recusando conceder-lhe o divórcio, apoiada por D. António Ferreira Gomes, o bispo do Porto que ousara desafiar Salazar e pagara com uma década de exílio por tal ousadia – e pela esquerda político-militar.
Um dirigente partidário católico, de comunhão diária, impõe a sua relação de facto, com uma estrangeira, perante as instituições do Estado – incluindo o então poderoso Conselho da Revolução – e a hierarquia eclesial. Contra o parecer dos seus companheiros do PSD, arriscando a hostilidade dos filhos e comprometendo legítimas aspirações políticas. Em entrevista a um jornal, o major Sousa Castro – “capitão de Abril” – ousou qualificar a relação entre Snu e Sá Carneiro de «ultraje aos sentimentos tradicionais do nosso povo». Enquanto o líder do PS, Mário Soares, questionava: «Como é que um homem incapaz de governar a sua família pretende governar o País?»

 

Snu tem uma irrepreensível reconstituição de época, misturando em doses adequadas a ficção actual com excertos de telejornais daqueles anos. Tudo dirigido com elegância e sensibilidade por Patrícia Sequeira nesta sua segunda longa-metragem (após Jogo de Damas, em 2016). Com intérpretes credíveis a incorporarem figuras tão diversas como Soares, Diogo e Maria José Freitas do Amaral, Manuela Eanes, Gonçalo Ribeiro Telles e Conceição Monteiro, além do próprio Sá Carneiro. Nota elevada para dois desempenhos que é justo realçar: Ana Nave, recriando a personalidade histriónica e exuberante de Natália Correia, e a protagonista, Inês Castel-Branco, magnífica no papel de Snu, em tantos aspectos o inverso da poetisa: contida, reservada e enigmática.

«Serão vocês a fazer a maior revolução em Portugal após o 25 de Abril», diz-lhes Natália Correia, no bar Botequim. Tinha razão: depois da relação de Snu e Francisco, desafiando mentes retrógradas em todos os quadrantes, nada voltaria ao mesmo na atmosfera social do País. Não estamos, portanto, apenas perante mais um filme romântico: porque neste sentido, sim, este é também um filme político. Só não vê quem não quer.

 

Snu. Produção portuguesa (2019). De Patrícia Sequeira. Com Inês Castel-Branco, Pedro Almendra, Nádia Santos, Joana Lopes, Ana Nave, João Reis.

Duração: 93 minutos.

 

Estrelas de cinema (29)

Pedro Correia, 03.04.19

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O HOMEM DO LEME

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Num tempo tão propício a etiquetas, Vice – retrato muito peculiar do antigo vice-presidente norte-americano Dick Cheney – surge como uma das melhores surpresas da corrente temporada cinematográfica. Precisamente por não se inserir em qualquer padrão de narrativa dominante nem nos apresentar o biografado em forma alternada de panegírico ou panfleto, como se tornou moeda corrente.

Ninguém imagina ser tarefa fácil retratar em longa-metragem um político ainda vivo (Cheney tem 78 anos), nas suas luzes e sombras, a partir de uma juventude de medíocre errância no Wyoming, e apresentá-lo ao mundo como fruto da ambição desmedida da mulher como quem casou. Se uma carreira política é sempre fruto das circunstâncias, raras decorrem com tão pouco empenho natural do protagonista. Cheney, no início, não ambicionava ser mais do que um americano igual a milhões de outros, com um emprego mediano e pândegas bem regadas aos fins de semana.  

Moldado por Lynne, Dick eleva-se no mundo empresarial e nos corredores da política mesmo sem capacidade oratória, sem carisma, sem mundivisão. Bastou-lhe integrar uma rede com influência em Washington e subir degrau a degrau, até ascender a braço direito de George W. Bush na atribulada corrida à Casa Branca de 2001. O ano em que o mundo mudaria em escala idêntica à de 1918 ou 1989. O primeiro ano deste nosso tenso, turbulento e atroador século XXI.

 

Nos meandros do poder

 

Vice – título cuja deliberada ambiguidade subsiste apenas no original, sem possibilidade de tradução – funciona como uma visita guiada aos meandros do poder no país mais poderoso do planeta. Mostra-nos também a impotência de quem detém esse poder ao ser confrontado com situações de todo imprevisíveis, como aconteceu após os ataques terroristas a Washington e Nova Iorque. Uma espécie de montanha russa, aqui reforçada pelo argumento cheio de saltos cronológicos e pela trepidante montagem, justamente distinguida com prémios.

Mas o melhor deste filme está nas actuações. Christian Bale brilha no papel de Cheney, que o forçou a engordar 18 quilos e a sujeitar-se a longas sessões de caracterização – nos seus trejeitos, na sua voz sem modulações, na sua ambivalência enquanto conservador oriundo da América profunda que não hesita em apoiar a filha homossexual na luta contra o preconceito, no homem que pegou no leme enquanto Bush andava à deriva na sequência imediata do 11 de Setembro, no tarimbeiro dos bastidores políticos que acaba por tornar-se o vice-presidente mais poderoso de sempre nos EUA, redefinindo o conceito de inimigo externo e torcendo perigosamente o conceito de legalidade democrática.

Bale merecia o Óscar, que lhe escapou. Mas recebeu o Globo de Ouro e o Prémio da Crítica pelo melhor desempenho masculino de 2018. Digna de aplauso é também Amy Adams, no papel de Lynne Cheney, tal como a extensa galeria de secundários – com destaque para Sam Rockwell, interpretando um convincente George W. Bush. Realce também para Jesse Plemons no papel do soldado Kurt, que ao morrer prolonga a vida de Cheney, em quem o seu coração foi transplantado. Transformá-lo em narrador do filme revela um rasgo suplementar de talento.

Enfim, chamemos-lhe sátira. Que só funciona por não se levar excessivamente a sério, dispensando enjoativos sermões em louvor da correcção política. E também por servir de espelho da nossa época moldada pela globalização das redes sociais, onde o irrisório e o relevante ocupam o mesmo patamar, sem hierarquias valorativas. Algo bem demonstrado na última cena, já com o genérico final a correr, em que dois supostos membros de um grupo de análise ao próprio filme se envolvem em acalorada discussão ideológica enquanto duas colegas desse mesmo grupo suspiram pelo visionamento do próximo Velocidade Furiosa. Este é um mundo que Cheney também ajudou a criar.

 

 

Vice. Produção norte-americana (2018). De Adam McKay. Com Christian Bale, Amy Adams, Steve Carell, Sam Rockwell, Jesse Plemons. 

Duração: 132 minutos.

Estrelas de cinema (28)

Pedro Correia, 22.03.19

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PRISIONEIRO DA FAMA

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Certos realizadores alcançam merecida celebridade com um só filme e ficam a partir daí reféns desse êxito, tornando-se incapazes de conseguir uma obra ao nível da inicial. É o que parece estar a acontecer com o alemão Florian Henckel von Donnersmarck, autor de uma das melhores longas-metragens deste século, o incomparável A Vida dos Outros, centrado na sinistra omnipresença da polícia política no quotidiano totalitário da antiga República "Democrática" Alemã.

Depois daquele filme que lhe rendeu o Óscar de 2006 para melhor película não falada em inglês, Von Donnersmarck esteve quatro anos sem trabalhar, rompendo o silêncio com uma indigente fita de pseudo-acção intitulada O Turista, que se resumia a uma colecção de trepidantes bilhetes-postais com Angelina Jolie em pose permanente para capa de revista. Seguiu-se um intervalo ainda maior: regressa agora, oito anos depois, com um thriller psicológico que nos faz regressar novamente a tempos sinistros - iniciados em 1937, no apogeu do nazismo, em Dresden, arrasada pela aviação aliada em 1945; depois entre as ruínas desta cidade que lentamente se ergueu das cinzas, sob o domínio soviético. Tanto os esbirros de Hitler como os de Estaline condenavam a "arte degenerada" que seduzia Kurt Barnert, jovem candidato a pintor. Em 1961, poucas semanas antes de ter sido levantado o Muro de Berlim, Kurt consegue enfim fugir para a Alemanha Ocidental e estudar fora dos cânones do “realismo socialista”, na libérrima academia de Düsseldorf.

Filme bem-sucedido? Não: um filme falhado. Prisioneiro da fama, o realizador comporta-se como um daqueles cozinheiros com falta de noção das proporções, que acabam de meter demasiados ingredientes na panela, pecando por excesso e condenando os comensais à obesidade. Nestas três horas de exibição caberiam três filmes: o primeiro, e mais interessante, desenrolado na Alemanha hitleriana, centrado na relação entre o pequeno Kurt e a sua tia antinazi (papel desempenhado pela deslumbrante Saskia Rosendahl); o segundo, com interesse mediano, em que o vemos atingir a maioridade nos anos de chumbo da ocupação soviética, tendo por sogro um sinistro médico do III Reich convertido ao comunismo; o terceiro, manifestamente falhado, já em solo livre, entre 1961 e 1966.

Desta amálgama resulta uma evidência: Von Donnersmarck foi incapaz de de editar o seu próprio filme, eliminando as cenas redundantes e desnecessárias. Sentiu talvez que teria entre mãos algo equivalente a um épico - e a verdade é que alcançou nomeações para o Globo de Ouro e o Óscar de Hollywood em língua não-inglesa. Mas Nunca Deixes de Olhar está muito longe de ser um novo Doutor Jivago - e não é David Lean quem quer.

Uma referência ainda ao medíocre título português, inspirado no da versão norte-americana ("Never Look Away"). Nada a ver com "Werk ohne Autor", título de origem, que deveria ter sido traduzido por "Obra Sem Autor".

 

 

Nunca Deixes de Olhar. Título original: Werk ohne Autor. Produção alemã (2018). De Florian Henckel von Donnersmarck. Com Tom Schilling, Sebastian Koch, Paula Beer, Saskia Rosendahl, Oliver Masucci, Cai Cohrs, Ina Weisse.

Duração: 189 minutos.

Estrelas de cinema (27)

Pedro Correia, 29.01.19

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TIRO E QUEDA

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Esteve quase para ser uma mini-série, dada a crescente tendência migratória dos melhores realizadores contemporâneos para os circuitos televisivos. Mas acabou por tornar-se longa-metragem. E este formato faz todo o sentido: estamos perante uma assumida homenagem ao western, género cinematográfico por excelência dos Estados Unidos. Nada estranho aos irmãos Coen, que em 2010 assinaram o assombroso Indomável (True Grit no original), com Jeff Bridges no papel que quatro décadas antes valera a John Wayne o único Óscar da sua carreira para melhor desempenho masculino.

A Balada de Buster Scruggs – prémio para melhor argumento no último Festival de Veneza – é um filme em seis episódios, independentes entre si, tendo apenas como traço de união os ecos mitológicos do velho Oeste onde imperava a lei do mais forte. Mas não se pense que estamos perante uma récita de lugares-comuns: Ethan e Joel Coen pegam no western e dão-lhe a volta com desenvoltura artística cruzando-o com outros géneros, da comédia ao drama, sem esquecer o musical. Beneficiando da colaboração de Bruno Delbonnel, que em 2001 se destacou como director de fotografia desse êxito de crítica e de bilheteira que foi O Fabuloso Destino de Amélie Poulain.

Estamos no território eleito da mais célebre dupla contemporânea de cineastas, no auge do seu transbordante talento. Um território onde as fronteiras da imaginação se dilatam, como ocorreu em Fargo (1996) ou Destruir Depois de Ler (2008), abrangendo uma vasta gama de registos, do cru realismo ao mais delirante nonsense. Constituindo, em qualquer dos casos, um tributo explícito à conquista do Oeste, indissociável da idade de ouro do cinema, que a reconfigurou pela mão de gigantes como John Ford, Howard Hawks ou Raoul Walsh.

Seguramente qualquer dos mestres aplaudiria estas histórias – começando pela primeira, que dá nome ao filme, sobre Buster Scruggs, um cowboy cantor (à imagem de um Roy Rogers ou um Gene Autry) «procurado por misantropia», vivo ou morto, cruzando notas musicais com balas do seu colt justiceiro. Ford talvez elegesse a última, rodada no interior de uma diligência, em citação óbvia do seu western seminal Cavalgada Heróica (de 1939), o filme que Orson Welles jurou ter visto pelo menos 40 vezes antes de rodar O Mundo a Seus Pés.

Há aqui de tudo: heroísmo, bravura, depravação, luxúria, cobiça e traição. Como na vida, afinal. Cada espectador terá os seus episódios preferidos: o meu é protagonizado por Tom Waits, na pele de um velho garimpeiro que sonha encontrar pepitas no mais idílico dos cenários, perante um deslumbrante panorama natural. Mas tal beleza é-lhe totalmente indiferente: este solitário caçador de ilusões, de pá e picareta, revolve o solo semana após semana, em busca de uma fortuna idílica que jamais achará.

Como dizia Gary Cooper na última fala de um western antigo, «se a terra fosse coberta de ouro, os homens batiam-se por um punhado de lixo».

 

 

A Balada de Buster Scruggs (The Ballad of Buster Scruggs, 2018). De Ethan Coen e Joel Coen. Com Tim Blake Nelson, Liam Neeson, James Franco, Brendan Gleeson, Zoe Kazan, Tyne Daly, Harry Melling, Tom Waits. Produção norte-americana. Duração: 132 minutos. 

Estrelas de cinema (26)

Pedro Correia, 26.01.19

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GENTE VULGAR

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A vida quotidiana, a vida dos simples, os pequenos dramas das vidas daqueles que são iguais a mim ou iguais a ti. Vai faltando disto no cinema, hoje inundado de efeitos especiais, de truques computorizados, de super-heróis. É por isto que Roma, a mais recente longa-metragem de Alfonso Cuarón, é um bálsamo para os nossos olhos já cansados de tanto artificialismo e tantas luzes faiscantes que iludem a realidade.

Rodado a preto e branco, no bairro da Cidade do México que tem este nome, Roma instala-nos no interior da casa de uma família que nos é apresentada pela empregada que também ali mora. E é sobretudo por intermédio dela que vamos sabendo o que lá se passa – dores e alegrias e anseios e frustrações. E é também a ela, quase como um membro da família também, que nos vamos afeiçoando. Sentimo-nos de algum modo identificados com aquela rotina intimista por vezes trespassada de pequenos e médios sobressaltos, sentimo-nos parte daquele todo. Mesmo que nunca tenhamos viajado ao México, mesmo que não façamos uma ideia concreta do que foi aquele início da década de 70, antes da era globalizadora. Daí a força simbólica do nome do bairro, aludindo a uma capital europeia que outrora foi sinónimo de marco civilizador. Quanto mais local, mais universal.

Esta é a verdadeira magia da Sétima Arte: fazer-nos transportar em simultâneo no tempo e no espaço. Cuarón, que já havia dirigido em 2004 o terceiro capítulo cinematográfico da saga de Harry Potter e em 2013 assinou o magnífico Gravidade que lhe valeu o Óscar de melhor realizador, assina agora um verdadeiro trabalho de autor. Em Roma – filme disponível na plataforma Netflix após ter estreado em Dezembro nas salas de cinema portuguesas – ele não foi apenas realizador e produtor: também escreveu, fotografou e montou o filme. Com um labor de artesão cada vez menos em voga no século XXI. Daí, talvez, este filme só com poucos meses de existência – entretanto galardoado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza, distinguido com Globos de Ouro para melhor realização e melhor película não falada em inglês, além de candidato a dez Óscares na próxima distribuição de estatuetas em Hollywood – nos parecer tão fora de tempo na sua bela fotografia a preto e branco que o envolve num suave anacronismo.

Como se aquela época fosse também a nossa. Como se de Roma nada mais soubéssemos senão que tem as mesmas quatro letras da palavra amor.

 

 

Roma (Roma, 2018). De Alfonso Cuarón. Com Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta, Daniela Demesa, Carlos Peralta, Marco Graf, Nancy García García, Verónica García. Produção mexicana-americana. Duração: 135 minutos.

Estrelas de cinema (25)

Pedro Correia, 01.03.18

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UMA ESTRADA PARA LUGAR NENHUM

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Há filmes que suscitam demasiadas expectativas por virem aureolados de elogios e atulhados de prémios: o confronto entre perspectivas e realidades torna-os decepcionantes. É o caso de Três Cartazes à Beira da Estrada, com base numa premissa com ilustre rasto no cinema norte-americano: o do confronto da cidadania militante com a prepotência ou a incompetência do poder.

Poderíamos esperar uma sátira agreste ou amarga a esta América profunda que vota sem remorsos em Donald Trump e permanece amarrada a mil atavismos. Poderíamos esperar um drama familiar sobre uma mãe que perde para sempre uma filha e desespera por não saber quem a matou. Poderíamos esperar, no mínimo, um thriller competente e com a marca funcional da indústria do entretenimento.

 

Não encontramos nada disto. Porque a meio do caminho este filme envereda por atalhos que o tornam numa mescla indiferenciada de géneros, acabando por não se fixar em nenhum. Não chega a ser negro, não chega a ser drama, não chega a ser melodrama, não chega a ser comédia, não chega a ser farsa, não chega a ser policial, não chega a ser uma sátira política, não chega a ser um corrosivo retrato da América contemporânea.

A indefinição de género leva o realizador anglo-irlandês Martin McDonagh a activar um insólito mecanismo de compensação, acentuando o traço grosso, sem matizes nem subtilezas. Os actores representam em permanente overacting – incluindo Sam Rockwell, admirável na personificação possível de um polícia do Missouri que muda mais vezes de personalidade do que de camisa ao longo do filme, e Frances McDormand, aqui numa espécie de recriação do seu desempenho na excelente mini-série televisiva Olive Kitteridge, mas sem o irrepetível fulgor de Fargo, que em 1997 lhe valeu um merecidíssimo Óscar.

 

Os clichês acumulam-se, as inverosimilhanças sucedem-se a um ritmo vertiginoso, protagonistas e secundários deixam de ser credíveis para se tornarem meras caricaturas à mercê dos caprichos de um roteiro demasiado errante, elaborado pelo próprio McDonagh, aliás com largo currículo como dramaturgo e argumentista (e que em 2008 rodou o delicioso Em Bruges).

A mais bem conseguida personagem desaparece a meio do filme, sem que ninguém perceba que estranho imperativo do guião a leva a ser suprimida. E a trama não se resolve: sabemos tanto no fim como sabíamos no princípio, o que é uma fraca carta de recomendação para qualquer longa-metragem que não aspire a figurar numa antologia de películas esotéricas.

Eis, portanto, um filme que promete muito mais do que dá. Desperdiça um bom fio ficcional, actores talentosos e algum virtuosismo técnico por nunca saber ao certo para onde vai. Estaciona à beira da estrada, como os cartazes. Uma estrada que afinal não conduz a lugar algum.

 

 

 

Três Cartazes à Beira da Estrada (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, 2017). De Martin McDonagh. Com Frances McDormand, Woody Harrelson, Sam Rockwell, John Hawkes, Peter Dinklage.

Estrelas de cinema (24)

Pedro Correia, 15.02.17

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O SONHO E O PESADELO

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“O mito é o nada que é tudo.” O verso de Fernando Pessoa podia servir de epígrafe a este filme focado na jovem viúva do malogrado 35.º Presidente norte-americano que contorna todos os lugares-comuns relacionados com o magnicídio de Dallas. Já vimos mil imagens alusivas ao drama, mas muito poucas concentradas na dama - de algum modo é quase como se estivéssemos a vê-las pela primeira vez nesta notável realização do chileno Pablo Larraín.

Jackie, como o nome indica, coloca por inteiro Jacqueline Lee Bouvier Kennedy no cerne da acção, desenrolada em Novembro e Dezembro de 1963, da antevéspera do crime às semanas que se seguiram aos disparos fatais de Lee Oswald na Praça Dealey.

 

O inquilino da Casa Branca surge aqui como mero figurante: só Jackie interessa como ponto fulcral da dramaturgia, enquanto edificadora do mito post mortem que perdurará por gerações. Este é um dos aspectos raramente realçados a propósito do casal Kennedy, que ocupou a Casa Branca durante pouco mais de mil dias: John não teria passado à história tal como o recordamos sem a laboriosa construção da sua imagem levada à prática por Jackie – primeiro por instinto, depois por decisão deliberada.

O mito nascia logo ali, em Dallas, naquele vestido manchado de sangue que ela recusou trocar durante todo o dia. Prolongava-se nas solenes exéquias de Estado, que fez decalcar do funeral de Lincoln, e na escolha do cemitério militar de Arlington para a deposição dos restos fúnebres do Presidente. E culminava na entrevista concedida dias depois por Jackie ao jornalista Theodore White, da revista Life, em que surgiu a primeira alusão ao musical Camelot, comparando a presidência Kennedy à lendária corte do Rei Artur, “momento fugaz e radioso” que alargou as fronteiras do sonho americano, dando-lhe projecção universal.

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O rosto magoado de Jacqueline Kennedy – num prodigioso trabalho de composição dramática que ficará como marco na carreira de  Natalie Portman – acompanha-nos ao longo de todo o filme, de modo obsessivo e quase compulsivo, com a câmara ficcional autorizada enfim a desvendar o lado oculto da jovem primeira dama, sempre tão ciosa da sua intimidade.

Partilhando a dor mais íntima com o mundo, talvez por ser a única forma de suportar tal fardo, Jackie – com a vida virada do avesso aos 34 anos, mãe de dois órfãos de tenra idade – contribuiu para transformar a tragédia em epopeia e dar aos Estados Unidos um dos seus mártires mais perduráveis. Evitando assim que do mandato de Kennedy ressaltasse a desoladora memória de uma ruína.

 

Acontece que um filme é também a sua circunstância: esta obra de Larraín ganha novo significado neste instante preciso em que os EUA, traindo o melhor da sua história, cedem aos ventos da irracionalidade e anunciam que vão fechar-se ao mundo. Invertendo a Nova Fronteira de John Kennedy que conduziu o homem à superfície lunar.

Camelot, senha de um sonho, brilha por contraste de forma ainda mais intensa em tempos de pesadelo.

 

 

Jackie (2016). De Pablo Larraín. Com Natalie Portman, Billy Crudup, Peter Sarsgaard, Greta Gerwig, John Hurt, Richard E. Grant, Caspar Phillipson, John Carroll Lynch.

Estrelas de cinema (23)

Pedro Correia, 22.02.15

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O QUINTO MANDAMENTO

****

Há um dilema ético desenhado logo na cena inicial e que acaba por percorrer todo o filme. Um dilema que transcende em larga medida esta longa-metragem de Clint Eastwood que está a ser um mega-sucesso de bilheteira nos Estados Unidos e tem dividido a crítica nos cinco continentes.

É um dilema que atravessa o mundo dos nossos dias. Algo que nos interpela até ao fundo das nossas bases civilizacionais, pondo em causa o quinto mandamento da lei divina.

Enquanto espectadores, somos sobressaltados com a evidência deste dilema não através de palavras mas de acções mudas que se instalam de imediato nas encruzilhadas da memória. Esta é a força do cinema enquanto forma de expressão artística e testemunha privilegiada das ansiedades e dos medos do homem contemporâneo.

 

Herdeiro directo da linhagem clássica do cinema norte-americano, veterano entre os veteranos, Clint Eastwood não nos transmite sermões: faz-nos pensar através de imagens. Matar ou morrer: eis o dilema que tem de ser resolvido, nas tensas sequências de abertura, por Christopher (Chris) Scott Kyler, atirador furtivo das forças especiais dos EUA instaladas no Iraque pós-Saddam Hussein. Não é figura de ficção: foi um soldado-talismã idolatrado pelos camaradas de armas, com a morte de 160 inimigos creditada na sua folha oficial. Mortes que permitiram preservar vidas, na versão militar norte-americana.

 

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Vivemos num tempo pós-Guerra Fria, condicionado pelo pós-11 de Setembro de 2001 -- uma data que serve de fronteira entre dois mundos. Tudo mudou: um pouco por toda a parte, parcelas crescentes de liberdade individual são sacrificadas à segurança colectiva.

Instalado num terraço de Fallujah, Kyler tem uma mulher e uma criança no ponto de mira da sua arma. Serão pacíficos cidadãos iraquianos ou potenciais bombas humanas destinadas a ensanguentar as tropas ocupantes?

Apenas ele, na solidão da sua consciência, poderá decidir. E restam-lhe poucos segundos para tomar a decisão. Pressentindo, com o instinto de caçador que o pai lhe transmitira durante a infância no Texas rural, que aquele momento irá mudar-lhe a vida para sempre. Dizia-lhe o pai que há três tipos de pessoas: as ovelhas, os lobos e os cães-pastores. Ele não teve a menor dúvida a partir daí: seria um cão-pastor. E também em Fallujah agirá em função disso.

 

De certo modo, Sniper Americano encerra um ciclo iniciado em 1978 com outro filme então muito polémico: O Caçador, de Michael Cimino. Mas há diferenças substanciais entre as duas películas. Na primeira longa-metragem, os soldados regressam a um país traumatizado, com cicatrizes de guerra, mas onde é possível disfrutar a paz enfim recuperada -- algo bem simbolizado na magnífica cena em que Michael Vronsky (Robert de Niro) poupa a vida ao veado que tanto perseguira. Em Sniper Americano, pelo contrário, essa paz intramuros deixou de existir e o inimigo interno acaba por ser tão letal como o externo. Porque todos já fomos contaminados pelo mesmo vírus.

 

Raros filmes nos mostram cenas de guerra tão intensas e tão cruas como este. Cenas substantivas, nada adjectivadas, que decorrem durante longos minutos sem um só diálogo. Insólita guerra, não travada em grandes espaços como os conflitos armados clássicos, mas nos dédalos citadinos de qualquer malha urbana transformada em armadilha fatal.

Nestas cenas -- que são o cerne de Sniper Americano -- Eastwood eleva-se ao melhor nível do cinema actual e da sua vasta filmografia, composta por 34 títulos. Cenas que renderam aos produtores quase 400 milhões de dólares em menos de dois meses de exibição e polarizaram opiniões nos Estados Unidos, com a ex-candidata republicana Sarah Palin a elogiar sem reservas o filme e o vice-presidente Joe Biden a confessar que não conseguiu reprimir as lágrimas ao vê-lo, enquanto o cineasta Michael Moore o criticava e publicações como a Rolling Stone oscilavam entre rasgados elogios e a contestação sarcástica à medida que as salas se enchiam de um público entusiasmado.

Pormenor relevante: Jane Fonda, outrora expoente da esquerda em Hollywood (e que chegou a chamar "fascista" a Cimino por ter realizado O Caçador) enfileirou entre as vozes defensoras deste Sniper Americano, candidato a seis Óscares da Academia: melhor filme, melhor actor (Bradley Cooper, que aumentou 20 quilos em massa muscular para desempenhar o principal papel e é também produtor desta longa-metragem), melhor argumento adaptado (da autobiografia de Chris Kyler, que foi um sucesso de vendas em 2012), melhor montagem, melhor montagem de som e melhor mistura de som.

 

american-sniper-poster[1].jpgÉ no relato da "frente interna" -- apesar do bom desempenho de Sienna Miller no papel de Taya Kyle, mulher de Chris --, centrado na inadaptidão do herói de guerra ao banal quotidiano civil, que se detecta alguma falta de fôlego num cineasta cheio de obras-primas no currículo (Bird, Imperdoável, As Pontes de Madison County, Mystic River, Million Dollar Baby, Cartas de Iwo Jima, Gran Torino). Kathryn Bigelow fez bastante melhor neste registo do soldado inadaptado aos tempos de paz, em 2008, com o seu imperdível Estado de Guerra.

Aqui mal ultrapassamos o registo rotineiro dos dramas familiares -- talvez porque Taya acompanhou as filmagens e de algum modo supervisionou o projecto, inicialmente confiado a Steven Spielberg, que entretanto desistiu.

Subsiste a sensação de que ficou um outro filme por contar. Como se, ao sucumbir perante um inesperado "fogo amigo", Chris Kyler nos advertisse de que toda a paz acaba por ser ilusória.

O mundo é hoje um lugar mais perigoso que nunca e a milhares de quilómetros de Fallujah existem homens-bomba, sem barba nem turbante, dispostos a tornar letra morta o imperativo inscrito no Livro do Êxodo (20:13) e que ecoa há milénios na atribulada consciência humana: «Não matarás».

 

 

American Sniper (2014). De Clint Eastwood. Com Bradley Cooper, Sienna Miller, Jake McDorman, Luke Grimes, Navid Negahban, Keir O’Donnell, Sammy Sheik.

Estrelas de cinema (22)

Pedro Correia, 25.01.15

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O PALCO E A VIDA

*****

Hollywood, reino por excelência dos narcisos, raramente se olha ao espelho. É pena. Porque quando o faz costuma produzir obras-primas. Assim foi, por exemplo, com O Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder, genial incursão ao lado negro da fábrica de sonhos, incapaz de alimentar as ilusões dos seus protagonistas. Ficarão para sempre na memória cinéfila cenas capitais desse filme: um corpo a boiar na piscina, actores do cinema mudo (Buster Keaton entre eles) jogando cartas numa mesa onde há muito deixou de haver ases, Gloria Swanson descendo a escadaria que simbolicamente a conduz do patamar da glória do passado ao chão que pisamos todos nós, simples humanos.

Sinal dos tempos: Birdman não tem o sopro de tragédia que sulcava Sunset Boulevard. Mas é uma fabulosa descida aos bastidores do mundo do espectáculo -- cruzando teatro com cinema, talento artístico com sucesso de bilheteira, actores de carne e osso com a sua fantasiosa projecção no ecrã, onde o facto se torna mito e por vezes se desvanece na proporção inversa à lenda que forjou.

 

Birdman_poster[1].jpgEsqueçam todos os lugares-comuns do cinema contemporâneo: Bidman estilhaça-os nesta emocionada e emocionante película do mexicano Alejandro González Iñarritu, que em 2003 rodou o trepidante 21 Gramas e três anos mais tarde foi nomeado para o Óscar de Melhor Realização com Babel, voltando agora a ser candidato à estatueta que premeia o cineasta do ano.

Outros filmes parecem obedecer à lógica de que a vida é um palco. Birdman, pelo contrário, mostra-nos que o palco pode ser a vida. Em registo de comédia negra servido por longos planos-sequência num prodigioso virtuosismo técnico, por vezes ao ritmo dos slapsticks dos anos 30, cheio de quadros em que a arte da representação troça de si própria e de todos quantos gravitam em torno dela. Apresenta-nos Mike (Edward Norton), aplaudido actor do Método, só capaz de ter uma erecção quando protagoniza cenas de cama em palco. Ou Tabitha (Lindsay Duncan), rancorosa crítica teatral que não hesita em demolir uma peça num texto escrito ao balcão de um bar sem se dar ao incómodo de assistir a ela.

 

Mas Birdman não seria o que é -- um olhar sem contemplações aos efémeros labirintos da fama -- sem a corajosa interpretação de Michael Keaton no papel de Riggan Thompson. Estrela cadente de blockbusters do passado (é evidente a alusão a Batman, o herói de banda desenhada interpretado por Keaton no cinema em 1989 e 1992), Riggan procura demonstrar aos outros -- mas sobretudo a si próprio -- que sabe voar sem necessitar das asas metafóricas do super-herói a que deu rosto humano. Mas sem a menor garantia prévia de estar à altura deste desafio.

A determinado momento, abandona o camarim e descobre-se em trajos menores, em plena Broadway, onde os transeuntes o reconhecem. Nunca Birdman (ou Batman) se deixaria expor assim aos indiscretos olhares alheios. Nem teria suficiente ousadia para se sujeitar ao cruel ridículo da nudez associada à decadência corporal e superar a prova, como Michael Keaton foi capaz neste papel que exige um Óscar com a certeza antecipada de ser merecido.

 

 

Birdman (2014). De Alejandro González Iñárritu. Com Michael Keaton, Zach Galifianakis, Edward Norton, Andrea Riseborough, Amy Ryan, Emma Stone, Naomi Watts.

Estrelas de cinema (21)

Pedro Correia, 01.03.14

 

OS NÁUFRAGOS DO TEMPO

*****

Nestes tempos em que a indústria prevalece sobre a arte, os filmes parecem-nos todos iguais. Não é assim com Nebraska, talvez o melhor de todos quantos concorrem ao Óscar de melhor longa-metragem estreada em 2013, talvez o melhor de Alexander Payne (autor de As Confissões de Schmidt, Sideways e Os Descendentes).

É um filme pausado, que respira, que nos envolve, que nos leva a gostar ainda mais de cinema. Um filme rodado a preto e branco, numa extraordinária fotografia de Phedon Papamichael, para acentuar um certo carácter anacrónico da história, que decorre na actualidade mas é protagonizada por figuras que parecem fora deste tempo, que parecem não ser deste mundo, que parecem ter perdido alguma noção da realidade -- sendo a excepção o filho mais velho do casal Grant, que apresenta o noticiário num modesto canal de televisão em Billings, no estado de Montana: só ele, por motivos profissionais, se sente preso ao presente. O resto da família projecta-se nos inalcançáveis sonhos do passado, em claro contraste com o horizonte actual de uma América depauperada pela crise em que os Buicks e os Chevrolets de outrora deram lugar às viaturas japonesas e coreanas. Uma espécie de reverso do sonho americano, bem simbolizado no desinteresse do velho Woody Grant quando o filho mais novo, David, o leva a visitar o Monte Rushmore: "Um monte de pedras velhas e ervas daninhas", em que as faces dos presidentes "parecem inacabadas".

 

Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que os Grant, à semelhança de tantos outros norte-americanos, se sentiam protagonistas da História: o céu era o limite e a Lua era a meta, apontada por John Kennedy. Um tempo que ficou perpetuado nas amarelecidas páginas do jornal da povoação em que nasceram: a ficcional Hawthorne, no Nebrasca, em tudo semelhante a Norfolk, a vila que Payne escolheu para rodar grande parte do filme. Lá estão as fotografias dos três irmãos -- Woody, Albert e Ray -- com as fardas de combatentes na Coreia. Tantos anos depois, dois deles desistiram de todos os combates. Só o pai de David, contrariando a ruína do corpo e do espírito, persiste em fintar o destino que empurra os restantes para a morte que os ronda em vida no sofá da sala. Espécie de Quixote deste tempo que já não é o dele, vai a Lincoln, no Nebrasca -- suposta terra dos sonhos. Percorre 1300 quilómetros, gastando o que lhe sobra do alento que um dia o levou a combater na Coreia e a conquistar a mulher que outros cobiçavam lá na vila.

David, que o acompanha, é de outra geração mas parece tão náufrago do tempo como o pai. Como se sentisse a perene nostalgia de uma época que não viveu.

Falamos da vida, mas podíamos falar também do cinema. Porque houve igualmente na Sétima Arte um tempo de glória há muito ultrapassado. Um tempo que nos é induzido nos segundos iniciais, ao vermos surgir no grande ecrã o velho logótipo da Paramount, a preto e branco. Um tempo de que o protagonista, Bruce Dern, chegou a fazer parte ao trabalhar com estrelas como Bette Davis, John Wayne, Charlton Heston, Kirk Douglas, Marlon Brando e Montgomery Clift sob a direcção de realizadores como Alfred Hitchcock, Elia Kazan, Robert Aldrich, Sydney Pollack e Roger Corman.

 

Este hipnótico e arrebatador road movie não seria tão deslumbrante sem a interpretação excepcional de Bruce Dern, sobrevivente -- na tela e fora dela -- de uma época que se tornou mítica. A sua interpretação do errante Woody Grant, sem nunca cair no menor exagero histriónico, é uma homenagem viva à arte de representar. Bem ilustrada numa das cenas mais comoventes deste filme justamente candidato a seis Óscares (melhor película, melhor realização, melhor actor, melhor actriz secundária, melhor argumento original, melhor fotografia): aquela em que revisita a casa onde nasceu, erguida do nada pelo pai. A mais remota memória que lhe resta.

Sobe ao precário primeiro andar, a ameaçar ruína, olha em volta, faz uma longa pausa e diz: "Aqui era o quarto dos meus pais. Vergastavam-me sempre que eu aqui entrava. Agora já não há ninguém para me vergastar."

Muito mais do que um entretenimento, muito mais do que um espectáculo. Isto é cinema do melhor. Aquele que nos permite vislumbrar retalhos do tempo, parcelas do mundo. Aquele que nos leva a conhecer os outros e, através deles, nos permite olhar com perfeita nitidez para o mais fundo de nós. 

 

 

Nebraska (2013). De Alexander Payne. Com Bruce Dern, Will Forte, June Squibb, Stacy Keach, Bob Odenkirk.

Estrelas de cinema (20)

Pedro Correia, 14.02.14

 

 A GANÂNCIA É UMA DROGA DURA

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Martin Scorsese parece acometido da síndrome d'O Padrinho. Falta-lhe no extenso currículo uma longa-metragem que se assemelhe mais a uma ópera do que a um filme, como Francis Ford Coppola -- igualmente italo-americano e pertencente à mesma geração que ele -- conseguiu com o tríptico sobre a Mafia, inesquecível autópsia da corrupção moral na América.

Scorsese tem idêntico sopro de génio, mas nunca rodou um filme à mesma escala, que funcione como sua opus magnum. Será O Lobo de Wall Street algo equivalente à saga dos Corleone? Nem por sombras. Esta obra bafejada com várias nomeações aos Óscares (melhor filme, melhor realizador, melhor actor, melhor actor secundário, melhor argumento adaptado) parece antes um pastiche do mediano Wall Street de Oliver Stone.

Percebemos isso com nitidez quando escutamos Jordan Belfort dirigindo-se aos corretores da sua empresa, fiéis discípulos na arte de enriquecer a qualquer preço: "Não há nobreza na pobreza. Já fui pobre e já fui rico. Acreditem: prefiro muito mais ser rico. Quero que resolvam os vossos problemas tornando-se ricos."

Praticamente nenhuma diferença em relação ao Gordon Gekko que proclamava em 1987: "Greed is good!"

 

Scorsese procura caricaturar este mundo de ambições sem freio, onde a Bolsa funciona como arma letal e a ganância é uma droga dura. Mas acaba por ficar prisioneiro dessa caricatura ao perder-se aparentemente de fascínio por ela: Jordan Belfort -- numa grande criação de Leonardo di Caprio premiada com um Globo de Ouro -- podia ser um Jay Gatsby (não por acaso, a personagem que Di Caprio encarnou no filme anterior), talvez com um pouco menos de escrúpulos e certamente bastante mais sorte.

O Lobo de Wall Street começa bem, ao ritmo alucinante de uma screwball comedy, mas vai perdendo embalagem e energia numa trama demasiado longa que desagua no mais convencional dos desfechos após catadupas de sexo, drogas e dólares -- tudo condimentado com o maior número de palavras começadas por F que alguma vez me lembro de ter escutado num filme. Como se o realizador quisesse vencer cada espectador por exaustão nesta montanha-russa de três horas.

 

Jordan Belfort é eventual candidato a figura de vaudeville, mas jamais será personagem de ópera: falta-lhe a gravitas negra e triste do crepuscular Vito Corleone, filmado em ritmo de valsa lenta pelo irrepetível Coppola.

 

 

O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, 2013). De Martin Scorsese. Com Leonardo di Caprio, Jonah Hill, Jean Dujardin, Matthew McConaughey, Kyle Chandler, Jon Bernthal.

Estrelas de cinema (19)

Pedro Correia, 27.02.13

 

OS FINS E OS MEIOS

*****

Há filmes assim. Mal acabamos de os ver, sabemos logo que estamos perante uma obra a que um dia chamarão clássico.

Acontece-me de vez em quando. Aconteceu agora, com 00.30 Hora Negra, de Kathryn Bigelow (por uma vez prefiro A Hora Mais Escura, tradução brasileira do título original, Zero Dark Thirty, inspirada no jargão militar para designar a hora a que foi morto Ossama Bin Laden, em 2 de Maio de 2011). Já me tinha sucedido o mesmo há três anos, com Estado de Guerra, uma longa-metragem da mesma realizadora centrada numa unidade de elite norte-americana na guerra do Iraque que lhe valeu o Óscar de melhor filme.

Bigelow, primeira mulher a receber uma estatueta em Hollywood como realizadora, voltou a associar-se ao argumentista Mark Boal e o resultado, uma vez mais, esteve ao nível do melhor que o cinema norte-americano já nos proporcionou este século: um excepcional filme de "ficção documental", nas palavras da própria cineasta, que recria a actividade dos serviços secretos com uma intensidade e um fôlego épico dignos de um John Ford, o realizador que "inventou" o western e conferiu um cunho de autenticidade à lenda.

Coisas que só acontecem com os grandes cineastas.

 

Há filmes que nos prendem logo ao primeiro fotograma. É o caso deste: o ecrã está escuro, apenas ouvimos sons. São as vozes das vítimas do 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque: as últimas palavras que proferiram, já encurraladas nas torres-túmulos, com as chamas a devastarem o outrora orgulhoso World Trade Center.

Aqui não há margem para relativismos morais. Sabemos bem de onde vem o Mal - vem de quem odeia este sistema democrático e esta sociedade plural em que vivemos e quer transformar o mundo num imenso califado submetido à impiedosa Lei do Alcorão. Este é o fim, os meios não importam. Pode custar um cadáver, pode custar um milhão de cadáveres - é tudo uma questão de estatística, como ensinava Estaline, que nunca viveu dilacerado com tais rebates de consciência.

Acontece que ninguém sai inocente do combate ao Mal absoluto. Churchill costumava dizer durante a II Guerra Mundial que para derrotar Hitler, se fosse preciso, iria ao próprio inferno coligar-se com Satanás. O coro de críticas a 00.30 Hora Negra na imprensa norte-americana e britânica devido à suposta apologia do uso da tortura pelos operacionais da CIA nos interrogatórios aos suspeitos de ligações à Al-Qaida ilude o essencial: essa componente do filme, dominante nos primeiros 25 minutos, é fundamental precisamente para adquirirmos a certeza sobre um dos efeitos mais nefastos do terrorismo islâmico - ao combatê-lo com um mínimo de eficácia, arriscamo-nos a ser contaminados por ele, pelo menos na convicção de que os fins justificam os meios.

Há muito que um filme não suscitava tanta celeuma. David Edelstein, na revista New York, situou Zero Dark Thirty "na fronteira do fascismo" (embora atribuindo-lhe o rótulo de obra-prima, em linha com o New York Times, que o incluiu entre os melhores filmes do ano). E a feminista norte-americana Naomi Wolf, num desvario extremista, chegou a comparar Bigelow a Leni Riefenstahl. A histeria cresceu ao ponto de levar a realizadora a justificar-se, em artigo publicado no Los Angeles Times.

Embora galardoada com o Prémio dos Críticos de Nova Iorque, a película ficou arredada do Óscar, que sem dúvida merecia, sendo ultrapassada na corrida à estatueta pelo politicamente correcto Argo, bafejado até pela simpatia da Casa Branca, ao mais alto nível.

 

Mas voltemos à questão central dos meios e dos fins, bem espelhada na metamorfose que se vai desenrolando subtilmente, aos olhos do espectador atento, na personagem principal: Maya, agente da CIA, obsessiva, perfeccionista e determinada, interpretada por uma Jessica Chastain em estado de graça num desempenho que lhe valeu o Globo de Ouro.

No contraste entre o ar etéreo de Maya e a sua férrea determinação em prosseguir a maior caça ao homem da História reside boa parte do sucesso deste filme que não faz a menor concessão ao habitual glamour hollywoodesco.

Quase sempre filmada a meia distância, como se isso constituísse parte integrante do seu disfarce, sem nunca trair um vestígio de emoção, ela faz da morte de Bin Laden a sua razão de viver, numa luta de proporções bíblicas. E ninguém o combate de forma tão tenaz, ao longo de uma década em que imita a estratégia da aranha tecendo a sua teia, entre 2001 e 2011, com muitos desaires de permeio (o atentado de 7 de Julho de 2005 em Londres, a explosão do hotel Marriott, em Setembro de 2008, em Carachi), sem convenção de Genebra, com muitos danos colaterais, obsessivamente em busca daquele cadáver para o qual ela olhará e no qual ela tocará, numa analogia simétrica e herética com São Tomé.

A prolongada sequência da tomada do bunker de Bin Laden, reconstituindo plano a plano a operação de alto risco no complexo de Abbottabad merece figurar em qualquer antologia de thrillers no cinema. Mas é no extraordinário plano final, também digno de John Ford, que tudo culmina e tudo se decifra: Maya solitária, extenuada e desamparada, parece minúscula a bordo de um enorme avião de carga C-130. Perguntam-lhe: "Para onde quer ir?"

Ela não responde. Pois não há resposta a esta pergunta. Com a morte de Bin Laden, outros alvos virão. O filme termina, mas esta é uma guerra sem fim à vista.

 

 

00.30 Hora Negra (Zero Dark Thirty, 2012). De Kathryn Bigelow. Com Jessica Chastain, Jason Clarke, Joel Edgerton, Chris Pratt, James Gandolgini, Jennifer Ehle, Mark Strong, Kyle Chandler.

Estrelas de cinema (18)

Pedro Correia, 21.02.13

 

O REVERSO DA MEDALHA

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Adeus, lugares-comuns. Steven Spielberg, de forma surpreendente, fornece-nos neste filme o retrato menos lisonjeiro do político mais idolatrado nos Estados Unidos. Lincoln estilhaça alguns mitos sobre o 16º presidente norte-americano, apresentando-o como um governante idêntico a tantos outros: confrontado com sucessivos dilemas, como sempre sucede a quem exerce cargos políticos, age de acordo com imperativos de consciência mas comporta-se na hora decisiva como um vulgar discípulo de Maquiavel no eterno confronto entre os fins e os meios.

Este é, de longe, o aspecto mais perturbante do filme. E também o que o torna muito recomendável, mesmo àqueles que não escondem a sua habitual aversão a Steven Spielberg e chegam a classificar cada título da sua filmografia com uma frase que constitui a apologia da ignorância: "Não vi e não gostei."

Lincoln - rara incursão do criador de E.T. no domínio da política - parece, à primeira vista, um filme gongórico e reverente, concebido para piscar o olho à Academia de Hollywood enquanto enaltece o nome mais firme da mitologia política norte-americana. De resto, o líder que pôs fim à escravatura nos EUA tem atraído inúmeros cineastas - incluindo figuras da craveira de Griffith e Ford - num país onde a geografia suplanta a história e tem uma carência absoluta de heróis.

Mas aqui as aparências iludem. E o que subjaz afinal é o retrato de um político dilacerado a vários níveis, infeliz na vida familiar e decidido a impor as mais louváveis medidas pelos mais detestáveis métodos. Deixando evidente que toda a medalha tem o seu reverso.

 

Apostado em pôr fim ao sistema esclavagista, que manchava a honra dos Estados Unidos, Abraham Lincoln (1809-1865) recorreu para o efeito ao prolongamento artificial da Guerra da Secessão, o que lhe permitia ganhar tempo para inevitáveis manobras nos corredores do Congresso à custa de uns quantos milhares de cadáveres acumulados nos campos de batalha. Campeão imbatível do idealismo político, não hesitou em comprar os votos de que necessitava entre os congressistas, tanto das fileiras do seu Partido Republicano como dos rivais do Partido Democrático, fomentando a corrupção política.

Ao contrário de tantas outras películas de Spielberg, este é um filme amargo e descrente na natureza humana. Enquanto a carruagem do presidente sulca as ruas enlameadas de Washington, conseguimos decifrar os confrontos morais que perpassam no espírito do inquilino da Casa Branca, através de uma interpretação inexcedível de Daniel Day-Lewis, talvez o maior actor de cinema do nosso tempo e principal candidato ao Óscar (que será o seu terceiro, caso venha a recebê-lo na próxima segunda-feira).

 

"A medida mais importante do século XIX foi aprovada graças à corrupção instigada e favorecida pelo homem mais puro da América", conclui o congressista Thaddeus Stevens, fervoroso anti-esclavagista, quase ao cair do pano deste filme desnecessariamente longo e propositadamente rodado em ambiente nocturno. Não por acaso, este é o Lincoln da fase derradeira, nos seus últimos três meses de existência, com mandato revalidado nas urnas de voto e a caminho da imortalidade através dos disparos fatais do assassino que lhe roubou a vida e o elevou a mártir. Perante o general Ulysses Grant, abismado ao verificar que o seu interlocutor parecera envelhecer dez anos num só, o 16º presidente confessa-lhe: "A fadiga roeu-me até aos ossos."

Fadiga física mas sobretudo fadiga moral. Porque o governo "do povo, pelo povo e para o povo", em nome de um objectivo nobre, liquidou corpos e perverteu espíritos. Há um lado negro em todos os heróis. Spielberg ilumina-o no seu Lincoln, dirigido com a intensidade e a espessura de uma tragédia shakesperiana, e cheio de ressonâncias bíblicas. Conseguimos ler, na mente torturada deste Abraham Lincoln crepuscular, a mesma interrogação de Jesus face aos discípulos: "Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se depois perde a sua alma?"

 

 

Lincoln (2012). De Steven Spielberg. Com Daniel Day-Lewis, Sally Field, David Strathairn, Jason Gordon-Levitt, James Spader, Hal Holbrook, Tommy Lee Jones, John Hawkes

Estrelas de cinema (17)

Pedro Correia, 10.02.13

 

 A IMAGINAÇÃO JÁ NÃO É O QUE ERA

***

Sejam bem-vindos de regresso ao cinema antigo, que nos mostra um mundo a preto e branco, em que bons e maus são facilmente reconhecíveis. O sucesso de Argo explica-se por isto: a nostalgia que tantas vezes sentimos de voltar a ver uma história bem contada, com protagonistas destituídos de dilemas morais, sem as tortuosas errâncias de fidelidade que caracterizam as personagens de um Graham Greene ou de um John Le Carré.

Este filme não engana ninguém: cumpre os objectivos com uma eficácia digna de aplauso. Herdeiro directo do chamado cinema político norte-americano dos anos 70, mas com muito mais certezas que dúvidas, conta-nos a história de um agente da CIA que resgata um reduzido grupo de compatriotas refugiados na embaixada do Canadá em Teerão nos meses de loucura colectiva - e homicida - que se sucederam ao derrube do Xá, em Janeiro de 1979.

Com um ritmo trepidante, uma notável fluência narrativa e uma meticulosa reconstituição daqueles dias de som e fúria que marcaram a transição entre um trono milenar convertido em inaceitável símbolo do despotismo e uma revolução que prometia ser fiel à voz da rua mas não tardou a silenciá-la por sua vez, Argo é um daqueles filmes que sabem o que querem e para onde vão. Rodado com mão segura por Ben Affleck, que aqui se confirma como cineasta de mérito e actor de gama muito mais vasta do que sugeriam as comédias românticas em que se vinha enredando com excessiva frequência.

A qualidade do desempenho deste actor-realizador pode ser avaliada pela credibilidade da sua caracterização como operacional da CIA dos anos 70 disposto a desrespeitar instruções dos superiores hierárquicos para levar por diante aquilo em que acredita - e sobretudo pelas cenas em que apenas se exprime pelo silêncio. Não conheço, aliás, melhor maneira de avaliar uma interpretação cinematográfica.

 

Argo podia ser apenas mais um título no já longo rol de filmes e séries que aproveitam o acesso a material desclassificado dos ficheiros secretos da CIA e que têm servido de algum modo para reabilitar a imagem da agência, diabolizada nos anos de chumbo da Guerra Fria. Ao contrário do FBI, desde sempre idolatrado nas películas de Hollywood, a agência sediada em Langley nunca caiu nas boas graças da Meca do cinema. Até hoje.

Que isso aconteça aqui graças a uma operação de "espionagem" real que recorre a uma fictícia produção hollywoodiana como pretexto para o resgate dos reféns (com John Goodman e Alan Arkin insuperáveis em contraponto cómico ao tom dramático do filme) é um prodígio de ironia do argumento, inspirado num livro de Antonio Mendez, o agente que protagonizou o arriscado episódio aqui revivido. Prova evidente - uma mais, entre tantas outras - que o cinema imita crescentemente a vida. Longe vão os dias da Sétima Arte como "fábrica de sonhos". Tão distantes como a era dos espiões com dúvidas existenciais.

Sejam bem-vindos ao tempo das novas certezas e da vida filmada a imitar em cada fotograma a vida real. Como se o artifício tivesse passado irremediavelmente de moda e a imaginação, que em certo período já remoto alguns quiseram levar ao poder, tivesse emigrado para parte incerta.

 

 

Argo (2012). De Ben Affleck. Com Ben Affleck, Bryan Cranston, Alan Arkin, John Goodman, Victor Garber, Tate Donovan, Clea DuVall, Scott McNairy, Rory Cochrane, Christopher Denham, Kerry Bishé.

Estrelas de cinema (16)

Pedro Correia, 05.02.13

 

A BANALIZAÇÃO RETÓRICA DO REAL

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Onde foi parar a ficção? A pergunta começa a ter razão de ser face aos filmes em cartaz nestas semanas que antecedem a distribuição dos Óscares. Lincoln segue a trajectória final do mais amado presidente norte-americano. O Impossível é a reconstituição fiel do drama vivido por uma família espanhola que sofreu na pele, na carne e no sangue o trágico maremoto de 26 de Dezembro de 2004 - acompanhado com emoção em todo o mundo. Argo relata-nos uma operação de resgate de cidadãos dos EUA na Teerão pós-Xá totalmente baseada em acontecimentos reais, como aliás o filme faz questão de acentuar. 00.30 Hora Negra suscitou polémica precisamente pelo seu carácter realista, de estrita colagem aos factos.

Todos estes filmes têm pelo menos dois traços comuns: assentam em pressupostos "verídicos" e estão nomeados em diversas categorias na corrida aos Óscares. De repente, também no cinema as utopias parecem ter passado de moda. O produtor, o realizador, o exibidor e os espectadores exigem uma espécie de caução do real para determinar a qualidade de um filme. E é mesmo possível detectar uma "estética de telejornal" em vários dos títulos em exibição precisamente numa era em que, simetricamente, os telediários abandonam em grau crescente a sua tradicional missão de difusores de notícias de interesse geral para se concentrarem em micro-relatos do quotidiano que apelam mais à emoção do que à razão, utilizando recursos técnicos muito próximos da ficção filmada.

 

Esta colagem da Sétima Arte à realidade, num progressivo desinteresse por enredos ficcionados, está igualmente presente em Seis Sessões, outro filme que se apressa a deixar claro - do princípio ao fim - que pretende ser apenas um "reprodutor de factos" comprovados, numa espécie de banalização retórica do real como matriz fundamental do cinema contemporâneo.

É um trabalho essencialmente assente na prestação dos actores - com destaque para o trio principal, composto por John Hawkes, Helen Hunt e William C. Macy, sem esquecer uma boa galeria de secundários - e que abre estimulantes pistas de reflexão sobre as vias bifurcantes do amor e do desejo. O filme parece, no entanto, comprazer-se na sua própria mediania de teledrama vocacionado para transformar o extravagante em exemplar - e nesse plano cumpre o que promete.

A retina do espectador reterá o esforçado desempenho de Hawkes, que talvez merecesse a nomeação para uma estatueta. E sobretudo a actuação de Helen Hunt, um prodígio de contenção e subtileza. Ela está, aliás, nomeada para um Óscar - mas como actriz secundária num papel que nada tem de secundário nem em tempo de presença em cena nem em relevância dramática. Mistérios que a Academia de Hollywood tece: nesta sua insaciável sede de tudo rotular, não são raras as vezes em que atribui um rótulo que mistifica mais do que identifica.

 

 

Seis Sessões (The Sessions, 2012). De Ben Lewin. Com John Hawkes, Helen Hunt, William H. Macy, Moon Bloodgood, Annika Marks, W. Earl Brown.

Estrelas de cinema (15)

Pedro Correia, 28.01.13

 

O INFERNO NO PARAÍSO

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Fixem este nome: Tom Holland. Ou muito me engano ou ainda ouvirão falar dele no futuro. Porque, se há pormenor que apetece desde logo destacar em O Impossível, é precisamente o desempenho deste adolescente de olhar desamparado errando no horizonte em busca da mãe que supõe jamais voltar a ver após um idílico local de férias na ilha tailandesa de Phuket ter ficado reduzido a escombros pelas águas assombradas do Dilúvio. Adolescente capaz de fazer das fraquezas força para enfrentar uma tragédia de proporções bíblicas, animado pelo instinto de sobrevivência e pelo amor filial em desafio desproporcionado à implacável força dos elementos.

A isto alude este filme de produção espanhola dirigido com mão competente pelo jovem realizador catalão Juan Antonio Bayona (que em 2007 já tinha rodado o aplaudido El Orfanato). Uma longa-metragem que arrisca a incursão num género desde sempre reservado às megaproduções de Hollywood: o cinema-catástrofe. O espectador é advertido desde o início que está perante uma obra inspirada em factos reais, tendo apenas sido alterada a nacionalidade da família - de espanhola para britânica - por motivos comerciais, o que permitiu a contratação de dois nomes consagrados como chamariz para a bilheteira: Naomi Watts e Ewan McGregor. Sobre o desempenho dele não vale a pena gastar linhas de texto, mas ela é um prodígio de contenção num papel que se prestaria a todos os exageros histriónicos: não lhe fizeram favor nenhum ao nomeá-la para o Óscar de melhor actriz que aliás já merecera ter ganho noutros filmes.

 

O Impossível acontece para nos demonstrar que o homem, suposto dominador da natureza, mais não é afinal do que um minúsculo grão de poeira cósmica na intangível imensidão do universo. É disso que nos fala uma cena crucial do filme, quando uma senhora de 75 anos aponta o céu estrelado a um rapaz de sete, sedento de sabedoria, e lhe ensina a mais elementar das lições: as aparências iludem. Muitas estrelas que vemos refulgir no céu estão já mortas há uma eternidade e só o nosso débil olhar humano, incapaz de discernir o essencial do acessório, não se apercebe disso.

Aquela mulher que surge como um fugaz cometa no filme é Geraldine Chaplin, herdeira directa de um dos gigantes de sempre da Sétima Arte e ela própria protagonista de vários títulos que povoam a nossa memória cinéfila - Doutor Jivago (1965), de David Lean, por exemplo. De constelações percebe ela, sendo quem é e filha de quem é.

 

Procurem ver este filme com a visão limpa dos miúdos que contemplam fixamente as estrelas. Evitem saber em que condições foi rodado, passem ao lado das minudências técnicas e de todo esse estendal "informativo" que as distribuidoras cinematográficas propiciam em incontáveis acções de marketing, roubando aos espectadores aquilo que há de mais precioso: a inocência do olhar. Se o conseguirem, verão este filme como eu vi - uma espécie de tributo à memória dos pioneiros como Méliès que transformaram o cinema num processo ímpar de acreditarmos no inacreditável. Não me interessa saber como aquele maremoto foi conseguido para se tornar credível no ecrã: basta-me saber que funciona.

Mas este artifício serve apenas para nos reconduzir a uma evidência primordial: na eterna batalha entre o homem e a natureza, só por inimaginável clemência desta não sairemos derrotados. Depois desse trágico tsunami de 26 de Dezembro de 2004 que ceifou mais de 230 mil vidas no Sudeste Asiático - e que este filme revive de forma tecnicamente irrepreensível - nenhum de nós voltou a olhar para uma praia paradisíaca sem pensar que a todo o momento pode desembocar ali uma onda gigantesca pronta a derrubar qualquer obstáculo e a varrer todas as certezas na sua fúria cega, dantesca, irracional.

 

 

O Impossível (Lo Imposible, 2012). De Juan Antonio Bayona. Com Naomi Watts, Ewan McGregor, Tom Holland, Soenke Möhring, Samuel Joslin, Oaklee Pendergast, Geraldine Chaplin.

Estrelas de cinema (14)

Pedro Correia, 26.01.13

 

ADEUS ÀS LÁGRIMAS

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E se Ernest Hemingway, esse mestre do paradoxo, não tivesse escrito Adeus às Armas, um dos mais belos e amargos romances de guerra e amor de todos os tempos? A Humanidade teria sido privada de uma obra fundamental da literatura do século XX. E nós, cinéfilos do século XXI, ficaríamos privados daquele que é um dos melhores filmes em cartaz neste início de 2013. Um filme que nos baralha, oscilando quase sempre naquele fio da navalha entre o drama e a comédia que só cineastas acima da mediania como David O. Russell (que assinou o excelente Último Round, em 2010) conseguem arriscar com êxito.

É um filme que, enfrentando a corrente dominante, nos aponta o mundo como um local onde a esperança ainda é possível - contra as prédicas de todos os gurus da comunicação, de todos os analistas políticos, de todos os sociólogos de turno, de todos os tarefeiros da informação, de todos os psicólogos de pacotilha submetidos ao lema "quanto pior, melhor". Um filme que nos fala da importância dos laços humanos como a mais antiga, mais moderna, mais eterna, mais eficaz, mais inultrapassável das terapias. Um filme que não nos traz figuras modelares nem vazias belezas esculturais nem pessoas semelhantes a estátuas: traz-nos personagens coerentes e credíveis, gente de todos os dias, parentes ou amigos ou vizinhos de um bairro onde podia morar qualquer de nós, o leitor ou eu.

Silver Linings Playbook devolve-nos um ingrediente fundamental que a Sétima Arte nos proporcionava antes de se ter cansado de o fazer por recear que isso fosse algo fora de moda: o prazer de contar uma boa história e de a desenvolver ignorando olimpicamente a pequena legião de críticos que detesta qualquer filme destinado a chegar ao fim com mais sorrisos que lágrimas.

 

Preparem-se para conhecer Pat Solatano: não é uma pessoa de feitio fácil nem custa perceber por que motivo esteve internado oito meses numa instituição psiquiátrica de Baltimore. Resguardem-se dos seus ataques de mau génio e esperem o pior quando ele recusar tomar a medicação contra a doença bipolar que contribuiu para lhe arruinar o casamento.

Mas acreditem, como ele jamais deixará de acreditar, que na vida - à semelhança do que sucede no cinema - é sempre possível um happy ending, mesmo que isso pareça utópico ou indigno desta época em que as únicas imagens sempre prontas a vender, nas telas de cinema ou nos telejornais, são as que nos falam em tragédias.

Digno candidato a oito Óscares da Academia de Hollywood, este Guia para um Final Feliz (boa tradução portuguesa do título original, derivado do romance homónimo de Matthew Quick e adaptado ao cinema pelo próprio Russell) faz jus ao título. Com nomeações para melhor filme, melhor realização, melhor argumento adaptado, melhor montagem e também para este notável quarteto de actores: Bradley Cooper, Jennifer Lawrence  (magnífico e magnético desempenho, já distinguido com o Globo de Ouro), Jacki Weaver e o grande Robert de Niro, autêntica lenda viva do cinema, vendo aqui justamente realçado o seu trabalho como secundário num papel muito diferente daqueles que lhe deram fama mundial em filmes como O Padrinho II, Taxi Driver, O Caçador ou O Touro Enraivecido.

Enquanto é exibido o genérico final, à nossa volta não faltam rostos risonhos: há filmes capazes de nos pôr naturalmente a sorrir - e este é um deles. Não será um marco inesquecível do cinema contemporâneo, mas a direcção de actores é primorosa, a química entre os dois principais intérpretes funciona na perfeição e apetece-nos ver novas longas-metragens com qualquer deles (Jennifer Lawrence já me havia fascinado há dois anos no fabuloso Despojos de Inverno, de Debra Granik).

À saída, dou por mim a trautear Ma Chérie Amour, de Stevie Wonder, e a pensar como seria bem diferente o trágico destino de Catherine Barkley se Adeus às Armas tivesse sido escrito por David Cooper em vez de Hemingway.

 

 

Guia para um Final Feliz (Silver Linings Playbook, 2012). De David O. Russell. Com Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Robert de Niro, Jacki Weaver, Chris Tucker, Anupam Kher, John Ortiz, Shea Whigham, Julia Stiles, Brea Bee.