Estrelas de cinema (33)
A DIFERENÇA ENTRE OLHAR E VER
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Por vezes acontece. Um cineasta torna-se clássico aos nossos olhos em tempo real. É o caso de Steven Spielberg, com Os Fabelmans.
Claro que vários outras longas-metragens dirigidas por ele, antes deste suave drama familiar, indiciavam já uma ascensão ao patamar supremo: basta pensarmos em títulos tão diversos como Tubarão, Os Salteadores da Arca Perdida, A Lista de Schindler ou O Resgate do Soldado Ryan. Mas um realizador, para adquirir o estatuto de verdadeiro clássico, precisa de nos transmitir algo de essencial a seu respeito, não apenas sobre o mundo tal como o observa ou imagina. Charles Chaplin partilhou connosco uma comovente recriação da sua infância n'O Garoto de Charlot. John Ford revisitou as suas raízes irlandesas, genuínas ou míticas, no magnífico O Homem Tranquilo, com John Wayne enfim removido da figura de cowboy.
Spielberg regressa neste filme à sua Ítaca privada. Já havia figurado nas entrelinhas do ecrã, recorrendo ao simbólico alter ego Elliott, o menino solitário que tem um extraterrestre como melhor amigo, em E. T. (1982), mas nunca se desvendou tanto como aqui. O resultado supera as expectativas: este é o seu filme mais intimista - e também capaz de exibir um vibrante retrato da época em que cresceu, naqueles Estados Unidos dos finais da década de 50 ainda sulcada de preconceitos que acentuaram a timidez do miúdo, sobretudo após a mudança do Arizona para a Califórnia. O futuro génio do cinema foi vítima de assédio escolar. Por ser judeu, por ser filho de pais separados, por "parecer diferente". Refugiou-se atrás de uma câmara de filmar para ocultar a introversão: o palco cabia a outros.
Disto nos fala este filme tão revelador. Mas não em tom de lamúria ou indignação, próprio da vozearia tribal dos nossos dias: este retrato de uma família de classe média com as suas luzes e sombras é percorrido por uma terna nostalgia. Ao som da partitura do quase lendário John Williams, decano dos compositores de cinema, hoje com 91 anos. E muito valorizado com a presença luminosa de Michelle Williams, numa interpretação digna do Óscar da Academia, no papel da mãe: ela estimula a vocação artística do seu único filho rapaz. Um dia, ao filmá-la de surpresa, o jovem Sammy percebeu que a relação entre os pais estava longe de ser idílica.
Sammy é Steven na adolescência, interpretado por Gabriel LaBelle como se tivesse nascido para ser um seu duplo. Nenhum actor antes dele, na extensa filmografia de Spielberg, se aproximou tanto daquele menino inibido que procurava disfarçar a insegurança com uma câmara super 8 na mão.
Mas Os Fabelmans ultrapassa o efeito de catarse, sem se confinar a cascatas confessionais. Chega mais longe: eis-nos perante uma celebração do cinema como festa da vida, como partilha inigualável de momentos mágicos que nos iluminam para sempre numa sala escura.
Enfim, um clássico recém-estreado. Comprova-o a cena final, em que um cineasta presta tributo a outro confiando-lhe o papel de um terceiro: David Lynch, que Spielberg desafiou a encarnar John Ford como convidado especial para coroar o filme. O mesmo Ford que já havia marcado presença por via oblíqua, quando Sammy surge como espectador do inesquecível O Homem Que Matou Liberty Valance.
Podia ser lenda, mas aconteceu de facto. Um dia, tinha ele 16 anos, visitou o mestre no seu gabinete em Hollywood. Ao saber que aquele adolescente sonhava ser cineasta, o filho de um imigrante irlandês ensinou-lhe a diferença entre olhar e ver, apontando-lhe dois quadros na parede.
Num par de frases, Ford mostrou-lhe a importância do plano e da perspectiva. Um realizador de talento é capaz de vislumbrar aquilo que os outros nem supõem ao contemplar a mesma imagem.
E é assim a história do cinema: uma incessante passagem de testemunho. De génio para génio, de geração em geração.
The Fabelmans. De Steven Spielberg. Com Gabriel LaBelle, Michelle Williams, Paul Dano, Judd Hirsch, Seth Rogen. Produção norte-americana (2022). Duração: 151 minutos.