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Delito de Opinião

Aquilo aconteceu mesmo?

João André, 09.08.14

 

Um mês mais tarde, volto ao momento do último mundial de futebol que mais perdurará na memória colectiva. Daqui por 4 anos estaremos a perguntar se alguém repetirá aquele resultado. Daqui por 8 anos perguntar-nos-emos se a dor terá diminuído. Daqui por 16 anos falaremos no jogo que trará a vingança. Daqui por 32 escrever-se-à, no momento da final, que é o momento de exorcisar a memória, a dor e a humilhação.

 

Não será possível. Aquilo não sucedeu senão num momento de alucinação colectiva. Um,... dois, três-quatro-cinco; ...; seis, ..., sete; ... um? Foi certamente um exercício de virtuosismo técnico durante a transmissão. Dentro de meses seremos informados que George Lucas e James Cameron testaram um novo sistema de realidade virtual em directo e que o verdadeiro jogo foi decidido apenas no prolongamento. Ou que a Glaxo-Smith-Kline fez o melhor product placement na história da publicidade demonstrando os efeitos secundários do seu medicamento que cura o cancro. O que saberemos é que não existiu aquele resultado. Não importa quantas pessoas o jurem a pés juntos.

 

Vi o jogo - ou o embuste - num bar na Alemanha. Eu tinha escolhido o meu lado. Ou melhor, o lado a que me opunha, com o seu vilão de pantomina. Deveria ter sido o meu primeiro sinal de alarme. No final do jogo escolheu-se o sósia de Sideshow Bob como o principal responsável, mas nos primeiros 20 minutos de jogo o lado esquerdo da defesa aparentava ser território de outro personagem de cartoons: Will E. Coyote. E os atacantes, fossem eles quem fossem, eram o nosso Roadrunner preferido, aprintando com gusto em direcção ao infinito, com todo o espaço do deserto à sua disposição. Avançando, rindo e tendo tempo para despachar uns bip-bip irónicos. Ou seriam, se não falássemos de gente profissional, que não queria humilhar tanto.

 

A minha escolha do bar foi simples: tinha wlan grátis e eu precisava dela para fazer uma chamada por skype. Comecei-a por volta dos 5 minutos de jogo e foi interropida aos 11 pelos primeiros festejos. No pasa nada, é só barulho, continuemos, mesmo que com um olho na chamada e outro no ecrã gigante. Aos 23 minutos nova interrupção e aos 24 outra. Decidi parar a chamada porque havia algo de estranho a suceder. Aos 26 minutos volta ao mesmo. Ou seria de facto o mesmo? Era igual ao anterior. Repetição? Não pode ser, a informação não deixa dúvidas. Mais uns minutos e os festejos acontecem pela quinta vez. Mas não são verdadeiramente festejos porque os alemães ainda não tinham parado os anteriores e, como nos filmes em que os gags se sucedem, a certa altura pouco mais que um sorriso há, devido à exaustão.

 

A meio havia uma certa sensação de estranheza. Havia quem quisesse ir para casa. Não havia forma de dar a volta e certamente que o resto nunca corresponderia às expectativas do que se tinha visto. Outros apostavam num colapso ainda mais prolongado e falta de piedade: a coisa iria para dois dígitos. O Facebook e o Twitter estavam cheios de piadas. Algumas eram obviamente recicladas, outras eram simplesmente óbvias ("muda aos cinco e acaba aos dez"...). Claro que ninguém arredou pé. Havia uma necessidade de confirmação colectiva do milagre. Era como um milagre do sol testemunhado por muitos mas ao contrário. Aqui tinha mesmo sucedido mas ninguém parecia acreditar nele.

 

A segunda parte começou com uma tentativa de mudar as coisas. Não sei, ninguém sabia, se eles acreditavam na reviravolta ou queriam somente salvar o orgulho (creio que eles próprios o saberiam, seria apenas instinto). Insistia-se no flanco esquerdo que tinha sido a razão da destruição na primeira parte e desta vez as cavalgadas suicidas eram melhor ancoradas. Ia resultando, mas era também um pouco fogo de vista. Os alemães estavam tranquilos (talvez de mais) e o triplo jogador mais recuado chegava para as falhas de concentração.

 

No bar crescia a frustração e a irritação. Queriam mais. Via-se que apesar de estar melhor, se estava a um erro de novo desmoronar. Havia uma certa passividade no ataque. Já se estavam a poupar para a final, indicavam alguns, mas sempre sem esconder uma irritação. Todos queriam o título, mas aquele era o momento de fazer algo mais, de deixar uma marca que fugisse ao estereótipo da eficácia dos títulos anteriores, que acabara ofuscada pelo brilhantismo de duas gerações e pelo péssimo mês de Junho de 1990.

 

A certa altura há um que se liberta, fica livre e, isolado, atira ao lado. Enorme "ooohhhh" colectivo e frustração absoluta. É como se tivesse perdido a oportunidade de decidir o torneio. Há irritação, fúria mesmo. Coloco a mão no ombro de um alemão numa mesa vizinha e faço-lhe ver a realidade do resultado (sê-lo-ia mesmo?, real?). Sorriu embaraçado, como se tomasse consciência do ridículo.

 

O último festejo proporciona uma espécie de libertação. Os anteriores tinham resultado de simplicidade e eficácia (ai os clichés), de qualidade geral mais que de brilhantismo individual. O final proporcionou o momento que outros podem relembrar no jogo. Um momento de beleza. Já mesmo no fim, quando a concentração falha no último momento, a sensação é curiosa, quase de alívio. Há um ou outro que arrisca dizer a palavra "consolação", mas engole-a rapidamente. Não é uma consolação, é essencialmente uma certa patina de realidade na alucinação. O hiper-competitivo triplo jogador está furioso mas é quase o único. Para todos os outros é necessário ver tal golo para que a realidade assente. É o momento de pausa antes do fim que torna o apito final inútil.

 

No fim do jogo há sorrisos no bar, mas são quase redundantes. Havia medo de ver um jogo ir a prolongamento. A diferença horária é grande e isso obrigaria a ir para a cama depois da meia-noite, uma hora mais tardia na Alemanha que em Portugal. Nas ruas há uns carros a apitar, mas respeitosamente e sem enorme entusiasmo. O resultado não assentou bem, não é verdadeiramente real. Há quem comente que no dia seguinte irão ser informados que se tratava de um grupo de sósias e que é necessário repetir tudo. Toda a gente sabe que é piada, mas ninguém se ri verdadeiramente. É como se fosse possível. Se sete-a-um-ao-Brasil-no-Brasil-nas-meias-finais-do-mundial é possível, então o conceito de realidade modifica-se. Num país onde os filósofos nacionais são venerados, a noção de realidade é mais que uma definição, é uma necessidade.

 

Estou para sair quando alguém comenta que se bateu o recorde de golos em mundiais. Toda a gente se olha entre si e sorri embraçada. Quando surgiu o golo decisivo toda a gente festejou duplamente: a vantagem alargada e o marco histórico. Com a avalanche que se seguiu o momento ficou esquecido. A realidade desse momento ficou diluída naquele momento de embaraço. No país onde a culpa do Holocausto é ensinada e cultivada até à exaustão, este massacre assumiu outros contornos. Se Nélson Rodrigues chamou ao Maracanazo o momento Hiroxima do Brasil, este terá sido o Holocausto. Tal como no anterior, os alemães comuns tiveram dificuldades em acreditar nele.

 

Aquilo aconteceu mesmo?

 

PS - este texto foi inspirado por este. Incentivo a sua leitura, tal como outros textos do mesmo autor. É sempre mais que apenas futebol.

Estranhos lugares # 6

José Navarro de Andrade, 24.11.12

 

 

O inesperado vazio será talvez o lugar mais estranho de todos.

Ao largo da Nova Caledónia levanta-se do mar a Île de Sable, ou Sandy Island, localizada em todos os mapas fiáveis ao nosso dispôr. Cartas náuticas dos Serviço Hidrográfico da Austrália, fotos de satélite e, para os leigos, Google Maps e Google Earth, onde consta como uma mancha negra, todos afiançam a presença de uma massa de terra, grosso modo com a dimensão e a forma de Manhattan. Se não acreditamos nos mapas como nos havemos de orientar? Leia-se o fabuloso “Longitude” de Dava Sobel, para se ter a medida do épico que foi a procura de um meio viável e credível de se determinar a longitude e da extrema necessidade que tinha a navegação marítima dessa coordenada.

Rumo a Sandy Island por um dia de sol, assim se fez ao mar uma expedição da Universidade de Sidney. Todavia, chegado o navio ao local onde seria suposto largar ferro, não só tudo era mar em volta como o sonar dava o leito oceânico a 1400 metros de profundidade – onde diabo se havia metido a ilha? 1400m é um precipício suficiente para assegurar duas coisas: que não se tratava de um daqueles recifes recorrentemente engolidos pelo mar e que só uma catástrofe monumental poderia ter arrancado pela raiz um pedaço de terra daquele tamanho. A única conclusão lógica é que a ilha nunca existira.

Os mapas estavam errados? Estavam, todos. Como foi possível? É isso que está alvoroçadamente em discussão na comunidade geográfica desde há dois dias - ver aqui, aqui e aqui. Neste site publica-se uma extensa e magnífica coleção de mapas e cartas sobre a região de Sandy Island que acentua a estupefação.

Pode-se tirar provisoriamente desta bizarra anti-descoberta uma ilação filosófica: o erro é um vírus terrível, que se reproduz por inércia e quanto mais gerações tem, mais difícil é detectá-lo.

Isto até parece uma alegoria se a quisermos aplicar a certas obstinações auto-fundamentadas que têm feito a vida negra a Portugal, as quais, tanto mais reincidem quanto mais os seus resultados se afastam do objectivo.

Estupidez? Não, apenas uma natural fragilidade humana - toda a atenção é pouca.

 

- obrigado leitor/comentador lucklucky por ter oferecido esta história

Estranhos lugares #5

José Navarro de Andrade, 16.08.12
 

Pode uma cidade ser devorada por um buraco?

Não é uma cratera como a que furou Guatemala City depois da tempestade tropical Ágata, em junho de 2010. Essa era um cilindro geometricamente irrepreensível e mais não tragou do que um edifício de 3 andares. É aterrador ter um buraco vertical direitinho ao inferno? É, mas será sobretudo impressionante e dramático.

Em Cerro de Pasco é pior. Não há povoamento no mundo tão grande e tão alto ao mesmo tempo – com 70.000 habitantes repousa nos Andes peruanos a 4300 metros de altitude. O ar é fino e o chão frágil. Grande parte das riqueza platinas de Espanha vieram de lá, depois de a fundarem no séc. XVII sob a magnificente designação de “Ciudad Real de Minas”. Tem história a cidade, mas dela nada resta visível. À uma foram os frequentes terramotos que derrubaram a “Casa de la Moeda” e igrejas coevas, à outra foi a mina que até 1977 engoliu paulatinamente o centro histórico.

Pois é isto: Cerro de Pasco está a ser engolida metro a metro, pela sua própria razão de ser. Podem-se acertar os relógios pelas explosões, todos os dias às 11h e às 15h, que soam das profundezas da terra. A mina a céu aberto, que já foi de prata mas continua sendo de chumbo e zinco, não cessa de se expandir e como a cidade foi erguida anelarmente em torno dela, são bairros inteiros que têm de ir abaixo e ser relocados. No dizer de um poeta local Albert Estrella:

“Para decirte que he caminado

Sobre esa calle que te lleva directo al abismo

Calle Grau, Calle Lima,  ¡ya cayese de una vez por todas!”

Em 2008 o parlamento do Perú propôs um fenomenal plano de reconstrução de raiz de Cerro de Pasco noutro lugar, mas como das palavras aos actos a distância sul-americana é ainda maior do que a portuguesa, ainda estão todos à espera, lá cima, que alguma coisa aconteça. Entretanto, além deste drama abissal Cerro de Pasco passa por ser uma das urbes mais poluídas à face da terra – chumbo e zinco, lembram-se?, dos metais mais tóxicos que há.

 

 

 

 

 

  

Estranhos lugares #4

José Navarro de Andrade, 26.06.12

Nos dias de hoje o comunismo tem, como se sabe, três capitais: Pyongyang, Havana e Berkeley. Esta última não aparece representada com barraquinha de estado na festa do Avante! porque é uma anedota contada pelas preconceituosas elites de Washington, Nova Iorque e até de Los Angeles, que em snobismo não fica atrás de ninguém. Em compensação na festa do Orgão Central há-de estar presente a RPChina, a qual é comunista retinta da bandeira para cima, milenarmente imperial ao nível do Comité Central e capitalista em versão hardcore daí para baixo.

Isto vai de lamento por ninguém da secção internacional do PCP se ter lembrado de convidar uma delegação da Transdniestre ou Transdniéstria ou Transdnistria (pop: 518.700; área: 4163 km2; capital: Tiraspol; grafia nominal: ainda por definir) sem dúvida o derradeiro bastião do vero e autêntico comunismo de estado à moda da Guerra Fria, da Cortina de Ferro, do Campo Socialista, do Comecon, do Pacto de Varsóvia, de John LeCarré. 

Esta nação não é zombaria nem saiu de um dicionário de lugares imaginários que um certo senhor anda por aí a divulgar. Embora seja só reconhecido pela Rússia, o país fica situado na margem leste do rio Dniester (não confundir com o Dnieper) no troço em que bordeja a Moldávia, antiga Bessarabia. Quando a Moldávia cindiu da URSS e proclamou independência, a Transdn-coiso não quis ir atrás, sobretudo porque a minoria étnica de origem russa, que ali era maioritária, não aceitou de forma alguma a romenização e a romanização exigida pelos separatistas moldavos. Aprendera a lição com o que sucedeu aos seus congéneres letões. Mas como estava entalada a leste pela também recém-independente Ucrânia, que remédio teve senão autonomizar-se, mantendo a antiga bandeira soviética, os caracteres cirílicos, a língua russa e uma versão local do rublo.

Completa o quadro o facto de ser tão arreigado o sovietismo nostálgico da Trasdn(…) e dos seus cidadãos russos perdidos numa terra estranha e hostil, que mantiveram intacto o formato do exército vermelho e o poder de estado leninista, até há pouco conduzido pelo grande líder Igor Smirnov (parece brincadeira outra vez, mas não é…)

De que vive a Transdn-e-tal? Da produção de aço, o que na língua de pau daquela ideologia costuma significar, segundo alguns avisados analistas, armamento. Se fossem menos desconfiados, os trasndnistrienses (deve ser assim) até poderiam viver do turismo, convertendo a sua pátria num parque temático à escala 1/1, proporcionando uma original e genuína experiência soviética, já extinta em qualquer outro lado, mas não aqui, neste cantinho da Europa, a um punhado de horas de vôo de Bruxelas. Bastaria que a capital Tiraspol tivesse aeroporto próprio em vez de ser servida pelo da arqui-rival cidade de Chisinau.

O Palácio Presidencial em Tiraspol

 Um dia como os outros em Tiraspol

Entardecer em Tiraspol

Estranhos lugares #3

José Navarro de Andrade, 07.06.12


O que hoje se chama de INATEL, é a continuação, em outros moldes, da FNAT. A Federação Nacional para a Alegria no Trabalho foi uma peça do nunca muito funcional nem inteiramente bem sucedido aparelho corporativo do Estado Novo. A sua função era provir e orientar o lazer dos trabalhadores urbanos de um modo activo e saudável: ginástica sueca, campismo, termalismo, colónias de férias balneares, e do lado do recreio: saraus musicais e teatrais. O bizarro nome da FNAT não saiu da imaginação de qualquer conselheiro de Salazar, mas resultou apenas da tradução livre do nome da organização que a inspirou e moldou, a “Kraft Durch Freude” (KdF) nazi.                     

Das obras arquitectónicas do nazismo poucas remanesceram até hoje. A mais famosa será o aeroporto Tempelhof de Berlin, encerrado em 2008 e reaberto em 2010 como um parque público em meio de grande polémica.

Todavia a mais espetacular, introvertida e controversa construção do nazismo é o denominado Colosso de Prora. Trata-se de um conjunto contínuo de 8 edifícios com 6 andares de altura e 4.5 quilómetros de comprimento. Obra de engenharia civil de maior extensão, talvez só a muralha da China. A sua forma severa e repetitiva, amplifica as sensações de arrogância e autoridade que dela se desprendem, tão acarinhadas pelos nazis. A besta alonga-se ao correr da suave curvatura da brumosa praia da ilha Rügen, ao largo dos confins da Pomerania, banhada pelas águas álgidas do Báltico. 

 

       

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Este complexo foi construído entre 1936 e 1939 e destinava-se a ser “a maior e mais pujante colónia balnear” do KdF, palavras de Hitler quando foi pessoalmente inspecionar a construção daquelas 20.000 camas. Como os planos do Furher incluíam um monumental pavilhão de espectáculos com capacidade para todos os veraneantes, mais duas gigantescas piscinas cobertas, e como o início da guerra interrompeu a construção desta segunda fase, Prora acabou por nunca ter verdadeiramente entrado em funcionamento.

As autoridades da RDA, o lado da Alemanha em que o Colosso de Prora calhou, foram incapazes de decidir o destino deste monstro além de o ter cedido para uma base soviética até 1955. Depois da reunificação prosseguiu a envergonhada controvérsia: o que fazer com isto? Demolir parece fora de causa, até porque já se converteu em exemplar património arquitectónico. Mas o volume é tal e a sua localização de tal modo impraticável, que parece não haver solução para Prora. Um dos cantos foi convertido em albergue de juventude com razoável êxito – e o resto?

 

 

Estranhos lugares # 2

José Navarro de Andrade, 17.04.12

Estavam a jantar quando o avô ouviu na rádio que os turcos tinham desembarcado. O pai tinha razão, quando as coisas começam a correr mal, só pioram. No dia seguinte de manhã, a família conseguiu demover a teimosia da mãe que se recusava a sair daquela casa: ali nascera, ali casara, ali tivera os filhos – fugir? Nem pensar. “É só por uns dias, até as coisas acalmarem” urgia o pai. A mãe apenas se convenceu a partir quando viu que todos os vizinhos desfilavam na rua de malas aviadas, uns a pé, outros formando um cortejo de automóveis. Vão todos passar uma semana em casa de uns familiares, no outro lado da ilha. E depois regressamos quando esta estúpida guerra terminar. Será como ir de férias à força, sorriu o dono da mercearia que nunca fechava.

 

Nos anos 60 Famagusta começava a dar nas vistas como uma das pérolas balneares do Mediterrâneo. Elizabeth Taylor passeou por lá as suas jóias durante um verão e de noite as ruas à beira mar trepidavam de romance e aventura estivais. Às portas da velha Famagusta, uma cidade que se gabava de ser tão preciosa e histórica como Dubrovnick, cresciam os hotéis e as discotecas no bairro novo de Varosha, o centro estival de águas tépidas e areias finas, onde os homens davam-se ares de James Bond, encantados por mulheres de bikini colorido. Que futuros radiosos ali se prometiam.

Mas depois veio a política. Os radicais gregos de Chipre, instigados pela ditadura de Atenas, reclamavam a enosis (unificação) com a Grécia, ameaçando a minoria turca. Da ideologia ao golpe de estado foi um salto de pulga dado em 15 de Julho de 1974. Ato contínuo o exército turco invadiu Chipre, dividindo a ilha ao meio, para proteger os seus patrícios.

Varosha ficou do lado de lá, o turco. Os seus 26.500 habitantes de origem grega, partiram e nunca mais voltaram. Entretanto, uma resolução da ONU interditou as autoridades ocupantes de disporem das propriedades e dos registos prediais de Varosha, só passíveis de serem entregues aos seus legítimos detentores, os quais estão proibidos de atravessar a linha militarizada.

Resultado? Desde 1974 que Varosha está à espera. No stand de automóveis do centro da cidade ainda estão os carros daquele ano prontos a serem vendidos e entregues. Nos armários continuam pendurados os vestidos de noite e sobre algumas mesas espalham-se as sobras do último pequeno-almoço. À beira mar ergue-se o casco oco dos hotéis aguardando os seus hóspedes. Há 38 anos que ninguém pode entrar em Varosha. Na Europa.

                           

 

 

Estranhos lugares # 1

José Navarro de Andrade, 11.04.12

O que é longe?

Um carmelita fecha-se para o mundo na sua cela. Mas bastar-lhe-á correr um par de ferrolhos e eis o mundo de novo à volta dele. Longe como sem igual em mais lugar nenhum, é em Edinburgh of the Seven Seas, onde chove quase sempre e o vento nunca se cala. O casario foi implantado de porta virada aos suaves alísios que sopram de norte ao passo que nas costas bate-lhe a sombra do pico Queen Mary, tão alto como a Serra da Estrela, a defendê-lo das investidas dos frios antárticos.

Em todo o planeta, não há lugar habitado mais remoto do que este. E tão longe está sobretudo porque dele não há saída.

O que será viver na ilha de Tristão da Cunha? A massa de terra mais próxima é a famosa ilha de St. Helena, que dista a bagatela de 2430 km (equivalente a Lisboa-Budapeste). Mas só se chega a Tristão da Cunha provindo de barco da Cidade do Cabo; são seis dias de mar para percorrer 2810 km (Lx-Oslo). O barco só passa por lá um par de vezes ao ano. A ilha fica de fora de todas as rotas marítimas e aéreas e lá em cima na estratosfera mal lhe tocam as franjas do perímetro de alcance dos satélites. O profundo Sul do Atlântico é a maior vastidão desértica da Terra, com troços ainda por cartografar.

 

Tristão da Cunha tem 261 habitantes que constituem oitenta famílias distribuídas por oito apelidos. São súbditos ingleses e nas fotos do site fazem cara de quem tem um modo de vida vulgar, como se habitassem no Hampshire. Todavia não sabemos nada da vida deles, se vivem na pitoresca harmonia de uma aldeia inglesa ou se medram no horror, aqui ampliado, da intriga e da bisbilhotice que costumam assolar as pequenas comunidades humanas. Nenhum forasteiro pode comprar terra ou mesmo instalar-se na ilha e para visitá-la necessita de visto, só obtido depois de respondido e aprovado em conselho local um minucioso inquérito sobre o motivo da viagem.

 

O conceito de “não há nada que fazer” ganha aqui uma dimensão inusitada. Nas terras comunitárias todos têm um torrão onde cultivar batatas; há algum gado mas a sua reprodução é severamente controlada para não desbastar o pouco pasto e para que as famílias ligeiramente mais ricas não acumulem riqueza. Fora isso pode-se trabalhar alguns meses ao ano na pesca do lavagante e na minúscula fábrica de conserva de peixe.

Só em 2011 os aldeões de Edinburgh of the Seven Seas passaram a ter acesso à televisão do exército britânico, emitida a partir das Falklands.

Ondas e vento, dia após dia, após dia. Meses. Anos. A solidão não se imagina, sente-se, porque experimentá-la está para lá de qualquer ideia. Assim é a vida em Tristão da Cunha.