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Delito de Opinião

Tempos que já não voltam

Pedro Correia, 29.08.24

O Estado Social é inseparável do crescimento económico: nos 30 anos subsequentes à II Guerra Mundial, estas duas realidades progrediram a par. Potenciadas por múltiplos factores entretanto desaparecidos: mercados coloniais, matérias-primas baratas, petróleo a bom preço, taxa de natalidade muito elevada, proteccionismo industrial, restrições à circulação de produtos, pessoas e bens. Tudo isso terminou. Fomos os últimos a fazer cair o pano com o fim do nosso império, em 1975.

As três décadas seguintes caracterizaram-se pela inversão dos dados anteriores. E, portanto, pela atrofia europeia enquanto as restantes regiões do globo registavam índices de prosperidade jamais alcançados. Alguns que tanto defenderam a globalização - a quebra de fronteiras e barreiras - sentem-se agora vítimas dela e pretendem regressar ao quadro anterior. Que é impossível. Não há colónias como mercado de escoamento de bens manufacturados e fonte de matérias-primas baratas. Nem petróleo a preços reduzidos. Nem restrições à circulação de pessoas e capitais. Nem filhos em número suficiente. Nem pode haver, por tudo isto, o Estado Social que houve em tempos anteriores.

Não se pode nunca ter o melhor de dois mundos.

O dia da metadona

Paulo Sousa, 24.09.19

A entrada do estado na esfera individual no nosso país é uma tendência ainda em crescimento mas que um dia terá de ser travada.

A invasão começou sem esse propósito e era então justificada pela vontade de limitar as assimetrias sociais que existiam em proporções diferentes entre as regiões do país. O aumento dos impostos foi vestido com um fatinho domingueiro de forma a acrescentar ao estado a responsabilidade de tratar dos pobres e desvalidos. Quem é que de boa consciência humanista poderia questionar tal propósito?

A esquerda, à falta de operários, adoptou os pobres e fez-se dona da assistência social, e passou a classificar as ajudas organizadas pela Igreja como caridadezinha, como se quem recebesse ajuda se preocupasse de onde ela vem.

Até um certo ponto tudo funcionou dentro do benevolente espírito inicial, mas ano após ano as garantias dadas a todos e a cada um foram sendo alargadas. Era preciso ser-se criativo e fazia sentido alargar a caridade pública ao ritmo da frequência das eleições. Pouco a pouco chegou-se a pontos em que os encargos (e regulamentos) a quem cria riqueza e a quem cumpre horários, e dessa maneira alimenta financeiramente o sistema, eram tais que deixou de compensar correr riscos e a ser a pontual, e passou a ser mais racional mudar da coluna dos que contribuem para a dos que recebem. Alguns passaram a ser exclusivamente contribuintes e outros exclusivamente beneficiários.

Ao longo dos anos os exclusivamente beneficiários tem aumentado significativamente. No nosso país mais de 50% da população aufere de transferências directas do estado.

À minha volta isso demorou a ser notório, ou então fui eu que demorei a reparar. Sabia que no interior do país, num mundo social e economicamente deprimido, era o estado que ia mantendo a permanência de pessoas. Sabía que no interior havia menos empresas e negócios e por isso o peso do estado era superior ao das zonas mais dinâmicas. Câmaras e Juntas eram ali os principais empregadores. Aqui no centro do país e perto da costa, graças às cerâmicas, fábricas de moldes e outras industrias, tudo era diferente.

Ano após ano a relação de dependência ao estado foi-se aprofundando. Os políticos para sobreviver precisam de se mostrar agradáveis e os cidadãos reagem positivamente a estímulos positivos. Esta simbiose manteve-se mesmo quando o ponto de equilíbrio foi ultrapassado, e no caso português já foi ultrapassado tantas quantas vezes falimos nos últimos 40 anos.

Tudo isto já era para mim um facto, mas no passado dia 10 voltei a aperceber-me da dimensão da coisa. E é nesse dia que são pagas as pensões e, por isso, é também nesse dia que a economia local acelera com a nova injeção de liquidez. No dia 10 os balcões bancários estão apinhados de gente desde a abertura até ao final do expediente. O quadro de pessoal não pode tolerar folgas e, mesmo assim, as filas chegam à porta. Neste dia, por mim batizado pelo dia da metadona, não se pode ir ao banco por outro motivo que não seja ir levantar a reforma. De inverno chegam a tremer de frio, tal como tremem os drogados na fila da metadona.

Numa segunda linha de efeito é o comércio local que acelera para fornecer os bens essenciais a um ritmo que só voltará a fornecer no mês seguinte. Talvez em Lisboa e nos grandes meios urbanos seja menos notório mas não será muito diferente.

Isto é real, silencioso e é uma forma de pobreza. Nos telejornais despejam-se baldadas de alegria pelo crescimento PIB mas o país continua refém de um estado omnipresente que tudo quer controlar e taxar, para poder engordar e as sobras distribuir. Quem recebe, tal como antigamente, sabe que não pode morder a mão de quem o alimenta e, sem dar conta, continua a trocar dignidade por côdeas. Ao fim e ao cabo os vizinhos, primos e enteados também recebem e isso alivia o eventual ónus da desconsideração social. Soube há dias que ter um filho com astigmatismo visual dá direito a subsídio. Mas recebê-lo não dá estigma social aos seus pais. Se o filho da vizinha recebe, porque é que eu não tenho direito?

Será possível interromper este ciclo?

As mudanças que resultaram do dinheiro descarregado na economia após adesão à UE não alteraram a relação do cidadão com o estado. Antes não se podia afrontar porque fazia doer, e agora porque dá de comer. A subserviência mantém-se.

A liberdade é uma música que põem a tocar no 25 de Abril, mas se antes não existia, agora está refém dos donos do regime.

A liberdade de escolha não está interiorizada no modo de agir dos portugueses. Tal como a sobrecarga que se colocava nos selos quando se mudava de regime, e ainda não se tinha tido tempo de fazer uma nova emissão, a liberdade ainda se esgota num carimbo da Constituição.

Quando é a maioria que decide, mais de 50% dos eleitores escolherá sempre de forma a que as transferências directas de que aufere não sejam interrompidas. O benefício imediato é um apelo lógico de quem quer maximizar o seu bem-estar. Arriscar as formulas que criaram riqueza noutras paragens é demasiado diferente, e os portugueses arrojados partiram de caravela há muito e nunca mais regressaram.

De que forma se poderá interromper esta trajectória? Será mesmo este o nosso fado?

Nas próximas eleições só não votarei Iniciativa Liberal porque o nosso sistema eleitoral foi feito para complicar a vida às ideias diferentes. Espero sinceramente que consigam eleger pelo menos um deputado num dos círculos eleitorais mais populosos onde há mais opções eleitorais. O nosso sistema eleitoral precisa de ser revisto. Portalegre, por exemplo, elege dois deputados. Que opções têm os seus eleitores? A nossa democracia é diferente por isso em Portalegre, em Leiria e em Lisboa. Não duvido que se aos actuais círculos eleitorais fosse acrescentado um circulo nacional a abstenção diminuiria.

Independentemente dos resultados que venha a conseguir, a Iniciativa Liberal tem o mérito de apresentar um alternativa ideológica ao marasmo do socialismo que nos governa desde 1974. Sem o dinheiro da UE seríamos hoje uma Venezuela sem petróleo.

No dia em que deixar de haver dinheiro, favores, cargos e prebendas para distribuir regime cairá. Será possível reforma-lo antes disso?

SNS: atrás de mim virá...

Teresa Ribeiro, 06.06.15

  

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Fiquei a saber por uma amiga que as urgências dos hospitais particulares já não são o que eram. Desde que os seguros de saúde se popularizaram, as salas de espera começaram a encher e o atendimento a degradar-se. O tempo em que as pessoas eram logo recebidas pelo médico já lá vai. Ela, que por razões de saúde recorre com frequência a estes serviços, está a ver crescer o seu rol de queixas a olhos vistos. O último episódio aconteceu há dias. Entrou no hospital da Luz a deitar sangue pelo nariz e pela boca, sem motivo evidente, e deixaram-na plantada à espera, com um saco para aparar a hemorragia na mão, alegando que ali o atendimento é por ordem de chegada.

Há uns tempos, desta feita no hospital da CUF, também eu fui surpreendida por uma cena ao melhor estilo do SNS. Uma médica teve o topete de me dizer, para começo de conversa, que só tinha 15 minutos para me atender. Num centro de saúde os mimos seriam os mesmos só que ficariam muito mais em conta.

Tudo isto me fez pensar na morte anunciada do SNS e nos mitos que paralelamente se têm alimentado acerca da excelência dos serviços de saúde privados. Com a massificação do acesso das pessoas a estes cuidados é claro que a qualidade tende a degradar-se. Aquela médica que precisava de me despachar em 15 minutos devia ter um contrato de outsourcing com o hospital que a obrigava a aviar x doentes à hora. Para oferecerem tarifas competitivas, estes hospitais têm que despachar muita gente em pouco tempo. No caso das urgências aplica-se a mesma lógica com a agravante de a facturação por utente poder subir exponencialmente em função dos exames pedidos, o que nos remeterá sempre para dúvidas quanto à real necessidade de alguns desses exames. Business is business

Faço um flash back e vêm-me à memória as inúmeras decepções que apanhei com o nosso Estado Social. Sempre me senti roubada por ser obrigada a pagar tantos impostos por tão baixo retorno. Idealmente o que o Estado nos cobra devia corresponder a serviços de excelência, só que tal nunca aconteceu nem acontecerá, bem sei. Mas como diz o ditado popular, "atrás de mim virá quem de mim bom fará". 

Se é para pagar um mau serviço prefiro o que me custa menos dinheiro e não seja para lucro de investidores privados. Admito que nesta minha escolha há uma base ideológica. Não abdico da convicção de que o melhor sistema é o que assegura aos contribuintes o retorno dos seus impostos através de apoio à doença, à velhice e no desemprego. Isso faz de mim, aos olhos dos meus amigos liberais, uma estatista, com a cabeça cheia de ideias anquilosadas, defensora de um modelo de sociedade que só aproveita aos parasitas que não têm fibra para se fazer à vida sem o Estado a pôr a mão por baixo.

Mas a verdade é que não me importo de sustentar com o dinheiro dos meus impostos os "parasitas" que recorrem ao SNS e vão inscrever-se no centro de emprego para ganhar algum nos cursos de formação. Não foram esses que entupiram a administração pública de tachos, blindaram a justiça, puseram o que deviam descontar para impostos a render em off-shores, desperdiçaram os rios de dinheiro que nos chegaram da UE em tempo útil e assinaram  contratos que levaram o Estado à ruína.

Os meus amigos que um dia vão sentir no seu lliberal pêlo o que é adoecer e envelhecer numa sociedade quase sem protecção social, ainda vão ter muitas saudades do velho SNS enquanto secam na urgência que puderem pagar, pelos cuidados que o seu seguro de saúde cobrir. 

 

Penso rápido (34)

Pedro Correia, 31.07.14

O Estado Social é inseparável do crescimento económico: nos 30 anos subsequentes à II Guerra Mundial, estas duas realidades progrediram a par. Potenciadas por múltiplos factores entretanto desaparecidos: mercados coloniais, matérias-primas baratas, petróleo a bom preço, taxa de natalidade muito elevada, proteccionismo industrial, restrições à circulação de produtos, pessoas e bens. Tudo isso terminou. Fomos os últimos a fazer cair o pano com o fim do nosso império, em 1975. As três décadas seguintes caracterizaram-se pela inversão dos dados anteriores. E, portanto, pela atrofia europeia enquanto as restantes regiões do globo registavam índices de prosperidade jamais alcançados. Alguns que tanto defenderam a globalização - a quebra de fronteiras e barreiras - sentem-se agora vítimas dela e pretendem regressar ao quadro anterior. Que é impossível. Não há colónias como mercado de escoamento de bens manufacturados e fonte de matérias-primas baratas. Nem petróleo a preços reduzidos. Nem restrições à circulação de pessoas e capitais. Nem filhos em número suficiente. Nem pode haver, por tudo isto, o Estado Social que houve em tempos anteriores.

Não se pode nunca ter o melhor de dois mundos.

Com jeito vai

Sérgio de Almeida Correia, 30.04.14

"Não haverá aumento de impostos ou esforço extra sobre salários e pensões", Maria Luís Albuquerque, 15/04/2014

 

"IVA sobe para 23,25%";

"A taxa contributiva, conhecida como TSU, vai aumentar 0,2 pontos percentuais para todos os trabalhadores, subindo, assim, de 11% para 11,2%";

"Pensões acima de mil euros pagam nova CES"

 

A Rádio Renascença, que deve andar mancomunada com a CGTP e o camarada Jerónimo, confirmou-me que, efectivamente, a ministra disse uma coisa no dia 15 de Abril e duas semanas depois acabou a dar o dito por não dito. Sei que o Governo também anunciou que os aumentos seriam só para 2015, que as previsões para o desemprego são mais optimistas do que as da troika e que em 2018 não haverá défice. Boas notícias, portanto.

Registo que com a mesma seriedade disseram antes que não iam cortar salários nem subsídios; que ninguém mexeria nas pensões; que o OE de 2012 foi condicionado, mas que o de 2013 é que já era deles. Enfim, a execução orçamental seria uma maravilha, a economia estaria a crescer no final de 2012, sem cortes, e por aí fora. Pelo caminho percebi que Passos Coelho se estava a lixar para as eleições. Os portugueses até nisto acreditaram e estoicamente tudo suportaram. Tinham motivos para isso.

Agora que tudo passou, que vêm aí as eleições europeias, que vejo os reformados e os trabalhadores muito mais aliviados nas suas pensões e salários, estou tão baralhado que entrei na fase em que acredito em tudo. Até na ministra.

Convenci-me, sabe-se lá porquê, como diz o exagerado do Pedro Santos Guerreiro, que "o martírio é agora diferente". Exultei com a boa nova. Estou tão esperançoso com o futuro dos meus compatriotas e do meu longínquo Portugal que não sei se compre uma garrafa de champagne. Ou, estou indeciso, se aproveitarei o facto de estarmos no Primeiro de Maio para acender uma vela à família Pingo Doce e encomendar uns panchões para celebrar as conquistas deste novo Abril, quarenta anos depois.

De qualquer modo, penso que os portugueses vão ficar satisfeitos. As coisas estão a compor-se. Tanto mais que agora vem aí mais um grupo de trabalho para transformar Portugal numa enorme cozinha, cheia de pançudos e de estrelas Michelin, há todos os motivos para celebrar.

Para os mais cépticos - sim, porque nestas ocasiões aparecem sempre uns tipos a desfazer estas conquistas -, e de maneira a que o martírio se torne ainda menos doloroso e se transforme em prazer, pois que já se sabe que apesar das iguarias só ficaremos limpos lá para 2018, o melhor mesmo é os portugueses estarem preparados para o que ainda aí vem. E ouvirem tudo com muita atenção. Os sorteios de carros do fisco já ninguém os tira, mas não tarda e o ministro Paulo Macedo, já me confidenciaram, anunciará com o seu à-vontade de fadista o aprofundamento do estado social e a compartição integral do Serviço Nacional de Saúde na aquisição de bisnagas de vaselina. Este Governo sabe que quando se trata de abrir alas para a entrada dos clisteres que nos irão ajudar a libertar as gorduras e reformar o Estado, não há nada como ter alguém que zele por nós, garanta os cuidados paliativos e nos facilite o martírio.

Insegurança social - VII

Teresa Ribeiro, 28.11.13

Não me esqueço do dia em que ao sentar-me para mais uma "entrevista", informando enquanto tirava um molho de papéis da mala que tinha vários assuntos a tratar, uma funcionária de olhos nos meus me diz em voz baixa: "Desculpe, mas eu vou ter que lhe pedir para não demorar muito tempo. É que eu fui aqui colocada pelo centro de emprego há poucos meses e tenho ordens para não perder mais do que 15 minutos com cada pessoa. A minha chefe não quer saber se atendo bem ou mal. O que não posso é baixar a média de atendimento de quatro pessoas por hora. Quando me avisou que tinha muitos assuntos para tratar achei melhor pedir-lhe desde já este favor porque é a manutenção do meu emprego que está em causa, entende?"

Foi surreal, mas entendi. Longe de mim comprometer o emprego da senhora. Entendi tudo: o stress dela e a suprema hipocrisia dos responsáveis pelos "serviços de apoio" aos contribuintes, onde o que contam são os índices de produtividade e não a qualidade da resposta que é dada aos utentes.

Insegurança social - VI

Teresa Ribeiro, 27.11.13

Há trabalhadores independentes que para fugir à mão pesada da Segurança Social passam a vida a abrir e a fechar actividade. Uns porque têm rendimentos irregulares, outros porque apesar de exercerem actividade regular ou mesmo contínua, recebem quando o rei faz anos. Nestas andanças pode haver desnorte, como foi o caso de uma senhora que sem se aperceber manteve a actividade aberta apesar de ter estado sem trabalhar vários meses.

Enquanto esperava pela sua entrevista sentada ao meu lado confidenciou-me: "Não tenho esperança de reaver o dinheiro que eu sei que me hão-de cobrar". E eu perguntei-me se ela estava a ser realista ou se aquele conformismo não tinha razão de ser. Poderá a Segurança Social cobrar sobre rendimento zero só porque o trabalhador, por algum motivo, não deu baixa da sua actividade?

A sua entrevista decorreu muito antes da minha, de modo que quando já estava de saída pude perguntar-lhe: "Então?" Respondeu-me: "Entreguei um pedido de reavaliação da minha dívida mas a funcionária que me atendeu não me deu esperança. Eu não lhe dizia?"

Insegurança social - V

Teresa Ribeiro, 26.11.13

Há casos que ecoam pela sala enquanto se espera por vez, como o daquela mulher que desesperada vociferou: "De 800 euros que recebi no ano passado a Segurança Social tirou-me mais de 400 e você diz-me que isto pode acontecer?!"

Fiz contas por alto. Distribuídos pelos 12 meses do ano não chega a 80 euros por mês. Se aquela era a única fonte de rendimento não dava para viver. Como se tivesse adivinhado os meus pensamentos, a mulher acrescentou: "Não dá para sobreviver. Só me aguento porque tenho marido".

Perguntei-me se isto é legal. Se é possível não em teoria - porque em teoria não pode ser - mas na prática, derivado de alguma depravação do sistema tributário. A avaliar pelo que me ia chegando do discurso da funcionária que a atendeu sim, é possível.

Insegurança social - IV

Teresa Ribeiro, 25.11.13

O principal desconforto na nossa relação com o Estado advém da consciência plena de que é desigual e injusta. Essa percepção é partilhada, evidentemente, pelos funcionários que dão rosto à burocracia. Daí a indiferença gélida ou, no extremo oposto, o falso empenhamento com que alguns profissionais por vezes nos brindam. Já me aconteceu ser atendida por uma senhora que me garantiu, para começo de conversa, que se interessava mesmo pelas pessoas, embora tenha verificado algum tempo depois, e por outra via, que o meu assunto tinha sido arquivado, sem que disso ela me tenha dado conhecimento, como prometera.

O tom mais comum é porém o que vai do polido fastio a uma cordialidade que, quando há empatia, se deixa contaminar, nos casos mais difíceis, por manifesta comiseração. Testemunhas privilegiadas da inoperância do sistema é assim que estes funcionários se blindam relativamente à desconfiança, desespero, irritação e demais efervescências que acompanham as pessoas que atendem uma a seguir a outra, dia após dia, das 9h às 17h, excepto sábados, domingos e feriados.

Insegurança social - III

Teresa Ribeiro, 20.11.13

Para dar um ar de eficiência a Segurança Social criou linhas de atendimento directo, mas que não passam de call centers. As pessoas que atendem não são funcionárias da S.S. mas gente que recebeu formação nos moldes em que a tropa dos call centers costuma receber, ficando habilitada a responder a questões elementares e a distribuir os interlocutores mais complicados pelos vários balcões de atendimento mediante a marcação de entrevistas.

As chamadas são pagas e invariavelmente retêm os utentes durante vários minutos, até que um gravador os informa que "neste momento não é possível atender a sua chamada, por favor ligue mais tarde". Depois de muita insistência consegui que me atendessem, mas remeteram-me para outra linha, a 707200217. Não estranhei a gravação que me pediu para esperar em termos irrepreensíveis: "obrigada por aguardar, a sua chamada será atendida dentro de momentos, por favor não desligue", mas a cadência. Tão anormal que ao fim de poucos minutos pus-me a cronometrar, já de nervos em franja. Verifiquei que por minuto as pessoas que estão em linha ouvem esta mensagem sete vezes. Se aguardarem quatro minutos, que foi o que esperei, tê-la-ão ouvido 28 vezes. Como exercício de aquecimento posso assegurar que funciona.

Insegurança social - II

Teresa Ribeiro, 19.11.13

O primeiro mandamento do utente da Administração Pública é: "Nunca resolverás os teus assuntos à primeira tentativa".

 

Ontem informaram-me, através da linha verde 808266266, que devia dirigir-me à Praça de Londres. Hoje, quando fui à Praça de Londres disseram-me que já não era ali que se ocupavam de casos como o meu e recambiaram-me para o Areeiro. É a Administração Pública no seu melhor. Incompetente e indiferente aos transtornos que a sua inoperância possa causar. Quando cheguei ao Areeiro já tinha 90 pessoas à minha frente. Não havia lugares sentados para tanta gente. Desisti, mas tenho apenas dez dias úteis para reclamar, não me posso armar em esquisita por muito mais tempo.

Um dia destes perguntei à senhora que me atendeu ao telefone que prazo tinha a Segurança Social para responder aos utentes, só para ver o que me respondia. Engasgou-se logo. Alegou que naquele serviço não podiam esclarecer esse género de dúvidas: "Não estamos afectos a nenhum centro distrital, nem a nenhuma secção, logo as nossas informações são restritas", disse. Aconselhou-me a colocar a questão online. 

Insegurança social - I

Teresa Ribeiro, 18.11.13

A Segurança Social anda a cobrar-me acima do que era suposto. A situação arrasta-se apesar dos meus esforços para tentar resolvê-la. A consequência disto é que continuam a enviar-me periodicamente notas de dívida exigindo pagamentos indevidos, ainda por cima com juros acrescidos. Comecei por reclamar por escrito, depois pela linha de atendimento permanente, através da qual fui conseguindo entrevistas no centro do Areeiro, em Lisboa. É para lá que eu tenho caminhado a espaços, durante os últimos meses. Dou-lhes os elementos que pedem, pois não tenho nada a esconder, garantem-me uma resposta que nunca vem, ou vem sem justificação, algo que me é necessário se quiser contestá-la. E é neste círculo vicioso que me vão consumindo, à espera que baixe os braços.

Não por acaso, à entrada deste centro está sempre um polícia aparatosamente artilhado, com pistola à vista, algemas e cacetete. Num desses dias em que fui queimar o meu rico tempo para mais uma entrevista, meti-me com ele: "Isso é para desencorajar os mais nervosos?" Foi simpático. Sorriu e respondeu-me: "Pois, às vezes as pessoas perdem a cabeça".

Como eu as entendo.

Pensões milionárias de sobrevivência

Helena Sacadura Cabral, 28.10.13
O Correio da Manhã noticia que dez pensionistas recebem prestações de sobrevivência que custam aos cofres da Segurança Social 893 mil euros por ano.
A ser verdade, e feita uma pequena conta de dividir, tal significaria que o/a sobrevivente casara e enviuvara de um verdadeiro “tubarão” salarial. Com efeito a viuvez permite que cada um destes pensionistas receba em média 89.300 euros anuais!
Há casos em que a viuvez parece compensar...

Reflexão do dia

Pedro Correia, 27.10.13

«Os europeus vivem uma viragem de época: por outras palavras, já não podem viver como dantes. A Europa tem no estado social um dos pilares da sua identidade e do consenso social. "O Estado social não tem preço", diz-se. Mas o contrato intergeracional está ameaçado de ruptura. A resistência à reforma é a mais rápida via para o colapso. E, mesmo reduzido e racionalizado, o sistema não será sustentável sem crescimento. E não haverá crescimento sem outras reformas, cmo a do mercado de trabalho -- já efectiva nos países do Norte, mas ainda tabu nos países do Sul. O mito do "trabalho fixo para toda a vida" é uma fábrica de desemprego e um meio de segregar os jovens.»

Jorge Almeida Fernandes, Público

Portugal, 2015

Rui Rocha, 03.12.12

Chegámos ao debate sobre o Estado Social sem que previamente se tenha discutido de forma séria a necessidade de expurgar a administração central e local do desperdício, das redes clientelares e das correspondentes ineficiências. Os partidos do arco da governação (ou do arco do memorando) paralisam a discussão apontando a evidência de que as grandes rubricas da despesa são os custos com pessoal e as prestações sociais. Ora, se isto é verdade, tal não implica que não exista uma precedência natural (e ética) que impõe que postos de trabalho e dimensão social só possam ser atingidos depois, e nunca antes, de ser racionalizada (que não racionada) a máquina do Estado. Os restantes partidos da esquerda, ou do arco da velha, apresentam um condicionamento que os impede de discutir em bases sérias qualquer aspecto relacionado com a dimensão e as funções do Estado: tudo no Estado é bom, incluindo o que é mau. À direita, a ala liberal padece de atavismo inverso: tudo é mau no Estado, incluindo o que é bom. O resultado de tudo isto é um bloqueio no debate que não impede o curso inexorável dos acontecimentos. Endividado e dependente de uma economia incapaz de contrariar a hemorragia, o Estado português embaterá na realidade e ver-se-á obrigado a reduzir drasticamente a despesa. Os interesses instalados e o viés ideológico à esquerda e à direita terão impedido, por essa altura, qualquer reestruturação racional que liberte o país das clientelas incrustadas na máquina do Estado (vejam-se, a título de meros exemplos, a resistência consentida por Relvas a qualquer reorganização ao nível dos municípios ou a permanência dos lobbies universitários que acabam de impor a sua vontade em prejuízo do financiamento do ensino básico e secundário). Isto é, os portugueses passarão de uma situação em que beneficiavam de uma protecção social que aspirava a ser de tipo escandinavo (passe o exagero) suportada por uma economia periclitante, para uma outra em que uma contribuição fiscal de nível escandinavo (sem exagero) terá como contrapartida uma protecção social miserável. Teremos então o pior de dois mundos. Um Estado ineficaz e capturado por interesses que é incapaz de oferecer qualquer contrapartida. Um Estado ávido de impostos que servirão para pagar boys, rotundas, iluminações de Natal e rendas de empresas de regime, mas já não pensões, subsídios de desemprego ou a instrução dos nossos filhos. Um Estado incapaz, sequer, de cumprir razoavelmente qualquer das suas outras funções essenciais. Portugal, em 2015, não será apenas um Estado falido. Ter-se-á tornado, entretanto, um Estado imoral.

Refundar o Estado Social.

Luís Menezes Leitão, 30.11.12

Se já nos estamos a ver gregos com o Orçamento para 2013, imagine-se o que será em 2014, em que vai ser preciso cortar 4.000 milhões para pôr o défice nos miraculosos 2,5% do PIB, que aliás ainda estão longe dos 0,5% exigidos pelo Tratado Orçamental. Conhecendo o actual Governo, imagino as propostas que aí vêm:

1) Limitar a escolaridade obrigatória à 4ª classe. No tempo dos nossos avós era assim. A seguir fecham-se todas as escolas secundárias e  universidades públicas. Quem quiser ter educação complementar que vá para uma escola privada. Mas em bom rigor nem isso será necessário, pois o que se pretende é que os alunos deixem de ser piegas e comecem a trabalhar muito cedo. Daqui a vinte anos terão sempre possibilidade de pedir equivalência à licenciatura ou até ao doutoramento com base no currículo profissional.

2) Extinguir todo o sistema de saúde público. Quando mais depressa morrermos, mais depressa deixamos de ser um encargo para a segurança social. Aliás, para acelerar a coisa, até se deve passar a tributar mais reduzidamente o tabaco e as bebidas. Os portugueses vivem demasiado tempo para o Estado social que temos.

3) Se o despedimento dos funcionários públicos resultante de 1) e 2) não chegar, despedir até 100.000 funcionários públicos. Para evitar iniquidades nesse despedimento, o Governo proporá uma roleta onde serão sorteados os números de funcionários a abater (em sentido figurado, claro) aos quadros.

4) Como o previsto em 3) atirará o desemprego para os 20%, o Governo proporá extinguir imediatamente o subsídio de desemprego. Para o Governo não faria sentido nenhum andar a sortear o despedimento de funcionários e depois ainda ter que lhes pagar subsídios. Aliás subsídios é palavra abolida para todo o sempre no Estado Social refundado. E o mesmo sucede com o rendimento mínimo garantido. Com é que se quer ter alguma coisa garantida neste novo Estado Social?

5) Elevar a idade de reforma para os 100 anos. Se o Manuel de Oliveira conseguiu trabalhar com esta idade, porque não o hão-de fazer todos os outros?

Devem ser estas as medidas que aí vêm para 2014 e que permitirão um glorioso sucesso ao programa de ajustamento. Se a constituição o impedir, ela vai ter que mudar por força da realidade. Aliás, nem isso será necessário pois nem o Presidente nem o Tribunal Constitucional impedirão a aplicação das geniais medidas do Professor Gaspar. Mas a fazer-se uma revisão constitucional, provavelmente o artigo 1º passará a ser "Portugal é um protectorado,  baseado na indignidade da pessoa humana e na vontade dos credores, e empenhado na sua transformação numa sociedade obediente, injusta e austera".

Igualdade de oportunidades. Até para as Bestas.

André Couto, 27.08.12

 

Paul Ryan, a escolha de Mitt Romney para candidato a vice-presidente dos Estados Unidos, é um ideólogo como muitos em Portugal. É contra a Segurança Social nas suas várias vertentes, como saúde, educação e apoios sociais, querendo assumidamente terminar com ela. O curioso é que Ryan, quando mais novo e perante a morte do seu pai, foi salvo pela Segurança Social que hoje quer destruir. Doutra forma, sem apoio do Estado, não teria tido a possibilidade de estudar e hoje ser candidato a tamanha responsabilidade.

É por isto que defendo o Estado Social com unhas e dentes, porque garante igualdade de oportunidades ao longo da vida. Até a bestas ingratas, como é o caso.

Gente que odeia pobres

André Couto, 17.07.12

 

De mansinho o Governo de Portugal, como esta gente gosta de se chamar, aprovou a semana passada a mais perniciosa, mesquinha e cruel medida do seu curto consulado.

Depois de espremer a classe média para além do tutano vai de pegar no Rendimento Social de Inserção (RSI), ou o apoio à preguiça, como gosta de dizer alguma gente nascida em berço de ouro. Como dizia, vai de passar a descontar no RSI a diferença entre a renda técnica e a renda social, daqueles que beneficiam de habitação social cedida, por exemplo, pelos Municípios. Sem que contribua para este apoio que os Municípios dão, o Governo presume como rendimento a diferença entre o suposto e o cobrado, descontando isso nos milionários valores que o RSI proporciona às famílias beneficiárias. O RSI, antigamente, era o Rendimento Mínimo Garantido, e isso não era por acaso. Foi criado para garantir a subsistência mínima, temporária, daqueles que a tinham ameaçada.

Não eram estas as outrora criticadas gorduras do Estado patrocinadas por José Sócrates. Para além do desbaratar do Património do Estado e do Estado Social, o Governo de Portugal inaugurou uma nova fase: a do ódio aos pobres.

A coisa promete, esperemos por Outubro.

Custa

Laura Ramos, 18.05.12


Como está difícil, de repente, o reconhecimento de qualquer direito relacionado com o estatuto de profissional do Estado, antigamente tão fácil e automático. Isto é, baseado numa condição laboral honesta, transparente e sindicável. E ainda na boa-fé distributiva.
Dou um exemplo: pedir um cartão da ADSE para um filho que não usufrui de outro sistema de saúde.

Elementar, meu caro Watson. - Certo? Concedido e carimbado, como os ovos.

Mas não.... espera-nos um calvário. Uma máquina desconfiada, cínica e obtusa.

E eu pergunto-me, inevitavelmente: - Para que desconto, descontei e descontarei, se parece que essa contribuição não existe e me tratam como se  exigisse uma mordomia?

Encarniço-me contra os hipócritas que clamam contra o fim do Estado Social, no sentido em que não é legítimo eleger este ou qualquer Governo do século como "o culpado".

É uma desonestidade intelectual, claro.

Desde que eu entrei na vida activa (já lá vão quase 30) li e estudei e desenvolvi aplicadamente, em exames de cursos de formação que fiz, obedientemente, as previsões deste fim.

Os cenários negros bailaram-me debaixo dos olhos em milhentos profetas da desgraça, cientificamente acreditados. Transmiti-as em aulas que dei. Fui avisada. E avisei.
Portanto, é uma hipocrisia fazer de conta que isto é uma opção, quando é uma consequência inevitável.
Mas sofrer na carne a atrofia do dito cujo (Estado Social) custa.

Isso não se aprende nos livros.

 

(E já agora... - Podem largar-me as canelas? Chega.)

Terapia de choque

José Navarro de Andrade, 12.01.12

 Maurizio Cattelan, “Hanging children”, 2004

(instalação na Piazza XXIV Maggio de Milão, patrocionada pela Fondazione Nicola Trussardi)

 

Monica Ali não é a melhor escritora do mundo. Se o seu primeiro romance, “Brick Lane”, teve um êxito estrondoso e levantou uma acesa polémica entre a comunidade bangladeshi no Reino Unido, à qual ela pertence e cujo quotidiano desenraizado é minuciosa e conflituosamente descrito no livro, já a segunda obra publicada por Ali intrigou os literatos e o público. Chama-se “Alentejo Blue” e decorre nessa estranha e despovoada charneca, perdida no extremo sudoeste da Europa. Contar histórias acerca da gente exótica que vive no meio de nós e nos escapa à atenção é muito atraente, misterioso até; agora discorrer sobre um lugar que a ninguém diz nada nem nunca ouviu falar, que melhor receita poderia haver para o insucesso?

Todavia em “Alentejo Blue” Monica Ali demonstra ter bastante apurada uma das qualidades primordiais de um escritor: o poder de observação. Ou seja, a capacidade de recolher de uma realidade aquilo que estando à vista de todos, a todos permanece obscuro. Por exemplo: “Alentejo Blues” começa com um homem enforcado, um velho que se suicida e é descido da árvore por outro velho, seu amigo de infância que durante primeiro capítulo recorda tudo por que passaram juntos.

A um leitor britânico isto é apenas uma construção dramática e muito provavelmente também um leitor urbano português assim o entenderá. Nos últimos 40 anos o Alentejo rural esvaziou, converteu-se num baldio dada a inviabilidade da agricultura de sequeiro e ganhou entre os citadinos nacionais, agora a maior parte da população, a ilusória imagem de um paraíso de tranquilidade e de ecologia. Tal olhar beatífico esquece que era habitual os velhos suicidarem-se, num acto de puro altruísmo, para não pesarem nas famílias. O trabalho era sazonal, nem sempre havia pão para pôr na mesa e o pouco que havia era inconveniente desperdiça-lo em quem já não tinha força nos braços para render mais uns imprescindíveis tostões. Com um baraço e um sólido ramo no alto de uma azinheira, equilibrava-se a economia doméstica. Embora contrário aos preceitos vigentes, tão comum e tido como decente era o suicídio, tão natural digamos, que a igreja declarou o Alentejo como terra de missão.

Esta tradição foi quebrada por Marcello Caetano quando, talvez no único gesto memorável do seu ministério, estendeu a segurança social ao povo rural. A decisão teve um efeito dramático na taxa de suicídios no Alentejo cuja curva mergulhou a pique como os papéis do PSI20. Depois foram estes anos que lá em baixo pareceram de leite e mel. Não que os jovens quisessem continuar naquela vida, que bem perceberam, pelo que contavam os velhos, não ter presente quanto mais futuro, mas agora sempre um ancião podia gozar o solinho das manhãs sem ter que, literalmente, deitar contas à vida – do mal o menos.

Parece, no entanto, ter havido no outro dia uma senhora das situações a falar do Sistema com maiúscula e a dizer que ele não aguenta se não voltarmos aos dias anteriores a Marcello Caetano, aos tempos do quem paga pode, em vez do vigente quem pode paga. Ela lá sabe as contas que faz.