Churchill com Isabel II em 1955
Fez na Sexta-Feira Santa um mês que, como tantos de nós, entrei em reclusão doméstica voluntária. Como tantos de nós, cidadãos comuns, que nos antecipámos à tardia decisão do Governo de encerrar creches e escolas, restringir ao mínimo os contactos sociais e suspender as deslocações diárias entre casa e trabalho, sem necessitarmos de ver os movimentos tolhidos pela declaração do estado de emergência.
Ainda o Presidente da República e o primeiro-ministro distribuíam beijinhos e abracinhos numa sessão pública no Porto que nunca deveria ter ocorrido, para assinalar o centenário do Teatro de São João, e já milhares de portugueses agiam com a noção exacta dos riscos do novo coronavírus, classificado a 11 de Março como pandemia mundial pela OMS.
Relembro já com nostalgia aquela aparente normalidade que precedeu a clausura. No dia 6, congreguei o meu clã leonino num jantar de blogue. Dois dias depois, um domingo, visitei o estádio José Alvalade pela última vez, testemunhando ao vivo a primeira (e única) vitória do novo treinador, Rúben Amorim. Ao fim da tarde de 9 de Março, fui ao cinema: sala despida, como tantas vezes acontece. A partir daí, isolamento.
Saio só para meia hora diária de passeio higiénico e para renovar ocasionalmente a despensa, sempre em doses moderadas. Perplexo ao ver tanta gente empurrando carrinhos de supermercado a transbordar de compras ou a atulhar bagageiras com garrafões de água mineral. Questiono-me aliás qual será a necessidade de adquirir tanta água engarrafada quando temos felizmente acesso a água canalizada de inegável qualidade, ao contrário do que sucede em mais de metade das nações do globo.
Mudei hábitos quotidianos, à semelhança do que aconteceu com tantos de nós. Usar sempre a escada em vez do elevador, por exemplo. Ou limpar o telemóvel com um pano húmido ao chegar a casa e utilizá-lo só em casos de absoluta necessidade quando estou na rua. Outros, que mantenho há muito, começam agora a ser adoptados pelos vizinhos, como confirmo ao passar nos vários patamares do prédio: sapatos à porta de casa, nunca entrar com o calçado da rua. Sorrio ao lembrar-me que os meus vizinhos chineses, em Macau, já procediam assim no início da década de 90.
Sorrio menos ao lembrar-me de declarações insensatas de responsáveis políticos. Do Presidente da República, por exemplo, que naquele seu estilo muito próprio opinava a 25 de Fevereiro: «Fechar fronteiras é impossível. Se alguns países acham que é possível fechar fronteiras, o que estão a fazer é controlar algumas pessoas nas fronteiras.» Ou do primeiro-ministro, que a 11 de Março, já com muitas escolas privadas e diversas universidades encerradas de moto próprio, ainda hesitava: «Sabemos bem que encerrar uma escola tem um efeito muito perturbador na vida das famílias. Só podemos e só devemos fazer na margem que for o estritamente necessário.» Transmitindo um sinal errado a uma sociedade que já andava no passo certo.
Infelizmente passámos desta lassidão oficial para o campo oposto - a do excesso de zelo. Vejo agora membros das corporações policiais a interpelar cidadãos solitários que caminham em alamedas, jardins ou praias, respeitando a distância sanitária sem perturbar seja quem for. Dizem-me que por esse país fora há agentes da autoridade e até funcionários autárquicos de megafone em riste a mandar para casa pessoas que cumprem o indispensável período quotidiano de exercício físico diário, que é também um tónus psicológico. Como alertou o professor Daniel Sampaio, o isolamento social, associado ao receio de contrair Covid-19, terá efeitos graves na saúde mental dos portugueses.
A exibição desta musculatura autoritária é inaceitável. Tal como as medidas de drástico confinamento colectivo decretadas à la carte por sucessivos autarcas à revelia do poder central ou as imagens de um drone berrando «Fiquem em casa» sobre um passeio marítimo sem ninguém a circular. E nem vale a pena mencionar os patéticos palpites dos tudólogos que se apressam hoje a dizer que as medidas restritivas em vigor só deverão ser levantadas no dia em que os contágios se reduzirem a zero. Alguns, não há muito, achavam tudo isto um manifesto exagero: tornaram-se mais papistas do que o Papa.
Esta gente que a falar ou a decretar passa do oito para o oitenta com uma leviandade de bradar aos céus não tem noção do país em que vive nem do comprovado civismo de um povo que, em situações de calamidade, já demonstrou maior maturidade e sentido do dever cívico do que muitos decisores políticos ou incontáveis "líderes de opinião". De um povo que tem respeitado com serenidade as drásticas reduções ou suspensões de direitos (direito de reunião, direito de manifestação, direito à greve, direito à resistência) e liberdades (liberdade de circulação, liberdade de emigração, liberdade religiosa). Mesmo angustiado com o dia de amanhã e com o mês seguinte. Mesmo ignorando se haverá trabalho quando a pandemia amainar.
Nestas ocasiões, para relativizarmos os problemas, convém revisitar quem passou por muito pior e as lições de vida que soube incutir-nos. Alguém como Churchill, que chegou a ser o político mais solitário do planeta em defesa da liberdade perante o avanço da artilharia totalitária. «Um optimista vê uma oportunidade em toda a calamidade, um pessimista vê uma calamidade em toda a oportunidade», dizia este admirável resistente.
Tentemos aprender com ele.