O legado (26)
Expresso, 4 de Agosto
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
Expresso, 4 de Agosto
A Comissão Nacional de Eleições tentou silenciar a livre opinião política procurando impor o absurdo "dia de reflexão" - que a Internet e o voto antecipado tornaram ainda mais anacrónico - à campanha já em curso para a Assembleia da República, a pretexto de que hoje se realizam eleições na Região Autónoma dos Açores. E entendeu divulgar tal decisão apenas dois dias antes do tal dia, que passou ontem.
Fez muito bem a Iniciativa Liberal em manter o evento que anunciara, em Lisboa, para a apresentação detalhada do seu programa eleitoral com a presença de candidatos de todo o País. Não foi um desrespeito pela lei: foi uma afirmação de liberdade, sem condicionamentos inaceitáveis, neste ano em que celebramos o 50.º aniversário do 25 de Abril. Era o que faltava suspender-se a política no país inteiro a pretexto de que nos Açores teria forçosamente de ser assim.
O mais extraordinário, nesta ridícula tentativa da CNE de impor 24 horas sem política em todo o território nacional cinco semanas antes das eleições legislativas, é que o mesmo órgão deliberativo havia emitido decisão oposta poucos dias antes, a 17 de Janeiro. Admitindo acções de propaganda eleitoral fora dos Açores na véspera e no dia das regionais no arquipélago.
É o Estado que temos. É o Estado a que chegámos.
Há uns dias foi noticiado que uma alteração legislativa relativa à validade das cartas de condução levou a que este ano já tenham sido apanhadas 5113 pessoas sem o respectivo título de condução válido.
O caso aplica-se principalmente a quem tem uma carta emitida antes de 2013. Vejamos este caso ficcional, mas que já se repetiu 5113 vezes este ano.
O Jorge tem actualmente 51 anos. Obteve a sua licença de condução aos 18 anos (em 1989, portanto) e desde então tem o seu documento original, um daqueles cor-de-laranja dobráveis em três partes. Nesse documento está impresso que o mesmo é válido até à véspera do seu 65º aniversário, até 2036, portanto.
O Jorge sabe que nessa data terá de o renovar e que para isso irá precisar dum certificado médico que atestará a sua capacidade física para poder conduzir. Faz sentido. Algumas pessoas aos 65 anos, devido a complicações de saúde ou outras, podem já não reunir condições para conduzir em segurança.
O que o Jorge não sabe, é que, apesar do que está escrito na sua carta de condução (que é válida até 2036) ele é um infractor e está sujeito a uma multa de 120 a 600 euros. Além do Jorge, em 2021 mais 44566 condutores celebraram o seu 50º aniversário sem que tratassem da sua renovação.
O Jorge, que tem o defeito de procurar uma lógica nas coisas, pergunta ao legislador:
- Então, eu tenho carta de ligeiros, vou ter de apresentar algum atestado médico, é isso?
- Não. – Responde o legislador, franzindo condescendentemente as sobrancelhas. – Isso seria uma carga de trabalhos e nós queremos é desburocratizar a vida ao cidadão.
- Então o que é preciso fazer?
- Simples. – E a sorrir, acrescenta – Basta ir ao site do IMT, validar … blá, blá, blá … confirmar os dados pessoais e … pagar 27€.
- Então tudo isto serve apenas para o estado arrecadar mais 27€ e assim para garantir entretenimento ao pessoal do IMT, é isso?
- … Como?
- Então e quem não conseguir ultrapassar as barreiras informáticas para tratar disso?
- Os info-excluídos podem ir a um solicitador ou a uma escola de condução, que eles tratam do processo. Cobram cerca de 50€.
- Ora então, no ano de 2021, contanto apenas com os 44566 condutores que fizeram 50 anos e não revalidaram a sua carta, o estado contava arrecadar mais de 1 milhão e 200 mil euros, é isso?
- O que, veja, é uma tremenda perda de receita.
- Mas se os multar a todos poderá conseguir arrecadar entre 5 e 25 milhões de euros.
- Sim, mas só conseguimos multar 5113 infelizes. Rendeu pouco mais de 600 mil euros. Uma ninharia.
Nuno Ribeiro da Silva tem um percurso galáctico em assuntos de energia, cujo mérito não sei avaliar, e teve um percurso político que justificaria que, num país como Portugal, tivesse tento na língua: quem está à cabeça de empresas majestáticas almoça com ministros e secretários de Estado, é tu cá tu lá com altos funcionários e, em entrevistas e declarações, diz coisas redondas segundo o espírito da época e o poder do dia.
O poder do dia é socialista e o pobre homem é do PSD, ignorando-se se da versão Rio, isto é, PS-B, ou de outra das várias que aquela prestigiada agremiação acolhe no seu seio.
Certo é que há dias pôs a boca no trombone, declarando que haveria já este mês um aumento de 40% na factura da eletricidade. Deslize? Imprevidência? Precipitação?
Não sei. Estes assuntos aparecem ao cidadão comum, e portanto a mim, como herméticos, sinal seguro de que haverá tráfico de influências, parasitagem, moscambilhas sortidas e, sobretudo, vassalagem ao acervo de patetices guterristas e gréticas (de Greta, a pobre Joana d’Arc da histeria climática) que justifica tanto estudo subsidiado, tanto prócere da Academia a prometer hecatombes se não se seguirem os remédios que recomenda, e tanto governante a cavalgar a onda da ansiedade climática para reforçar os poderes do Estado, e portanto os seus.
Entretanto, a própria empresa que Nuno dirige já veio dizer que não senhor, não vai haver aumentos nenhuns, e o ministro do Ambiente aliviou-se de coisas tranquilizadoras, outro tanto fazendo o secretário Galamba.
Quem quiser fazer alguma ideia do que se passa nestes domínios pode fazer pior do que ler os artigos de Mário Guedes no Observador, um funcionário que o dito Galamba em devido tempo despediu, et pour cause.
Em resumo: seja por calculismo, seja por imprevidência, ou por outra razão qualquer, aparecem umas declarações que alarmam os cidadãos que assistem tranquilos ao espectáculo do colapso do SNS, da inflação que galga degraus e do deslizar do país para os últimos lugares do desenvolvimento; os governantes do sector envolvido reagem, sossegando as hostes; e as pessoas comuns terão concluído que aumentos vai haver, mas nada do que aquele espalha-brasas anunciou. Tudo normal, portanto.
Tudo? Não. Galamba, o antigo aguadeiro do PS nos tempos gloriosos da blogosfera, ferido nos seus brios de patrão dos assuntos energéticos, ter-se-á queixado ao chefe. O qual, incomodado em férias, reagiu: O quê, um patrão de uma grande empresa que se permite ameaçar os nossos eleitores, e os outros que ainda não viram o esplendor socialista, com aumentos de preços sem nos dar tempo para preparar a opinião pública com a desculpa da guerra e outras bem-enjorcadas? Ele vai ver.
E viu. Costa pariu um despacho que promete a uma empresa um tratamento diferenciado do das outras, não por algo que tenha feito, nem sequer para evitar o risco do que venha a fazer, mas como castigo por falar demais.
Que o Estado se permita tão ostensivamente discriminar uma empresa cai dentro do domínio da inimputabilidade de que este PS, este governo, e este primeiro-ministro, julgam ser beneficiários.
Talvez sejam. Mas como a alguns cidadãos a oposição às ideias às vezes se transmuta em nojo face aos procedimentos, fica aqui o monumento da ignomínia:
“A partir das últimas décadas do século XX, este Pinhal tem sido largamente negligenciado. Para se ter uma ideia deste desinteresse, basta referir, por exemplo, que, no domínio dos recursos humanos, em 1980 havia 144 trabalhadores rurais, que, segundo os técnicos da altura, “não chegam para resolver cabalmente os problemas da instalação e tratamento dos povoamentos”, 29 guardas florestais, 4 mestres e 9 técnicos (engenheiros silvicultores). Hoje há 30 trabalhadores rurais (sobretudo mulheres), não há guardas a dependerem desta Direcção Geral (a Polícia Florestal que surgiu em sua substituição actua sobretudo na fiscalização da caça e pesca nos concelhos de Leiria, Marinha Grande, Pombal, Batalha e Porto de Mós) e há apenas 2 técnicos para uma zona que compreende Marinha Grande, Pombal, Figueira da Foz e Serra dos Candeeiros.
As tarefas dos trabalhadores rurais passam sobretudo por medir pinheiros fiscalizar cortes, pintar casas e pontes. Nas matas do Pedrogão e do Urso, que juntas perfazem 8.000 ha, trabalham apenas duas mulheres. O número é claramente insuficiente, segundo o responsável pela administração deste Pinhal, acrescentado ainda que este “está ao abandono”. Efectivamente o orçamento de 2003 para limpeza e conservação da Mata foi zero. Por outro lado, ela rende anualmente ao estado cerca de milhão e meio de euros.”
Vidas de Carvão, As carvoeiras do Pinhal do Rei
de Paula Lemos
Imagens & Letras - 2007
O grande incêndio de 2017 destruiu 86% da área da mata conhecida por Pinhal do Rei. O texto acima, quase premonitório, foi publicado dez anos antes deste evento trágico. Já aqui postei sobre a demora na sua replantação e de como é difícil passar por ali, lembrando toda aquela imensidão de verde, que nos idos anos 40 inspirou o poeta Afonso Lopes Vieira.
Catedral verde e sussurrante, aonde
a luz se ameiga e esconde
e aonde, ecoando a cantar
se alonga e se prolonga a voz do mar,
ditoso o Lavrador que a seu contento
por suas mãos semeou este jardim
Quem não conhece a zona, quem ali não tenha construído memórias e desconheça a sua dimensão, não imagina o sofrimento de quem visita a mata.
Na sua largura máxima a mata tem 8.400 mt e 18.700 mt no seu maior comprimento, num total que ultrapassa os 11.000 ha divididos em 342 talhões. São necessários longos minutos de carro para atravessar a zona. É uma imensidão de área que nunca mais voltarei a ver como a conheci.
Não chegasse a incúria que nos levou a esta tragédia, António Costa, apostado em desrespeitar o “ditoso Lavrador” de Afonso Lopes Vieira, uns meses após a tragédia visitou a área e mostrou-nos que o que ficava ali bem eram sobreiros. Os nossos antepassados eram uns palermas e ele é que sabe.
Em Abril passado, e perante a decisão do Governo de adiar mais uma vez a sua replantação, o PS da Marinha Grande manifestou “a sua mais profunda desilusão e descontentamento" o que é demonstrativo da falta de sensibilidade com que se governa o país a partir de Lisboa.
Muito mais do que em qualquer metáfora literária, plantar uma árvore é realmente oferecer algo às próximas gerações, e nisso, estes adiamentos consecutivos dizem muito da forma como este governo lida com o futuro.
Entretanto, as acácias vão progredindo e os sobreiros plantados pelo senhor das meias verdes, sucumbiram.
Foto minha tirada a 3 de Janeiro de 2020
* Slogan do PS para as eleições legislativas de 30 de Janeiro
Permanece o mistério, 13 dias depois: a que velocidade seguia a viatura ministerial que a 18 de Junho, ao quilómetro 77 da A6, matou um cidadão português chamado Nuno Santos,que ali fazia trabalhos de limpeza e manutenção?
Enquanto o titular do Ministério da Administração Interna se refugia no silêncio, ontem circularam novas notícias acerca do tema. O automóvel oficial, marca BMW, «seguia a uma velocidade louca», segundo relato de uma testemunha ali presente.
A mesma testemunha garante que o ministro nem se dignou sair do carro.
Falta apurar se foi feito o teste do álcool ao condutor.
Na ausência de outras versões, para já, esta merece crédito.
Questiono-me sobre tudo isto.
Entretanto, fico perplexo com a disparidade do tratamento mediático desta tragédia comparada com outras, registadas por exemplo nos EUA: se o atropelado tivesse sido um qualquer cidadão norte-americano já estávamos há vários dias a ser bombardeados com imagens, com protestos, com manifestações.
Já sabíamos o nome da vítima de cor.
Aqui, nada. Nem protestos, nem imagens, nem manifestações, quase nem sequer o nome do falecido.
Como se fosse tabu ou pecado.
Como se a vítima não merecesse uma evocação póstuma.
Como se fosse conveniente varrer tudo isto para debaixo de qualquer tapete.
ADENDA: Treze dias depois, o ministro continua a dever explicações aos portugueses. Ontem o Presidente da República lançou-lhe esse repto. Mas ele recusou. Em directo, com o País a assistir.
Já decorreram doze dias. A 18 de Junho, a viatura oficial que transportava o ministro da Administração Interna, ao quilómetro 77 do trajecto Estremoz-Lisboa, atropelou mortalmente um trabalhador que efectuava obras de limpeza em bermas e valetas da A6 - uma das auto-estradas menos acidentadas, com maior visibilidade e menos movimentadas do País.
Até hoje, não se ouviu uma palavra do ministro. Um comunicado do Ministério deu a entender que a culpa do ocorrido foi do infeliz trabalhador, chamado Nuno Santos, que terá atravessado imprevistamente a faixa de rodagem - acusado, portanto, de pouco menos que negligência no desastre que lhe causou a morte. Foi igualmente referido que não existia qualquer sinalização de alerta aos condutores para a existência de trabalhos no local.
Acontece que o homem - com 43 anos e pai de duas filhas - tinha larga experiência nestes trabalhos para uma empresa subcontratada da Brisa, concessionária da auto-estrada. Acontece que a Brisa já desmentiu o Ministério, assegurando que a obra estava devidamente sinalizada. Acontece que o Governo não teve a decência de enviar um representante ao funeral de Nuno Santos. Acontece que a viúva alega não ter meios de subsistência e a imputação com chancela oficial de que o marido terá sido negligente poderá reduzir ou até anular o montante do seguro.
Acontece, enfim, que continuamos sem saber a que velocidade seguia a viatura ministerial. Doze dias depois.
Passam as décadas, passam os governos, mas algo nunca muda: a problemática relação entre o português que cumpre as obrigações de cidadania e o Estado que tantas vezes nos ignora. Proporcionando serviços de péssima qualidade, transportes públicos caóticos, protecção civil que deixa arder metade do património florestal do País, uma educação pública que não chega a todos, saúde sem meios físicos nem humanos capazes de corresponder às crescentes necessidades de uma população envelhecida, justiça insuficiente e caracterizada por uma lentidão exasperante. Ao contrário do que sucede nos países nórdicos, por exemplo, os portugueses dificilmente encontram retorno dos impostos que pagam em melhorias efectivas da qualidade de vida.
O zelo que o Estado - através do Governo - dispensa aos seus funcionários não tem paralelo na forma como se relaciona com o cidadão comum, encarado essencialmente como contribuinte. E, nesta óptica, considerado culpado até prova em contrário, numa inaceitável inversão do princípio constitucional da presunção da inocência, como há dois anos se verificou em operações stop realizadas pela Autoridade Tributária em parceria com a GNR para apanharem supostos infractores fiscais na via pública. Esquecendo-se o próprio Estado da sua condição de grande devedor: só as dívidas aos fornecedores e credores do Serviço Nacional de Saúde totalizavam 2,9 mil milhões de euros em 2017, segundo uma auditoria do Tribunal de Contas divulgada em 2019.
Em Portugal, ao contrário do que sucede nouros países, a regra não é o Estado confiar nos cidadãos. A regra é o Estado desconfiar dos cidadãos. Como se existisse para servir-se de nós e não para nos servir, como é nosso direito e seu dever.
A Autoridade para as Condições do Trabalho, agora muito invocada a propósito das "cercas sanitárias" impostas a duas freguesias do concelho de Odemira onde há muitos casos de Covid-19 entre os imigrantes que trabalham para explorações agrícolas, tem apenas quatro inspectores para todo o Baixo Alentejo.
Este é o Estado a que chegámos.
A conferência de imprensa da DGS de ontem foi liderada pelo Dr. Rui Portugal. Sabemos que a Drª Graça Freitas está infectada com o Covid19, tendo sido por isso substituída por um dos seus Subdirectores-Gerais.
A sua intervenção foi transmitida pela televisão e seguiu directamente para as redes sociais onde foi gozada até à exaustão.
Independentemente do teor das piadas, o que retive foi que este senhor, juntamente com a Drª Graça Freitas, serão dedicados servidores públicos, e não duvido que estejam a empregar o melhor das suas capacidade no combate a esta pandemia. No entanto não pude deixar de me questionar se estas serão as pessoas mais habilitadas para transmitir aos portugueses, com a clareza que se impõe, a informação que importa. Serão estes os técnicos de saúde pública mais capacitados para liderar a DGS, ou apenas os melhores que o Estado consegue atrair e manter nos seus quadros?
Como se podem atrair e manter motivados quadros qualificados? Sabemos que no actual enquadramento legal isso não é possível. E não estamos a falar necessariamente de mais dinheiro mas sim de uma re-organização focada numa correcta gestão de recursos humanos.
Anos e anos de reformas adiadas, motivadas por taticismo político e por ideologia, colocaram o interesse público no fim das prioridades. Quando nos rimos do Dr. Rui Portugal, da mesma forma que nos ríamos da Drª Graça Freitas, estamos no fundo a rir de nós próprios e da nossa incapacidade de nos levarmos a sério.
Qualquer indivíduo alvo de violência policial num país como os EUA - e nem precisa de ser espancado e deixado esvair-se até à morte, em arrepiante sessão de tortura - é logo tratado nos media portugueses como alguém com nome e apelido, como se fosse figura do nosso convívio. Há até manifestações públicas, convocadas por redes sociais, enchendo ruas e praças em período de "confinamento", como no início de Junho sucedeu com o norte-americano George Floyd em várias cidades do País. O combate ao racismo sobrepôs-se ao combate ao coronavírus.
Dois meses antes desse crime cometido em Minneapolis, um ucraniano tinha sido violentamente agredido, torturado e enfim assassinado à pancada em Lisboa por presumíveis "servidores públicos", pagos com o dinheiro de todos nós, num departamento oficial supostamente regido por normas de legalidade, transparência, urbanidade e cidadania. No fundo, a tal "ética republicana" com que alguns enchem a boca.
Ao contrário do que ocorreu no continente americano, este crime - que terá contado com cumplicidades várias, numa teia muito mais abrangente do que a do reduto inicial de esbirros homicidas - não comoveu ninguém. Nenhuma manifestação foi convocada, apesar dos óbvios contornos xenófobos do assassínio, nenhuma organização trombeteou em exaltada defesa dos direitos humanos selvaticamente violentados por funcionários públicos. As notícias foram esparsas, acolhidas entre bocejos. Como se toda a indignação doméstica se esgotasse nos protestos por crimes policiais cometidos além-fronteiras.
Pior: a vítima não teve sequer direito ao nome. Casado, pai de dois filhos, trabalhador que procurava encontrar em Portugal o sustento que lhe era negado no país de origem, Ihor Homeniuk acabou alvo de novo crime, desta vez de carácter político, social e mediático: o crime da omissão.
Tratado como anónimo, nas semanas e nos meses que se seguiram ao seu brutal homicídio, pelos militantes da indignação selectiva.
Tratado com impiedosa indiferença pelos poderes públicos - designadamente pelo Governo, que só há cinco dias se lembrou de dirigir uma carta de condolências à viúva e de a indemnizar pela trasladação do cadáver há muito efectuada, e pelo Presidente da República, por uma vez recolhido ao silêncio precisamente numa situação em que teria sido imperioso escutar uma palavra sua. Aqui Marcelo Rebelo de Sousa foi o último a falar, quando devia ter sido um dos primeiros.
Ihor Homeniuk não tem verbete na Wikipédia, não viu o rosto reproduzido em T-shirts, não leva ninguém a proclamar que "todas as vidas contam" - seja qual for a cor dos cabelos do agredido e violentado, seja qual for a pigmentação da sua pele. E raros são os que escrevem ou pronunciam o seu nome, ao contrário do que aqui fizeram o José Teixeira a 2 de Junho, expressando uma indignação que na altura tornaria redundantes outros textos de teor semelhante, ou o José Meireles Graça a 1 de Outubro, muito antes de os justiceiros de turno acordarem para o facto nas pantalhas cá da terra.
Ontem mesmo, na comissão parlamentar convocada para debater este crime na presença do ainda titular da pasta da Administração Interna, o nome de Ihor Homeniuk raras vezes foi pronunciado: vários deputados, quando muito, acederam em designá-lo por «cidadão ucraniano». E ficaram-se por aí.
Já me insurgi no DELITO contra a glória póstuma dos assassinos, que transforma qualquer celerado numa espécie de pop star em televisões e jornais. Já clamei contra os mecanismos comunicacionais, que em horas de barbárie surgem mais preocupados em desvendar o "rosto humano" dos homicidas do que em evocar as vítimas dos seus actos. Hoje venho reivindicar o mais elementar e singelo mandamento humano: o direito a sermos tratados pelo nosso nome, sem sermos reduzidos a uma etnia, uma profissão, uma nacionalidade, um emblema, uma afinidade tribal.
O homem assassinado a 12 de Março nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no Aeroporto Humberto Delgado (cruel ironia, tão repugnante crime ter ocorrido num local assim baptizado) chamava-se Ihor Homeniuk.
É pelo nome que esta malograda vítima do Estado português deve ser conhecida - e não de qualquer outra maneira.
Esta semana assinalou-se o terceiro aniversário do incêndio que destruiu 86% da área da Mata Nacional de Leiria.
Logo de seguida e por recomendação do fucus group, António Costa fez-se fotografar e filmar na plantação de sobreiros num dos talhões afectados. Ao mudar de espécie, de pinheiro para sobreiro, terá pretendido corrigir um erro com mais de 500 anos. El Rei Dom Dinis enganou-se ao escolher pinheiros e finalmente alguém ajuizado iria corrigir o erro. Logo depois a natureza, essa ingrata, fez com que os sobreiros não sobrevivessem naqueles areais e, talvez pela afronta, o governo decidiu entregar-lhe então a gestão daqueles 9.480 hectares.
Depois disso, e pelo facebook, soube de várias iniciativas de grupos de cidadãos identificados como amigos do Pinhal de Rei, que foram travados na sua vontade de replantar um talhão que fosse, pois esse processo teria de obedecer a um plano do ICNF.
Neste terceiro aniversário um grupo de cidadãos assinou uma carta pedindo explicações ao governo sobre o plano de recuperação desta área que equivale a 54% do concelho da Marinha Grande.
É tal a desolação que evito por ali passar. Hoje, pela segunda vez desde o incêndio, regressei a este espaço de que guardo recordações maravilhosas. Olhando em volta, tudo isso parece mais distante do que nunca. É uma dor de alma.
Para quem o quiser entender como tal, esta é mais uma prova da incúria do Estado, da sua incapacidade em resolver os assuntos que advoga como seus.
Este vídeo é por isso dedicado aos que acham que aquilo que precisamos é de mais Estado.
Depois de mais de quatro mil milhões de euros injectados na CGD desde 2011, com a justificação que era necessário existir um banco público para que o Estado podesse assegurar o financiamento de projectos que entendesse como sendo estratégicos, o lançamento do Banco Português de Fomento, exactamente com o mesmo propósito, abrirá certamente a porta à privatização da CGD.
No blogue de uma amiga unilateral (isto é, eu gosto dela, que não retribui desde que confessou que não estava mais disposta a tolerar os meus “sarcasmos” – olha logo eu que sou tão contido nas palavras) tomei conhecimento desta publicação no Facebook de João Sedas Nunes, que não conheço, a respeito da mãe, a escritora Maria Velho da Costa.
A história é escandalosa e João, que a narra contidamente mas com mágoa, diz a certo passo:
“Trago isto a público (enfim, tanto quanto este estaminé é público), não para demandar reparação (ou pedido de desculpas), mas para contribuir para a tomada de consciência de uma forma extrema de desrespeito que dificilmente pode ser ‘compreendida’ sem invocar a impunidade do funcionário que, investido de um poder de Estado, não presta verdadeiramente contas a ninguém”.
Se exigisse desculpas, não duvido que o director do estabelecimento as prestasse – a falecida não era uma pessoa qualquer. E acredito que não era impossível que, se houvesse um regulamento qualquer para garantir que estas coisas não sucedem, mandaria “abrir um inquérito”.
Do resultado do inquérito, que de todo o modo levaria um ror de tempo, ninguém ouviria falar; se concluísse pela culpa de alguém a sanção seria levíssima, senão o director teria os sindicatos à perna, e por certo quereria preservar um bom ambiente de trabalho; e se não existisse regulamento nenhum, ou o homem encarregava alguém de fazer uma moxinifada que ninguém iria ler e menos ainda cumprir ou faria uma circular para os destinatários encolherem os ombros e o autor ficar com a satisfação do dever cumprido.
Gente profunda dirá que isto é um problema cultural. Mas não é, por ser um de impunidade. A mesma impunidade e o mesmo desprezo com que a sinistra figura do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais declarava há dias, sob pressão da Provedoria do Cidadão, que “não deixa de haver preocupação de conjugar o fim da suspensão do processo executivo comum com este entendimento, de forma a salvaguardar os interesses do Estado”, isto para justificar a falta de cumprimento da lei por parte do departamento do qual é Inquisidor-geral.
Claro que este enxerto da prepotência inquisitorial fiscal, comparando-a com uma história triste, que merece respeito, não será propriamente muito elegante da minha parte. Mas elegância não é exactamente a minha qualidade mais saliente num longo rosário delas; paciência e contenção também não – só contaria a história no Facebook depois de, não obtendo satisfação, ter tratado a direcção do Instituto de Medicina Legal, não com os sarcasmos de que se queixava a Joana Lopes, mas abaixo de cão.
Quando as autoridades policiais têm de executar ordens das quais um dia terão vergonha de contar aos netos o que fizeram, então nesse momento o estado que representam não está a comportar-se decentemente.
Estas são as imagens da detenção de dois perigosos peregrinos que ocorreu ontem no santuário de Fátima.
Lembrei-me de um dos Novos Contos da Montanha de Miguel Torga, que fui reler.
Fala da vida em Fronteira, uma terra que apenas dava à sua gente a água da fonte. Tudo o resto vinha de Fuentes, em Espanha.
Ali a vida era vivida de noite a tentar escapar aos guardas, que, de espingarda em riste, guardavam o ribeiro como podiam. Os contrabandistas, por seu lado, com carga às costas, passavam o ribeiro como conseguiam.
“E se por acaso se juntam na venda do Inácio uns e outros – guardas e contrabandistas –, fala-se honradamente de melhor maneira de ganhar o pão: se por conta do Estado a vigiar o ribeiro, se por conta da Vida a passar o ribeiro.”
O conto não é extenso, fala dos aldeões, dos guardas do Estado, de disparos a matar e também de amor.
Mas foi esta dualidade que me prendeu a atenção. Trabalhar por conta do Estado, neste caso a matar, ou por conta da Vida, a tentar escapar.
Esta pequena história é uma metáfora da relação entre o Estado, que quer controlar a população, e os aldeões, que apenas desejam sobreviver.
O guarda Robalo, atraído para tais funções pela garantia de ordenado certo e a reforma por inteiro, sem disso dar conta vive dentro de uma bolha. E isso aumenta-lhe o empenho. Afirma que dispararia até contra a sua própria mãe, que fosse.
Com o correr da acção a bolha onde vive irá rebentar, mas esta visão maniqueísta de que servir o Estado é atacar os prevaricadores faz por ignorar que do outro lado desenrola-se a Vida, e Vida, escrita por Torga, com V maiúsculo.
Do alto da sua ofuscada visão do mundo, o guarda Robalo, ignora que existe Vida para além do que a sua curta vivência lhe permite enxergar. E essa curta vivência e visão serve ao Estado que o alimenta e veste. Sem disso dar conta, ele é apenas um instrumento, bem instruído, que tem a Vida por adversária. No fim de contas, o Robalo é apenas um intermediário entre os seus donos que lhe tolheram a vontade e a sua bala que em brasa é disparada contra a Vida.
Este confronto é uma parábola cheia de metáforas escrita por um rebelde que viveu, e escreveu, incomodado com a capacidade dos que conseguem reduzir a realidade a um binómio de bons e maus, e de caminho asseguram o conforto próprio. Se sempre existiram desigualdades, para quê mudar isso, especialmente se se está do lado vantajoso?
Ignoram que a Vida já existia antes do Estado e que este lhe é apenas um acrescento, e não o contrário.
No regime actualmente em vigor em Portugal, a liberdade está refém do Estado. A liberdade de Abril não é a efectiva liberdade dos cidadãos, mas apenas a liberdade que o Estado entende dar aos cidadãos. O Estado, e os que por ele falam, decide a amplitude das escolhas possíveis. Os que por ele falam sabem que há opções, que mesmo que funcionem noutras paragens, cá seria uma irresponsabilidade escolhê-las, especialmente porque isso colocaria os cidadãos fora da sua esfera.
Várias décadas depois dos contos de Torga, as fardas e as balas são diferentes, mas o confronto ente o Estado e a Vida mantêm-se e nunca terminará. Cabe a cada um de nós escolher o lado onde se deve viver a Vida.
Tenho ouvido, por estes dias, loas imensas ao Estado. O mesmo Estado, convém salientar, de que faz parte a directora-geral da Saúde, que a 15 de Janeiro declarava com todas as letras: «Não há uma grande probabilidade de um vírus deste chegar a Portugal.»
O mesmo Estado, convém não esquecer, de que faz parte uma ministra da Agricultura entretanto desaparecida em combate e que a 5 de Fevereiro - quando já havia 490 mortos e mais de 24.500 infectados na China - se ufanava perante a hipótese de o coronavírus poder vir a ter «consequências bastante positivas» para as exportações portuguesas.
Julgo ser tempo de elogiar não o Estado mas a sociedade. A que não precisou dos ditames estatais - incluindo a inédita declaração do estado de emergência a nível nacional, com a suspensão de direitos fundamentais - para se organizar e reagir à doença galopante.
Às empresas, aos clubes, aos ginásios, às colectividades, às igrejas (incluindo a supressão de missas e outras celebrações de culto).
Aos responsáveis da rede escolar privada que foram encerrando antes de um patético Conselho Nacional de Saúde, que ninguém conhecia, ter vindo a público, já no dia 11 de Março, recomendar que os estabelecimentos de ensino e os museu permanecessem abertos - precisamente na véspera de a Organização Mundial de Saúde proclamar o coronavírus como pandemia e de o Governo ordenar o encerramento de todas as escolas, mostrando a inutilidade daquele órgão de consulta criado sabe-se lá para quê.
Apetece-me, portanto, elogiar a sociedade. Onde se integram agricultores, assistentes de bordo, auxiliares de saúde, bancários, bioquímicos, bombeiros, caixas de supermercado, camionistas, carteiros, cientistas, comerciantes, controladores aéreos, cozinheiras, cuidadoras, distribuidores, educadoras de infância, empregadas de limpeza, enfermeiras, estivadores, farmacêuticas, ferroviários, informáticos, jornalistas, maquinistas, médicos, merceeiros, motoristas, operadores de máquinas, operários, padeiros, pastores, pescadores, pilotos, professores, psicólogos, revendedores, seguranças, taxistas, técnicos de informática, veterinárias, vigilantes, voluntários.
Gente que trabalha por vezes sem rede, sem horário, sem "direitos adquiridos", sem pedir nada em troca, sem a perspectiva de poder ter emprego no mês seguinte.
Gente como vós, gente como qualquer de nós.
Olhando para o site da Direcção Geral do Orçamento e comparando a relação de grandeza entre o total da despesa pública e o PIB no ano de 2019, podemos afirmar que a riqueza produzida no país deixou de ser consumida pelo estado apenas no dia 23 de agosto pelas 12 horas e 14 minutos.
Neste rectângulo à beira mar plantado nunca o contribuinte luso foi chamado a contribuir com tanto para os cofres do estado. Podemos por isso afirmar com toda a propriedade que vivemos tempos históricos.
Esta data é simbólica mas serve para provar o excessivo peso do estado na vida dos seus cidadãos. Infelizmente não inclui todo o esforço que temos de despender para cumprir com todas as burocracias que nos são impostas.
A título de exemplo basta imaginar quantas horas terão sido gastas nestes últimos dias a conferir e validar facturas no portal das finanças? Cada contribuinte ou agregado terá consumido no mÍnimo duas ou três horas a fazê-lo, e a partir daí basta fazer as contas.
Fosse o estado um daqueles clérigos glutões tão bem descritos por Eça e estaria à beira de uma apoplexia.
O nosso colega jpt já aqui postou sobre o maravilhoso salto em frente que Lisboa está a dar.
A beleza das coisas simples, que circula nas veias da máquina do estado, merece hoje e aqui um destaque especial. Veja-se como são belas as regras de acesso à Zona de Emissões Reduzidas Avenida.
"Os residentes poderão receber visitas?
Sim, mesmo que o próprio residente não tenha automóvel e desde que esteja registados no sistema. Mas atenção que o carro tem se ser posterior a 2000. Cada residente pode receber até um máximo de dez visitantes por mês. Terão de avisar previamente, indicando a matrícula do respectivo veículo, o que poderá acontecer através de uma app criada para o efeito ou por telefone. Para estacionar, é que só poderão fazê-lo num dos parques da zona. Por outro lado, os cuidadores de residentes também podem entrar (tem de ser requerida uma autorização prévia), mas só poderão estacionar nos parques de estacionamento."
Qualquer sílaba, ou mesmo vírgula, a mais criaria um desequilíbrio na métrica desta quase poesia.
Não fosse a app, que dá um ar modernaço e não emite carbono, podia ser uma tradução de um edital na RDA.
Os comportamentos individuais devem naturalmente ser correctos e tratados de forma proporcional quando não são. Mas preocupa-me mais como cidadão uma polícia que não respeita garantias constitucionais e como liberal um Estado que exerce violência gratuita contra os indivíduos.