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Delito de Opinião

O país dos mamarrachos

Cristina Torrão, 06.10.23

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Imagem: Nelson Garrido

 

A polémica, felizmente, não durou muito. O povo decidiu, os ânimos serenaram. E ainda bem. Salvo raras excepções (como quando glorificam ditadores) as estátuas não devem ser removidas de ânimo leve.

Dito isto, e porque tenho uma ligação afectiva com a cidade do Porto, a minha opinião sobre o objecto da discórdia é: feia! Mas não é por causa do nu, ou de incitar ao assédio (não adianta vir com esses argumentos nos comentários). É simplesmente grosseira. O Camilo está péssimo, destituído de dignidade. Parece um avozinho caquético, deslumbrado por uma menina nua, aproximando-se dela, com o pretexto de a proteger do frio. É isso que me vem à cabeça, quando olho para a estátua.

Além disso, não tem nada a ver, mesmo nada, com o romance Amor de Perdição. Nem sequer com o conjunto da obra de Camilo, ou com a sua vida. Camilo não era nenhum D. Juan, ou Casanova. A sua relação com Ana Plácido causou polémica por se tratar de adultério e os dois terem ido parar ao calabouço. Superado esse período negro, porém, eles levaram uma vida normalíssima.

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Camilo Castelo Branco e Ana Plácido, com um dos filhos – Imagem Rádio Portuense

 

E, se Camilo não era nenhum Casanova, Ana Plácido estava longe de ser uma Vénus. A que se acrescenta o facto de não ter sido muito mais nova do que ele, como sugere a estátua (para quem a identifica com a figura feminina). Cerca de seis anos separavam os seus nascimentos. E envelheceram juntos, como a maior parte dos casais.

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Camilo e Ana Plácido já "entradotes" – Imagem Museu Virtual do Tribunal da Relação do Porto

 

Diz o autor da estátua que a menina representa as musas de Camilo. Todos os artistas têm as suas inspirações. Mas o nosso escritor das musas é o Luís Vaz (e fico-me por aqui, para não rimar), que, tendo vivido numa época mais recuada, sobre a qual as informações são escassas, convida mais à criação de lendas e mitos.

No fundo, esta estátua não passa de um mamarracho. O povo decidiu bem? Decidiu. Há tantos mamarrachos espalhados pelo nosso país, que não se justifica o trabalho de remoção de um deles.

Camilo merecia melhor? Oh sim, merecia! Mas já Cristo nos disse: «Um profeta é respeitado em qualquer lugar, menos na sua terra, entre os seus parentes e pela sua própria família» (Marcos 6:4).

É mais fácil lutar contra as estátuas do que contra palermas

Paulo Sousa, 15.09.23

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Entre a memória e o esquecimento, entre a homenagem e a intolerância pela “pornografia”, entre os sentimentos permitidos e os sentimentos sentidos…

A Câmara Municipal da Antiga, Mui Nobre e Sempre Invicta Cidade do Porto, podia ter optado por simplesmente limpar as cagadelas dos pássaros e os autocolantes colocados pelos turistas, mas preferiu limpar a estátua toda.

Uns calhordas. Uns morcões.

Curiosidades do Adriático (e não só)

João Pedro Pimenta, 16.06.23

Os venezianos adoram leões. Melhor dito, veneram-nos, como por osmose ao seu padroeiro, o Apóstolo e evangelista S. Marcos, de tal forma que colocaram o leão do santo no centro da sua bandeira, provavelmente a mais bela que um (antigo) estado já ostentou. Está por toda a cidade e arredores e em muitas antigas dependências, nos estandartes, nas pedras e nos papéis. 

Um dos mais conhecidos é o leão do Pireu. Esta imponente estátua de mármore, a principal de quatro estátuas de felinos, guarda a entrada do Arsenale de Veneza, o maior estaleiro naval e industrial europeu desde a Idade Média até à Revolução Industrial, base da poderosa armada da Sereníssima, que tanto contribuiu para o desfecho de Lepanto e do seu domínio partilhado do Adriático e do Mediterrâneo. 

 

 

A função do Leão do Pireu é quase mítica, constando de reproduções várias (Corto Maltese fica especado diante dele em Fábula de Veneza, por exemplo, em cujo enredo é parte importante), e esse misticismo advém das inscrições no seu dorso e da sua origem. Não é "do Pireu" por acaso. A estátua existe desde o séc. IV a. C. e guardava a entrada do porto de Atenas, por vezes conhecido como Porto Leone, tal a imponência do seu guardião.

 

Em 1687, numa das suas múltiplas guerras contra os otomanos (que tinham sido rechaçados recentemente de Viena, iniciando assim um lento declínio, coisa a que Veneza já assistia desde que Vasco da Gama chegara à Índia), os venezianos entraram na barra do Pireu e cercaram Atenas. Retiraram dias depois perante a chegada de reforços dos turcos, não sem antes saquearem inúmeras peças na região, em especial o leão que guardava o porto, que levaram como troféu, e, tão ou mais importante, de bombardear o paiol de munições dos otomanos, no cimo da Acrópole, cujo interior rebentou, deixando apenas de as paredes externas. Esse paiol era nada menos que o Pártenon, ainda hoje o mais belo edifício da Grécia, e é essa a razão de até aos nossos dias só conservar o exterior.

Atenas não perdeu todo o Parténon, mas perdeu o leão e as suas inscrições laterais, runas nórdicas, uma das suas curiosidades. Pensei durante algum tempo que tinha sido alguma incursão dos vikingues e um ataque ao Pireu, mas não se tratou exactamente disso. Nas suas viagens até ao Mar Negro, os nórdicos encontraram-se inevitavelmente com os bizantinos. Tão impressionados ficaram estes últimos com a sua valentia que o imperador bizantino tomou a seu cargo uns quantos para a sua guarda pessoa, a célebre guarda Varegue. Segundo parece, foram estes que num episódio no Pireu deixaram os seus grafitis em forma de runa no dorso do leão (já naquela altura os monumentos gregos eram vandalizados com inscrições, e muito mais tarde Byron também daria o seu mau exemplo no templo do cabo Sounion). 

O Leão tornou-se, com dois mil anos de idade, o fiel guardião do Arsenal de Veneza, até hoje, quando as instalações ficaram reduzidas a funções mais modestas e não permitem a entrada do público em geral. Quanto ao significado das inscrições, a Wikipedia explica.

 

 

Já agora, ainda que a marinha veneziana tenha sido respeitável durante séculos, já não existe. Em contrapartida, uma das suas rivais, a marinha portuguesa, continua por cá, ainda que com contratempos. Ficam aqui uns registos do recente Dia da Marinha, no qual pela primeira vez a NRP Sagres acostou ao cais do Porto, na Ribeira (até aí apenas estivera do lado de Gaia), trazendo a imagem de proa do Infante D. Henrique até bem perto da casa onde ele nasceu.

 

 

 
 

Falando em "símbolos coloniais"

Pedro Correia, 23.02.21

 

Nas últimas semanas tem havido muita discussão nas redes sociais, em Portugal, sobre a manutenção de "símbolos coloniais". Por vezes com vocabulário datado de há meio século e hoje totalmente ultrapassado. Qualquer folheto ou documentário de propaganda turística demonstra como o adjectivo colonial foi reabilitado, entre elogios ditirâmbicos à «arquitectura colonial», à «gastronomia colonial» e até à «atmosfera colonial» nas mais diversas paragens. Não faltam aliás, ainda hoje, países com possessões coloniais - com destaque para França, Holanda, Reino Unido, Dinamarca e até os Estados Unidos.

Alguns por cá, tolhidos por absurdos complexos de inferioridade e totalmente incapazes de assumir a História com as suas luzes e sombras, não perdem uma oportunidade de esgrimir contra "símbolos coloniais" - seja aos gritos contra a toponímia (como a da Praça do Império, em Lisboa) ou na diabolização de palavras consideradas malditas (como ocorreu na polémica em torno do putativo Museu dos Descobrimentos), passando pela vandalização de estátuas (como a do Padre António Vieira) ou até pela demolição de monumentos (como sugere um deputado socialista, aludindo ao Padrão dos Descobrimentos), mimetizando a histeria em curso nos States. 

Em qualquer dos casos, pretende-se submeter factos passados ao crivo de cartilhas ideológicas actuais em nome da correcção política. Ignorando vozes sábias, como a de Ramalho Eanes, que muito recentemente declarou: «Sem império, dificilmente teríamos mantido a independência em certas épocas. Seríamos uma Catalunha.»

 

Enquanto por cá isto se passa, vale a pena revisitarmos países e territórios que já fizeram parte do império colonial português. Para verificarmos como os símbolos históricos relacionados com Portugal são hoje ali encarados no espaço público. Proponho-vos uma pequena digressão em imagens oriundas de África, América, Ásia e Oceânia.

Sem lamúrias nostálgicas mas com respeito integral pelo tempo que passou.

 

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Mindelo, Cabo Verde: estátua do navegador Diogo Gomes

 

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Farim, Guiné-Bissau: padrão evocativo do Infante D. Henrique

 

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Huambo, Angola: estátua de Norton Matos, governador (1912-1915) e alto-comissário (1921-1924)

 

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São Tomé: estátuas dos navegadores João de Santarém, Pero Escobar e João de Paiva

 

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Ilha de Moçambique: estátua de Vasco da Gama

 

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Salvador, Brasil: estátua de Tomé de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil (1549-1553)

 

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Goa: Arco dos Vice-Reis, com estátua de Vasco da Gama 

 

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Damão: monumento aos portugueses que «morreram pela pátria»

 

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Diu: estátua de D. Nuno da Cunha, vice-rei da Índia (1529-1538)

 

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Macau: estátua do navegador Jorge Álvares

 

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Díli, Timor-Leste: padrão evocativo do Infante D. Henrique

A História e o pedestal

João André, 30.06.20

Faz-me pena a questão das estátuas vandalizadas ou derrubadas, não porque isso não faça necessariamente sentido, mas porque acima de tudo distrai do essencial: várias (quase todas, diria) sociedades são de facto estruturalmente racistas, mesmo que apenas como herança do passado.

É hoje indiscutível que as condições em que cada pessoa nasce e cresce condiciona fortemente o seu futuro. Há quem destrua todas as condições de privilégio em que nasce e outros que ultrapassam as limitações do seu ambiente. Em geral, contudo, quem nasce pobre tem de subir um plano inclinado e quem nasce mais confortável terá uma inclinação mais suave pela frente.

O racismo passado criou condições para múltiplas pessoas serem condicionadas fortemente a terem montanhas bem íngremes pela frente só devido à cor da pele dos seus antepassados. O similarity bias continua a garantir que tais montanhas se mantenham inclementes mesmo quando se consegue começar a subir. Isto é também indiscutível. Há casos em que certos grupos conseguem ultrapassar essas dificuldades mas habitualmente obtêm um patamar intermédio entre o grupo dominante e o grupo mais fortemente discriminado. Um exemplo extremo eram os indianos na África do Sul, discriminados mas acima dos negros (situação que continuará).

No fundo tudo se resume a um aspecto simples: acreditamos que há grupos que são mais ou menos capazes devido à cor da sua pele ou à sua origem geográfica? Se sim, então a visão é racista (os estudos honestos modernos continuam a negar tal conceito) mas a situação actual é compreensível e uma consequência destas diferenças. Se se entender (como eu) que não há qualquer diferença significativa nas capacidades das pessoas de grupos diferentes, então é a sociedade que é racista se não virmos uma representação em cargos públicos, nos quadros das empresas, nas universidades, etc, razoavelmente equivalente à distribuição dos diferentes grupos na sociedade.

Esta é a realidade actual e não é por o presidente anterior dos EUA ser negro (ou mestiço) ou o primeiro-ministro português ser de descendência goesa que o resto da sociedade é não-racista. E se é racista, é normal que haja grupos cujas frustrações colectivas mantidas ao longo de séculos a certa altura extravasam. Ainda mais normal é que estas se manifestem em símbolos desse passado, sejam estes símbolos do racismo (nos EUA, Jefferson Davis) ou apenas representantes do seu tempo (George Washington ou Thomas Jefferson, que possuíram escravos).

Relembremos: as estátuas não são a priori história, antes representam figuras históricas. Nalguns casos as estátuas pertencem à história, pelo que representam, pelo que demonstram, pela arte que as construiu. Não devem por isso ser destruídas, mas não significa que tenham que ser mantidas. Não devemos simplesmente juntar uma turba furiosa para as derrubar, mas a presença de tal exigência deveria levar a uma reflexão sobre o valor da mesma estátua e a validade de a manter. Isso sim, ajudaria a pensar a história. O resto é apenas esconder o passado debaixo do pedestal.

A vitória póstuma de Hitler

Pedro Correia, 15.06.20

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O impensável vai acontecendo por estes dias. Com o populismo mais radical a dominar a agenda política e a fazer recuar os governantes timoratos, que gostam de apregoar as virtudes do "centro" mas ajoelham e rendem-se à primeira gritaria extremista que ouvem ao virar da esquina.

Nada é tão vergonhoso, para mim, como aquilo a que temos assistido em Londres. Na mesma capital que nunca se subjugou a tirania alguma. Nem sequer quando toda a Europa estava sitiada. Nesses tempos de som e fúria, quando a besta alucinada cavalgava à solta no nosso continente, do lado de lá do Canal da Mancha houve um homem convicto que soube dizer a palavra "não". E, corajosamente, enfrentou Hitler quase sozinho. Enquanto muitos outros, de Estaline a Franco, lhe faziam vénias e prestavam vassalagem.

Confesso: é com indisfarçável repulsa que vejo estas imagens de Londres, captadas nos últimos dias. Com a estátua de Churchill conspurcada por aqueles que, se não fosse ele, andavam agora a marchar de braço ao alto em hossanas a um verdugo austríaco especializado em gasear judeus, cristãos, ciganos, homossexuais e comunistas. 

É com um asco ainda maior que observo como podem ser pusilânimes aqueles políticos que - como o alcaide de Londres, um tal Sadiq Khan -  mandam encaixotar a estátua, em jeito de mal menor, transformando simbolicamente Churchill, depois de morto, em algo que ele nunca foi em vida: um cobarde.

Desprezo profundamente esta gente, movida pela ideologia da correcção política, que é adubo de novas ditaduras. Graças ao império da estupidez, tantos anos depois, uns e outros conseguem aquilo que Hitler jamais foi capaz de alcançar, com ele vivo, pela força bruta: dobrar Churchill. Conferindo uma coroa de glória póstuma ao tirano nazi.

Metem-me nojo.

 

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Em Maio pintamos a manta

José Meireles Graça, 14.06.20

No mês passado, mal apareceram, comi cerejas. Nunca ao borralho porque nesta altura do ano não acendo a lareira e a tradição já não é o que era, ainda que houvesse vários dias em que o aquecimento global se absteve de mostrar a sua hedionda cabeça, renúncia excessivamente vulgar aqui para os meus lados.

Atochei-me de cerejas, dias a fio, mas dou-me conta de que faltou a ração anual de análises argutas sobre o Maio de 68, substituídas pela pandemia da histeria covidiana.

E foi pena. Que todos os anos redescubro com gosto quão diferente ficou o planeta depois daquele mês prometeico, a deslumbrante personalidade das estrelas que lideraram o movimento, em particular Cohn-Bendit, a aflição de De Gaulle, e a sombra imensa que a França, talvez pela última vez, projectou no mundo à boleia dos interessantes moços universitários que procuravam a praia debaixo dos paralelepípedos que arrancavam para atirar à polícia fascista (coisa que, incidentalmente, me confirmou na ideia de que o alcatrão, apesar de mais benéfico para as suspensões automóveis, tem conotações reaccionárias que têm passado desapercebidas à doutrina).

Isto lembro. Profundidades agudas bem queria recordar, mas são submergidas pelos meus preconceitos de alma simples: aquele rapazio azougado não tinha conhecido a guerra nem privações, os paizinhos que os sustentavam viviam um clima económico de progresso ininterrupto desde o pós-guerra e não viam com bons olhos que se afagasse o lombo dos meninos com vergastadas, e a esquerda em peso pendurou-se no movimento, dando-lhe uma força que não havia nenhum motivo real para ter.

Mas ficou a marca registada do disparate: os jovens, em particular se universitários, são depositários de alguma forma de lucidez que escasseia aos pais, a propriedade e a ordem pública são danos colaterais necessários do direito à manifestação, e a generosidade e a pureza imarcescível das intenções estão sempre do lado dos manifestantes, e o egoísmo, os interesses das classes possidentes e o fascismo do lado das autoridades.

Para complicar as coisas, os jovens na Primavera de Praga, pela mesma altura, e os americanos por causa da guerra do Vietname, antes e depois de 1968, os de Tiananmen onze anos mais tarde e os de Hong-Kong hoje, estiveram (discutivelmente talvez no caso do Vietname, assunto que não vou resolver aqui, por falta de vagar) e estão do lado certo da História.

Isto é uma complicação porque torna impossível, sem qualificações, arrumar a miudagem no caixote da desordem merecedora de repressão. De modo que conviria precisar que todas as manifestações são legítimas em regimes ditatoriais, mesmo que para reivindicar disparates, ou protestar contra fantasmas, mas deixam de o ser, em regimes de democracia representativa com os atributos clássicos, se implicarem a prática de crimes, isto é, a prática de actos que, se levados a cabo por um cidadão isolado, assim seriam considerados pela lei penal.

Deixemos de lado, de momento, a formação das polícias, o controle de manifestações, o casamento entre o direito à manifestação e outros direitos (como o de livre circulação, p. ex.). E olhemos para o caso das maluqueiras das pichagens das estátuas e das reivindicações, que ainda cá não chegaram mas chegarão, de remoção de estátuas de colonialistas, racistas, machistas, esclavagistas e outros istas sortidos.

Aquela canalhada do Maio de 68, de que falava acima, está hoje no poder: a maior parte é socialista ou social-democrata, e guarda dos ardores da juventude a saudosa memória de quando tinham testosterona a mais (eles; a hormona equivalente delas não me lembro de momento qual era) e calculismo a menos; muitos nunca chegaram a interromper a forte corrente de ar que lhes circulava no meio das orelhas e estão hoje, entre nós, no Bloco e no PCP; e todos, ou quase, hesitam na conveniência de cascar em desordeiros, sob pretexto de que têm acne, coitadinhos.

Fazem mal. Porque danificar estátuas, ou outra propriedade, pública ou privada, não é um caso de opinião porque é de polícia. Assim esta investigue, como lhe compete, e os tribunais castiguem, sem atenuantes se forem maiores de idade, sem agravantes mesmo que sejam precisos exemplos.

E quanto à remoção de estátuas, ou pinturas, ou outro testemunho qualquer que ofenda a delicada sensibilidade de ofendidos diversos? Quem, para existir, sinta um irresistível apelo a que se acertem contas com uma História que geralmente conhece mal, e uma incontrolável aversão a mortos cuja biografia é incapaz de interpretar à luz do tempo deles, o que tem a fazer é ou dedicar-se ao estudo ou aderir a um partido político que lhe patrocine os ódios de estimação. No primeiro caso, pode ir estudar para a madraça do professor Boaventura e, no segundo, engrossar as fileiras do Bloco, do Livre ou doutra agremiação destinada a arrebanhar chanfrados. No PCP não me parece, que aquela gente é mais para o derrube do capitalismo, e menos para acolher frescuras.

Ai e tal, diz o Daniel (que quer, o grande magano, ser lido na íntegra e eu bem gostava se estivesse disposto a dar um cêntimo para o Pravda do regime) que “as estátuas não são sagradas, a democracia sim”. Bem visto, Daniel: uma pessoa que ache toda esta querela em torno das estátuas grotesca; e que se recuse a aceitar que a arruaça é uma forma legítima de obrigar à inclusão no debate democrático de questões que praticamente nenhum democrata jamais sentiu necessidade de que lá estivessem – não respeita a democracia, que é “sagrada”.

Ahem, eu do sagrado desconfio, que sou agnóstico; e dá-se o caso de achar que a democracia nos convém a nós, mas não a toda a gente, em toda a parte, em todo o tempo. Mas, com os conhecimentos que tenho dos procedimentos, esclareço: a remoção de estátuas não está na ordem do dia; a repressão a maluqueiras às quais se quer conferir respeitabilidade, sim.

Uma estátua para D. João II

Pedro Correia, 18.06.19

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D. João II (retrato do século XVI)

 

Quase todas as grandes cidades portuguesas têm estátuas de figuras ilustres da nossa História. Incluindo, naturalmente, dos monarcas que contribuíram para fundar e robustecer este Estado-Nação, um dos mais antigos do mundo com as suas actuais fronteiras, definidas no rectângulo continental desde 1249, com a conquista do Algarve, e na sua globalidade desde o século XV, com a descoberta e povoamento das ilhas atlânticas.

São conhecidas da generalidade dos portugueses estátuas tão majestosas e emblemáticas como a de D. José implantada em 1775 no Terreiro do Paço, ou a de D. Pedro IV, descerrada em 1866 no coração da Baixa portuense. Sem esquecer a do nosso monarca fundador, D. Afonso Henriques, que se ergue junto ao castelo de Guimarães. Ou a moderna evocação de D. Sebastião, no centro de Lagos.

Várias outras cidades ou vilas têm estátuas de reis que de algum modo lhes estiveram ligados por acontecimentos diversos - ou por lá terem nascido, ou por lhes terem atribuído carta de foral ou ali feito uma inauguração de vulto, ou porque as tomaram aos mouros, alargando o perímetro das fronteiras portuguesas. Acontece, por exemplo, na Guarda (D. Sancho I), em Silves (D. Sancho II), Faro (D. Afonso III), Leiria (D. Dinis), Cascais (D. Pedro I), Lisboa (D. João I), Alcochete (D. Manuel I), Coimbra (D. João III), Vila Viçosa (D. João IV), Mafra (D. João V), Queluz (D. Maria I), Castelo de Vide (D. Pedro V) ou Cascais (D. Carlos). Com maior ou menor mérito, todos são ostensivamente recordados em mármore ou bronze.

Há, no entanto, uma evidente lacuna neste vasto conjunto de estátuas régias distribuídas de norte a sul do País. Refiro-me a D. João II, que passou à História com o cognome de Príncipe Perfeito. Reinou durante 14 anos, entre 1481 e 1495, embora tenha assumido a governação do Estado desde 1477, por abdicação efectiva de seu pai, Afonso V. Foi sob o seu comando que Portugal deu um impulso decisivo à epopeia das navegações, assumindo-se como precursor da globalização em vários marcos: chegada de Diogo Cão às costas de Angola e da Namíbia; início da colonização de São Tomé e Príncipe; envio de Pero da Covilhã por terra à Etiópia, Cairo, Adém, Ormuz e Goa; passagem do cabo da Boa Esperança, assim baptizado por Bartolomeu Dias; assinatura do Tratado de Tordesilhas com os reis de Espanha; preparação da armada de Vasco da Gama que inauguraria o caminho marítimo para a Índia.  

D. João II é o único dos nossos grandes reis ainda sem estátua numa cidade portuguesa. Em 1998, numa rotunda do que hoje se chama Parque das Nações, foi inaugurada uma peça em bronze supostamente em sua homenagem: é um bloco abstracto, que em nada alude ao Príncipe Perfeito. Fica o desafio aos decisores políticos, a nível nacional, regional ou autárquico: pôr fim a esta chocante omissão erguendo um monumento a D. João II realmente digno desse nome. Em 2020 assinala-se o 525.º aniversário da morte do monarca: é um ano apropriado para tal fim.

 

Publicado originalmente no jornal Dia 15.

Estátuas dos nossos reis (apêndice 5 e último)

Pedro Correia, 23.04.19

S. Pedro de Moel - Estátua de D. Dinis e da Raín

Estátua de D. Dinis e da Rainha Santa Isabel, em São Pedro de Moel (1972)

 

D. Afonso Henriques (1128-1185) 26

Estátuas e bustos em Alcanede, Alcobaça (2), Amares, Arcos de Valdevez, Barcelos, Caldas da Rainha, Cartaxo, Castelo Branco, Corroios, Guimarães (4), Leiria, Lisboa (3), Ourique, Porto, Santarém, Torres Novas, Viseu, Luanda (Angola), Rio de Janeiro (Brasil) e Zamora (Espanha)

D. Sancho I (1185-1211) 10

Estátuas e bustos em Alcobaça, Castelo Branco, Famalicão, Guarda, Guimarães, Lisboa, Penalva do Castelo, Sesimbra, Silves e Torres Novas

D. Afonso II (1211-1223) 4     

Estátuas e busto em Alcobaça, Castelo Branco, Guimarães e Lisboa

D. Sancho II (1223-1248) 6       

Estátuas, bustos e mini-estátua em Alcobaça, Castelo Branco, Elvas (2), Guimarães e Lisboa

D.Afonso III (1248-1279) 7   

Estátuas e busto em Alcobaça, Castelo Branco, Faro, Guimarães, Leiria, Lisboa e Viana do Castelo

D. Dinis (1279-1325) 16      

Estátuas e bustos em Alcobaça, Caldas da Rainha, Castelo Branco, Coimbra (2), Guimarães, Leiria, Lisboa, Odivelas, Ourique, Salvaterra de Magos, São Pedro de Moel, São Roque do Pico, Trancoso, Vila Flor e Vila Nova de Foz Coa

D. Afonso IV (1325-1357) 4        

Estátuas e busto em Alcobaça, Castelo Branco, Guimarães e Lisboa

D. Pedro I (1357-1367) 7  

Estátuas e busto em Alcobaça, Cascais, Castelo Branco, Coimbra, Guimarães, Lisboa e Lourinhã

D. Fernando I (1367-1383) 5     

Estátuas e busto em Alcobaça, Castelo Branco, Guimarães, Leça do Balio-Matosinhos e Lisboa

D. João I (1385-1433) 6    

Estátuas e busto em Alcobaça, Castelo Branco, Guimarães e Lisboa (3)

D. Duarte (1433-1438) 4 

Estátuas e busto em Castelo Branco, Guimarães, Lisboa e Viseu

D. Afonso V (1438-1481) 5      

Estátuas e busto em Alcobaça, Castelo Branco, Guimarães e Lisboa (2)

D. João II (1481-1495) 6       

Estátuas e busto em Alcobaça, Alvor-Portimão, Castelo Branco, Guimarães e Lisboa (2)

D. Manuel I (1495-1521) 11     

Estátuas e bustos em Alcobaça, Alcochete, Almendra-Foz Coa, Castelo Branco, Elvas, Funchal, Guimarães e Lisboa (4)

D. João III (1521-1557) 7   

Estátuas e busto em Amarante, Castelo Branco, Coimbra (2), Guimarães, Lisboa e Portalegre

D. Sebastião (1557-1578) 9 

Estátuas e busto em Amarante, Amares, Castelo Branco, Esposende, Guimarães, Lagos e Lisboa (3)

D. Henrique (1578-1580) 4   

Estátuas, mini-estátua e busto em Amarante, Amares, Castelo Branco e Lisboa

D. António (1580) 2   

Estátua e busto em Angra do Heroísmo e Santarém

D. Filipe I (1580-1598) 2   

Estátua e mini-estátua em Amarante e Castelo Branco

D. Filipe II (1598-1621) 1

Mini-estátua em Castelo Branco

D. Filipe III (1621-1640) 1

Mini-estátua em Castelo Branco

D. João IV (1640-1656) 5 

Estátuas e bustos em Amares, Castelo Branco, Lisboa (2) e Vila Viçosa

D. Afonso VI (1656-1683) 3 

Estátuas e busto em Alcobaça, Castelo Branco e Lisboa

D. Pedro II (1683-1706) 4  

Estátuas e bustos em Alcobaça, Castelo Branco, Coimbra e Lisboa

D. João V (1706-1750) 8

Estátuas e bustos em Alcobaça, Alter do Chão, Castelo Branco, Lisboa (2), Mafra (2) e Santos (Brasil)

D. José (1750-1777) 5 

Estátuas e bustos em Alcobaça, Castelo Branco, Coimbra e Lisboa (2)

D. Maria I (1777-1816) 4 

Estátuas e bustos em Lisboa (2), Malveira e Queluz

D. João VI (1816-1826) 14  

Estátuas e bustos em Lisboa (3), Porto, Queluz (2), Brasília, Rio de Janeiro (6) e Salvador

D. Pedro IV (1826) 15

Estátuas e bustos em Alfeite-Almada, Angra do Heroísmo, Lisboa (2), Porto (3), Vila Nova de Gaia, Brasília, Itu-São Paulo, Rio de Janeiro (4) e São Paulo

D. Maria II (1834-1853) 4 

Estátuas e bustos em Famalicão, Lisboa, Mafra e Rio de Janeiro

D. Fernando II (1836-1853) 5 

Estátua e bustos em Alfeite-Almada, Lisboa e Sintra (3)

D. Pedro V (1853-1861) 7 

Estátuas e bustos em Braga, Castelo de Vide, Lisboa (3), Mafra e Porto

D. Luís (1861-1889) 6 

Estátuas e bustos em Alfeite-Almada, Cascais (2), Covilhã e Lisboa (2)

D. Carlos (1889-1908) 6

Estátuas e bustos em Cascais, Lisboa (3), Mafra e Ponta Delgada

D. Manuel II (1908-1910) 3

Estatueta e bustos em Lisboa, Oliveira do Hospital e Vila Nova de Gaia

Estátuas dos nossos reis (apêndice 4)

Pedro Correia, 22.04.19

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A mais célebre estátua do nosso primeiro Rei, erguida em Guimarães (1887)

 

O nosso Rei mais representado em estátuas é D. Afonso Henriques: ao longo de quase oito meses, contabilizei nada menos do que 26. Não admira: foi o fundador da nacionalidade, é um dos nossos heróis nacionais e distinguiu-se também por ser o monarca português com reinado mais longo.

Segue-se D. Dinis - rei-lavrador, rei-poeta, fundador da Universidade de Coimbra. Com 16 monumentos em forma de estátua ou busto espalhados pelo território nacional. 

O terceiro e quarto mais enaltecidos em estátua, com praticamente o mesmo número de monumentos evocativos, são pai e filho: D. João VI e D. Pedro IV. Contando, cada qual, com um bom contributo de representações no Brasil, como já indiquei. D. Pedro tem 15, D. João tem 14.

Na quinta posição figura o nosso Rei Venturoso, D. Manuel I, em cujo reinado foram inauguradas as rotas marítimas para a Índia e o Brasil. Conta com 11 estátuas. 

Seguem-se D. Sancho I (com dez), D. Sebastião (com nove) e D. João V (com oito). Amanhã, para rematar a série, publicarei aqui a lista completa das 232 estátuas que consegui identificar - mais duas do que o registo inicialmente estabelecido.