Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

As rémoras dos desgraçados

Paulo Sousa, 07.10.25

Como aqui disse há dias, existe uma enorme distância entre o que os apoiantes da causa palestiniana imaginam para esse país e o que este possa vir a ser na realidade. Mas, como acontece frequentemente, a projecção de um desejo turva a capacidade de análise e até ajuda a fingir que não se vê quem são ou o que fazem os demais parceiros de barricada.

Nesse postal referi o paralelo com o que se passou em 1979, durante a Revolução Islâmica no Irão. Antes de saber o que viria a ser o regime teocrático dos aiatolas, o intelectual de esquerda Michel Foucault afirmava que essa revolução era “a primeira grande insurreição contra os sistemas de poder globalizados”. Afirmou que o Islão político poderia expressar o desejo de uma forma diferente de modernidade, uma que não fosse simplesmente cópia do Ocidente e chamou a este movimento, que se formara, uma “espiritualidade política”, que revelava “a possibilidade de uma política diferente da que conhecemos no Ocidente”. O radar da esquerda está sempre sintonizado para algo que surja e que seja contrário ao mundo onde vive. Para alguns, como Foucault, o marxismo ortodoxo era demasiado autoritário e por isso o Irão Imaginário de então encaixava como uma luva no seu caderno de encargos. Logo depois, esse exotismo e aparente pureza moral do regime teocrático mostrou ao que vinha, os inimigos da revolução passaram a ser arbitrariamente enforcados em locais públicos, os direitos das mulheres regrediram vários séculos, a brutalidade e a violência vulgarizaram-se como ferramenta ao serviço do Estado. Perante isso, Foucault nunca se retractou. Não precisava porque na altura em que disse o que disse, estava cheio de boas intenções. E foram essas mesmas boas intenções, e virtude a rodos, que tripulou a dita flotilha. Se ouvirmos que os clérigos palestinianos pensam sobre as demais causas da colorida tripulação que desde Agosto anda a velejar pelo Mediterrâneo, é fácil encontrar mais paralelos com o caso do Irão Imaginário. 

Posso estar enganado, o que não é invulgar, mas o sucesso do acordo de paz agora proposto por Trump, a verificar-se (o que olhando para o passado da região tem sempre uma forte possibilidade de não acontecer), não será bem visto por essa esquerda que agora interrompe comboios e grafita monumentos. Para começar porque a paz, a paz possível, seria sempre e inequivocamente um sucesso político de Trump, personagem que representa tudo o que eles abominam. Por todos os motivos e mais esse, digo eu, seria uma coisa bonita de se ver. Longe de simpatizar com o actual Presidente dos EUA, juntar-me-ia, e sem vacilar, aos que aplaudiriam tal êxito alcançado. Uma paz viável deixaria a essa esquerda aziada também por assim perderem outra das suas bandeiras. O wokismo já mostrou mais saúde e agora uma paz alcançada por Trump seria outro duro golpe. Lá teriam de se voltar a justificar com as suas permanentes boas intenções e lá teriam de ir desencantar outros oprimidos quaisquer para, quais rémoras, se colarem a eles.

Muito provavelmente estarei a pronunciar-me demasiado cedo, mas, a confirmar-se, será caso para dizer que quando os "bem intencionados", mesmo sem o admitirem, se arrepiam com uma possibilidade de paz, é nesse momento que o diabo morde a própria cauda e o círculo se fecha sobre si próprio. Aguardemos.

Nada é estático na política

Pedro Correia, 01.10.25

aaaaa.jpg

Freitas do Amaral, Sá Carneiro, Mário Soares e Álvaro Cunhal (Dezembro 1976)

Foto: Inácio Ludgero

 

É sempre muito subjectivo falar-se em direita e esquerda na política. Conceito fluido, que depende sobretudo do ponto de vista de quem cola as etiquetas.

Sou de um tempo em que o PS chegou a ser rotulado de "partido de direita" e até com erupções de "extrema-direita".

Também sou de um tempo em que o PSD se proclamava de "centro-esquerda" cuja fronteira terminava no centro geométrico (que, em política, é sempre uma abstracção). Aí não havia rotuladores externos: quem assim o definia era Rui Rio, na altura "líder" do partido. Alguém que tinha como alter-ego Pacheco Pereira, hoje espécie de alma gémea de Alexandra Leitão, candidata da "frente de esquerda" em Lisboa.

Como os anos já pesam, sou até de um tempo em que o meu antigo professor de Direito Administrativo, Freitas do Amaral, chegou a ser considerado em editorial de imprensa "o homem mais a direita de Portugal". Para acabar como ministro de Sócrates e parceiro de palco de Francisco Louçã.

Nada é estático na política. Tudo é dinâmico.

Definir essa dinâmica é tarefa de quem sabe observar os fenómenos políticos com atenção.

Nem Sassá Mutema quer salvar a pátria

Pedro Correia, 20.08.25

sassa.webp

António José Seguro fez um nó cego àqueles socialistas que andam há meses a implorar por um candidato com imaculado pedigree “de esquerda”, seja lá o que isso for. Enquanto o inefável comité de proprietários do PS se desdobrava em ingentes esforços para travar o passo ao antigo secretário-geral na corrida a Belém, este fazia calmamente o seu caminho. Fiel à sua imagem de marca: sem insultar ninguém, sem lançar desqualificativos a outros, indiferente ao chorrilho de provocações que o visavam nas redes digitais.

Os arautos da “verdadeira esquerda” – agora congregados na frente eleitoral autárquica em Lisboa – foram disparando nomes no carrossel mediático, em desespero crescente. Sem sucesso algum.

 

A 26 de Junho, António Vitorino deu-lhes nega alegando “não reunir condições”. A 2 de Julho, Augusto Santos Silva seguiu-lhe o exemplo. Mário Centeno tinha sido o primeiro a desistir por antecipação, logo a 16 de Janeiro.

Faltava Sampaio da Nóvoa – o nosso Sassá Mutema, “o salvador da pátria”, que havia motivado romarias idolátricas amplificadas pelos jornais do costume. Também ele disse não, já a 13 de Agosto. Evita assim correr o risco de se enganar redondamente - como quando afirmou, em Dezembro de 2015, que se sentia “praticamente seguro” de uma segunda volta na corrida a Belém. No mês seguinte, não chegou a 23% dos votos, com Marcelo a vencer em toda a linha.

 

Cada nome lançado na praça pública revelou-se um tiro de pólvora seca. Esta vaga de deserções não augura nada de bom para os apóstolos da “esquerda unida”.

Segue-se agora quem? Talvez o Tino de Rans. Mas é duvidoso que aceite.

Enquanto Seguro assiste, de cadeirinha.

Ficarem calados era mais fácil e inteligente

Paulo Sousa, 26.07.25

A nomeação de Álvaro Santos Pereira (ASP) para Governador do BdP tem causado alguma indignação na esquerda. Que é um ministro da troika e da austeridade, que não é uma escolha com critérios técnicos mas apenas políticos, que será um veículo de transmissão das ideias económicas do PSD, que se rompeu o compromisso “histórico” da recondução do Governador e mais o diabo a sete.

Assim de memória recordo-me dos esforços do então Ministro da Economia para conseguir renegociar as rendas excessivas das operadoras eléctricas e do mau estar que isto causou no Governo. Recordo-me igualmente que a sua substituição por Pires de Lima foi a cabeça de São João numa bandeja exigida por Paulo Portas após o episódio do “irrevogável”.

Os indignados de turno são exactamente os mesmos que encolheram os ombros à promiscuidade da sequência de cargos de Centeno.

Não duvido da independência nem do sentido de missão do agora indigitado novo Governador, assim como estou certo que logo mais o vamos ouvir a fazer reparos ao Governo, sob o aplauso dos que agora dizem que ASP é o Centeno da AD.

Os políticos quando falam consomem sempre capital político. Demasiadas vezes fazem uma péssima escolha em não ficar calados.

Pensamento da semana

Pedro Correia, 25.05.25

Dez anos depois, podemos concluir: a geringonça foi um péssimo negócio para o conjunto da esquerda portuguesa. Primeiro a esquerda radical ficou reduzida à expressão mais ínfima, vítima da hegemonia socialista. Agora é o próprio PS a afundar-se a pique, conduzido em navegação errática pelo mais incompetente secretário-geral da história do partido. O círculo fecha-se. É quase irónico lembrar hoje que António José Seguro foi apunhalado por António Costa em 2014 após vencer a eleição europeia com 31,1%. «Poucochinho», dizia então o actual presidente do Conselho Europeu. Desta vez não há punhais na sede do partido. Por ser desnecessário: Pedro Nuno Santos, derrotado nato, optou pelo haraquíri. Faz recuar o PS aos 23,4%, com o pior resultado em 40 anos, e sai de cena. Quem vier depois que trate de colar os cacos.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

Reflexão do dia

Pedro Correia, 19.05.25

«Nesta derrota das esquerdas, importa notar o desaparecimento do PCP de quase todo o país, mas especialmente varrido de todos os distritos do Alentejo onde não elegeu um único deputado. PCP e Bloco vivem numa galáxia exterior, a fazerem pensar naqueles grupos de soldados japoneses que, vinte ou trinta anos depois de terminada a guerra, ainda vagueavam pelas florestas de armas nas mãos, a defenderem-se ou à procura do inimigo. De sublinhar ainda a derrota do PS, que alcança um dos seus piores resultados de todos os tempos, após mais de 25 anos de governo nos últimos trinta. As esquerdas ficaram sem cabeça, sem ideia, sem programa e sem esperança.»

 

António Barreto, no Público

Pensamento da semana

Pedro Correia, 13.04.25

 

A chamada esquerda esqueceu as suas pretensões de sempre, centradas na igualdade, para defender múltiplas identidades tribais, cada vez mais diversas e microscópicas. Com isso distanciou-se dos cidadãos concretos, mergulhando numa crise de tal envergadura que pode tornar-se irrecuperável.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

A simetria

Pedro Correia, 18.03.25

aaaaaaa.jpg

 

Há umas décadas, para a esquerda mais extremista, nenhum partido dito socialista, trabalhista ou social-democrata era suficientemente de esquerda.

Para esta corja de fanáticos hiper-revolucionários, os partidos "burgueses" do centro-esquerda «faziam o jogo da direita» e eram «aliados do fascismo».

 

Os tempos mudaram.

 

Hoje, para a direita mais extremista, nenhum partido dito liberal, democrata-cristão ou conservador moderado é suficientemente de direita.

Para esta corja de fanáticos hiper-nacionalistas, os partidos "globalistas" do centro-direita «fazem o jogo da esquerda» e são «aliados do comunismo».

 

Simetria perfeita: duas faces da mesma moeda contaminada pelo mais extremo absurdo.

PS, o Partide Socialiste

Paulo Sousa, 17.01.25

A geringonça dominada por Costa nunca deixou de ser um namoro com o demónio, embora com um centrista a dominar a relação. O PS que lhe sobrou é um partido convicto das causas da extrema-esquerda, continua a pensar que a esvaziou, mas o país já entendeu que, embora a sigla se mantenha, o actual PS se transformou no Partide Socialiste, um partido inclusivo e convicto das causas modernas. Para o Partide Socialiste de Pedro Nuno Santos e de Alexandra Leitão, os oprimidos de outrora foram substituídos pelas ultra-minorias sexuais e pelos estrangeiros. Não lhes importa o que os estrangeiros pensam sobre as ultra-minorias sexuais, não lhes importa a forma como os estrangeiros tratam as mulheres, nem lhes importa como as mulheres são tratadas pelas ultra-minorias sexuais. A cola que junta toda esta dinâmica é a luta contra o que está estabelecido. O tradicional património da extrema-esquerda é o actual credo do PS. Veremos o que o eleitorado pensa disso.

O suicídio da esquerda

Paulo Sousa, 13.11.24

"(…) a Esquerda está a desaparecer em parte porque escolheu o suicídio.

Este suicídio tem duas faces. Em primeiro lugar, a esquerda tornou-se elitista e snobe, esquecendo a classe social e a pobreza. A esquerda cool deste século só olha para a pobreza se o pobre for negro ou castanho. Se for branco, o pobre é desprezado. Aliás, a esquerda e os media rasgam as vestes quando Trump é preconceituoso contra uma etnia, mas não rasgam essas mesmíssimas vestes quando a elite democrata é preconceituosa conta uma classe social, o working man rural ou urbano.

Em segundo lugar, a esquerda não é coerente na defesa dos valores dos direitos humanos e dos direitos individuais, a começar nos direitos das mulheres e da comunidade LGBT. Estes assuntos (machismo, feminismo, homofobia) só são discutidos pela esquerda dentro do redil do homem branco. Fica implícito de que só o homem branco pode ser homofóbico e machista. Mesmo perante manifestações gigantescas de machismo dos homens negros, muçulmanos ou hispânicos, a esquerda cala-se porque tem medo de ser rotulada de “racista”. Não se trata de racismo, mas de coerência feminista. Debaixo do manto do “antirracismo”, permite-se que os homens negros e muçulmanos defendam a masculinidade tóxica enquanto direito cultural."

Henrique Raposo, Expresso

Reflexão do dia

Pedro Correia, 16.03.24

«A espantosa ideia do BE e do Livre de tentar unir a esquerda numa frente comum anti-AD e IL é uma espécie de associação de lesados da velha democracia. Para quê? Se não é para governar, a ideia é absurda, sobretudo para o PS, caso ainda esteja interessado em fazê-lo na próxima década.

Qualquer alma no PS deveria perceber isto. À sua esquerda ninguém quer que o PS alguma vez supere os 30%. Querem criar um bloco onde as ideias mais puras impeçam qualquer ponte com o PSD. Em rigor, os náufragos da esquerda querem juntar-se para tentar acelerar o abraço do PSD e do Chega. Boa sorte com a brilhante "estratégia" de ver quem vai primeiro ao fundo.»

 

Ricardo Costa, no Expresso de ontem

Syriza Goldman Sachs radical-chique

Pedro Correia, 26.09.23

descarregar.jpg

Stefanos Kasselakis: a "verdadeira esquerda" na Grécia já não é o que era

 

O Syriza grego, que há meia dúzia de anos era apontado como o farol capaz de iluminar toda a esquerda radical na Europa, acaba de eleger como líder um ex-alto quadro dirigente da banca internacional: Stefanos Kasselakis, de 35 anos, viveu até há dois meses nos Estados Unidos, onde figurava na folha de pagamentos da famigerada Goldman Sachs - essa mesmo, a que tem sustentado Durão Barroso desde 2017.

Na altura, o Esquerda.Net publicou inflamados artigos noticiando a ligação do antigo primeiro-ministro português ao banco de investimentos. Andam distraídos, os camaradas do jornal digital do Bloco: ainda não vi por lá qualquer referência ao novo timoneiro da "verdadeira esquerda" grega, que eles tanto incensavam e louvavam quando era liderada por Alexis Tsipras. Agora que a Grécia tem «o parlamento mais à direita das últimas décadas», é tema pelo qual se desinteressam.

Tão radical o Syriza era, tão quase-liberal ficou agora com este empresário americanizado do sector financeiro no posto de comando. «É como se a Netflix tivesse entrado, se apoderasse do partido e o convertesse numa série», desabafou ao Guardian o escritor grego Dimitris Psarras, sem conter o espanto. Uma longa viagem, do marxismo-leninismo à Goldman Sachs.

A esquerda radical anda cada vez mais chique. Parece ter sido há longas décadas que o Syriza fazia inundar de júbilo gente subitamente apaixonada pelos vermelhos helénicos como Catarina Martins, Marisa MatiasIsabel Moreira, Ana GomesAndré Freire, Boaventura de Sousa Santos, a escritora Hélia Correia, o pintor Leonel Moura e até a inefável Manuela Ferreira Leite

Que dirão elas e eles agora?

A esquerdalhada

jpt, 29.05.23

40808C3C-96DA-4D0F-B2BE-97AA7ACEA08A.jpeg

Num postal recente usei o termo "esquerdalhada" (que me é habitual). E logo três amigos me enviaram mensagens, pois com ele incomodados. Nos comentários recebidos (no meu mural de Facebook) também surgiu algum desconforto - e mesmo imprecações. Naquela plataforma a ligação ao texto foi partilhada por outros - o que lhes agradeço - em cujos murais também notei algumas reacções desagradadas, até furiosas. Isto mostra a vigência de um sentimento pelo qual sobre os locutores de “esquerda” não se deve verbalizar menosprezo ou desrespeito pelas suas atrapalhadas ou aldrabadas opiniões.

Reacções ao invés das esperadas face à rapaziada da direita. Sobre esta há dois termos que vão surgindo: o mais raro “direitinhas” - em tempos consagrado em banda desenhada publicada no “Diário”, o jornal do PCP dirigido por Miguel Urbano Rodrigues -, mas que não vinga muito dado o tom pouco ferino que aquele sufixo sempre dá. E o mais habitual - e quase automático - “fascistas” (ou “faxos”), uma evidente desvalorização ética e intelectual.

 

 

Dois deputados que deixaram saudades

Pedro Correia, 26.04.23

                                 MJNP.jpegJA.jpeg

 

O 25 de Abril fez-se para fundar uma democracia representativa em Portugal, sufragada pelo voto universal e livre dos cidadãos. Mas raras vezes, ano após ano, vejo homenagear esse órgão concreto da democracia - com o qual tantos sonharam durante gerações - que é a Assembleia da República, símbolo supremo do nosso regime constitucional.

Espero que este lapso seja corrigido e que em 25 de Abril de 2024, quando a Revolução dos Cravos comemorar meio século, possam ser homenageados 50 deputados, de diferentes partidos. Deputados que nunca foram ministros nem secretários de Estado nem presidentes de câmara nem presidentes de governos regionais: apenas deputados. Seria uma excelente forma de assinalar a instituição máxima da democracia portuguesa.

 

Fui repórter parlamentar do Diário de Notícias durante cinco anos e, nessa qualidade, tive o privilégio de conhecer competentíssimos deputados em todas as bancadas. A pretexto do 25 de Abril, quero distinguir dois desses parlamentares que conheci pessoalmente: Maria José Nogueira Pinto e João Amaral. Ela claramente de direita, ele inequivocamente de esquerda.

Em legislaturas marcadas por fortes combates políticos, nenhum dos dois alguma vez cessou de tomar partido, envolvendo-se convictamente no confronto de ideias que é função cimeira do órgão parlamentar: sabia-se ao que vinham, por que vinham, que causas subscreviam e que bandeiras ideológicas sustentavam. Mas também sempre vi neles capacidade para analisar os argumentos contrários, com elegância e lealdade institucional, sem nunca deixarem as clivagens partidárias contaminarem as saudáveis relações de amizade que souberam travar com adversários políticos.

Porque a democracia também é isto: saber escutar os outros, saber conviver com quem não pensa como nós.

 

Lembro-me deles com frequência. Como me lembro das sábias palavras que Giorgio Napolitano proferiu em 2013, ao tomar posse no segundo mandato como Presidente italiano. «O facto de se estar a difundir uma espécie de horror a todas as hipóteses de compromisso, aliança, mediações e convergência de forças políticas é um sinal de regressão», declarou neste notável discurso Napolitano, que aos 97 anos ainda é um dos políticos mais respeitados da turbulenta e caótica Itália.

Palavras que deviam suscitar meditação entre nós. Palavras que a conservadora Maria José Nogueira Pinto e o comunista João Amaral decerto entenderiam - desde logo porque sempre souberam pôr os interesses do País acima de tacticismos políticos.

Quis o destino, tantas vezes cruel, que já não se encontrem fisicamente entre nós. Mas o exemplo de ambos perdura, como símbolo de convicções fortes que - precisamente por isso - são capazes de servir de cimento para edificar pontes. E talvez nunca tenhamos precisado tanto dessas pontes como agora.

O caviar da "verdadeira esquerda"

Pedro Correia, 05.04.23

caviar-3.webp

 

Este maravilhoso governo, enfim consciente de haver um milhão de "famílias carenciadas" e mais de três milhões de "portugueses vulneráveis", deu o dito por não dito anunciando o IVA zero para um cabaz de produtos alimentares. Após meses a jurar que jamais tomaria tal medida - pelas vozes autorizadas do ministro das Finanças, do ministro da Economia e do próprio primeiro-ministro. Exemplos de marxismo, tendência Groucho: se os meus princípios não agradam, arranjo outros.

António Costa, agindo como se não houvesse na sua equipa governativa alguém que ainda se intitula ministra da Agricultura e da Alimentação, decidiu ser ele próprio a comunicar a boa nova aos compatriotas: 44 produtos alimentares isentos de IVA durante pelo menos seis meses. 

Na Assembleia da República, esta lista - que entrará em vigor, já em forma de lei, no próximo dia 18 - foi aumentada.

Passa a incluir, por proposta do PAN, «bebidas e iogurtes de base vegetal, sem leite e lacticínios, produzidos à base de frutos secos, cereais, ou preparados à base de cereais, frutas, legumes ou produtos hortícolas».

Também se alarga, por proposta do PSD, ao «leite de vaca em natureza, esterilizado, pasteurizado, ultrapasteurizado e fermentado».

Fora desta isenção ficam outras reivindicações do partido animalista: soja, lentilhas, tofu e seitã. Tal como a «alimentação dos animais de companhia», incluindo canários e peixinhos de aquário.

Mas o mais criticável, sem dúvida, é a exclusão do caviar - alimento vital de muitos radicais-chiques. Esta injustiça deve ser reparada sem demora. Como ensinou um dos vultos mais eminentes da "verdadeira esquerda", Boaventura Estaline da Silva, «nem só de pão vive o homem - o caviar também faz falta».

33 Anos Após Tiananmen

jpt, 04.06.22

simpsons.jpg

("Goo Goo Gai Pan", 12º episódio, 16º ano de "Simpsons" - censurado na China.)

Há 33 anos o massacre em Pequim... No dia seguinte ao início da mortandade este episódio:

É sabido o "cancelamento" deste episódio. Não só a ditadura chinesa o apaga da história - chegando a censurar o episódio dos "Simpsons" que a ele alude. Mas também a ele pouco ou nada se alude no imensa produção cultural internacional "empenhada", anti-capitalista, alter-globalista. De facto, no seio da "esquerda" "cosmopolita" este "Homem do Tanque" não ascendeu a ícone, não foi aposto à fileira desde o "No pasáran!" e por aí afora, não desce a Avenida em Abril, nenhum dos que se tatuam com o guerreiro Guevara lhe associam este incógnito no outro peito ou braço, barriga da perna que seja, não há t-shirts nem grafitis emporcalhando paredes, não abundam trinados da "música popular brasileira" em sua memória ou qualquer poemaço exaltado, até transposto a faduncho. Todos os anos alguns "reaccionários", gente da "direita" malvada, o lembram por este Junho, e nisso colhem, quanto muito, uns "decoloniais" comentários, quais "o cabrão do chinoca tinha tomates, lá isso é verdade". E lá seguem os "democratas" no seu rosário de "boas causas", ufanos... 
 
avante.jpg
Nisso, bem especioso veio o PCP, que em 2011 achou necessário avisar os militantes que isso de Tiananmen "foi uma farsa" - os detalhes pouco importam pois, como bem é sabido pelo povo camarada, com a verdade me enganas. Seguindo o tal partido sempre ciente de que urge lembrar as massas de estar a vil imprensa ocidental (pior ainda a que se diz de "esquerda") em permanente campanha de difamação das democracias socialistas... Nesse inabalável rumo mostrando bem que o PCP não muda. Nós é que, às vezes e por mera preguiçosa distracção, nos surpreendemos.