«A espantosa ideia do BE e do Livre de tentar unir a esquerda numa frente comum anti-AD e IL é uma espécie de associação de lesados da velha democracia. Para quê? Se não é para governar, a ideia é absurda, sobretudo para o PS, caso ainda esteja interessado em fazê-lo na próxima década.
Qualquer alma no PS deveria perceber isto. À sua esquerda ninguém quer que o PS alguma vez supere os 30%. Querem criar um bloco onde as ideias mais puras impeçam qualquer ponte com o PSD. Em rigor, os náufragos da esquerda querem juntar-se para tentar acelerar o abraço do PSD e do Chega. Boa sorte com a brilhante "estratégia" de ver quem vai primeiro ao fundo.»
Que esquerda é esta, que apoia o capitalismo selvagem na China, a plutocracia criminosa de Moscovo, o sistema totalitário vigente na Coreia do Norte e a miserável "revolução bolivariana" que levou a Venezuela ao extremo da penúria, com 47% das famílias a passar fome?
Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana
Stefanos Kasselakis: a "verdadeira esquerda" na Grécia já não é o que era
O Syriza grego, que há meia dúzia de anos era apontado como o farol capaz de iluminar toda a esquerda radical na Europa, acaba de eleger como líder um ex-alto quadro dirigente da banca internacional: Stefanos Kasselakis, de 35 anos, viveu até há dois meses nos Estados Unidos, onde figurava na folha de pagamentos da famigerada Goldman Sachs - essa mesmo, a que tem sustentado Durão Barroso desde 2017.
Na altura, o Esquerda.Net publicou inflamados artigos noticiando a ligação do antigo primeiro-ministro português ao banco de investimentos. Andam distraídos, os camaradas do jornal digital do Bloco: ainda não vi por lá qualquer referência ao novo timoneiro da "verdadeira esquerda" grega, que eles tanto incensavam e louvavam quando era liderada por Alexis Tsipras. Agora que a Grécia tem «o parlamento mais à direita das últimas décadas», é tema pelo qual se desinteressam.
Tão radical o Syriza era, tão quase-liberal ficou agora com este empresário americanizado do sector financeiro no posto de comando. «É como se a Netflix tivesse entrado, se apoderasse do partido e o convertesse numa série», desabafou ao Guardian o escritor grego Dimitris Psarras, sem conter o espanto. Uma longa viagem, do marxismo-leninismo à Goldman Sachs.
Num postal recente usei o termo "esquerdalhada" (que me é habitual). E logo três amigos me enviaram mensagens, pois com ele incomodados. Nos comentários recebidos (no meu mural de Facebook) também surgiu algum desconforto - e mesmo imprecações. Naquela plataforma a ligação ao texto foi partilhada por outros - o que lhes agradeço - em cujos murais também notei algumas reacções desagradadas, até furiosas. Isto mostra a vigência de um sentimento pelo qual sobre os locutores de “esquerda” não se deve verbalizar menosprezo ou desrespeito pelas suas atrapalhadas ou aldrabadas opiniões.
Reacções ao invés das esperadas face à rapaziada da direita. Sobre esta há dois termos que vão surgindo: o mais raro “direitinhas” - em tempos consagrado em banda desenhada publicada no “Diário”, o jornal do PCP dirigido por Miguel Urbano Rodrigues -, mas que não vinga muito dado o tom pouco ferino que aquele sufixo sempre dá. E o mais habitual - e quase automático - “fascistas” (ou “faxos”), uma evidente desvalorização ética e intelectual.
O 25 de Abril fez-se para fundar uma democracia representativa em Portugal, sufragada pelo voto universal e livre dos cidadãos. Mas raras vezes, ano após ano, vejo homenagear esse órgão concreto da democracia - com o qual tantos sonharam durante gerações - que é a Assembleia da República, símbolo supremo do nosso regime constitucional.
Espero que este lapso seja corrigido e que em 25 de Abril de 2024, quando a Revolução dos Cravos comemorar meio século, possam ser homenageados 50 deputados, de diferentes partidos. Deputados que nunca foram ministros nem secretários de Estado nem presidentes de câmara nem presidentes de governos regionais: apenas deputados. Seria uma excelente forma de assinalar a instituição máxima da democracia portuguesa.
Fui repórter parlamentar do Diário de Notícias durante cinco anos e, nessa qualidade, tive o privilégio de conhecer competentíssimos deputados em todas as bancadas. A pretexto do 25 de Abril, quero distinguir dois desses parlamentares que conheci pessoalmente: Maria José Nogueira Pinto e João Amaral. Ela claramente de direita, ele inequivocamente de esquerda.
Em legislaturas marcadas por fortes combates políticos, nenhum dos dois alguma vez cessou de tomar partido, envolvendo-se convictamente no confronto de ideias que é função cimeira do órgão parlamentar: sabia-se ao que vinham, por que vinham, que causas subscreviam e que bandeiras ideológicas sustentavam. Mas também sempre vi neles capacidade para analisar os argumentos contrários, com elegância e lealdade institucional, sem nunca deixarem as clivagens partidárias contaminarem as saudáveis relações de amizade que souberam travar com adversários políticos.
Porque a democracia também é isto: saber escutar os outros, saber conviver com quem não pensa como nós.
Lembro-me deles com frequência. Como me lembro das sábias palavras que Giorgio Napolitano proferiu em 2013, ao tomar posse no segundo mandato como Presidente italiano. «O facto de se estar a difundir uma espécie de horror a todas as hipóteses de compromisso, aliança, mediações e convergência de forças políticas é um sinal de regressão», declarou neste notável discurso Napolitano, que aos 97 anos ainda é um dos políticos mais respeitados da turbulenta e caótica Itália.
Palavras que deviam suscitar meditação entre nós. Palavras que a conservadora Maria José Nogueira Pinto e o comunista João Amaral decerto entenderiam - desde logo porque sempre souberam pôr os interesses do País acima de tacticismos políticos.
Quis o destino, tantas vezes cruel, que já não se encontrem fisicamente entre nós. Mas o exemplo de ambos perdura, como símbolo de convicções fortes que - precisamente por isso - são capazes de servir de cimento para edificar pontes. E talvez nunca tenhamos precisado tanto dessas pontes como agora.
Este maravilhoso governo, enfim consciente de haver um milhão de "famílias carenciadas" e mais de três milhões de "portugueses vulneráveis", deu o dito por não dito anunciando o IVA zero para um cabaz de produtos alimentares. Após meses a jurar que jamais tomaria tal medida - pelas vozes autorizadas do ministro das Finanças, do ministro da Economia e do próprio primeiro-ministro. Exemplos de marxismo, tendência Groucho: se os meus princípios não agradam, arranjo outros.
António Costa, agindo como se não houvesse na sua equipa governativa alguém que ainda se intitula ministra da Agricultura e da Alimentação, decidiu ser ele próprio a comunicar a boa nova aos compatriotas: 44 produtos alimentares isentos de IVA durante pelo menos seis meses.
Na Assembleia da República, esta lista - que entrará em vigor, já em forma de lei, no próximo dia 18 - foi aumentada.
Fora desta isenção ficam outras reivindicações do partido animalista: soja, lentilhas, tofu e seitã. Tal como a «alimentação dos animais de companhia», incluindo canários e peixinhos de aquário.
Mas o mais criticável, sem dúvida, é a exclusão do caviar - alimento vital de muitos radicais-chiques. Esta injustiça deve ser reparada sem demora. Como ensinou um dos vultos mais eminentes da "verdadeira esquerda", Boaventura Estaline da Silva, «nem só de pão vive o homem - o caviar também faz falta».
("Goo Goo Gai Pan", 12º episódio, 16º ano de "Simpsons" - censurado na China.)
Há 33 anos o massacre em Pequim... No dia seguinte ao início da mortandade este episódio:
Man vs. tank in Tiananmen square (1989)
É sabido o "cancelamento" deste episódio. Não só a ditadura chinesa o apaga da história - chegando a censurar o episódio dos "Simpsons" que a ele alude. Mas também a ele pouco ou nada se alude no imensa produção cultural internacional "empenhada", anti-capitalista, alter-globalista. De facto, no seio da "esquerda" "cosmopolita" este "Homem do Tanque" não ascendeu a ícone, não foi aposto à fileira desde o "No pasáran!" e por aí afora, não desce a Avenida em Abril, nenhum dos que se tatuam com o guerreiro Guevara lhe associam este incógnito no outro peito ou braço, barriga da perna que seja, não há t-shirts nem grafitis emporcalhando paredes, não abundam trinados da "música popular brasileira" em sua memória ou qualquer poemaço exaltado, até transposto a faduncho. Todos os anos alguns "reaccionários", gente da "direita" malvada, o lembram por este Junho, e nisso colhem, quanto muito, uns "decoloniais" comentários, quais "o cabrão do chinoca tinha tomates, lá isso é verdade". E lá seguem os "democratas" no seu rosário de "boas causas", ufanos...
Nisso, bem especioso veio o PCP, que em 2011 achou necessário avisar os militantes que isso de Tiananmen "foi uma farsa" - os detalhes pouco importam pois, como bem é sabido pelo povo camarada, com a verdade me enganas. Seguindo o tal partido sempre ciente de que urge lembrar as massas de estar a vil imprensa ocidental (pior ainda a que se diz de "esquerda") em permanente campanha de difamação das democracias socialistas... Nesse inabalável rumo mostrando bem que o PCP não muda. Nós é que, às vezes e por mera preguiçosa distracção, nos surpreendemos.
«A esquerda atingiu um patamar tal de auto-suficiência que já só trata dos seus temas privativos. Por exemplo, o salário mínimo. O salário mínimo é uma preocupação da esquerda, uma questão nacional importante num país onde infelizmente demasiados dos nossos concidadãos auferem ao fim do mês o salário mínimo. Mas nunca há um momento em que digam: "Porque é que o salário mínimo é este?"
Esta é a questão essencial da vida portuguesa. Estão no atira-culpas sem perguntarem por que o salário mínimo não atingiu valores que a economia portuguesa não pode pagar. Nunca há uma oportunidade para se discutir esta questão. Porque é que temos uma economia que não permite pagar um salário mínimo decente? Porque é que temos uma economia que põe um terço dos trabalhadores a receberem o salário mínimo?
Este tema nunca atravessa o debate. Parece um leilão de bondades. Como se não existisse uma coisa chamada realidade. E como se não existisse uma realidade chamada economia portuguesa. Isto é absolutamente espantoso.
Já no debate [de António Costa] com Rui Tavares era a mesma coisa: "Porque é que não somos a Suécia?" Mas é preciso explicar porque é que não somos a Suécia? Primeiro, porque o modelo dos comunistas, sejam eles do PCP, do Bloco de Esquerda ou do Livre, nunca foi a Suécia social-democrata. Nunca foi. Em segundo lugar porque em Portugal, infelizmente, temos entre metade e um terço da Suécia. Mas nestes debates da esquerda o tema da economia portuguesa, no seu modesto desempenho comparativo, nunca consegue encontrar caminho.»
Sérgio Sousa Pinto, deputado do PS, na CNNP (terça-feira)
Um partido espanhol recém-surgido, denominado España Vaciada (EV), já figura nas sondagens. Promete ser o representante dos esquecidos e negligenciados nas províncias mais pobres e despovoadas do país vizinho. Começando a alarmar os estados-maiores das principais forças políticas. Segundo uma recente pesquisa de opinião, poderá roubar seis deputados ao PP e cinco ao PSOE, conseguindo 15 representantes no parlamento.
Isto confirma que a política está em permanente mudança nos dias que vão correndo. Partidos como o EV - prefigurados no Teruel Existe, que já elegeu um deputado nas anteriores legislativas afirmando-se representante da Espanha profunda - não são de esquerda nem de direita.
Aliás o que significam hoje a esquerda e a direita na política? Onde se situam Rui Rio, hipotético chefe da "direita", que vota a favor da legalização da eutanásia na Assembleia da República, e Jerónimo de Sousa, suposto representante da "esquerda", que vota contra a mesma iniciativa legislativa? Lamento decepcionar os cultores de etiquetas, mas esses conceitos geométricos ficaram lá para trás.
Desde há cerca de um ano que aprendi a ter algum apreço pelo eurodeputado Paulo Rangel. Pois considero que no Parlamento Europeu teve posições muito ponderadas relativamente à situação do Cabo Delgado (e sobre isso aqui botei). Terão sido algo tardias. Mas o que é certo que os outros agentes políticos meus compatriotas (e não só) não foram mais céleres. Nem tão eficientes.
Enfim, por outras razões desde há algum tempo Rangel foi alvo de ataques soezes. Na imprensa instituída e nesta imprensa popular que são as "redes sociais". Senti-me solidário com o político, não só pela crença na necessidade de manter a distinção entre o "público" e o "privado". Mas também por um empatia enfatizada, dado que partilho algumas das características biográficas de Rangel que então foram propaladas. E aviltadas. E digo-o sem qualquer "drunk pride", mas apenas assumindo que também já me aconteceu perder a capacidade de traçar azimutes.
Rangel veio agora confirmar algumas dessas suas características. Imediatamente lhe soam em cima os urros de trabalhadores intelectuais - leio um feixe de sociólogos, historiadores, antropólogos, políticos, etc. - e letrados (pois dispõem bem as letras, mesmo no gutural twiterismo) que o acusam de hipocrisia. E assim consideram um homem "como ele" hipócrita pois, dizem-no, tem "ambições". Algo que qualquer bom católico do Antigo Regime (não do "anterior" mas do "Antigo", sublinho) considerará um pecado... pois violando a ordem natural das coisas, a ordenação divina. E nisso dizem-no também "incoerente", dado não partilhar as opiniões políticas que esses intelectuais/letrados têm. As quais consideram obrigatórias para determinadas "espécies".
De facto, essas pessoas - alguns conhecidos académicos, políticos, no activo ou retirados, jornalistas - reagem a la Fernando Rosas, quando veio gozar o político do CDS que "assumiu" (esse termo semanticamente tétrico) alguns traços da sua personalidade. Todos eles, repito, apoucam, repudiam, até insultam, a "incoerência", a "hipocrisia" de Rangel.
Enfim, pouco haverá para dizer. Apenas que é preciso ser mesmo muito ordinário para um tipo se dizer de esquerda e apoiar um bandalho que denuncia os activistas pró-palestianos à Embaixada de Israel. E depois vir - como se nada fosse - clamar contra a hipocrisia e a incoerência alheia. Sobre este tipo de gente quando eu era jovem usava-se um expressão: "dão o cu e cinco tostões". Para proteger o partido que lhes dá acesso aos tais "cinco tostões". E não têm pingo de vergonha.
Radicais Livres é um dos podcasts que oiço regularmente. Depois da partida de Rúben de Carvalho, podemos ouvir Pedro Tadeu no braço esquerdo do debate em oposição a Jaime Nogueira Pinto.
Ao ouvi-los aprende-se imenso, e é especialmente interessante o modo intelectualmente honesto como os dois falam com espessura sobre os mais variados acontecimentos históricos e da actualidade, em que, e entremeando com algumas gargalhadas, esgrimem as suas visões diferentes do mundo.
Num dos episódios mais recentes, e quando falavam sobre o policiamento da linguagem em curso, Pedro Tadeu reconheceu que a esquerda poderá a estar a cair na armadilha de ser ela a que impede as pessoas e de ser ela a que limita as liberdades. Acrescenta que na sua juventude, era a direita que proibia e limitava, e assume que é de esquerda por oposição a isso mesmo.
Este reconhecimento será mais uma prova dos movimentos pendulares da história, e não desligo isto do detalhe do nosso, sempre histriónico, Presidente da Assembleia da República ter empurrado o deputado único da IL para a direita do hemiciclo. Na mesma linha podemos também lembrar o slogan da surpreendente vencedora das eleições regionais madrilenas, Isabel Díaz Ayuso – Libertad.
Este é o tempo que nos é dado a viver. A esquerda é hoje limitadora, restringe, impõe, proíbe, quer policiar as palavras e, entretanto, os pensamentos. E eu sei de que lado não quero estar.
PS: Pedro, esta senhora merece o destaque de um postal num destes viernes.
Com as presidenciais lá veio a eterna discussão da "reconfiguração da direita", esse assunto cornucópia da política portuguesa. Primeiro com os resultados de André Ventura (e do Tiago Mayan) nas presidenciais. Depois, quando o nosso Adolfo Mesquita Nunes (quando é que ele volta à escrita aqui no Delito?) desafiou Francisco Rodrigues dos Santos para um congresso, vendo o CDS mirrar e perder peso. Uns levantaram-se em seu apoio, a começar pelo grupo parlamentar, outros cerraram fileiras em volta de "Chicão", invocando uma "tentativa de golpe" e outros deixaram os órgãos partidários aos quais pertenciam sem contudo se juntar às hostes rebeldes. O presidente da formação manteve-se, embora enfraquecido. Não é propriamente um facto inédito: se há partido português com historial de lutas fratricidas é exactamente o CDS. Freitas sempre teve de enfrentar dissensões e afastou-se com a ascensão de Monteiro, que protagonizou mais tarde uma luta feroz com o seu antigo amigo Paulo Portas. Os apoiantes deste nunca se conformaram com a chefia de Ribeiro e Castro e não descansaram enquanto não repuseram na liderança o seu inspirador. Cristas teve de enfrentar críticas duríssimas e agora Rodrigues dos Santos sofreu um levantamento de rancho. Aquele partido leva as lutas tão a sério que até já teve estalo a valer nos seus congressos - pelo menos num Avelino Ferreira Torres andou à pancada com outro confrade. E neste caso não seria mal maior se não tivesse a Iniciativa Liberal e o Chega a limitar-lhe o espaço, problema que antes não havia.
A ajudar à dita "reconfiguração" Pedro Santana Lopes saiu do seu Aliança, que tinha criado há pouco mais de dois anos, e anda por aí à procura uma câmara municipal disponível que lhe sirva de poiso.
Faits divers à parte, e deixando um pouco de lado a interminável discussão da direita portuguesa (à qual vou voltar em breve), a situação do CDS não deixa de ser intrigante. O partido sempre se gabou de ter três componentes: a democrata-cristã, a liberal e a conservadora. A liberal pode estar a mudar-se para a mais enérgica e definida IL; a conservadora dará a sua preferência ao Chega, muito embora este seja um emaranhado de coisas que pouco tem a ver com o conservadorismo clássico, o que daria razão aos que desconfiavam que o CDS albergava alguns reaccionários sem outro pouso e que muito do seu eleitorado estava à direita dos dirigentes. Mas e o democrata-cristão? Aquele que não se revê na face libertária da IL nem nos vitupérios de Ventura ou aproximações a LePen? A julgar pelas sondagens é minoritário, embora até conheça vários que estariam numa situação de orfandade caso o partido desaparecesse. O assunto é também objecto de análise de um artigo recente de André Lamas Leite.
Não é para menos: a democracia-cristã, cujo berço será a Itália nos inícios do séc. XX e o Partido Popular de Sturzo e De Gasperi (é em sua homenagem que o PPE e restantes partidos populares se chamam assim), está em acelerado declínio, mesmo que parcial e nominalmente ainda pareça dominar em alguns países, como a Alemanha e a Áustria. Mas definitivamente parece estar longe da força e da influência de outros tempos, talvez por vivermos em sociedades que se têm vindo a tornar mais seculares, e o CDS é a prova nacional disso.
Mas não é caso único. O comunismo, que, para voltar a um exemplo anterior, durante décadas dividiu eleições em Itália com a mesma democracia-cristã, teve uma queda abrupta desde os anos oitenta e ninguém minimamente lúcido aposta nos amanhãs que cantam como força dominante. Mesmo nos países de regime comunista, como a China e o Vietname, já é algo bem diferente do maoísmo original (muito embora permaneça o controlo ditatorial da sociedade), e Cuba é de uma decadência inimitável. Da social-democracia também há anos que se ouve falar do seu esmorecimento, e tirando alguns países onde o poder a mantém, como Espanha e Portugal, tem caído a olhos vistos, como em França, Grécia e Alemanha. O conservadorismo encontra-se numa cruzamento de dúvidas, entre versões descafeinadas e apelos reaccionários. O liberalismo, embora tenha alguns seguidores entusiastas, não parece ser capaz de formar governos, talvez vítima do seu próprio sucesso, já que as suas principais premissas foram cumpridas na maior parte dos regimes democráticos. A extrema-direita teve de abandonar, ao menos à superfície, quaisquer inspirações fascistas, sob pena de ficar absolutamente marginalizada. E as querelas entre monárquicos e republicanos não têm nem um naco da relevância de outrora.
Parece que as ideologias que nos habituámos a seguir no séc. XX já viram dias mais pujantes. Os partidos portugueses também as seguem, e por ora ainda resistem, embora se vejam sinais de erosão no CDS, como se disse, e no PCP. Dir-se-ia que o que realmente está em ascensão são os partidos ecologistas e "verdes" (e mais modestamente os animalistas), o nacional-populismo, ou seja, direitas radicais ou extremas convertidas à democracia (outra influência italiana?) e em certa medida o liberalismo. Serão estas as futuras ideologias predominantes? Veremos confrontos entre estes blocos políticos, reduzindo os restantes -ismos a discussões bizantinas ou a memórias históricas? Terão a companhia de novos movimentos - os federalistas, por exemplo? Ou juntar-se-ão a outras atrás descritas que irão novamente reerguer-se e ocupar o seu velho papel de hegemonia?
Três candidaturas presidenciais assumidamente "de esquerda", assim se proclamando perante o eleitorado com os chavões próprios de quem vê o mundo a preto e branco diabolizando a outra metade do hemisfério.
Quase quatro quintos dos portugueses que compareceram nas mesas de voto deixaram evidente a sua preferência por outras opções, situadas em território da não-esquerda. O das direitas, para usar o rudimentar léxico político importado da geometria. A direita social, a direita liberal, a direita autocrática.
À luz desta lógica de arrumação política, as esquerdas personificadas em Ana Gomes, João Ferreira e Marisa Matias acabam de sofrer uma goleada histórica nesta eleição presidencial de que sai um claro vencedor: Marcelo Rebelo de Sousa, reforçando o seu triunfo de 2016 com mais cem mil votos e quase mais nove pontos percentuais do que alcançou há cinco anos.
Nada fica igual: este escrutínio ocorrido no auge da gravíssima crise pandémica que só ontem causou mais 275 vítimas mortais produzirá efeitos sísmicos na política portuguesa. Forçando reconfigurações em vários tabuleiros, como se verá a curto prazo.
A primeira consequência é a morte do CDS, apesar da patética tentativa do seu ainda presidente de colar-se ao grande vencedor da noite. Merece exéquias dignas. Paz à sua alma.
Mas muito mais vai mudar. Com legitimidade revalidada, Marcelo não perdeu tempo. No discurso de vitória, na Reitoria da Universidade de Lisboa, acaba de dizer com total transparência que um dos seus objectivos, no segundo mandato a iniciar em Março, será contribuir para uma «alternativa forte» ao actual Governo «para que a sensação de vazio não convide a desesperos e a aventuras».
Recado que segue direito para Rui Rio. O ainda presidente do PSD nunca poderá dizer que não foi avisado.
Já por várias vezes senti que se tivesse crescido numa herdade ou à volta de uma fábrica onde o proprietário fosse um arrogante plenipotenciário, abusador no trato e faltoso nos direitos, a mensagem comunista teria sido para mim muitíssimo apelativa.
O esforço para entender o imaginário em que se baseia a lógica de parte de esquerda, e que constitui o mainstream português das últimas décadas, é bem menor depois de ler Fernando Namora, ou outro autor do neo-realismo da nossa literatura.
Numa versão italiana, o filme Novecento de Bernardo Bertotolucci é também um excelente exemplo disto mesmo. Aquela enorme bandeira vermelha tecida com as pequenas bandeiras vermelhas guardadas secretamente em casa, que são cosidas todas juntas no dia da libertação do fascismo, por acaso também num 25 de Abril, é incrível. Toda a concepção do filme é grandiosa, a infância das personagens, um proprietário e um assalariado que nasceram no mesmo dia em 1900, foi filmada na Primavera, a sua idade adulta passa-se no Verão e no Outono e no Inverno chega o fascismo. O avô, Alfredo Berlingheri, é representado por um Burt Lencaster que por ter gostado do conceito da obra aceitou representar gratuitamente. O calor, as cores e a energia da Primavera da infância são substituídos pelo frio e pelo gelo da ditadura. Este tempo frio e cruel é personalizado magnificamente pelos abusos perversos do cruel Átila (Donald Sutherland) e da sua amante, Regina.
Na versão de coleccionador do filme, Bertolucci relata que chegou a pedir à Academia Soviética um actor para dar corpo ao assalariado Olmo Dalco, mas que desistiu logo depois de lhe terem começado a pedir o script da obra. Esta personagem acabou por ser representada por um Gérard Depardieu em início de carreira, e que ali contracena com outra estrela maior em ascensão, Robert de Niro.
Bertolucci relata nessa mesma versão de coleccionador, que a rodagem do filme se foi arrastando, semanas após semanas, meses após meses, e dentro do staff do filme algumas relações amorosas foram constituídas. Quando ele decidiu que estava na hora acabar o filme, sentiu que estava a interromper equilíbrios que tinham sido ali estabelecidos. A revolta e o mau-estar sentiram-se de imediato.
Vi este filme pela primeira vez na Cinemateca em duas sessões (são 5h17m!), legendado em castelhano e, devido à sobrelotação, só consegui lugar sentado no corredor central da sala. Este texto não estava para ser sobre este filme que, pelos muitos momentos fortes e por se tratar efectivamente de uma obra-prima do cinema, merecia um post próprio.
Com tudo isto em mente, entendo que ser de esquerda, mais ou menos revolucionária, é como um grito de revolta, é um acto de generosidade e de humanismo. Mas, e aqui reside a sua fraqueza, na sua acção pretende esmagar a natureza humana.
Na história da nossa recente democracia, existem vários momentos onde estas duas visões estão em confronto, mas em nenhuma encontro a força e a genuinidade como no debate sobre a propriedade da enxada, no filme de Thomas Harlam, rodado na herdade da Torre Bela em Abril de 1975, e em que Wilson Filipe é um dos seus protagonistas.
"Qual é o valor da tua ferramenta?" podia ter sido uma pergunta feita no Novecento de Bertolucci, mas foi feita em Manique do Intendente no prelúdio do Verão Quente de 1975. "Amanhã tiram-me as botas e ficam da cooperativa! Daqui a nada o que eu visto e o que eu calço é da cooperativa!" diz o incrédulo nos amanhãs que cantam.
A injustiça pela incorrecta distribuição de riqueza será uma camada adicional não contemplada pelos estudos de Adam Smith. Entre muitas coisas (a mão invisível será o seu conceito mais conhecido e, atenção não estamos a falar do governo de José Sócrates, o príncipe da esquerda!) preocupou-se em entender como é que a riqueza se acumulava em algumas regiões e noutras não. Ele reparou que nem o talhante, nem o cervejeiro nem o padeiro agiam por benevolência, mas apenas considerando os seus próprios interesses. E concluiu que era possível combinar a natureza humana no empenho dos seus interesses próprios, com o bem comum na criação de riqueza para a economia. Defender isto não implica que o talhante, o cervejeiro e o padeiro, sejam impiedosamente egoístas, mas apenas que eles, zelando pelos seus interesses pessoais, acrescentam riqueza à sociedade e à economia, e se o bolo for maior, haverá mais para distribuir. Adam Smith não fala nesta redistribuição mas eu acho que desde que não se sacrifique a capacidade de criação de riqueza, a redistribuição faz todo sentido.
A esquerda mais aguerrida, não aceita esta lógica. Prefere de longe que seja o estado, e os seus zelosos funcionários, a definir as acções do talhante, do cervejeiro e do padeiro. O estado, ou a cooperativa, deve ser o dono das enxadas e, mesmo sabendo que a história da ocupação desta herdade é apenas mais uma das inúmeras tentativas em expropriar a natureza humana, insistem em repetir a fórmula que repetidamente tem trazido fome e miséria aos que já eram mais pobres.
Tudo este texto foi desencadeado pelo desaparecimento de Wilson Filipe, uma das figuras que lideraram a ocupação da herdade da Terra Bela em 1975 e que defendeu a apropriação dos bens privados pela cooperativa. Não duvido da sua coragem, da sua sede de justiça e da sua humanidade. Foi apenas, como muitos dos idealistas de esquerda, derrotado pela realidade e pela natureza humana.
No Público, um órgão oficioso do regime, completo com colunas de opinião desalinhada que lhe dão o conveniente verniz da independência, saiu um “abaixo-assinado” cujos autores informam que nem foram apoiantes de Trump nem o são do Chega!, uma clarificação que quem, como eu, os conheça, acha dispensável, e relevante para os outros apenas na medida em que, se forem devotos de uma das várias igrejas de esquerda, ficam confortados na ideia de que a direita admissível é apenas a que está dentro do perímetro que definem como espaço democrático e tolerável.
O título é “A clareza que defendemos” e o texto nada tem de claro – por isso é que o traduzi no parágrafo anterior.
Conto com vários amigos pessoais no ilustre grupo, cujo único cimento discernível é o tratar-se de não-socialistas; conhecendo-os pela maior parte, é gente que leio com atenção e proveito; e a alguns honro (este verbo é irónico, para as pessoas que precisam se lhes explique tudo bem explicadinho) com a minha admiração, como é o caso do Carlos Guimarães Pinto, que suspendeu a banca de ensaísta e teórico para se enfarruscar na luta política activa.
Pois bem: lamento dizer que estes meus confrades fariam muito melhor pela causa da regeneração do País se, nesta maré, tivessem feito o favor de ficarem calados.
Por razões tácticas desde logo: A direita ou regressa ao Poder com um programa mínimo comum ou não regressa. Há por aí umas teses solertes segundo as quais o precedente criado pela Geringonça não tem de ser seguido porque o péssimo exemplo de trazer o PCP e os dementes do Bloco para a área da governabilidade não deve ser emulado à direita com a inclusão do Chega!, mas implicam uma equivalência que não tem razão de ser: o Chega! tem no seu programa partes que não são palatáveis (nem para mim nem para a maior parte do eleitorado), comportamentos erráticos, e militantes infrequentáveis. Mas não tem nada, nem na teoria nem na prática, que ponha em causa o regime democrático. Não se pode dizer o mesmo do PCP, cujos textos doutrinários continuam a considerar a democracia formal como burguesa, e a defesa dela como instrumental para um projecto de conquista do Poder. Que esse projecto não tenha pernas para andar importa pouco: sempre o PCP defende as medidas que conduzam à preponderância do Estado e não do indivíduo, à nacionalização dos meios de produção e não à liberdade económica, ao controlo da opinião e não à sua liberdade, à minagem do aparelho de Estado e não à sua profissionalização. Logo, uma Caranguejola NÃO É equivalente à Geringonça.
Depois, a caracterização como “amálgama” de sentimentos nacionalistas, identitários, tribais, demagógicos, incendiários, revanchistas, padece do amalgamismo (gramáticos: sei que a palavra não existe) que diz querer combater porque, na realidade, confunde excessos de linguagem com genuínas, e perfeitamente legítimas, ansiedades e preocupações com o supranacionalismo de instituições largamente inimputáveis como a UE, a ONU ou a OMS, desvaloriza o sentimento de pertença e o patriotismo como sendo velharias históricas, e abre a porta a limitações à liberdade de opinião pela insistência na caracterização de discursos como genericamente inaceitáveis, logo que contendam com conceitos mal definidos como “xenofobia”, “racismo”, “iliberalismo” (que diabo será isto – a versão europeia ou a anglo-saxónica?) e o mais que a polícia do pensamento de esquerda entende ser território off-limits da opinião.
A saúde do espaço público ganharia, é certo, com civilidade no discurso e brida nas paixões. Mas isso é a forma, não a substância. A estas ilustres personalidades, que decerto chamam abaixo-assinado ao manifesto para não se confundir com os muitos que intelectuais comunistas e outros que têm a mania que não o são faziam no tempo de Passos, conviria lembrar o que comunistas e bloquistas chamavam no Parlamento aos membros do Governo de então: ladrões.
A esquerda costuma saber onde está com a cabeça. A direita, nem sempre.
O acordo para viabilizar o novo executivo açoriano trouxe à memória a constituição da "geringonça" e o precedente que causou. Ou antes, devia ter trazido.
Por um lado, temos o nosso primeiro-ministro, arquitecto da geringonça, o homem que permitiu todo este novo desenho parlamentar, que tirou sentido ao voto útil ao fazer acordos com os que até aí eram inimigos de longa data e de natureza completamente diferente, a criticar o PSD e a referir-se a "linhas vermelhas". Mas a questão em 2015 não era a de que se não houvesse geringonça "a direita ficaria no poder"? E isso implicava atravessar inhas literalmente vermelhas para fazer tratados com os seus velhos inimigos (por vezes mais do que advesários)? Então...
Por outro lado, temos um abaixo-assinado de um conjunto de pessoas de alguma forma ligadas ao centro direita que critica os acordos com direitas "iliberais". Os subscritores já foram mimoseados nas redes sociais com os habituais insultos do cardápio - "direita fofinha", "direita de que a esquerda gosta", "cobardes", "pusilânimes", etc. Ora isso lembra muito o tipo de remoques que socialistas como Francisco Assis ou Sérgio Sousa Pinto ouviram por se oporem à geringonça e avisarem com que esquerdas estavam a assinar. Lembram-se dos "traidores", "neoliberais do PS" e "vendidos à direita" que lhes atiravam? É que alguns dos que então os aplaudiam (até havia o jargão "Assis, salva o país") viraram-se agora indignados contra a "direita de que a esquerda gosta".
É fantástico ver como a falta de memória gera os oportunismos mais descarados. E também tem o seu quê de divertido.
Em Março de 2017 o professor Jaime Nogueira Pinto, homem consabidamente de direita, viu cancelada uma conferência para qual havia sido convidado, a realizar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O motivo foi a ameaça de acção violenta feita pela Associação de Estudantes, disse-se que ligada ao BE, auto-legitimada pela ideologia do orador. A direcção da faculdade atemorizou-se e cedeu. Os organizadores propuseram pagar a protecção policial. A direcção negou-se a fazer entrar a polícia no espaço universitário, uma já saudável tradição académica, mesmo que para defender o fundamental direito de liberdade de expressão. E de associação. Então a organização propôs arranjar segurança privada. A direcção recusou, e cancelou definitivamente a acção. Seguiu-se polémica. Vários professores, dali e de outras instituições, vieram a público mentir - quem acredita que há um qualquer "Juramento de Hipócrates" vinculando os académicos à demanda da(s) verdade(s) está redondamente enganado - clamando que o objectivo da organização era convocar os holigões neo-nazis para a universidade. Em privado alguns académicos - daquele vácuo eixo MES/BE - foram-me dizendo, com desplante sorridente, "ah, também o Nogueira Pinto é muito reaccionário ...". Sê-lo-á, porventura. E depois, que interessa isso?, calei eu, já então enojado com o ambiente geringoncico desta pequena lisboa, do campo grande à avenida de berna, "do choupal até à lapa" ... Mas do episódio retive três dimensões: o aldrabismo de tantos intelectuais; a cobardia académica; que só em situações extremas é que a polícia entra nos campi, nem mesmo para defender direitos fundamentais.
Leio agora, através do texto do Pedro Correia, que a PSP foi chamada, por denúncia anónima, e acorreu à Faculdade de Arquitectura, com desconhecimento da Direcção académica. Que deteve e multou um professor à porta da sala de aula. Devido a ter este retirado a máscara durante um período da sua prelecção. Passaram alguns dias. Googlo e não encontro quaisquer reacções, daquela faculdade, do seu corpo docente, ou no restante mundo académico, individual ou organizacional.
Para além do choque com esta mentalidade delatora e com este excesso de zelo, inculto e ilegal, de uns quaisquer polícias, o que se pode retirar? Que para o mundo universitário português é normal, e até requerido, evitar a acção policial para defender as liberdades de expressão e de associação. Mas que é mais do que aceitável, até requerida, a sua acção para obrigar a usar máscaras em espaço académico. Mesmo sem permissão ou solicitação das autoridades universitárias.
Não haja dúvida de que se vive uma histeria sanitária, promotora de mentalidades antidemocráticas. Mas o silêncio corporativo também nos mostra outra coisa. Que naquele meio existem, como se diz na tropa, "filhos de muitas mães". E isto até para mau entendedor chega ...
(A latere: ao colocar este texto no blog pesquisei o logotipo da Faculdade de Arquitectura para o ilustrar. Para me deparar com uma figuração completamente .... maçónica! Como é isto possível, estes termos para a representação de uma instituição pública numa república laica? Como não se exige a depuração deste simbolismo?)
Pablo Iglesias: «derrota sem paliativos» na Galiza e no País Basco
Sabe-se hoje que o Bloco de Esquerda esteve a um passo de integrar um Governo de coligação com os socialistas, em Novembro de 2015. Naquela altura António Costa estava disposto a tudo para ascender ao poder na sequência imediata da derrota aritmética sofrida nas legislativas, meses após ter defenestrado o seu camarada António José Seguro por averbar uma vitória eleitoral nas europeias que lhe soube a "poucochinho".
Durante alguns dias, diversos cenários foram equacionados. Só a intransigente recusa do PCP em participar no Executivo fez recuar o BE. O partido da foice e do martelo vive permanentemente assombrado com o fantasma de 1981, quando François Mitterrand integrou quatro ministros comunistas num Executivo de coligação dominado pelos socialistas em Paris: foi o primeiro passo para a irremediável decadência do Partido Comunista, que chegou a ser o mais votado em França e hoje está quase extinto.
O BE não quis deixar o PCP à solta na oposição de esquerda a Costa: os dois partidos detestam-se e vigiam-se mutuamente, monitorizando cada passo. Assim nasceu a chamada "geringonça" - solução esdrúxula em que todos se uniam pela negativa, rejeitando novo Executivo PSD/CDS, mas sem acordo de legislatura além de umas linhas rabiscadas à sucapa num gabinete parlamentar com os jornalistas mantidos à distância e nem uma câmara de televisão a registar o acontecimento. Como se tivessem vergonha uns dos outros.
Um papel rabiscado à pressa: assim nascia a "geringonça"
A verdade é que, desta forma, Costa conseguiu o melhor de dois mundos: a troco de cedências mínimas, viu todos os Orçamentos do Estado aprovados sem o ónus de trabalhar com ministros filiados noutras forças partidárias. Vocacionado para exercer como força de protesto, cada vez mais simbólico e residual, o PCP fez um enorme favor ao primeiro-ministro.
Mas também acabou por fazer um favor ao Bloco. Repare-se no que acaba de suceder em Espanha: em duas importantes eleições de âmbito regional - as primeiras ali realizadas desde a formação da aliança governativa entre PSOE e Unidas Podemos (UP), marca similar ao BE no país vizinho - a grande derrotada foi precisamente a esquerda radical, hoje com cinco representantes no Conselho de Ministros. Incluindo uma das vice-presidências do Governo: a da área social, confiada a Pablo Iglesias.
É o primeiro Governo de coligação em Espanha desde 1936. E é também a primeira vez desde a precária "Frente Popular" formada nesse ano que a esquerda de matriz marxista-leninista ascende ali a postos governativos. Seis meses depois, já com graves consequências para os seus desígnios: a formação liderada por Iglesias acaba de sofrer duas vergastadas nas eleições autonómicas disputadas em terrenos emblemáticos. Fica sem representação no parlamento da Galiza, onde há quatro anos fora a segunda força mais votada, com 14 deputados e 19% dos votos (agora só conseguiu 4%), e perde quase metade do seu elenco parlamentar no País Basco, onde cai para o quarto posto, recuando de 11 para seis deputados e baixando de 15% para 8%.
«Uma derrota sem paliativos», como a descreveu o próprio Iglesias numa mensagem do Twitter - única reacção de um dirigente nacional da UP na noite eleitoral de domingo, dominada pelas vitórias do Partido Popular na Galiza e do Partido Nacionalista (conservador moderado) no País Basco. A chamada "verdadeira esquerda", que ascendeu ao poder nas circunstâncias mais adversas (após ter registado um claro recuo nas urnas a nível nacional e escassas semanas antes do início da crise pandémica) paga agora o preço da erosão governativa. E também das suas fracturas internas: na Galiza, Iglesias impôs um fiel à revelia das estruturas locais, desmobilizando as bases; no País Basco, a marca UP - que congrega várias forças à esquerda do PSOE - teve quatro líderes em cinco anos.
Catarina e Costa: antes ser Sísifo do que Fausto
Catarina Martins olha para estes catastróficos resultados do seu camarada Iglesias e certamente já terá agradecido intimamente ao PCP o favor de ter contribuído para manter o Bloco fora do Governo, mesmo com os socialistas sem maioria. Porque a derrocada dos "podemistas" em Espanha ilustra bem o dilema insolúvel das forças políticas situadas à esquerda do PS em Portugal: o poder, para elas, situa-se sempre numa dimensão utópica. Optam por Sísifo em vez de Fausto: estão condenadas a reclamá-lo em permanência sem jamais cederem à tentação de o experimentar. Só assim evitam um rápido declínio e a imparável extinção.
Eis uma amarga lição para todos aqueles que, no interior do Bloco, ainda sonham com um lugar no Conselho de Ministros. É a vida, como dizia o outro.