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Delito de Opinião

Vida de filme

Sérgio de Almeida Correia, 20.04.20

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O livro não é muito recente, mas só agora me chegou às mãos graças à generosidade de um amigo.

Histórias de espionagem e agentes secretos sempre constituíram um tema interessante, em especial quando relacionadas com situações políticas reais de que apenas se tomou conhecimento por curtas notícias da televisão ou dos jornais. Quando o tema se prestava, por vezes, dava origem a interessantes filmes/documentários para televisão ou cinema.

O que este livro tem de diferente, um pouco como nas memórias de Forsyth, é que todas as histórias são verdadeiras. Independentemente da perspectiva que nos dão do interminável conflito israelo-palestiniano, os operacionais, os heróis e os mortos existiram mesmo, e alguns dos primeiros ainda estão vivos para trazerem o passado até nós e acenderem algumas luzes que nos ajudam a compor o puzzle, completando memórias anteriores.

Longe da imagem de uma Mata Hari, Sylvia Rafael, de seu nome, ou Patrícia Roxenburg, a identidade que assumiu após chegar ao Canadá, foi uma das lendas da Mossad, participando em numerosas operações sob diversos disfarces.

Feita agente clandestina, dotada de uma vontade férrea, educada, culta, com a classe e o charme suficientes para despertar paixões, o seu nome sempre foi uma dor de cabeça para a Fatah, o Setembro Negro e em particular para Ali Hassan Salameh, o cérebro da Força 17, responsável pelos atentados de Munique, pelo desvio de aviões comerciais e um rasto de atentados e inocentes mortos ao longo de vários anos.

Depois do fiasco da operação Lillehammer, recuperaria a sua identidade, acabando por casar com o advogado que a defendeu no processo de Oslo, Annaeus Schjødt, e a acompanhou até ao fim dos seus dias.

Foi este quem, no dia do seu funeral no kibbutz onde Sylvia foi voluntária durante os seus primeiros anos em Israel, sugeriu a elaboração do livro a Moti Kfir. Doutorado em História pela Sorbonne, tendo dirigido a Escola de Operações Especiais da Mossad, Kfir foi o seu recrutador, e hoje empresta o seu know-how a uma empresa portuguesa, pelo que se um destes dias se cruzarem com ele não se admirem.

Enquanto o filme não chega, e outras versões não aparecerem ("No story ever truly ends, and no account of a person's life can be all-inclusive"),  fiquemos com o documentário que entretanto se fez, e com o muito interessante livro de Kfir e do jornalista Ram Oren sobre a vida de Sylvia Rafael. O prefácio é do reformado Major-General Shlomo Gazit, ex-director dos serviços de inteligência militar e ex-presidente da Universidade de Ben Gurion.

A triste ironia de Salisbury

João Pedro Pimenta, 16.03.18

 

A confirmarem-se todas as suspeitas do envenenamento por parte de agentes russos (uma velha tradição, bem anterior a Litvinenko) do antigo agente Sergei Skripal, um exilado russo no Reino Unido (outra tradição, embora o inverso também o seja, como Kim Philby bem demonstrou), e da sua filha, haverá com toda a certeza um sério incidente diplomático entre o Reino Unido e a Rússia, que aliás tem este fim de semana uma tranquilas eleições onde por coincidência o principal opositor a Putin não concorre por estar preso (e ainda teve sorte: outros acabaram baleados no meio da rua).

Mas mais que isso, restará uma ironia amarga: é que o crime deu-se em Salisbury, uma pequena e bonita cidade inglesa com uma imponente catedral onde repousa um dos quatro exemplares - e o mais bem conservado, pelo que podemos dizer que é o principal - da Magna Carta. E assim, numa cidade que guarda um documento fundamental do moderno estado de direito terá ocorrido um crime mais próprio de tiranias e de estados totalitários.

 

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Estórias de outros mundos

Sérgio de Almeida Correia, 13.06.16

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O Post Magazine de ontem traz mais uma história de Craig Whitlock digna de um daqueles romances em que se misturam altas patentes militares, espionagem, mulheres bonitas, charutos, refeições de outra galáxia e negócios sob as mais diversas formas. O título dado ao artigo pelo seu autor foi o mesmo que serviu a um filme de Steven Spielberg que correu em 2015 e teve Tom Hanks como um dos seus protagonistas: Bridge of Spies.

Ao contrário do que se possa pensar, o que se relata no Post não aconteceu durante a Guerra Fria, mas muito depois do seu fim, entrando pelo século XXI e prolongando-se, ao que se sabe, por mais de uma década, de acordo com os documentos dos acusadores públicos. 

Desta vez, o protagonista não é uma estrela de Holywood, mas sim um malaio, cujo avô fez fortuna com uma empresa de logística marítima no concorrido Estreito de Malaca.

Depois de uma infância atribulada, a que se seguiu o abandono pela sua própria mãe aos cuidados de um pai mulherengo, tendo ficado com a tarefa, de acordo com os registos judiciais malaios, de manter o pai debaixo de olho para garantir que aquele não levaria outras mulheres para casa, 'Fat' Leonard Francis começou a vida como empresário, aos 21 anos, num bar de Penang, onde nascera. Logo envolvido num tiroteio, do qual escapou com uma multa de USD 5800, motivando a ira dos polícias que a seguir, num episódio que pouco diferirá daquele vergonhoso por que passou aqui há uns anos Vale e Azevedo quando libertado pela PJ foi de novo detido alguns segundos volvidos, Leonard também voltou a ser preso e acusado de diversos roubos. Absolvido destes, o 'Gordo' Leonard viria a ser condenado numa pena de 18 meses de prisão e meia dúzia de chicotadas. 

Este passado muito pouco recomendável não o impediu, contudo, de se tornar num importante parceiro da Marinha dos Estados Unidos da América nos negócios que envolviam as suas embarcações e as suas altas patentes, em especial após o encerramento da base de Subic Bay, nas Filipinas.

Criando uma verdadeira rede de informadores e avençados, Leonard Francis, através da sua empresa Glenn Defense Marine Group, tornou-se num imprescindível dos almirantes. Graças aos oficiais de marinha reformados e a antigas patentes malaias, tailandesas e filipinas que empregou, adquiriu o know-how e os contactos necessários que lhe permitiram instalar os seus escritórios em Singapura e ir ganhando contratos a seguir a contratos com a US Navy, em portos e locais tão distantes e diferentes como Vladivostok ou a Papua Nova-Guiné, França, México, Índia, Holanda ou em Inglaterra.

A intimidade com a oficialato estado-unidense foi tal que de cada vez que os navios da US Navy demandavam um porto, já esperavam que o "Gordo' Leonard Francis tratasse deles e organizasse um acolhimento 5 estrelas, que poderia incluir passeatas, compras, espectáculos, excursões e até limusinas para transportarem os senhores almirantes a lautos banquetes, regados a conhaque e whisky e onde não faltavam bifes de Kobe, porco ibérico e Cohibas. 

O resultado dos "excepcionais" serviços prestados pelo 'Gordo' à Marinha dos EUA valeram-lhe, pelo menos, USD 35 milhões em contratos fraudulentos, subornos, facturas falsas, subcontratados inexistentes e contas de pretensas autoridades portuárias que cobravam aos navios por serviços jamais prestados. 

Agora, ao contrário do que acontece noutros locais que tão bem conhecemos, está tudo no banco dos réus, num mega processo que tem mais de 200 "alvos" sob investigação e em que uma parte considerável das altas patentes da US Navy poderá sair chamuscada. As ramificações do 'Gordo' Leonard são tentaculares e cerca de trinta almirantes estão sob investigação criminal do Departamento de Estado ou sujeitos a um escrutínio ético em razão das suas ligações. 

É por isso mesmo natural que alguns daqueles a quem Leonard pagou para se tornar milionário, entretanto se tenham esquecido de quem lhes proporcionou "superb services". Serviços de tão alto nível que no Natal de 2004, por exemplo, o USS Abraham Lincolm e mais três vasos de guerra foram recebidos em Hong Kong pelo "Gordo" e brindados com uma festa de Natal no fantástico Shangri-La Hotel, numa daquelas noites mágicas que quem conhece a Ásia sabe do que se trata, onde foram servidos filets mignons, lagostas, champanhe Don Pérignon e hospedeiras vestidas de Pai Natal, as "Santa Niñas". Como tudo tem um preço, no dia seguinte foi apresentada a conta da festarola do almirantado e seus subordinados: uns míseros seiscentos mil dólares. 

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(foto: The Star)

Pode ser que dentro de algum tempo, à medida que se for fazendo luz sobre todos os negócios de Leonard com a US Navy, alguém se lembre de levar ao cinema a sua história e de nos desvendar os segredos da Sétima Esquadra por mares da China e do Japão. 

Porém, enquanto isso não acontecer nada como ler em primeira mão e sem intermediários os fascinantes parágrafos do Post

Parágrafos que, curiosamente, me fizeram recordar uma outra vida que tive e o dia em que estando eu a exercer funções na Marinha me mandaram ir a Hong Kong, em finais da década de Oitenta, para receber, à falta de um oficial de marinha que pudesse fazê-lo, o comandante da Esquadra do Pacífico, o qual chegaria com um diplomata do Consulado dos EUA em Hong Kong. Para depois acompanhá-los até uma recepção onde eles seriam recebidos pelo seu anfitrião português, entretanto falecido. Na ocasião deram-me a recomendação de que embora fosse um civil para aqueles efeitos me deveria comportar como um militar, o que procurei fazer exemplarmente e limitando-me a responder às perguntas que me faziam, sem rede e sem qualquer experiência na matéria, no meu melhor inglês. Se fosse hoje, depois de ler o que li, não sei se não perguntaria aos fulanos, assim como quem não quer a coisa, se conheciam 'Fat' Leonard Francis. Podia ser que me dessem umas dicas.

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Uma operação "Top Secret" de prestígio

Alexandre Guerra, 25.05.16

A operação "Top Secret" levada a cabo pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) e pela Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária, e que resultou na detenção de um espião dos Serviços de Informações de Segurança (SIS), é um enorme atestado de competência e de credibilidade para as "secretas" nacionais. Ao contrário do que muitos possam pensar, este episódio digno de um livro do John Le Carré não revela qualquer fragilidade ao nível operacional das secretas nacionais. Pelo contrário, é demonstrativo que a sua capacidade de "contra-espionagem" funciona e tem capacidade de agir na defesa dos interesses da segurança de Portugal e, muito importante, das organizações políticas e de defesa a que pertence, nomeadamente a NATO. 

 

Ovelhas tresmalhadas sempre houve, há e haverá em todos os rebanhos, o que é o mesmo que dizer que nenhum serviço de "intelligence" está livre de não ter nas suas fileiras algum infiltrado a trabalhar para o inimigo. A Guerra Fria está repleta de casos desses, alguns dos quais bastante espectaculares, atendendo ao seu grau de sofisticação e criatividade. Mas já nesta era da globalização pós-queda do Muro de Berlim, têm sido vários os casos de espionagem e contra-espionagem que, de tempos a tempos, ocupam as páginas dos jornais. Assim de repente, recordo dois ou três e, curiosamente, todos eles envolvendo a Rússia. 

 

A operação "Top Secret" resultou de uma investigação que se prolongou durante vários meses, depois de terem surgido as suspeitas sobre o agente do SIS em causa, e só na passada Sexta-feira foi possível reunir todas as condições para apanhar em flagrante delito o espião português num encontro em Roma com um operacional do SVR (ex-KGB) para vender-lhe documentos confidenciais relativos à NATO. Ora, esta detenção só foi possível graças à colaboração pronta da polícia italiana e porque havia um mandado de captura europeu, fazendo desta operação um feito inédito ao nível da parceria trans-europeia em matéria de contra-espionagem. De tal forma, que o próprio Eurojust congratulou-se publicamente pelo sucesso da operação.