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Delito de Opinião

Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (6)

Cristina Torrão, 07.02.25

Continuamos pelo planalto do Norte de Espanha, Comunidade Autónoma "Castela e Leão", rota: Burgos, Valhadolid, Salamanca (parcialmente ao longo do Duero/Douro) - uma região inóspita, esparsamente povoada, mas cheia de gente capaz de reconhecer e recompensar a coragem de uma jovem.

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A 1 de Novembro, 55.º dia de viagem, Jette montava a tenda, quando um homem veio ter com ela, perguntando se precisava de ração para a égua. Ela aceitou logo, Pinou necessitava de mais do que apenas relva. Foram a casa dele. O homem tinha dois cavalos e Pinou acabou por ser levada para junto deles. O espanhol acabou por dizer a Jette que ela podia dormir no seu quarto de hóspedes. Ao pensar no frio da tenda, ela aceitou, apesar de ele viver sozinho (ou, pelo menos, estar sozinho, naquela altura). Ele encomendou pizza para o jantar. E tudo correu bem, sem surpresas desagradáveis. No dia seguinte, à partida, a moça recebeu ainda um saco de comida.

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Quatro dias mais tarde, Jette recebeu uma mensagem desse mesmo espanhol, perguntando-lhe onde estava e se a podia ajudar a encontrar um local para dormir. A moça deu-lhe as informações e, dez minutos depois, ele enviou-lhe um endereço de uma família que se prontificava a alojá-la, com lugar para a Pinou.

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Numa manhã, um homem veio ter com ela ao caminho, de tractor, dizendo-lhe que gostaria de lhe mostrar os seus cavalos. Além de admirar os belos animais, Jette já não seguiu viagem, acabou por ficar a dormir nessa quinta.

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A próxima cena é tipicamente ibérica, poderia ter acontecido também em Portugal: Jette chegou à praça principal de uma aldeia e, de repente, tinha cerca de quinze pessoas à sua volta. Falavam todas ao mesmo tempo, fazendo-lhe perguntas, mas a moça não as entendia. Uma mulher acabou por surgir com alguém que sabia inglês. E convidou Jette para ficar na sua quinta, que, além da família, albergava um rebanho de trezentas ovelhas.

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A 7 de Novembro, 60.º dia de viagem, Jette chegou a Moríñigo, perto de Salamanca. Pernoitou, mais uma vez,  em casa de uma família e, no dia seguinte, “um homem muito simpático, sobre um belo cavalo espanhol”, acompanhou-a, mostrando-lhe o caminho para Arapiles, onde lhe tinha arranjado estadia.

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Depois do jantar, em Arapiles, Jette foi levada à bela Salamanca.

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Na manhã seguinte, ela tornou a ser acompanhada, durante alguns quilómetros, por um cavaleiro, amigo da família onde pernoitara. O mesmo aconteceu dois dias mais tarde. Os espanhóis revelavam-se, não só bons cavaleiros, como também cavalheiros.

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Nas últimas etapas, antes da fronteira portuguesa, Jette dava, constantemente, com portões. Deixavam-se aliás abrir facilmente e ela não hesitava em passar por esses terrenos, era-lhe difícil encontrar alternativas. Felizmente, não foi admoestada.

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Passava por manadas de bovinos e a Pinou surpreendia-a, mantendo-se calma, contrariando o comportamento  apresentado, antes da viagem: sempre se mostrara nervosa na presença de vacas, ou mesmo de ovelhas e cabras.

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Atrás de mais um portão, porém, Jette deparou com uma quinta de touros! A avaliar pelo vídeo (Tag 64), eu diria que eram de vinte a trinta animais. A moça ainda hesitou, mas acabou por entrar. Coragem, ou inconsciência, irresponsabilidade?

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O certo é que o insólito aconteceu: os touros comportaram-se como cordeirinhos! Ficaram calmos, enquanto a moça passava por eles, sobre a égua. Nem sequer reagiram, quando Pinou não resistiu e começou a comer de um dos montes de palha espalhados pelo terreno.

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Que conclusão tirar? Que os touros não são tão agressivos como se pensa? Que estes estavam habituados a ver cavaleiros e seus cavalos? Que sentiam a descontracção de Jette e de Pinou, respeitando-as e/ou não as vendo como ameaça? Os animais têm de facto sensibilidade especial para ler estados de espírito, digamos assim, uma espécie de sexto sentido. Aprendi isso com os cães. E todas as amizades entre humanos e animais, mesmo tratando-se de animais selvagens, como leões, por exemplo, são baseadas numa confiança incondicional, estabelecendo um compromisso que nunca lhes passa pela cabeça quebrar.

Muitos dirão ter sido apenas sorte, no caso de Jette. Não excluo essa hipótese. Mas é fascinante ver as fotografias e os vídeos postados pela moça.

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Estava-se a 10 de Novembro. Nesse dia, Jette chegou a Sancti-Spíritus e tinha apenas mais três etapas, até à fronteira portuguesa: Ciudad Rodrigo, Gallegos de Argañán e La Alamedilla. O planalto ia dando lugar à região montanhosa, que plenamente se desenvolve no lado português. A paisagem já era mais verde. Jette acabou por apanhar alguma chuva, o que aliás, tem as suas vantagens.

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Dez dias atrás, a moça lamentava, no seu diário, ainda lhe faltarem mais de 300 km até Castelo Branco. Nesse serão, escreveu que, apesar de se alegrar com a aproximação a Portugal, também se sentia um pouco triste, perante o fim da aventura. O fim desta viagem da sua vida.

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Nota: Todas as fotografias e informações aqui divulgadas foram retiradas do diário de viagem de Jette:

https://www.instagram.com/jette.horse.journey/

@jette.horse.journey

Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (5)

Cristina Torrão, 31.01.25

Depois de ver o pai ir-se embora, deixando-a no meio daquela região seca e solitária, na região de Burgos, Jette não conseguiu evitar a tristeza. Preocupava-se igualmente com a Pinou, já um pouco emagrecida. Conseguiria encontrar relva fresca, por aqueles caminhos de cascalho, que tinham ainda a desvantagem de acelerar o desgaste dos  “sapatos” da égua?

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Jette fixou a sua atenção nos aspectos positivos. O sol brilhava e a temperatura era amena (17ºC). E encontrava fontes pelo caminho, como aliás já lhe haviam dito ser usual em Espanha, onde a Pinou podia matar a sede.

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Para a primeira noite, Jette encontrou, inclusive, um relvado com uma fonte, à saída de uma aldeia. Teve algumas reservas em montar a tenda em terreno público, sem permissão, mas ninguém reclamou. Pelo contrário. Várias pessoas passeavam por ali, com os seus cães, e cumprimentavam-na. Muitas tentavam conversar com ela, mas Jette quase nada entendia. Mesmo servindo-se do tradutor do Google, a comunicação era difícil. E ela estava cansada. Não obstante a simpatia das pessoas, a situação mostrava-lhe as dificuldades que teria de enfrentar, naquele país. Quando se recolheu na tenda, a moça sentiu-se muito sozinha.

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Nos dias seguintes, Jette tinha dificuldades em encontrar onde dormir. Sucediam-se as aldeias e quintas abandonadas.

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Num certo serão, era já bem tarde, quando encontrou uma localidade habitada. Sem vontade de procurar um lugar adequado, montou a tenda num parque infantil relvado. Ainda ali brincavam algumas crianças, preocupando Jette, pois os pais poderiam não ficar satisfeitos.

Mas niguém reclamou. Na verdade, os petizes ficaram muito entusiasmados com aquelas viajantes exóticas e até arranjaram maneira de carregar o powerbank de Jette.

Numa outra aldeia, parcialmente abandonada, Jette sentia os olhares curiosos pousados sobre si, quando lá entrou. Acabou por encontrar os obrigatórios fonte e relvado. Montou a tenda e encontrava-se a planear a rota para o dia seguinte, quando um carro parou à sua frente. Um espanhol começou a falar com ela. Sem o entender, Jette acabou por responder apenas “Sí”. O homem abalou. Passado um quarto de hora, surgiu-lhe com um saco de comida. E a surpreendida Jette acabou por jantar bem melhor do que pensava.

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Depois de mais uma noite passada na tenda, uma mulher veio ter com ela, convidando-a para tomar o pequeno-almoço e autorizando-a a tomar duche em sua casa. Lá chegada, Jette constatou que o marido sabia falar inglês, tornando a comunicação bem mais fácil.

Surpreendeu-se com o pequeno-almoço, onde abundavam os croissants e as bolachas. À despedida, ainda lhe deram um saco de comida.

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Numa outra aldeia, quando estava a montar a tenda, foi abordada por uma idosa, que tinha vivido oito anos na Alemanha e sabia falar alemão. Os outros habitantes aperceberam-se da conversa animada entre as duas e, inteirando-se da jornada de Jette, trouxeram-lhe o jantar. A idosa, apesar de não ter um quarto para a moça, quis mostrar-lhe a sua casa, onde vivia sozinha e onde as duas passaram o serão a ver fotografias da sua família.

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Apesar destes bons momentos, Jette passava dias inteiros sem encontrar ninguém, pelo caminho, enquanto percorria o planalto seco. Além disso, os dias ficavam cada vez mais curtos e, à noite, a temperatura chegava a descer aos 8ºC, com vento. Condições difíceis para dormir na tenda.

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A 31 de Outubro, o 54.º dia da viagem, Jette atravessou o Douro (Duero), a caminho de Traspinedo, perto de Valhadolid.

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Ao serão, escreveu no diário (tradução minha): “Neste momento, apenas desejo chegar ao destino. Segundo o Maps, são ainda 330 km até Castelo Branco, embora eu saiba que acabarão por ser mais. Sinto-me esgotada e noto que também a Pinou está cansada. Talvez a bonita paisagem nos consiga ainda animar, mas, por agora, estamos as duas cheias desta jornada."

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Logo a seguir, porém, tentou animar-se (admiro esta sua capacidade de olhar, sempre, para os aspectos positivos): “Por outro lado, fascina-me a confiança total que a Pinou deposita em mim. Ela seguir-me-ia incondicionalmente para todo o lado. E constato que, em Espanha, as pessoas são generosas, muitas vezes, melhores do que se pensa. Tenho de ter sempre presente este tipo de experiências, nos meus pensamentos – uma oportunidade enorme, um presente inacreditável."

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Compensou acreditar na generosidade das pessoas. A hospitalidade de nuestros hermanos não deixou de surpreender Jette. Talvez eu própria, ao ler o seu diário, tenha ficado ainda mais surpreendida do que ela.

Num serão, depois de encontrar um relvado, a moça preparava-se para tirar a sela a Pinou, quando uma mulher veio ter com ela. Sabia falar inglês, morava ali mesmo ao lado e convidou-a para jantar e pernoitar em sua casa. Veio mesmo a calhar, sendo as noites já tão frias.

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Numa outra aldeia, foi abordada por várias pessoas e, quando ela disse não falar espanhol, foram logo buscar quem soubesse inglês. Este “tradutor” convidou-a para jantar e pernoitar na casa da sua família, podendo a Pinou ficar no terreno relvado do vizinho. Além disso, entrou em contacto com conhecidos na aldeia onde Jette programara passar a próxima noite, logo lhe arranjando alojamento.

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Talvez não fosse assim tão difícil continuar até à fronteira portuguesa, em pleno Novembro...

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Nota: Todas as fotografias e informações aqui divulgadas foram retiradas do diário de viagem de Jette:

https://www.instagram.com/jette.horse.journey/

@jette.horse.journey

Uma jovem de vinte anos, uma égua e uma viagem da Alemanha até Portugal (4)

Cristina Torrão, 24.01.25

Além da alegria pelo reencontro com o pai, Jette passou um serão muito agradável, com a senhora que os hospedou, o seu neto e o cão da família.

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Estavam apenas a 10 km da fronteira francesa e, num acto simbólico, Jette atravessou-a a cavalo, enquanto o pai esperou por ela do lado francês.

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Depois de acomodarem a Pinou no atrelado, fizeram-se ao caminho, em direcção a Espanha.

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Jette queria, porém, realizar um sonho: cavalgar ao longo do Atlântico. Fizeram, então, uma paragem em Capbreton, pequena localidade costeira perto de Bayonne. Aí, Jette e Pinou viveram momentos inesquecíveis.

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A moça cavalgou durante cerca de uma hora, na praia. Jette escreveu (tradução minha): “Penso que nunca tinha galopado a tamanha velocidade. Depois de tanto tempo no atrelado, a Pinou estava cheia de energia, fazendo a areia voar à nossa volta. Um grande sonho meu tornou-se realidade e não consigo expressar em palavras os sentimentos que me abalroam. Tenho uma sorte incrível em poder viver tudo isto."

Há um vídeo, feito pela própria Jette, a galopar. Quem tiver Instagram, pode vê-lo, no 43º dia de viagem (Tag 43). Ponho aqui um frame desse vídeo, onde se vê a crina da Pinou a voar.

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Realizado este sonho, Jette e o pai retomaram a viagem. Atravessaram a fronteira e alojaram-se numa bonita quinta, nos Pirenéus, onde ficaram três dias.

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Aproveitaram para visitar Bilbao, a cerca de hora e meia de distância.

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Em princípio, Jette retomaria a sua viagem a partir do alojamento, mas, tanto ela, como o pai, pensaram ser melhor deixar os Pirenéus para trás. Uma boa ideia, sobretudo, tendo em conta que já se encontravam em fins de Outubro. Avançar sozinha com a Pinou, por zona tão montanhosa, onde não se exclui a caída de neve, podia tornar-se perigoso. Seguem-se algumas imagens minhas, igualmente frames, de um troço da auto-estrada entre Vitoria (Gasteiz) e Burgos. O vídeo foi feito durante a nossa viagem, em Abril do ano passado.

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2024-04-22 20 A caminho de Burgos - frame at 0m21s

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A 24 de Outubro, o pai de Jette deixou-a na zona de Burgos. Confesso que esta era a fase da jornada que mais curiosidade me despertava: o longo planalto espanhol, entre Burgos e a fronteira portuguesa.

O Horst e eu já fizemos este caminho inúmeras vezes, nos últimos trinta e dois anos. Mesmo da auto-estrada, dá para perceber como a região é seca e solitária, quase um deserto de rochas e pó. Na Primavera, ainda se vê algum verde a cobrir as colinas, salpicado com o vermelho das papoilas. No Verão, há culturas de girassóis e, nos últimos anos, cada vez mais, de colza. No Outono, porém, já se colheu tudo, restando uma paisagem queimada, onde proliferam as aldeias abandonadas.

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Como iria Jette dar-se nesta inóspita região, tendo ainda (evitando estradas principais) cerca de 500 km até à fronteira portuguesa, com apenas uma égua por companhia e sem saber falar espanhol? Conseguiria alimentação suficiente e lugares de pernoita? Seriam nuestros hermanos (os poucos que ela encontraria) hospitaleiros? Temos sempre a impressão de que os espanhóis são arrogantes, pouco amigos de ajudar…

Depois de ver o pai partir, Jette sentiu-se muito sozinha. Já não estava na Alemanha, onde podia comunicar na sua língua. E, já nem os pais, nem o namorado, podiam vir ter com ela, no espaço de meia dúzia de horas.

À despedida do pai, um sorriso para a fotografia.

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Nota: Todas as fotografias e informações aqui divulgadas (à excepção dos frames na auto-estrada, como explicado) foram retiradas do diário de viagem de Jette:

https://www.instagram.com/jette.horse.journey/

@jette.horse.journey

Um rei debruçado sobre a lama

João Pedro Pimenta, 05.11.24
Ainda sobre a recepção violenta às autoridades espanholas em Valência, parece claro que se deveu sobretudo aos membros do governo regional e a Pedro Sánchez. Seria ridículo assacar culpas aos soberanos que não têm a tutela da protecção civil e que estavam lá a prestar solidariedade.
 
Mas pelo arremesso de algumas pedras e lama, houve certamente reacções dirigidas ao Rei e à Rainha. Não é de espantar assim tanto. Naquele desespero, naquela impotência de se acudir aos vivos e desenterrar os mortos da lama, qualquer vislumbre de autoridade pode transformar-se no bode expiatório das desgraças à vista. Acresce que em Espanha há alguns elementos anti-monárquicos profundamente radicais, cuja motivação ideológica (ou niilista) transcende a do desespero do momento. É bem possível que lhes tenha dado para a selvajaria, ao ver ali o objecto máximo do seu ódio.
 
Certo é que Sánchez e o presidente do governo regional se puseram a andar, talvez para ruminarem as suas rivalidades partidárias, e Filipe e Letizia ficaram, cumprindo o seu dever como soberanos: consolando as vítimas e representando o Estado e a solidariedade do povo espanhol para com elas, também visível pelos milhares de voluntários que para lá se deslocaram, muitas vezes antes da própria ajuda estadual.
 

La prensa monárquica europea se pronuncia sobre la visita de los Reyes a  Paiporta: este es su veredicto

Juan Carlos com lugar garantido na História

Faz hoje dez anos que o Rei emérito renunciou ao trono

Pedro Correia, 02.06.24

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Juan Carlos de Borbón com Adolfo Suárez, os dois artífices da exemplar transição espanhola

 

«El balance del reinado de Juan Carlos es extraordinariamente positivo.»

Felipe González (El País, 2 de Junho de 2014)

«El reinado de Juan Carlos I se corresponde con el tiempo de mayor estabilidad democrática, disfrute y ampliación de las libertades y de progreso social de la historia de España.»

José Luis R. Zapatero (El Mundo, 2 de Junho de 2014)

 

Faz hoje dez anos, Juan Carlos I anunciou que abdicava do trono de Espanha. Após quase 39 anos de reinado.

Quando ascendeu ao posto cimeiro do poder em Madrid, Espanha era um país isolado politicamente, com uma das ditaduras mais retrógadas do mundo ocidental, níveis socio-económicos muito abaixo da média europeia e divisões que pareciam insanáveis entre os herdeiros dos dois grupos que combateram na guerra civil. Em todos estes parâmetros é hoje um país incomparavelmente melhor. Dotado com a Constituição de 1978, autêntico marco civilizacional que já garantiu o maior período de vida democrática desde sempre existente no país.

Tendo nascido em 1938 no exílio em Roma, sete anos após o seu avô Afonso XIII renunciar ao trono, Juan Carlos de Borbón soube impor-se como expoente da restaurada monarquia - conquistada a pulso. Contra a vontade do próprio pai, o Conde de Barcelona. E contra os primos, que lhe cobiçavam o trono (um deles casou até com a neta primogénita do generalíssimo Franco, para lá chegar mais depressa). E contra a clique do ditador, que preferia outros. E contra os "ventos da história". E contra a esmagadora maioria da "opinião pública", dama mais volúvel do que Madame Bovary.

Entre Novembro de 1975 e Junho de 2014, fez mais do que qualquer outra personalidade para unir os espanhóis. Trabalhou com governos de diversas cores políticas, irrepreensível no plano institucional. Por isso foi elogiado pela larga maioria da sociedade espanhola - e desde logo pelos principais partidos, PP e PSOE: nenhum deles põe em causa o sistema monárquico, referência de estabilidade e concórdia.

O Rei emérito tem lugar garantido na História de Espanha. E será recordado, sem qualquer dúvida, como um dos maiores estadistas que o país vizinho já conheceu.

Catalunha: amarga derrota do separatismo

Pedro Correia, 14.05.24

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Os separatistas catalães sofreram uma das suas maiores derrotas nas eleições regionais de domingo, que o Partido Socialista venceu por margem confortável. Perderam mais de 200 mil votos em relação ao escrutínio anterior, realizado em 2021. E conseguiram apenas 61 lugares - repartidos por quatro siglas partidárias - num parlamento autonómico com 135 assentos. Os restantes 74 cabem a partir de agora às forças políticas constitucionalistas, que combatem o separatismo.

Em percentagem a diferença é ainda mais expressiva: 53,4% para os diversos partidos que advogam a organização territorial inscrita na matriz constitucional espanhola e 43,2% para os que querem romper com ela. Incluindo os 4,1% da CUP (extrema-esquerda) e os 3,8% da novíssima Aliança Catalã (extrema-direita). 

Estas eleições confirmam uma evidência: existe em solo catalão uma facção separatista claramente minoritária, apostada em impor a sua cartilha ideológica à maioria dos habitantes da Catalunha, que não quer cortar os vínculos políticos com o Estado espanhol e se revê no actual quadro constitucional e estatutário.

 

Isto acontece enquanto alguns em Portugal teimam em reclamar aos gritos o «direito à autodeterminação», como se este não vigorasse já na Catalunha - autonomia dotada de mais poderes do que a esmagadora maioria dos Estados federados na União Europeia. Tem órgãos próprios em matéria política, judicial, policial, tributária, sanitária, educativa, linguística, cultural e desportiva.

Não existe democracia sem o império da lei. Neste caso, o conjunto do Estado espanhol - Catalunha incluída - rege-se pela Constituição de 1978 que, ao contrário da lei fundamental portuguesa, recebeu luz verde em referendo, com 95% de aprovação dos eleitores catalães (segunda maior percentagem a nível nacional). Rege-se ainda pelo Estatuto Autonómico da Catalunha, igualmente validado em referendo, a 25 de Outubro de 1979, com o voto favorável de 88% dos eleitores catalães. O mesmo sucedeu com o Estatuto Autonómico de 2006, que entrou em vigor precedido de referendo regional, realizado a 18 de Junho desse ano, com a aprovação de 73,9% dos catalães.

 

A comparação com Portugal é-nos desfavorável: nunca os eleitores da Madeira e dos Açores foram consultados para se pronunciarem nas urnas sobre os respectivos estatutos de autonomia política. 

Nesta matéria, a Constituição portuguesa tem uma visão mais estreita do que a espanhola. A tal ponto que a nossa proíbe expressamente a existência de partidos regionais, em manifesta tentativa de dissuadir movimentos de índole separatista nas regiões autónomas. No seu artigo 51, parágrafo 4, a lei magna de 1976 é categórica: «Não podem constituir-se partidos que, pela sua designação ou pelos seus objectivos programáticos, tenham índole ou âmbito regional.» Interdição repetida, palavra a palavra, no artigo 9 da Lei dos Partidos Políticos.

Esta sim, é uma norma absurdamente restritiva à luz dos padrões europeus. Basta recordar que Alemanha e França, por exemplo, autorizam partidos regionalistas na Baviera e na Córsega.

Se queremos defender o "direito à autodeterminação", comecemos pela nossa própria casa, em defesa da revogação deste interdito constitucional.

Os que por cá dizem que a Constituição de Espanha é para rasgar são os mesmos que invocam a Constituição portuguesa com sacrossanta veneração. Os "direitos adquiridos" nas tábuas da lei afinal são só para alguns. Deste lado da fronteira, não do outro.

Ler (33)

Quando o jornalismo se torna literatura

Pedro Correia, 05.05.24

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Kim Kardashian: «lábios de embuste»

 

Já falei aqui sobre o meu crescente interesse pela literatura espanhola. Ao ponto de vários dos meus romances ou novelas favoritos dos últimos cem anos serem de autores do país vizinho. Estes, por exemplo: Tirano Banderas (Ramón de Valle-Inclán), Nada (Carmen Laforet), Os Mares do Sul (Manuel Vásquez Montalbán), Coração Tão Branco (Javier Marías), Instruções Para Salvar o Mundo (Rosa Montero), Pátria (Fernando Aramburu) e Os Teus Passos nas Escadas (Antonio Muñoz Molina).

Este interesse estende-se aos colunistas da imprensa. Pelo mais óbvio dos motivos: escreve-se muito bem nos jornais espanhóis. São peças de literatura as crónicas, as reportagens, até os editoriais. Abundam os escritores que recusam enclausurar-se em torres de marfim, molhando os pés e exercitando a pena em colunas quotidianas onde exibem a sua prosa inconfundível, marcada pelo "ruído da rua" (título da coluna de Raúl del Pozo no El Mundo). E não faltam jornalistas que em nada se distinguem dos melhores prosadores contemporâneos de língua castelhana: Pedro Cuartango, Lucía Méndez, Ignacio Camacho, Jorge Bustos, Manuel Jabois, Emilia Landaluce, José Peláez, Maite Rico, Daniel Gascón, Rebeca Argudo. Falei de alguns aqui, em 2017, quando o El Mundo deixou de distribuir edição impressa em Portugal - decisão felizmente revertida algum tempo depois.

O melhor colunista é aquele que não se limita a emitir opinião: consegue criar metáforas e expressões tão sugestivas que se incorporam na linguagem comum. Tivemos nós também um deles, o melhor de todos: Vasco Pulido Valente, que cunhou o termo geringonça, aplicado à solução política que António Costa encabeçou entre 2015 e 2019. Mas, de modo geral, quem escreve na imprensa portuguesa perde fatalmente na comparação com Espanha. Mesmo nos temas mais fúteis.

Acabo de ler, no ABC de ontem, uma crónica de Ángel Antonio Herrera sobre a "influenciadora" norte-americana Kim Kardashian - talvez uma das mulheres mais fotografadas do mundo. Descreve-a com aquela linguagem castiça que tanto aprecio entre os espanhóis dizendo que ela tem «lábios de embuste». Espantosa expressão, tão inesperada e sugestiva.

Eis um caso concreto em que o jornalismo se transforma em literatura, libertando-se do estéril lugar-comum. Quem gosta de ler agradece. E que não restem dúvidas: continuamos a ser muitos. 

Outra derrota de Pedro Sánchez

Pedro Correia, 20.02.24

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Derrota copiosa dos socialistas espanhóis. Mais uma, neste domingo. Agora foi na Galiza. Como já tinha sido em Madrid, na Andaluzia, em Castela e Leão, na Extremadura, em Valência, em Múrcia, na Cantábria, em Aragão, na Rioja e nas Baleares. A nível territorial, o PSOE só conserva hoje a presidência por maioria absoluta de um dos 17 territórios autonómicos do país vizinho: Castela-A Mancha, aliás governada pelo maior opositor interno de Pedro Sánchez, Emiliano García-Page.

Um descalabro.

Já tinham sido derrotados nas legislativas de Julho de 2023, embora acabassem por formar governo traindo tudo quanto haviam prometido ao celebrarem um acordo pós-eleitoral com cinco forças nacionalistas, três das quais assumidamente separatistas. Sánchez, tentando manter-se no poder a qualquer preço, cedeu em toda a linha aos independentistas catalães e aos herdeiros políticos da ETA no País Basco.

O caderno reivindicativo destes parceiros de coligação, que não escondem a intenção de destruir o Estado espanhol, vai acumulando cada vez mais exigências: a frágil maioria do PSOE irá quebrar-se a curto prazo. Algo inevitável, quando uma deputada independentista proclama no plenário das Cortes, em Madrid: "Não podemos estar submetidos ao poder judicial." Alude à magistratura nacional espanhola, em linguagem de "povo colonizado" contra a potência colonizadora. Parece que vão a bordo de uma nave de loucos.

 

Neste quadro, as regionais na Galiza funcionaram também como sondagem à gestão política de Sánchez, indivíduo totalmente desprovido de escrúpulos. Basta lembrar que formou o governo anterior com a esquerda mais extrema após ter afirmado, durante a campanha, ser «incapaz de dormir à noite, tal como 95% dos espanhóis», se o Podemos chegasse a ter pastas ministeriais. Contados os votos, mandou a jura às malvas e abraçou-se a eles.

Agora vê o seu partido sofrer a maior derrota de sempre no noroeste peninsular. Com apenas 14%, o PSOE perde cinco deputados: restam-lhe nove. Atrás do Partido Popular (47,4%, 40 deputados) e do Bloco Nacional Galego (31,6%, 21 deputados). Houve ainda um deputado regionalista, eleito por Ourense. 

O PP atraiu 60 mil novos eleitores, em comparação com as anteriores autonómicas, em 2020, enquanto os socialistas viram fugir mais de 50 mil votos. Os extremistas mantiveram-se fora do parlamento regional: nem a ultra-direita do Vox (2,2%) nem os comunistas do Sumar (0,89%) nem o Podemos (0,26%) conseguiram representação. Todos naufragaram nas urnas, excelente notícia.

 

O cerco ao PSOE, cada vez mais evidente, está a suceder por via das sucessivas eleições regionais. Em 2021, em Madrid, o PP teve mais mandatos do que toda a esquerda: então, também aí, os socialistas registaram o seu pior resultado de sempre. Em 2022 sofreram uma inédita derrocada eleitoral no seu feudo andaluz. 

Sánchez, a partir de agora, vai dormir cada vez pior. Não por causa do Podemos, que quase desapareceu do mapa político devido a uma série de convulsões internas, mas das ligações perigosas ao supremacismo catalão - incluindo o partido que mantém comprovados vínculos com Moscovo.

Tem tudo para acabar mal. E não duvidem: vai acabar mesmo.

Um banco com vista: Cuenca

Ana CB, 24.01.24

Se existe um lugar na Espanha que desafia a gravidade e desperta a sensação de vertigem em cada esquina, esse lugar é Cuenca. Vista de cima, das redondezas do Castelo, a cidade parece uma montagem fotográfica. As casas são como que um prolongamento dos penhascos calcários, absolutamente verticais nas suas formas orgânicas que a erosão criou. São camadas de pedra e telha sobre camadas de rocha estratificada, suavizada até perder as suas arestas, e não se percebe onde acaba uma e começam as outras. Não se distingue a obra da Mãe Natureza da que foi feita por mão humana.

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Lá em baixo corre o rio Huécar, tão fino que nem se vê, escondido pela altura, pela vegetação, ofuscado pela dimensão do antigo Convento de San Pablo, agora tornado Parador e centro cultural. Pairando acima da garganta sinuosa por onde desliza o rio e das estradas igualmente serpenteantes rasgadas na encosta, salta à vista o metal vermelho-escuro da ponte pedonal de San Pablo, que liga o casco antíguo à colina preenchida pela robustez das formas do convento.

 

Arquitectura em suspensão

 

Entre a mole de edifícios aglomerados sobre os penhascos destaca-se também a corpulência da Catedral, e só aqui de cima é que é possível perceber a sua verdadeira dimensão. Mais ao longe, a enganadoramente mudéjar Torre de Mangana e o seu relógio, e a cúpula azulada do Museo de las Ciencias de Castilla-La Mancha. Mais distantes ainda, adivinham-se os contornos dos edifícios da parte mais moderna da cidade, com a Serranía de Cuenca como cenário.

 

Sobre o abismo, como se tivessem sido coladas ao penhasco numa brincadeira de criança, as Casas Colgadas parecem flutuar no ar, contrariando as leis da física. Remontam aos séculos XIV e XV, período em que Cuenca teve um rápido desenvolvimento, e destacam-se pelos seus balcões suspensos, que se projectam para fora da borda do desfiladeiro rochoso sobre o qual a cidade está construída. Serviam originalmente como residências e armazéns para os comerciantes locais, com a sua posição proeminente a facilitar o acesso directo ao rio Huécar. Os balcões tornaram-se uma característica distintiva da arquitectura local, mas ao longo dos séculos algumas das casas foram modificadas e reconstruídas para satisfazer as necessidades dos proprietários. No início do século XX, as Casas Colgadas começaram a atrair a atenção de artistas e escritores, e tornaram-se um ícone da cidade. Por iniciativa do pintor Fernando Zóbel, em 1966 passaram a abrigar o Museo de Arte Abstrato Español, o que contribuiu significativamente para o reconhecimento e preservação destes singulares edifícios medievais. Por estranho que possa parecer alojar um museu dedicado às correntes mais modernas da arte nestes edifícios seculares, a parceria resulta: o intimismo singelo dos interiores, que mantêm alguns elementos arquitectónicos antigos, casa bem com a abstracção das obras expostas, e dá-lhes o relevo necessário, sem as abafar. E as janelas abertas sobre a vertigem da altura a que as Casas Colgadas estão suspensas são um bónus que não pode ser desprezado.

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Vertigem invertida

 

A vista a partir deste banco-miradouro esconde o outro lado da cidade, aquele onde corre o rio Júcar, de que o Huécar é um afluente. O Júcar define o flanco norte dos penhascos, a face mais sombria de Cuenca mas também a mais fresca, onde um parque e um percurso ordenado ao longo do rio são um refúgio abençoado nos dias quentes da região manchega. Ali a vertigem sente-se em sentido inverso, de baixo para cima, o olhar subindo pelas paredes de rocha e depois pelos edifícios que parecem perder-se nas alturas.

É à beira do Júcar que estão dois dos locais religiosos mais importantes da cidade. Junto à ponte de San Antón, mirando o rio, brilha a igreja barroca da Virgen de la Luz, “casa” da padroeira da cidade – uma virgem negra, cuja veneração remonta aos séculos XII-XIII por via de uma lenda associada à reconquista de Cuenca pelos cristãos. Seguindo o desfiladeiro para montante do rio, chegamos ao Santuário de Nuestra Señora de las Angustias, outra virgem muito popular entre os devotos conquenses. Não fossem as placas indicativas e o seu portal quase excessivamente barroco, esta ermida poderia passar despercebida, rodeada que está de arvoredo e quase encaixada no penhasco. Esta parte da cidade, onde a presença e a beleza do rio Júcar se impõem, tem uma atmosfera particularmente romântica.

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Marcos da História

 

Aninhada nas profundezas da região de Castilla-La Mancha, Cuenca foi fundada pelos mouros numa posição defensiva no coração do Califado de Córdova. Conquistada pelos castelhanos no século XII, a sua localização entre Madrid e Valência tornou-a um centro comercial estratégico durante a época medieval. O casco antíguo da cidade é um museu vivo, com as suas ruas labirínticas ladeadas por edifícios medievais e renascentistas bem preservados.

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A Catedral de Santa María e San Julián de Cuenca foi a primeira catedral gótica de Espanha, e um dos exemplos mais emblemáticos deste estilo arquitectónico no país. É um monumento invulgar, cuja fachada parece inacabada e tem a particularidade de exibir elementos gótico-normandos, com detalhes decorativos, incluindo esculturas religiosas e motivos ornamentais. Está situada na Plaza Mayor, de formato oblongo e dimensões modestas por comparação com as plazas homónimas de outras cidades espanholas, ocupada numa das extremidades pela Casa Consistorial, sede do Ayuntamiento de Cuenca e facilmente identificável por estar construída sobre os três arcos que dão acesso à Calle Alfonso VIII. Nesta rua esguia do bairro de San Martín, os edifícios altos e estreitos, colados uns aos outros e pintados de cores que não passam despercebidas, com as suas janelas-varandas adornadas de ferro forjado, fazem lembrar arranha-céus, e o olhar apenas distingue uma nesga de espaço acima deles.

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Cuenca é um daqueles lugares fora do comum, que deixam uma marca duradoura na memória pela sua singularidade. Mas é mais do que isso. Ao explorar a cidade, onde o orgânico e o construído se misturam sem atropelos, percebemos como é possível integrar e harmonizar a inventividade humana com o ambiente, em vez de irmos pelo caminho mais curto, subjugando-o aos nossos desejos. Cuenca é um exemplo inspirador de como a presença humana e a natureza não têm de puxar para lados opostos.

Que tal experimentarem?

Pedro Correia, 02.11.23

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Pedro Sánchez renovou o pacto de governação com a esquerda radical em Espanha. Mais do mesmo, mas num quadro muito frágil: o PSOE necessitará do apoio dos separatistas e republicanos catalães, por um lado, e dos soberanistas e filo-terroristas bascos, por outro, além dos nacionalistas da ultra-esquerda galega, para conseguir uma precária aritmética parlamentar. Que promete vida curta ao próximo Executivo.

Reformas à vista? Para já, apenas no plano vocabular. Em vez de "consumidores" a novilíngua socialista instituiu a designação "pessoas consumidoras". Em vez de trabalhadores, "pessoas trabalhadoras". Enquanto se dirige aos "cidadãos e cidadãs" prometendo (por exemplo) transportes de qualidade "para todos e todas".

 

Disparates que contrastam em absoluto com aquilo que Emmanuel Macron defendeu na terça-feira, ao inaugurar a Cidade Internacional da Língua Francesa. O inquilino do Eliseu pronunciou-se contra a chamada linguagem inclusiva, que distorce uma regra fundamental dos nossos idiomas de raiz latina: o masculino prevalece enquanto fórmula neutra e para a formação do plural indiferenciado, sem especificações de género.

Nunca percebi, aliás, por que motivo os cultores de redundâncias, que adoram duplicar palavras em nome do combate ao "heteropatriarcado tóxico", não levam esta lógica até ao fim. Para serem coerentes, deviam dizer "os ricos e as ricas, os poderosos e as poderosas, os corruptos e as corruptas". Etc, etc.

Que tal experimentarem?

A gota de água

Cristina Torrão, 15.09.23

Algo está podre. Desta vez, não no reino da Dinamarca.

As futebolistas espanholas campeãs do mundo e outras jogadoras decidiram não responder à próxima convocatória da selecção, considerando insuficientes as mudanças na Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) após o designado "caso Rubiales".

Logo nos dias posteriores à final do mundial, mais de 80 futebolistas espanholas divulgaram um comunicado de solidariedade com Jenni Hermoso e anunciaram que recusavam jogar na selecção nacional de Espanha se não houvesse mudanças na federação.

Mais deste assunto?

A procissão parece ir apenas no adro. O episódio do beijo mais não foi do que a gota de água.

E não subestimemos a "nossa" Mariana Cabral.

O futebol foi exclusivamente masculino durante quase um século. É natural que, atingindo o futebol feminino grande notoriedade, as estruturas entrem em convulsão. Natural e necessário.

Espero que as jogadoras espanholas sirvam de exemplo nos quatro cantos do mundo.

A ler

Cristina Torrão, 27.08.23

A nova Europa

Cristina Torrão, 21.08.23

No passado dia 6, apresentei aqui as últimas sondagens alemãs, indicando o AfD como segunda força política do país. O AfD é um partido conotado com a extrema-direita, o que, vindo da Alemanha, tem sempre um peso especial.

Tem? Ou tinha?

Na verdade, no que a este blogue diz respeito, os comentadores, em geral, contemporizaram, filosofando sobre o valor das sondagens, os fracassos dos actuais governos europeus e o verdadeiro significado da expressão “extrema-direita”. Fiquei surpreendida. Há uns anos (não muitos), uma sondagem alemã que apontasse um partido destes como segunda força do país provocaria uma torrente de indignações. Falar-se-ia das tendências racistas alemãs, de Hitler, do nazismo e haveria decerto quem se apressasse a distanciar o líder do Chega de tais correntes.

Hoje já não é possível. O referido líder português esteve, há pouco tempo, num congresso do AfD, em Magdeburgo. O que não deixa de ser estranho, tendo em conta a aversão que os nossos “cheguistas”, na afirmação da sua lusitanidade, têm em relação aos europeus loiros e de olhos azuis. A verdade é que o nosso “chefe” debitou (em inglês) uns lugares-comuns sobre a construção de mesquitas em solo europeu e foi muito aplaudido. Ou, pelo menos, assim parece, num vídeo publicado no canal do seu partido no YouTube.

Para quem torne a duvidar do carácter extremista do AfD, não é segredo nenhum, na Alemanha, que o partido conta, nas suas fileiras, com elementos do antigo NPD, esse, sim, assumidamente nazi. E, de vez em quando, surgem exemplos, indicando as suas verdadeiras tendências. O seu líder revelou, recentemente, os planos que tem no caso de chegar ao poder na região de Turíngia e, para a educação, deu a entender que irá determinar que as crianças com deficiência seriam proibidas de frequentar as escolas do ensino regular. Gerou uma onda de protestos dos outros partidos. Este é um tema muito sensível, na Alemanha, pois, como se sabe, o regime nazi era muito discriminatório, nesta questão, chegando a aplicar a eutanásia em pessoas com deficiência.

O chefe do AfD em Hamburgo causou igualmente perplexidade, numa entrevista de Verão, ao defender a construção de uma qualquer barreira à volta de um centro de apoio a viciados em droga, a fim de os esconder dos turistas. Esse centro situa-se perto da Estação Central de Hamburgo e, na sua opinião, os visitantes da cidade têm o direito de não serem incomodados com a visão da “miséria” (já agora, digo eu, escondam-se igualmente os pobres e os pedintes). Estas declarações chocaram ainda mais, pois havia a ilusão de que os representantes do partido, em Hamburgo, teriam princípios mais democráticos do que os seus colegas do Leste.

Também o aumento do anti-semitismo, neste país, é motivo de preocupação. A extrema-direita, incluindo a alemã, é cada vez mais aceite e ganha adeptos. Os partidos dos vários países unem-se. Mesmo o nosso representante, como vimos, já é “tu cá, tu lá” com a versão branqueada dos nazis. E, se os partidos crescem, nada mais nos resta do que aceitar a escolha popular.

Que seja! Pergunto-me, sobretudo, se esse camaradismo a nível europeu continuaria, caso os partidos chegassem ao poder. Não me custa imaginar uma guerra entre a Alemanha e a França, pela liderança da “nova Europa” (sim, que a Le Pen tem pêlo na venta e não se deixava ficar). E, se o VOX chegasse a um qualquer acordo com o vencedor da disputa, Portugal seria, finalmente, uma província espanhola. O nosso “chefe” com muito gosto se subjugaria, em nome de uma qualquer segurança, ou de uma sociedade limpa de misérias e de teorias inclusivistas.

Uma estratégia falhada a longo prazo

João Pedro Pimenta, 30.07.23

As eleições de Espanha, que redundaram num triunfo relativo do PP de Feijóo e na resistência do PSOE, mostraram ainda mais, como se fosse necessário, como o país está partido e se tenta fazer uma divisão esquerda-direita intransponível. Pedro Sánchez preferiu aliar-se com tudo o que mexia a permitir por abstenção a investidura de um governo minoritário do PP, respaldado a pactos de regime. Isso permitiria que o Vox não interferisse com um governo PP, mas para Sanchez isso não era suficiente, e, como se viu, para conservar o seu poder, preferiria aliar-se ao diabo do que ver um governo do PP, com ou sem Vox. E de facto isso pode acontecer, se tiver de novo o apoio da esquerda radical, o Sumar que deixou o Podemos nas lonas, tão cor-de-rosa por fora e tão retintamente vermelho por dentro, herdeiro em linha directa das que por ali se encontravam no tempo da Guerra Civil. A nova estrela local, Yolanda Díaz, afirmou há não muitos anos querer acabar com o espírito da transição e com a própria monarquia. Realce-se que Díaz é natural do Ferrol, ironicamente tal como o Generalíssimo Franco, cidade que outro ilustre conterrâneo, Gonzalo Torrente Ballester, dissera nunca ter criado nada que prestasse. Para além do Sumar, Sánchez precisará do apoio de muitas outras formações, como os desavindos partidos independentistas catalães, que até caíram estrondosamente, uma data de formações regionalistas, e do País Vasco, o habitual PNV, que governa a região, mas sobretudo o Bildu, sucessor directo do Herri Batasuna, o braço político da ETA, que continua a ser chefiado pelo mesmo Arnaldo Otegui. É com este saco de gatos que Sánchez pretende manter o PP afastado do poder.

 

O pretexto do Vox redunda em falsidade, como se vê, mas é muito usado e aparentemente eficaz. Aqui, Sánchez está muito próximo de António Costa, que usou e abusou do fantasma do Chega para obter votos à esquerda e impedir o PSD de melhores resultados e também obteve visível êxito. A estratégia pode ser boa agora, mas poderá trazer graves consequências mais tarde. A eternização do poder, a falta de alternativas e a normalização da direita radical podem fazer com que esta cresça mesmo a médio prazo, rompendo quaisquer cordões sanitários e aproveitando-se da terra que os socialistas vão queimando. E há precedentes além-Pirenéus.

Nos anos oitenta, estando no poder, onde conseguiu controlar os comunistas, e para evitar a progressão da direita gaullista e republicana, François Mitterrand conseguiu alterar a regra eleitoral do modelo de voto maioritário para um proporcional. Permitiu assim que a Frente Nacional de Le Pen ganhasse um número apreciável de deputados no parlamento às custas da direita e, desde então e por arrasto, dos comunistas, coisa que Mitterrand talvez não imaginasse à época mas lhe seria útil para se desembraçar deles colocando o PSF como partido hegemónico da esquerda francesa. O então presidente era um tacticista sob as vestes do idealista, e seguia as teses maquiavélicas que tanto influenciaram dois estadistas do século XVII: os cardeais Richelieu e Mazarino. Essa influência transmitiu-se-lhe mesmo de forma pessoal: soube-se que tinha uma segunda família e uma filha a que deu o nome de...Mazarine, o que não era certamente por acaso.

 

 

 

Só que tudo isto teve um preço. Hoje em dia, não só o PCF é quase irrelevante e a direita republicana está em declínio como o próprio PSF se tornou um partido de terceira categoria, de influência quase nula, empastelado numa coligação chefiada por um demagogo de esquerda radical, ao passo que o cenário político está dividido entre este último, o centro radical de Macron e a dinastia Le Pen, que Mitterrand ajudou a guindar-se. Eis o resultado de se querer manter o poder a todo o custo insuflando-se as direitas radicais para enfraquecer as moderadas: um dia, o desespero e a revolta de ver o poder ocupado pelos mesmos acabará por dar aos radicais o poder, catapultando-os com enorme aumento de votos. Isso já está a acontecer noutras paragens. Aconselhava-se por isso os srs. Sánchez e Costa a olhar para França e a não brincarem aos defensores da democracia - e sobretudo a não brincarem apenas com os radicais do seu espectro político.

Eleições em Espanha: dez apontamentos

Pedro Correia, 25.07.23

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Pedro Sánchez e Nuñes Feijóo: doce derrota para um, amarga vitória para outro

 

1. Vitória escassa do PP - primeira deste partido, em eleições legislativas, desde 2015. Alberto Nuñez Feijóo, ex-presidente regional galego e agora líder nacional dos conservadores, recupera 47 lugares no Congresso dos Deputados, subindo de 89 para 136. Mas ainda a 40 da maioria que lhe permitiria governar sem coligação. Nem lhe basta o eventual apoio do Vox, que perdeu 19 assentos parlamentares, caindo de 52 para 33. Desfecho «com o sabor amargo de um penálti falhado», na certeira síntese de Ignacio Camacho ontem no ABC.

 

2. Pedro Sánchez sai derrotado, mas por pouco. Ganha dois deputados: tinha 120, fica com 122. O seu Partido Socialista Operário Espanhol tem fortes hipóteses de voltar a formar governo, embora em condições mais difíceis. Sua parceira natural: a nova agremiação Sumar, que congrega 15 partidos e movimentos distribuídos por 31 lugares no parlamento. Aquém dos 38 antes pertencentes ao Unidas Podemos e dois partidos adjacentes, todos da esquerda radical. E com menos 600 mil votos.

 

3. Para governar, Sánchez necessita não apenas do apoio da ultra-esquerda, claramente escasso, mas também do conjunto das forças separatistas da Catalunha e do País Basco, tanto moderadas como radicais. Com riscos adicionais: estas forças competem entre elas e saem enfraquecidas das urnas, derrotadas pelos socialistas, e proclamarão novas exigências. O PSOE venceu nas quatro províncias catalãs, reforçando ali o seu poder. E foi o mais votado pelos eleitores bascos, que em 2024 voltarão às urnas, desta vez para eleições autonómicas. 

 

4. Se Sánchez for reconduzido como líder do Executivo, esta será a estreia de um partido a governar sem ter vencido as legislativas desde que a democracia foi restabelecida em Espanha, há quase meio século. "Geringonça" à espanhola, oito anos depois da nossa. Quando o modelo português já se extinguiu. 

 

5. Um dos partidos desta provável coligação "Frankenstein", como lhe chamam no país vizinho, é o Bildu. Herdeiro político da ETA, que nunca condenou expressamente os mais de 800 homicídios cometidos pela organização terrorista. 

 

6. A maior novidade neste bloco de forças nacionalistas e separatistas prestes a viabilizar nova legislatura socialista será a inclusão do Juntos Pela Catalunha, partido independentista catalão liderado por Carles Puidgemont, exilado na Bélgica após ter sido condenado em Espanha pelos crimes de sedição, peculato e desobediência.

 

7. Feijóo, que agora levou o PP à vitória em 38 das 50 províncias espanholas, reivindica a oportunidade de formar governo, alimentando a expectativa de que será convocado pelo Rei Filipe VI com esse objectivo, certamente condenado ao fracasso. Sobretudo pela presença tóxica do Vox nessa muito improvável coligação de poder: nenhuma força autonomista dialoga com a ultra-direita, que quer restaurar o Estado centralista e unitário, contrariando a Constituição de 1978.

 

8. O Vox - partido-irmão do Chega, de André Ventura - vê fugir nestas legislativas mais de 600 mil votos. Perde, além disso, dois importantes instrumentos políticos: o direito de apresentar recursos ao Tribunal Constitucional (só permitido a grupos parlamentares com pelo menos 50 deputados) e a apresentar moções de censura (apenas ao alcance de uma bancada com 35 representantes no Congresso). A partir de agora, nem um, nem outro.

 

9. Mas a missão alternativa de Sánchez não será muito mais fácil. Desde logo porque o PP conquistou maioria absoluta no Senado, segunda câmara legislativa. Após uma campanha muito crispada, o diálogo entre os dois partidos é quase inexistente. Se os bloqueios persistirem, serão convocadas novas eleições antes do fim do ano. 

 

10. Desaparecido o Cidadãos - partido liberal que chegou a vencer as autonómicas na Catalunha em 2017 e elegeu 57 deputados nas legislativas de Abril de 2019 - e o Podemos hoje reduzido à irrelevância, os dois maiores blocos políticos, conservador e social-democrata, somam 64,6% dos votos. O bipartidarismo sai, portanto, reforçado das urnas. Mas é um reforço sem pontes, só com trincheiras. Porque os dois partidos parecem cada vez mais reféns dos extremos nesta era tão propícia aos radicalismos. O "bloco central" que reclama o director do jornal digital El Español, Pedro J. Ramirez, está longe do horizonte. Eis um filme sem a menor garantia de ter final feliz.

Ler (24)

História sem teias de aranha e cheia de alusões a Portugal

Pedro Correia, 22.07.23

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Este é o género de livro que abre o apetite para o estudo da História. Escrito por Arturo Pérez-Reverte, que se distinguiu como grande jornalista e excelente repórter de guerra e é hoje um dos mais notáveis romancistas espanhóis. Um livro original: lembra factos históricos do país vizinho - desde muito antes de a actual Espanha se chamar assim - e desenrola-os como se colasse cromos numa caderneta. Comentando com frequência cada acontecimento ou cada episódio de modo sarcástico. Estabelecendo por vezes contrastes com o momento presente.

Faz-nos sorrir, faz-nos pensar.

Esta obra, Una Historia de España, é redigida em vários tons, conforme se sucedem os temas e as épocas - do melancólico ao agreste, do empolgante ao desencantado. Típico de quem ama intensamente o seu país, por mais pragas que lhe rogue. Eis um exemplo: «A Carlos III sucedeu o imbecil do seu filho, Carlos IV» (p. 111) Uma pátria é assim mesmo: como alguém da nossa família. Com quem nos alegramos, com quem nos zangamos, com quem nos reconciliamos. Alguém que nos toca sempre.

Título do primeiro texto: "Tierra de conejos". Eis os nove seguintes (seguem no original, para não se perder a expressiva verve castelhana): "Roma nos roba"; Rosa, rosae. Hablando latín"; "Roma se va al carajo"; "El puñal del godo"; "Y nos molieron a palos"; "Um niño pijo de Oriente"; "Moros y cristianos"; "Una frontera de quita y pon"; "Llegan más moros". O último, não por acaso, chama-se "Epílogo Triste, O No".

 

Falando do passado, fala-nos também do presente. Em diálogo permanente com o leitor: parece fácil, mas não é. Com um talento só ao alcance dos melhores escritores.

Alguns excertos - tradução minha - caracterizam a terra e as gentes: «A inveja, poderoso sentimento nacional» (p. 57); «A marca de Caim, que todo o espanhol transporta na sua memória genética» (p. 64); «Nisto de darmos tiros no próprio pé, aos espanhóis sempre nos parece pouco» (p. 87); «Napoleão deu-nos como presente envenenado a devolução do rei mais infame de que há memória» (p. 123); «A velha e turva Espanha, pródiga em rancores, nunca esquece os seus ajustes de contas» (p. 163); «Espanha seria um país estupendo se não estivesse cheia de espanhóis» (p. 181); «Ninguém se suicida historicamente com tão enternecedora naturalidade como um espanhol com uma arma na mão e uma opinião na língua» (p. 246).

 

Portugal é várias vezes mencionado: contei 15 referências. Destaco duas.

«Herdeiro de Portugal inteiro (sua mãe, a belíssima Isabel, era princesa de lá) após fulminar os discordantes na batalha de Alcântara, Filipe II cometeu, se me permitem esta opinião pessoal e intransmissível, um dos maiores erros históricos nesta secular balbúrdia em que tão mal vivemos: em vez de mudar a capital para Lisboa - antiga e senhorial - e dedicar-se a cantar fados contemplando o Atlântico e as possessões da América, que eram o esplêndido futuro (calculem o que somavam os impérios espanhol e português, juntos sob a mesma coroa), o nosso timorato monarca enclausurou-se no centro da Península, no seu mosteiro-residência do Escorial, gastando o dinheiro que vinha das possessões ultramarinas hispano-lusas, além dos impostos com que sangrava Castela.» (p. 74)

«Marginalizados, inundados de impostos, desatendidos nos seus direitos e pagando também o preço nas suas possessões ultramarinas acossadas pelos piratas inimigos de Espanha, com um império colonial próprio que em teoria lhes fornecia abundantes recursos, em 1640 os portugueses decidiram recuperar a independência após 60 anos sob domínio espanhol. Vão àquela parte, disseram. Assim proclamaram o rei João IV, antes duque de Bragança, dando início à guerra, longa de 28 anos, em que se acabou por capar o porco» (p. 94).

 

Li de um fôlego Una Historia de España na versão original. Ainda antes de haver tradução portuguesa. De imediato senti que gostaria imenso de ver obra semelhante produzida entre nós. Sobre a nossa História, tão desprezada e tão esquecida.

Poderia algum dos nossos prosadores mais consagrados descer do pedestal da verborreia lusa, espanejar teias de aranha e conseguir algo semelhante?

Havia um, mas infelizmente já cá não está: Vasco Pulido Valente. Seria um livro adequado à pena dele.

A espada de D. Dinis, Alcanices e os meus antepassados espanhóis

Cristina Torrão, 30.10.22

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A recuperação da espada funerária de D. Dinis, em sequência do restauro do seu túmulo, é uma sensação arqueológica mundial. Escolhi, de propósito, uma imagem com legenda em inglês, de uma página do Facebook intitulada Swordmaker, a fim de mostrar o quanto este achado já agitou a comunidade internacional, tanto de profissionais, como de entusiastas e amantes da época medieval. É uma espada lindíssima, que será restaurada e dará informações preciosas sobre a arte e a estética medievais ibéricas, mas também sobre a sua relação com as restantes tendências europeias.

Com a abertura do túmulo, recuperaram-se, igualmente, restos mortais, nomeadamente, o crânio, possibilitando uma reconstituição do rosto de D. Dinis (algo que aguardo com grande expectativa), assim como os tecidos das suas vestes. Ainda há muito para descobrir sobre a Idade Média. Em muitos campos, como o do vestuário, continua a trabalhar-se com hipóteses ou probabilidades (não exclusivamente).

D. Dinis é conhecido por ter sido poeta/trovador, fundado a Universidade e incrementado a agricultura, mas os seus quarenta e seis anos de reinado (1279-1325) tiveram bem maior significado. O cognome Lavrador não lhe faz justiça. Além da agricultura, ele incrementou a pesca e o comércio. Além disso, incentivou a substituição do latim pelo português nos documentos oficiais (dando um grande contributo para a uniformização da nossa língua), reformou quase todos os castelos e foi um diplomata de excepção (importantíssimo para a estabilidade do reino castelhano, à época, cheio de convulsões internas). O seu reinado teve, porém, facetas amargas, como o conflito armado com o irmão Afonso e os desentendimentos com o seu próprio herdeiro, futuro D. Afonso IV, que mergulharam o reino numa guerra civil e terão inclusive tirado anos de vida ao Rei Poeta.

Há ainda algo que raramente se refere, mas de uma importância extrema: D. Dinis foi o responsável pelas fronteiras definitivas de Portugal, ao incluir no reino, de forma pacífica, as localidades de Moura, Serpa, Noudar e Mourão, e alguns lugares de Ribacoa, como Castelo Rodrigo, Almeida e Sabugal. Foi este o resultado do Tratado de Alcanices (ou Alcañices), assinado a 12 de Setembro de 1297, entre D. Dinis e D. Fernando IV, sob a tutela de D. Maria de Molina, mãe do rei castelhano, que, à altura, tinha apenas onze anos.

Emociona-me que D. Dinis possa, sete séculos depois da sua morte, contribuir tanto para entendermos melhor a sua época. Ele tem sido uma presença recorrente na minha vida, ao longo da última década. Comecei por gozar da sua “companhia” nos dois anos passados em trabalhos de pesquisa e na escrita da sua biografia romanceada, hoje existente apenas numa reedição de autor (neste caso, de autora).

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Mas o meu elo de ligação ao Rei Lavrador passa também por Alcanices, uma ligação que não reside apenas no facto de já lá ter passado dezenas de vezes, nas minhas viagens entre a Alemanha e Portugal, pois entro pela fronteira de Quintanilha. Uma das minhas bisavós (avó paterna do meu pai), Maria de Jesús Rodriguez, era natural de Fonfría, uma localidade do concelho de Alcanices, por onde aliás também passo (não há auto-estrada entre Zamora e Quintanilha). Os pais e os avós de Maria de Jesús Rodriguez (meus tris- e tetravós) eram todos daquela zona. Além de Fonfría, registam-se outros lugares com nomes tão interessantes como Carvajales, Mancenal del Barco e Perrilla de Castro. Tudo isto eu apurei no Arquivo Distrital de Bragança, onde já passei horas e horas a consultar, transcrever e fotografar registos dos livros paroquiais antigos. Se quiser ir mais longe na árvore genealógica, terei, aliás, de ir ao Arquivo de Zamora.

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Esta zona espanhola (eu gosto de dizer leonesa), tão parecida com Trás-os-Montes, no seu isolamento e nas suas pequenas aldeias (algumas não chegam a atingir a centena de habitantes) tornou-se de grande importância para mim. Não passo lá uma única vez sem imaginar os meus antepassados nos seus trabalhos quotidianos e D. Dinis a assinar um dos tratados mais importantes da nossa História.