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Delito de Opinião

Deslumbramento (VI)

João André, 29.08.22

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Sinceramente pensei que tivesse acabado com este tema, mas nos últimos meses tornou-se difícil fazê-lo com a quantidade e qualidade de actividade que existe no campo da astronimia, astrofísica e simples exploração espacial. O Webb continua a enviar dados e mais recentemente recebemos as imagens mais detalhadas de sempre de Júpiter. Estas imagens, mais uma vez, não são as que veríamos com um telescópio normal ou se estivéssemos perto de Júpiter. Neste caso o mais espantoso - para mim - foi o facto de as imagens não terem sido produzidas pela NASA ou ESA ou outros cientistas, mas por uma pessoa "normal", sem treino específico em ciência. As imagens do Webb estão geralmente disponíveiis para o público em geral as poder analisar e tratar e foi precisamente isso que Judy Schmidt, uma cientista amadora (minha tradução para "citizen scientist") fez com as imagens de Júpiter. Ela pegou nas múltiplas imagens a comprimentos de onda distintos e que focavam zonas diferentes de Júpiter para criar a imagem de cima em cor falsa.

O espantoso da imagem é que as cores são bastante distintas daquilo que esperaríamos. A Grande Mancha Vermelha de Júpiter, a tal tempestade capaz de engolir a Terra e que continua desde há séculos, aparece não como vermelha mas como branca. Isso é porque nesta imagem, as cores mais claras correspondem a zonas que reflectem muito a luz solar, geralmente regiões de maior altitude na atmosfera de Júpiter (lógico, quanto mais baixa uma região, mais a luz tem que passar por outros gases e mais da luz será absorvida). A Grande Mancha Vermelha é então uma região de elevada altitude na atmosfera e que reflecte muita luz, por isso aparece branca.

Outra coisa que salta à vista é a presença das auroras nos pólos norte e sul do planeta, que neste caso aparecem com a aura vermelha ou alaranjada. Neste caso a altitude é considerável, mas a aurora não reflecte a luz, antes resulta de outro fenómeno, por isso não aparece como branca. É para mim uma imagem fantástica que, não tendo a especificidade das imagens do Hubble de 2014, conferem a Júpiter uma aparência quase espectral e etérea que me fascina.

A imagem acima permite ainda ver formações atmosféricas mais escuras que estarão a uma altitude muito mais baixa do que qualquer outra que tenhamos visto no passado (ou a uma maior profundidade de observação, depende da perspectiva) e tem obviamente uma resolução superior a qualquer outra coisa que vimos no passado. Há no entanto outra imagem fantástica a adicionar, para a qual Judy Schmidt colaborou com Ricardo Hueso, um investigador na Universidade do País Basco (mas ao que parece tudo a título privado). Essa imagem, abaixo, mostra Júpiter a uma maior distância mas de tal forma que é possível ver os seus anéis bem como alguns dos satélites menos conhecidos do planeta.

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Nesta imagem, vemos os anéis (não é só Saturno que os tem) a estenderem-se um pouco para lá do planeta e dois dos satélites, os minúsculos Amalteia e Adrasteia (não, também não os conhecia). O primeiro tem um diâmetro de cerca de 160 km e o segundo de apenas 16 km. São essencialmente rochas grandes que foram capturadas por Júpiter sendo que o segundo, que aparece no limite do anel de Júpiter, é considerado como o maior contribuinte de material para o anel. Adrasteia foi descoberto apenas aquando da passagem da Voyager 2, mas Amalteia foi descoberto ainda no século XIX por telescópios na superfície do nosso planeta, o que demonstra a incrível capacidade de análise de dados dos cientistas espaciais (para comparação, seria o mesmo que observar um grâo de areia a cerca de 7 km de distância).

Também se podem ver outras galáxias à distância na imagem (os pontos mais desfocados) e outras impressões deixadas pelas auroras e por Io, um dos satélites galileanos de Júpiter (assim chamados porque foram descobertos por Galileu, sendo os outros Europa, Ganímedes e Calisto). Falei de Io no último post, mas Ganímedes e Europa são também interessantes, até porque são vistos como tendo um potencial elevado para procurar vida. Ganímedes é também interessante porque é bastante grande, é o nono maior objecto do Sistema Solar, incluindo o Sol (maior que Mercúrio mas com menos massa) e é o único satélite com um campo magnético. Ganímedes, tal como Europa, têm uma superfície gelada com o que se imagina ser um oceano líquido por baixo da espessa camada de gelo à superfície. Como, tal como Io, estão sujeitos às pressões causadas pela gravidade de Júpiter, imagina-se que possam ter um interior magmático e que possa permitir a presença de vida junto a fontes hidrotermais tal como na Terra (também referidas no último post). Esta última imagem pode ser vista com algumas anotações aqui em baixo.

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Por hoje é tudo, mas já não desconto a possibilidade de aqui retornar. Talvez até para falar das missões Artémis, cuja primeira estava prevista para ser lançada hoje mas foi adiada para quarta-feira. A ver vamos se esta série continua. Para já, fica o link para a informação (muito simplificada) sobre a Cartwheel Galaxy, cujas imagens dão um detalhe que (mais uma vez), ainda não tínhamos visto. Mas fica para outra vez.

Deslumbramento (V)

João André, 19.08.22

Regressando de férias volto ao tema que deixei aberto no último post: a questão filosófica da busca por sinais de vida noutros planetas. Esta é uma questão filosófica em geral, física e biológica na sua especificidade mas também metafísica num território mais intermédio (sim, sei que a Metafísica é uma das disciplinas da Filosofia, mesmo que eu não seja nenhum especialista - longe, muito longe, disso).

Questão filosófica geral
Quando falamos na busca por vida noutros planetas e, mais concretamente, por vida inteligente (qualquer que seja a definição de "vida" ou "inteligente"), temos que pensar no impacto. O único planeta que conhecemos capaz de ter vida é a Terra. É, tanto quanto sabemos, o único planeta que tem vida. De um ponto de vista empírico, a vida é possível na Universo - podemos dizer que é uma certeza - e só existe num único local. Por isso mesmo, todas as nossas buscas por vida são turvadas pela nossa perspectiva e pela nossa experiência. Nisto não estamos uma situação muito diferente da dos geólogos antes das missões Voyager ou dos biólogos antes da descoberta e exploração das fontes hidrotermais submarinas.

No primeiro caso, pensávamos que o único corpo no nosso Sistema Solar que poderia ter vulcanismo era a Terra e que era necessário que um corpo tivesse um tamanho e massa mínimos para tal vulcanismo existir (devido à necessidade de gerar calor suficiente no interior do planeta). As imagens de Io (um dos satélites de Júpiter) durante as missões Voyager demonstraram que não era assim. Io não só é geologicamente activo, como é o corpo geologicamente mais activo em todo o Sistema Solar. A sua interacção gravitacional com Júpiter faz com que o seu interior seja sujeito a forças de marés (como os oceanos na Terra sob acção da Lua) e mantém esse mesmo interior não só activo como causa a formação frequente de vulcões que são os maiores e mais activos do Sistema Solar. Uma imagem de Io tirada hoje poderá estar desactualizada na próxima semana ou mês, tal é o efeito destas forças. Isto era algo que talvez alguns geólogos pudessem imaginar, mas que não fazia parte do conhecimento científico antes de ser descoberto.

No segundo caso temos as fontes hidrotermais. Estas são formações de teor vulcânico que se formam a grandes profundidades em zonas de grande actividade vulcânica. Uma dessas zonas é no fundo do oceano em torno dos Açores, por exemplo, bem como ao longo de toda dorsal mesoatlântica (zona mais ou menos no meio do Oceano Atlântico formada pelo afastamento das placas continentais onde assentam a América e Europa e África, em termos muito genéricos). Nestes casos, lava não se chega a formar mas o que é expelido através da crosta é água (que pode ser do próprio oceano ou da região magmática) e que devido às condições assume características supercríticas, ou seja, comporta-se tanto como gás como líquido. Este fluido supercrítico traz consigo muitos gases mas também muitos minerais, os quais formam estruturas parecidas com pequenas chaminés. É uma zona estranha, onde a temperatura dentro das fontes hidrotermais (o interior da chaminé) pode ser ultrapassar os 450 °C mas baixar para os 2 °C habituais a estas profundidades a um metro das mesmas. Nestas zonas a profundidade é tal que a luz do sol não chega ao fundo. Por isso mesmo se pensava que não poderia existir vida, dado que toda a vida conhecida anteriormente dependia da fotosíntese. Neste caso, porém, descobriu-se um ecossistema extremamente rico com base em quimiosíntese, ou seja, em organismos (habitualmente bactérias) que digerem alguns dos componentes expelidos (por exemplo H2S, que é tóxico para a maioria dos organismos) e daí extraem energia. Mais uma vez, talvez existisse quem imaginasse esta possibilidade, mas a ciência não a conhecia.

Por isso, quando pesquisamos vida noutros planetas temos que deicidir no que nos devemos focar. Há quem defenda que a vida não necessita realmente de água, que água só é necessária à vida no nosso planeta porque era esse o líquido dominante. Se existir outro tipo de líquidos noutros planetas (possivelmente mercúrio ou metano, a temperaturas e pressões diferentes) é possível que outro tipo de vida tenha evoluído. Só que não só não o sabemos como também não sabemos aquilo que teríamos de procurar. Portanto procuramos uma vida que seja, nem que seja apenas aproximadamente, semelhante aos tipos de vida que conhecemos na Terra: com base em água líquida e tendo certo tipo de processos químicos na sua génese. Isso não significa no entanto que não possamos descobrir vida exótica. Já o fizemos muitas vezes no nosso planeta, por isso nada nos impede de o voltar a fazer noutro.

Agora, assumindo que descobrimos tal vida, que implicações terá isso na nossa perspectiva? Neste momento, assumindo que estamos sós no Universo, podemos flutuar entre dois extremos: efusividade por sermos o pináculo da evolução do Universo ou depressão por não termos mais nenhuns companheiros. Podemos ser arrogantes ou humildes. Podemos pensar em quanto somos especiais ou lamentar o mesmo facto. Dependerá de cada um. Mas a descoberta de vida fora do nosso planeta questionaria tudo isto, especialmente porque destruiria de imediato a ideia de sermos especiais por termos vida. Uma das razões para a procura de vida (ou resquícios da mesma) no nosso Sistema Solar (por exemplo em Marte) é porque a descoberta da mesma demonstraria que a Vida tem que ser bastante comum se poderia surgir em dois locais distintos no mesmo sistema. Se existe na Terra e em Marte (ou Ganimede ou Europa), também terá que existir por todo o Universo. Como veríamos isso? Muitas religiões poderiam contestar tal facto, outras apontá-lo como prova da importância e poder da(s) sua(s) divindade(s). Algumas talvez colapsassem (infelizmente suponho que isso não aconteceria com a cientologia). A nível pessoal que pensaríamos? Teríamos medo? Poderia esta descoberta aproximar-nos uns dos outros? Afastar-nos? Não sei, mas é uma questão interessante a considerar.

Já a descoberta de uma civilização extraterrestre, especialmente se bastante diferente da nossa (imaginemos que alada, sem olhos, com 5 bocas, comunicando e percebendo o mundo através de sons, cinzentas ou multicolores e com uma "pele" rochosa) poderia causar choques. Aí a questão de como reagiríamos talvez seja melhor entregue a escritores de ficção científica, porque os cientistas não têm verdadeiros pontos de referência para tal comparação.

Questão científica em particular
Aqui estamos em pé mais firme, mesmo que não completamente seguro, porque como indiquei acima, temos uma ideia clara do que estamos à procura. Um planeta que orbite uma estrela, exista na zona de habitabilidade da mesma para poder conter água no estado líquido, e que possa ter vida reconhecível por nós de forma a podermos encontrar os sinais químicos da mesma na sua atmosfera. É aqui que entra o Webb, com a sua possibilidade de analisar a atmosfera de outros planetas (como referido antes). Alguns dos sinais que se poderão procurar serão indicações de metano, por exemplo. Isto porque o metano é um gás que se deteriora rapidamente na atmosfera e que, se não for reposto, acaba por desaparecer. Também porque não conhecemos nenhum método para a produção sustentável de metano à superfície de um planeta que não passe por acção biológica. Assim sendo, o metano seria um dos principais sinais da presença de vida.

Outro sinal seria, obviamente, descobrir oxigénio. Não que seja fundamental mas, como já indicámos, a vida que conhecemos ou precisa de oxigénio ou expele oxigénio como produto de outras actividades (como as plantas). A presença de oxigénio molecular sugeriria então também vida. Se a oxigénio e metano associarmos água em estado  líquido (depreendida pela presença de vapor de água na atmosfera e pela localização do planeta em relação à sua estrela), poderíamos então marcar o planeta como potencialmente contendo vida.

Seria isto suficiente? Clato que não. Como não canso de o dizer, há muito que não sabemos e a presença destes compostos (e outros que não referi) poderia ser justificada por outros processos que são improváveis ou desconhecidos. Com milhares de milhões (milhões de milhões?) de planetas só na nossa galáxia, acabaremos por descobrir planetas com processos estranhos. Aquilo que se faria no caso de encontrarmos planetas com maior probabilidade de albergarem vida seria marcá-los para subsequentes estudos. Talvez se encontre uma civilização que tenha deixado marcas noutras partes do seu Sistema Solar. Ou talvez tenhamos simplesmente que esperar por novas tecnologias para ter novos telescópios que nos permitam ver em maior detalhe aquilo que se passe nesses planetas. Ou seja, o Webb talvez nos dê todas as indicações de vida, mas confirmações teriam que esperar.

Aquilo que não iremos ver são sinais de uma civilização no mesmo estágio de desenvolvimento que nós. Quaisquer estações espaciais ou noutros planetas ou outras estruturas no planeta ou fora dele serão demasiado pequenas para serem identificadas. Uma civilização muito mais avançada talvez tenha criado superestruturas no Sistema Solar que sejam identificáveis, mas é improvável que mesmo estas sejam visíveis.

Questão metafísica de ligação
Aqui entra a questão do Paradoxo de Fermi, que foi formulado por Enrico Fermi em conversa casual con Edward Teller e outros. Na discussão sobre extraterrestres e OVNIs, Fermi perguntou então onde andariam tais seres e civilizações. Numa formulação mais genérica, talvez se pudesse colocar como «Se o Universo está cheio de vida, onde está toda a gente?». Isto também foi reflectido pela equação de Drake, a qual foi formulada para estimar o número de civilizações que poderemos contactar na nossa galáxia.

{\displaystyle N=R_{*}\cdot f_{\mathrm {p} }\cdot n_{\mathrm {e} }\cdot f_{\mathrm {l} }\cdot f_{\mathrm {i} }\cdot f_{\mathrm {c} }\cdot L}

A equação de Drake utiliza: R: o ritmo de formação de novas estrelas na nossa galáxia; fp: a fracção dessas estrelas que terão planetas; ne: o número de tais planetas que poderão ter condições para ter vida; fl: a fracção destes planetas que poderá ter visto vida a desenvolver-se; fi: a fracção destes planetas que poderá ter visto a vida inteligente a desenvolver-se (i.e. a formar civilizações); fc: a fracção destas civilizações que desenvolvam tecnologia para enviar para o espaço sinais detectáveis; L: o período de tempo em que tais civilizações têm enviado tais sinais.

Há a possibilidade de dar valores relativamente certos para alguns destes parâmetros. Sabemos hoje em média o ritmo de formação de novas estrelas e sabemos também que uma enorme percentagem delas têm planetas. O Webb poderá ajudar a responder a questão sobre quantos deles terão condições para albergar vida mas depois disso só temos um ponto para estimar: o da Terra. Dependendo dos valores usados, podemos chegar a valores inferiores a 1 (efectivamente zero civilizações na galáxia) ou a milhares de civilizações.

Um dos problemas que tem sido avançado no período desde que Drake formulou a sua equação é a questão da tecnologia. Será que seríamos capazes de detectar os sinais? Basta ver que se uma civilização tivesse enviado sinais semelhantes aos nossos em 1980 mas que chegassem em 1920, nós não os detectaríamos. E se tal civilização continuasse a evoluir como a nossa, em 1980 (quando tínhamos já radiotelescópios para detectar tais emissões) talvez não as enviasse muito, porque poderia usar internet por fibra óptica, microondas ou outros sinais que não sobrevivam a longas viagens pelo espaço e sejam destinados a transmissões "à vista" (por exemplo usando satélites). Assim sendo, poderá haver uma civilização a 200 anos-luz de nós que nós nunca conheceremos porque não existimos em condições tecnológicas paralelas (excluindo distâncias) para contactarmos.

E se expandirmos isto para escalas de tempo mais longas, como identificaremos os sinais de uma civilização 100 anos à nossa frente? Ou 1.000 anos? Ou 50.000 anos? Há 50.000 mil anos nós estaríamos apenas a desenvolver a linguagem. Como imaginar a tecnologia de uma civilização 50.000 anos à nossa frente? Ou um milhão de anos? Isto é inimaginável. Tudo isto sem contar com o facto de tais civilizações possivelmente usarem comunicações que nós nem sequer imaginamos, mesmo que o nível de desenvolvimento seja semelhante. Uma civilização sem olhos poderia ter criado todo um sistema de comunicação baseado em som. Imaginemos um planeta cheio de linhas para enviar ondas sonoras, como dois copos de plástico ligados por um fio. Nunca receberíamos os seus sinais.

E para finalizar há a questão das distâncias. Os sinais, mesmo que enviados de uma forma inteligível e na altura certa poderão deteriorar-se no caminho. A força do sinal diminui. Nuvens de poeira bloqueiam o sinal. Poderá haver partes da informação que sejam perdidas e que sirvam para identificar tal sinal como se fossem um farol e, na sua ausência, não notaríamos o mesmo.

Concluindo, não acredito que detectemos alguma vez sinais de vida inteligente noutros planetas. Se o fizermos, será viajando mais perto e isso irá certamente demorar muitos séculos. Talvez milénios ou mesmo milhões de anos. Se alguma vez lá chegarmos. E quem sabe se a evolução não nos leva noutra direcção que nos faz perder o interesse? Seja como for, não sabemos se seria boa ideia. Mesmo ignorando a possibilidade de intenções hostis de tais civilizações (descobrem o novo miúdo na galáxia e pulverizam-no), como veríamos seres tão mais avançados? Seriam essencialmente deuses para nós. Teríamos capacidade para sobreviver, de uma fomra intelectual e social, a tal encontro? Não sei.

Para terminar: a busca por vida extraterrestre, seja ela de que tipo for, enfrenta várias dificuldades, não só científicas e, no dia em que seja descoberta, irá levar a um grande processo de reflexão sobre nós mesmos e o nosso papel no Universo. Até lá, penso que a sua principal função é a de servir para fazer avançar a nossa civilização, tanto cientificamente, à medida que desenvolvemos os intrumentos e métodos para a sua busca, como filosoficamente, enquanto reflectimos sobre a importância da busca e as consequências das descobertas da mesma (ou falta delas).

E, mais uma vez, tudo isto me deslumbra.

Deslumbramento (IV)

João André, 26.07.22

Nos posts anteriores (I, II e III) falei das fotografias do Telescópio Espacial James Webb e do deslumbramento que causam, tanto pela informação que oferecem sobre galáxias, estrelas e novas informações sobre objectos conhecidos, como pela beleza das próprias imagens. Há no entanto outros aspectos que, pelo menos para quem goste do assunto, oferecem igualmente uma sensação de maravilhoso e de deslumbramento embora menos visualmente e mais cientifica e filosoficamente. Falo especialmente da informação matemática e física contida nos espectros que foram já analisados pelo Webb e daquilo que nos permite saber desde já e antecipar ansiosamente futuros estudos.

Atmosfera de exoplanetas

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Espectro de transmissão do exoplaneta WASP-96 b.

A primeira imagem é a do espectro de transmissão (em infravermelho próximo) do exoplaneta WASP-96 b. Trata-se de um gigante gasoso (como Júpiter ou Saturno) que orbita a estrela WASP-96 (não escolhi o nome, mas com milhões de estrelas e galáxias, os cientistas têm que arranjar nomenclaturas para os objectos), que é uma estrela semelhante ao Sol e que fica a 1.150 (mil cento e cinquenta) anos-luz de nós. Esta distância é curta em termos astronómicos, embora estejamos a falar de 10,8 triliões de km (ou 10,8 milhões de milhões de milhões), mas quando vemos objectos a milhares de milhões de anos-luz, esta distância é curta. O planeta é aquilo a que os cientistas chamam de "gigante quente" porque é um gigante que orbita muito perto da estrela e, como é óbvio, fica por isso mesmo muito quente. Este planeta orbita tão perto da sua estrela (apenas 5% da distância da Terra ao Sol) que o seu ano (tempo que demora a dar uma volta à estrela) é de apenas 3 dias e meio.

O espectro de transmissão é uma análise à luz que é obtida quando observamos o planeta a passar em frente da sua estrela. Quando o faz, a luz é parcialmente bloqueada pela atmosfera do planeta e de forma diferente dependendo do tipo de molécula que bloqueia a luz. A luz não é simplesmente bloqueada completamente de forma a não vermos nada, antes vemos apenas os comprimentos de onda (inverso da frequência) de luz que cada molécula não absorve. Sabendo quais as que vemos, sabemos também as que não detectamos e esta informação, associada ao que sabemos sobre quais os comprimentos de onda que cada molécula absorve, permite inferir com bastante precisão a composição de uma atmosfera. Na imagem acima, cada ponto branco corresponde a um comprimento de onda que foi medido e que foi parcialmente absorvido pela atmosfera. A altura a que os pontos estão depende de outros aspectos, como a presença de nuvens, nevoeiro, poeiras ou temperatura da atmosfera. A linha azul é que foi determinada como se ajustando melhor aos dados. Esta linha é criada usando modelos e que usam pressupostos possíveis sobre a atmosfera (presença de nuvens, poeiras, temperatura, etc). Usando diferentes modelos obtemos diferentes linhas até que encontramos uma que melhor se adequa aos dados obtidos. Com base nessa linha e no seu modelo, é possível retirar algumas conclusões sobre a atmosfera. Neste caso, é possível estimar que a temperatura da atmosfera é de 725 °C (eu disse que era quente). Note-se que isto é nas camadas da atmosfera que foram observadas. O interior do planeta (que é gasoso) deverá ser muito mais quente.

Um dos dados mais interessante foram aqueles pontos no gráfico marcados como sendo água (H2O). Estes pontos são comprimentos de onda onde se sabe que a água absorve luz e como tal sabemos que existe água na atmosfera. Claro que temos que qualificar o termo "água". Trata-se de água no estado gasoso, ou vapor de água, o que seria inevitável dado que a temperatura é bastante alta e, na região da atmosfera que foi analisada, a pressão seria provavelmente mais baixa. Esta descoberta é importante porque permite determinar duas coisas:
a) a água será mais comum do que aquilo que teríamos pensado no passado. Como só tínhamos podido estudar decentemente (ou seja, com precisão nas medições) um único sistema solar (o nosso), não sabíamos o quão prevalente é água. Se ao primeiro planeta que estudamos bem a conseguimos descobrir, água pode estar muito mais presente que aquilo que pensávamos. Como toda a vida como nós a conhecemos necessita de água, esta informação é extremamente valiosa na nossa busca de vida extraterrestre.
b) estas medições permitem confirmar a precisão do Webb e das suas medições. Permitem também saber que, à medida que observamos mais exoplanetas, poderemos aprendar a detectar cada vez mais moléculas. Algumas delas, como o metano, estão associadas à presença de vida nos planetas (dependendo de outras condições). Ao conseguirmos observar água desta forma com a primeira observação podemos também ganhar confiança para futuras observações.

Antigas galáxias

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Espectro de emissão de uma galáxia antiga.

A segunda imagem é a do espectro (de infravermelho próximo) de emissão de uma das galáxias antigas que referi no primeiro post. A luz detectada saiu da galáxia há já 13,1 mil milhões de anos (o que não é o mesmo que dizer que está a 13,1 mil milhões de anos-luz de nós, estará bastante mais longe), um período que apenas podemos conhecer através dos nossos modelos da evolução do Universo. Esta galáxia existiu quando o Universo tinha apenas 700 milhões de anos, numa altura em que existiam (segundo os modelos existentes) apenas algumas estrelas e galáxias, provavelmente enormes, e de vidas relativamente curtas. O que esta observação permitiu fazer foi determinar que a galáxia observada continha gases como hidrogénio, oxigénio e neón. Isso quer dizer que algumas das conclusões dos modelos eram correctas e que tínhamos já hidrogénio (o que era esperado, já que as estrelas apenas se formam na sua presença) mas também oxigénio e néon, que habitualmente só são formados e/ou libertados após a morte de uma estrela (ou pouco antes da morte da estrela). Isso indica que há 13,1 mil milhões de anos havia já estrelas a morrer.

Com o tempo poderá também ser possível obter mais informação sobre estas galáxias. Determinar a presença de nuvens de poeira, estádios de desenvolvimento das galáxias, etc. Com o tempo, quem sabe o que se irá descobrir que permita refinar - ou obrigar à revisão de - os nossos modelos de evolução do Universo.

Outras observações

Infographic titled “Hot Gas Giant Exoplanet WASP-96 b Transit Light Curve, NIRISS Single-Object Slitless Spectroscopy.” At the top of the infographic is a diagram showing a planet transiting (moving in front of) its star. Below the diagram is a graph showing the change in relative brightness of the star-planet system between 12:00 a.m. and 7:00 a.m. in Baltimore, Maryland, on June 21, 2022. The diagram and graph are aligned vertically to show the relationship between the geometry of the star-planet system as the planet orbits, and the measurements on the graph. The infographic shows that the brightness of the system remains steady until the planet begins to transit the star. It then decreases until the planet is directly in front of the star. The brightness increases again until the planet is no longer blocking the star, at which point it levels out. For a full description, download the Text Description PDF.Infographic titled “Interacting Galaxies Stephan’s Quintet: Velocity of Gas Near Active Black Hole; NIRCam and MIRI Imaging and MIRI IFU Medium Resolution Spectroscopy.” The infographic shows a color image of a group of galaxies with a zoom-in to one of those galaxies for reference, and three separate two-color (blue and yellow) maps showing the velocity of a particular ion or molecule in the gas at different points near the center of the galaxy. Below the maps is a scale bar showing that velocities range from 200 kilometers per second toward us (mapped in blue) to 200 kilometers per second away from us (mapped in yellow). Gas that is not moving toward or away from us is mapped in white. From left to right, the maps show argon ions, neon ions, and molecular hydrogen. The maps are similar in that all three show distinct blobs of gas moving toward us and distinct blobs moving away. The blobs of gas are different in exact shape, size, and location. For more details, download the Text Description.Infographic titled “Interacting Galaxies Stephan’s Quintet: Composition of Gas Around Active Black Hole; NIRCam and MIRI Imaging and NIRSpec IFU Spectroscopy.” The infographic shows a color image of a group of galaxies, a zoom-in color image to one of those galaxies, and four separate single-color images of a small portion of the center of the zoomed-in galaxy. Each of the four separate images is labeled with the wavelength of light that the image shows and the name of the atom, molecule, or ion that is emitting the light. From left to right: Atomic Hydrogen 0.656 microns shown in blue. Iron ions 1.64 microns shown in cyan. Atomic Hydrogen 1.87 microns shown in yellow. Molecular Hydrogen 4.7 microns shown in red. For more details, download the Text Description.Infographic titled “Interacting Galaxies Stephan’s Quintet: Composition of Gas Around Active Black Hole; NIRCam and MIRI Imaging and MIRI IFU Medium Resolution Spectroscopy.” On the left side are two reference images of a group of galaxies. On the right are two emission spectra: jagged line graphs of brightness of light versus wavelength of light. The peaks on the graphs are labeled with the names of various elements and compounds. The top graph shows the spectrum of light emitted from the edge of the core of the galaxy, with 10 peaks labeled: iron, argon, neon, sulfur, neon, neon, neon, sulfur, neon, and oxygen. The bottom graph shows the spectrum of light emitted from the core of the galaxy, with 3 peaks labeled for molecular hydrogen and one broad valley labeled for silicates. For more details, download the Text Description.

Imagens da curva de luz do trânsito de um planeta em frente de uma estrela, espectros de infravermelho próximo e médio (com ou sem IFU - ver os links) do grupo Stefan's Quintet. Não me vou debruçar mais sobre estas imagens e a importância da informação porque não tive tempo de ler em detalhe e porque há ainda muito que os cientistas encarregues da investigação irão analisar. Basta dizer que os instrumentos permitem analisar com um detalhe inédito todos estes objectos e que abrem possibilidades únicas para observações e pesquisas futuras.

Deslumbramento filosófico

Escrevi acima sobre este aspecto, mas confessoq ue não me alongarei nele aqui. Deixo apenas as notas sobre aquilo que o Webb nos permitirá questionar, de um ponto de vista mais filosófico, sobre o Universo, a vida e a nossa presença. As observações do Webb poderão talvez um dia detectar sinais bastante fortes de vida noutros planetas. Estes sinais quase de certeza não seriam de civilizações ou qualquer vida inteligente - não vamos observar discos voadores - mas poderemos descobrir indicações fortíssimas da existência de vida de algum tipo. Talvez seja apenas microscópica ou mesmo animal e vegetal sem haver seres inteligentes, mas o Webb poderá ajudar-nos a descobrir tais sinais. Que significariam estes sinais? Questionaríamos o nosso conhecimento e a nossa existência e posição no Universo? Questionaríamos as nossas Fés? Veríamos tais descobertas como o início de uma nova era de conhecimento e aventura? E o que significaria não descobrirmos nenhum sinal no tempo de funcionamento do Webb? Não sei, mas podemos levantar essas questões.

Há ainda outra questão também curiosa e interessante para colocar cenários mentais: se há vida noutros planetas, onde estão esses extraterrestres. Este é o chamado Paradoxo de Fermi, que fez a mesma pergunta perante todas as estimativas que se fizeram sobre a existência de vida extraterrestre. Desde então muitas reflexões foram feitas sobre a questão, algumas mais metafísicas, outras mais científicas e umas outras que tocam ambos os aspectos. Tenho a minha visão, que anda pelo meio (meio metafísica e meio científica), mas deixá-la-ei para outro dia.

Deslumbramento (III)

João André, 21.07.22

Na sequência dos dois posts anteriores sobre as imagens fo Telescópio Espacial James Webb e das suas primeiras imagens, surgiram algumas questões sobre as fotografias, referindo que não são cores reais e perguntado como sabemos quais as suas cores. Nos comentários avancei que as cores eram identificadas pelo espectro de luz que chegava ao telescópio. O telescópio "vê" numa determinada largura de banda de luz - o infravermelho próximo (near infrared) e o infravermelho médio (mid infrared) - e depois, com base nos comprimentos de onda específicos da luz infravermelha que chega ao telescópio vinda de cada objecto, este pode depois recalcular qual seria a sua cor no comprimento de onda de luz visível, isto é, aquele que nós podemos ver. Em suma, a matemática poderia recriar as imagens da mesma forma que nós as veríamos.

Esta explicação foi simultâneamente correcta e incorrecta (e incorrecta por minha culpa). Vou tentar explicar. Quando vemos uma imagem, o nosso olho recebe a luz e observa-a através de cones que existem no olho. Há um cone para a luz vermelha, outro para a verde e outro para a azul. Ou seja, cada cone vê luz numa dessas regiões do espectro dentro da luz visível. Se retirássemos (ou conseguissemos suprimir) os cones verde e vermelho poderíamos só ver tudo em azul (talvez isto tenha acontecido com Picasso - adiante). Claro que cada cone vê estas cores em intensidades distintas, mais escuras (se menos dessa cor) e mais claras (se mais dessa cor). Quando se sobrepõem todas as imagens, vemos o mundo em cores. É este o princípio da imagem RGB (para Red, Green, Blue) que programas de software usam (entre outros tipos de imagem).

Quando o Hubble faz uma fotografia, fá-la a preto e branco, ou seja, sem qualquer cor. Só que depois aplica filtros para poder "ver" a imagem, ainda a preto e branco, mas para cada uma das cores primárias. Uma foto (a preto e branco) para ver o vermelho, outra para ver o verde e outra para ver o azul. Quando depois se combinam estas fotos, sabendo o que cada uma mostra e a intensidade da luz nessa cor, é possível sobrepô-las e criar uma imagem de "cor verdadeira" (true color). O Webb faz uma coisa semelhante, mas mais complexa e, porque não pode ver na região visível, de forma algo diferente.

O Webb faz as suas imagens na região de infravermelho, mas em vez de usar 3 filtros para comprimentos de onda do espectro de luz visível, usa 29 filtros para espectros de luz infravermelha. Depois vai atribuíndo uma cor (do espectro visível) a cada um dos filtros de acordo com a sua posição no espectro de infravermelho. Os comprimentos de onda mais longos, que no espectro visível são vistos como vermelhos, recebem cor vermelha. Os mais curtos recebem azul (a sua posição no espectro visível). Os outros vão sendo distribuídos pelo espectro visível. O resultado surge quando todas estas imagens são combinadas, dando-nos as fotografias que vimos.

São aquelas fotografias iguais ao que nós veríamos com os nossos olhos se conseguíssemos ver tão longe? Não. São fotografias falsas? Também não. Os cientistas não retiram nem adicionam nada às imagens, apenas as manipulam para as poder observar melhor e, porque são humanos, as poder apreciar melhor. Pode parecer estranho, mas as imagens que vemos publicadas servem para pouco mais que o deslumbramento que citei já várias vezes. Aquilo que frequentemente excita os cientistas são os gráficos e os dados quantitativos que se recebem dessas imagens (ainda escreverei sobre isso). As imagens são fabulosas e haverá poucos astrónomos que não terão uma (ou múltiplas) dessas imagens penduradas numa parede de casa e/ou do escritório. No entanto não são o essencial.

Só que essas fotografias nunca deixam de ser reais. Só que são, de facto, manipuladas. O termo "cor falsa" (false color) muitas vezes usado para descrever estas imagens, não é o mais correcto, penso. Talvez "cor corrigida" fosse melhor. No entanto não é diferente de um fotógrafo em 1980 usar Kodak ou Fuji de acordo com querer tons mais quentes ou frios. Ou fotógrafos usarem diferentes químicos e tempos nos banhos para revelar as fotos de acordo com aquilo que querem mostrar. Ou hoje em dia se usarem filtros em fotojornalismo (não falo em sessões fotográficas, essas são realmente falsas no essencial) para tornar certos pormenores mais claros. Ou até, fugindo à imagem, ao tipo de equalizador que se usa ao ouvir música. Ambiente? Neutral? Rock? Filme? Tudo isso muda o som que ouvimos. Torna-o menos real?

No fim, a limitação que temos são os nossos olhos. Outros seres que tivessem 300 cones para ver cores diferentes provavelmente perceberiam um mundo muito mais rico de cores que nós. Não seria um mundo mais real, apenas seria percebido de outra forma. A ciência e a matemática permitem-nos expandir a nossa percepção do Universo e isso é, mais uma vez, algo que me deslumbra.

 

Nota: 3 links para explicações melhores que as minhas. Vídeo 1 ("Dr. Becky", astrónoma) e vídeo 2 (Vox, canal de media) do YouTube. Artigo na Fortune.

Deslumbramento (II)

João André, 18.07.22

Quando na passada 5ª feira escrevi sobre o Telescópio Espacial James Webb (fiquemo-nos por Webb) e as primeiras imagens que recebemos, houve muita coisa que ficou de fora. Tentemos abordar alguns aspectos agora. Mais uma vez: erros neste post são meus e agradeço toda e qualquer correcção.

Um dos aspectos que foi referido nos comentários e que não adicionei sobre o Webb foi sobre como o telescópio vê. Isto pode parecer óbvio (vê vendo), mas não o é. Porque o Webb foi concebido para observar objectos distantes de nós, ver os objectos no espectro de luz visível não ajuda, por isso os instrumentos do Webb foram escolhidos para detectar luz nos comprimentos de onda do infravermelho, que é uma região do espectro de luz que nós, seres humanos, não conseguimos ver. Seres vivos que vêem uma parte deste espectro são mosquitos, algumas espécies de morcegos ou serpentes. Nós conseguimos observar o infravermelho usando câmaras adequadas que detectam as diferenças de calor emitidas por objectos, mas são sensíveis apenas à radiação que é libertada pelos objectos quentes, não a todo o espectro de infravermelho.

Para se compreender esta diferença, imaginemos a audição. Nós ouvimos numa determinada gama de frequências, mas todos sabemos que animais ouvem noutra. Há apitos que emitem sons inaudíveis para nós mas que os cães ou gatos conseguem ouvir. O mesmo se passa com a luz. Infravermelho, ultravioleta, raios X, etc, são partes do espectro electromagnético, ou da luz (Nota: já li artigos referindo-se ao termo "luz" como se referindo apenas à luz visível, aquela que conseguimos ver; enquanto que outros usam o termo "luz" para se referir a todo o espectro electromagnético, dado que é apenas radiação, eu usarei "luz" neste segundo sentido e peço tolerância a quem não concordar com a minha escolha e cuja perspectiva eu compreendo).

O que o Webb faz é usar câmaras e sensores específicos para detectarem diferentes regiões do infravermelho [nota: corrigido, obrigado ao comentador balio] para obterem informação que, de outra forma, se perderia. Uma das razões para ter enviado o Webb para onde está deve-se à necessidade de bloquear tanta luz quanto possível vinda do Sol e da Terra, sendo ainda necssário manter todos os instrumentos a temperaturas extremamente baixas para evitar que o próprio Webb liberte radiação infravermelha (ao libertar calor) que interfira com os instrumentos. Isto é semelhante a ter um telescópio terrestre longe das cidades e em zonas de alta elevação para não ter poluição de luz.

A razão para a escolha destas frequências deve-se, como referi acima, ao desejo de observar objectos distantes. Isto porque o nosso Universo está em expansão graças à Energia Escura. Não me alongarei neste aspecto mas fiquemo-nos pelo facto de existir uma força de repulsão no Universo que está a causar um afastamento das galáxias e que é tão mais pronunciado quanto mais longe essas galáxias estão. É também um afastamento que está a aumentar de velocidade e que nos levará a perder de vista (literalmente) algumas galáxias quando a velocidade de afastamento for superior à velocidade da luz (sim, a velocidade da luz é a velocidade limite no Universo e nada pode viajar mais depressa. Como podem as galáxias afastarem-se então mais depressa? É complicado mas por agora digamos apenas que a luz viaja no espaço-tempo e as galáxias afastam-se por espaço-tempo ser adicionado entre elas, pelo que a velocidade limite não se aplica. O conceito é complicado e não me alongarei). Ora, quando as galáxias se afastam, isso faz com que exista um efeito de desvio para o vermelho ("red shift" em inglês, obrigado pela nota caro comentador passante), que é semelhante ao efeito do som quando um carro passa por nós (o efeito Doppler) que faz com que o som que ouvimos quando o carro se aproxima seja diferente daquele que ouvimos quando o carro se afasta (apesar de o som ser o mesmo). Isso acontece porque as ondas sonoras se comprimem contra o nosso ouvido quando o carro se aproxima e se "esticam" quando o carro se afasta. Quando isso acontece com a luz, o comprimento de onda aumenta e a luz visível passa a infravermelha.

Assim sendo, aquilo que o Webb vê não é o mesmo que nós (ou o Hubble) veríamos. O Webb "vê" em infravermelho (e alguns comprimentos de onda de luz visível, especificamente na região de vermelho e laranja) e para termos as imagens como as vemos hoje é necessário recorrer ao que se chama de "cor falsa". Isto acontece para podermos ver a imagem e identificarmos detalhes que de outra forma não veríamos facilmente, mas também para aumentar o prazer estético da imagem. Manipulação de imagens é normal na história humana, seja por razões estéticas, científicas ou outras, e é pena que quando isso é feito com fotografias espaciais haja quem se queixe tanto. Talvez o termo "cor falsa" seja mau para a percepção, mas os cientistas são demasiado honestos e pouco hábeis na comunicação para utilizarem termos mais atractivos. Seja como for, é muitas vezes possível identificar a cor real através da análise dos comprimentos de onda e das diferenças entre os sinais obtidos em pontos diferentes na imagem. Mesmo dentro do infravermelho, e contabilizando o efeito de desvio para vermelho que seria de esperar para um objecto a determinada distância, é possível estimar a cor que veríamos se tal desvio para vermelho não ocorresse e observássemos a imagem em luz visível. Noutros caso, mesmo sem o desvio para vermelho, alguns dos detalhes só são visíveis na região de infravermelho e não as veríamos de nenhuma outra maneira. Para comparação do efeito de fotografias tiradas em comprimentos de onda distintos e dos detalhes que permitem ver, aconselho dar uma espreitadela a esta página.

Outras razões para observar o Universo em infravermelho prendem-se com dois outros tipos de observações: a) nascimento de planetas e estrelas em nuvens de poeira e gases e; b) observação e análise da composição de atmosferas de exoplanetas (planetas fora do nosso Sistema Solar). No caso a), o comprimento de onda de infravermelho é perfeito porque permite obter muito detalhe sem que a luz seja bloqueada pelos gases e poeira. Como o infravermelho passa pelas nuvens de poeira (um pequeno exemplo não reacionado com ciência neste clip), isso permite observar objectos que estejam nessas nuvens de poeira, ou atrás das mesmas, e que estariam escondidos do Hubble. No caso b), o interesse está em ver o que é que as atmosferas de exoplanetas podem conter. Como gostaríamos de saber se haverá vida noutros planetas ou se um determinado planeta poderia hipoteticamente conter vida, temos que saber como é a atmosfera. Com outros métodos podemos estimar tamanhos e massas dos planetas, bem como a sua pressão atmosférica, mas para saber a sua composição a melhor forma é esperar que o planeta passe em frente da sua estrela e analisar a luz que passa pela atmosfera. Como diferentes moléculas absorvem radiação em comprimentos de onda distintos, é possível analisar a luz que não atravessou a atmosfera e distinguir moléculas na mesma. Com base na intensidade do sinal é também possível ter uma ideia da sua concentração. Se se encontrar oxigénio molecular, metano ou dióxido de carbono (em concentrações consideráveis), bem como água, todas essas moléculas poderiam dar uma boa indicação da existência de vida, pelo menos como nós a conhecemos. Também por isso é importante medir o espectro infravermelho.

Tudo isto é ciência, que é o que me fascina mais. Mas gosto de olhar para as imagens e apreciá-las pelo que são (beleza única) e pelo que mostram. Quando comparamos as imagens tiradas pelo Webb com as imagens tiradas pelo Hubble, vemos a diferença na resolução (normal para um telescópio mais moderno e com um espelho consideravelmente maior)  mas também no detalhe extra que permite observar graças à observação na região do infravermelho. As imagens abaixo ajudam a entender.

Deep Field

comparison-smc.jpg

A imagem à esquerda é a do Hubble. À direita, a do Webb. Há várias galáxias (sim, muitos daqueles pontos são galáxias, não estrelas individuais) visíveis que não o são na fotografia do Hubble. Há ainda uma galáxia "repetida" na fotografia do Webb, acima e abaixo do centro. Isso acontece porque se encontrava quase exactamente por detrás do centro da imagem e a luz dela sofreu o que se chama de "gravitational lensing" (ou seja, o espaço que a luz atravessa é deformado pela gravidade dos objectos que se encontram no caminho, fazendo com que a luz não seja bloqueada mas passe "ao lado" desse objecto). Por causa desse efeito, a luz da galáxia passou por cima e por baixo (do nosso ponto de vista) na imagem para aparecer duas vezes na fotografia. Já agora, tecnicamente esta é a imagem do aglomerado de galáxias SMACS J0723.3–7327, mas mantive "deep field" por conveniência (e porque sou eu a escrever).

Stephan's Quintet

COMPARISON-QUINTET.jpg

À esquerda a imagem do Hubble e à direita a do Webb. Note-se que a imagem do Webb é um compósito da imagem das duas câmaras, uma de "near infrared" (NIRCam) e a outra de "mid infrared" (MIRI) (deixo a procura de termos portugueses para quem o queira). Esta imagem do Webb não só tem imensos detalhes que a do Hubble (e que era já espantosa) não oferece, mas permite ver (na imagem MIRI) o buraco negro que está no centro da galáxia de cima na imagem. Tecnicamente não "vemos" o buraco negro, antes o disco de gás superaquecido em torno dele, mas é quase o mais próximo que se pode ver, especialmente a estas distâncias.

Carina Nebula

COMPARISON-CARINA-.jpg

Hubble em cima, Webb em baixo. Aqui vemos claramente a vantagem de observar estes objectos em infravermelho. As nebulosas são normalmente vistos como "berçários de estrelas", são aglomerados de gases e poeiras que se vão concentrando por efeito da gravidade para depois darem origem a estrelas (e/ou planetas). Por serem nuvens, normalmente não é possível ver bem através delas mas, como indiquei acima, na região de infravermelho é possível fazê-lo e as imagens acima demonstram-no claramente, com todas as estrelas e/ou galáxias que se podem ver através da nuvem. Uma vantagem extra do Webb é a enorme resolução da imagem, que se pode ver nos contornos da nebulosa.

Southern Ring Nebula

southern-ring-nebula.webp

À esquerda Hubble, à direita Webb. A minha preferida. Poderia dizer muito sobre ela, mas a minha fascinação está na descoberta com a imagem do Webb que a estrela que se vê no centro na imagem do Hubble é na realidade um sistema binário. Isto não era visível na imagem do Hubble porque a luz de ambas as estrelas era apanhada de forma combinada. Com o Webb foi possível resolver a imagem e ver mais. Confesso que irei colocar esta imagem na parede de minha casa assim que possa.

Há muito mais que se pode dizer. Ainda falarei mais à frente sobre as descobertas usando o espectrómetro infravermelho do Webb e da importância que isso pode ter para a descoberta de planetas habitados ou habitáveis. Mas por hoje fico-me por aqui.

Deslumbramento

João André, 14.07.22

Webb's_First_Deep_Field.jpg

Há muito que não escrevo e não me vejo a retomar a escrita frequente no futuro próximo, mas não podia deixar de escrever algo sobre as primeiras imagens do telescópio espacial James Webb. A primeira imagem revelada, que encima este post, é "apenas" a imagem de maior resolução do Universo quando jovem (imagem de maior resolução e com possibilidade de fazer zoom aqui). Dizer que o Universo era jovem é algo relativo, já que a imagem é de um aglomerado de galáxias (no centro da imagem) como existiam há 4,6 mil milhões de anos, quando o Universo teria cerca de 9,2 mil milhões de anos. O Universo teria já uma aparência semelhante à actual mas, crucialmente, não estaria ainda sob a influência de Energia Escura. Não vou alongar-me com este tema, mas de acordo com o nosso conhecimento de Física e do Universo, a Energia Escura tornar-se-à (ter-se-à já tornado?) o mais importante factor na evolução do Universo. Importante no entanto é notar que uma das galáxias que se vêem na imagem aparece como existia há 13,1 mil milhões de anos, ou seja, apenas 700 milhões de anos depois do Big Bang (se o Universo fosse uma colecção de pessoas com 80 anos agora, estaríamos a ver a galáxia como se fosse uma criança de 4 anos).

O Telescópio Espacial James Webb (JWST na abreviatura inglesa) é um projecto com décadas e que demorou imenso tempo a ser completado e se atrasou no lançamento múltiplas vezes. A primeira vez que se discutiu um sucessor para o Hubble foi nos anos 80 mas os planos iniciais só começaram a sério nos anos 90, após o sucesso do Hubble. O desenho final só começou a ser verdadeiramente formulado em 2005 e a construção em 2007. Múltiplos desenvolvimentos tecnológicos foram incorporados e novas descobertas levadas em consideração. A construção foi altamente complexa, dado que era um objecto de enorme tamanho mas muito baixa massa, o que levava a que os elementos fossem difíceis de produzir e integrar. Isto levou a que a construção demorasse bastante tempo, incluindo todas as revisões dos desenhos e do projecto em si. Em 2016 a construção terminou e a fase de testes começou, a qual resultou em vários problemas que tiveram que ser corrigidos. Em 2019, a construção final do JWST como existe hoje terminou e os testes recomeçaram. Tudo isto contribuiu para o seu custo final de pouco menos de 10 mil milhões de dólares.

Após passar os testes, o JWST foi lançado para o espaço a 25 de Dezembro do ano passado e viajou até chegar ao seu destino, o Ponto de Lagrange L2, onde o efeito da gravidade da Terra e Sol, bem como a força centrífuga da rotação de um objecto neste ponto, se equilibram e permitem estabilidade de órbita. Este Ponto de Lagrange (há 5 no sistema Terra-Sol) foi escolhido porque está para lá da Terra, na extensão de uma linha imaginária do Sol à Terra. Este posicionamento permite bloquear muita da luz vinda tanto do Sol como da Terra, o que facilita a observação espacial. Durante a viagem, o JSWT iniciou a sua instalação completa (desdobrando e extendendo todos os componentes) incluindo os seus espelhos, necessários ao funcionamento, que foram colocados em posição e alinhados (num processo que demorou meses) ainda antes de chegar à sua órbita em torno do ponto L2 (a 24 de Janeiro deste ano). Depois disso foi necessário proceder a todos os testes de equipamento antes de chegar à imagem acima.

Neste momento vale a pena perguntar o porquê. Porque razão gastamos milhões (milhares de milhões) num telescópio para nos dar imagens? Numa câmara fotográfica, portanto. Claro que não é tão simples. Esta máquina fotográfica tem capacidade de medir a luz em comprimentos de onda que não eram possíveis até agora e nos dão a possibilidade de ver objectos que estavam escondidos até agora. No entanto sim, é uma máquina fotográfica. A resposta mais simples a esta questão é "porque sim". Porque queremos saber mais sobre o mundo e o Universo. Porque queremos entender o que nos rodeia. Pela mesma razão que Sócrates ou Aristóteles ou Descartes pensavam, porque queriam compreender. O alcance e o detalhe e a forma de compreensão é diferente, mas a natureza da questão não mudou. Porque queremos saber mais.

Há outras respostas que podemos dar, no entanto. John Keats falou sobre "Unweave(ing) a rainbow" ("desconstruir o arco-íris") para criticar os estudos de Isaac Newton sobre a natureza da luz, argumentando que ao se tentar explicar um fenómeno, a sua beleza, o deslumbramento que causa, se perdem. No entanto a resposta dos cientistas é que não só não se perde isso - um cientista pode apreciar a beleza de um arco-íris tal e qual qualquer outra pessoa - mas lhe acrescenta ainda mais beleza. Como não apreciar a beleza das fotos que o Hubble nos deu ao longo das suas décadas de serviço? Como não ficarmos ainda mais deslumbrados ao vermos as fotografias que o JWST nos deu quando estava simplesmente a ser testado? E ainda não partilhei aqui algumas das fotografias mais belas e as descobertas que nos trouxeram já. A beleza e o deslumbramento, a sensação do maravihoso que estas imagens nos trazem - me trazem - é inigualável. Não quer dizer que é a maior sensação de deslumbramento que já tive, mas nunca como esta. Já vi uma referência a esta notícia como sendo das poucas que podem causar um bem estar quase universal, tal como a missão Apolo XI (com as devidas ressalvas de importância) e não posso deixar de concordar. É um deslumbramento que transcende - deveria transcender - fronteiras e culturas. Isso em si já deveria bastar.

Mas vivemos num mundo materialista. Como tal podemos referir os desenvolvimentos científicos e tecnológicos que foram certamente necessários para conseguir produzir esta maravilha da ciência e engenharia. Desde a ciência dos materiais, métodos de construção, novos instrumentos, novos robots para construção e montagem, métodos de análise (não só por parte do telescópio mas também para avaliar o próprio telescópio), etc. Já li algures que os nosso smartphones actuais devem quase tudo aos programas de exploração espacial. Desde as câmaras, aos hips, aos GPS, tudo isso foi desenvolvido graças a, ou para facilitar, os programas espaciais. Se hoje a SpaceX de Musk e a Blue Origin de Bezos podem competir com a NASA, isso deve-se ao trabalho de décadas dos prigramas públicos. O nosso mundo é em grande parte possível devido ao nosso desejo de conhecimento, à nossa sede de saber mais. À sensação de deslumbramento que olhar para cima nos trás.

Porque razão gastar 10 mil milhões numa câmara fotográfica? Porque podemos recuperar esse investimento com tudo o que desenvolvemos. Porque podemos saber mais. Porque podemos ser deslumbrados, mais uma e outra vez. Para mim, esta última basta.

 

Nota: provavelmente terei erros ou imprecisões na informação acima. Não é a minha área de conhecimento, sou apenas um apaixonado pela ciência. Agradeço quaisquer correcções nos comentários.

William Shatner no Espaço

jpt, 15.10.21

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Posso resmungar, avesso a esta explosão do turismo espacial dinamizada pelos multibilionários - tal e qual o príncipe William, o que mesmo assim não servirá para evitar as invectivas e perdigotos de alguns, logo apupando-me (e ao príncipe, se calhar) como "marxista cultural". Mas mesmo assim vibro com esta notícia de que, aos seus 90 anos, William Shatner, o lendário capitão Kirk da "Star Trek" - série celebrizada nessa magnífica época em que não seria politicamente obrigatório reduzir os heróis Kirk & Spock a um casal homossexual - foi ontem ao espaço. É mesmo caso para entoar esta velha "Where's Capt. Kirk?", que fez algum furor na sua época. E clamar, em frenesim de pogo, "está no espaço...".

(Spizz Energi, "Where's Capt. Kirk")

 

 

Colonizar Marte

João André, 10.06.20

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Recentemente a SpaceX tornou-se a primeira empresa privada a enviar seres humanos para a Estação Espacial Internacional (ISS). Foi um feito que abre as portas a uma nova era de exploração espacial, onde certo tipo de operações poderá passar para a mão de privados e libertar a NASA (e outras agências públicas) para se concentrar em objectivos mais científicos e menos mundanos e reduzir o custo das operações de suporte (a SpaceX, bem como Blue Origin e outras, fazem os seus lançamentos a custos bem mais baixos que a NASA, ESA ou Roscosmos).

No entanto, o objectivo declarado de Elon Musk, o principal responsável pela SpaceX (e várias outras empresas), é o de levar seres humanos a Marte e criar lá as primeiras colónias. É um objectivo admirável e que um dia será possível, mas quando penso nele a longo prazo, penso que há um erro de cálculo no conceito de Marte como "nova casa" para os seres humanos.

Marte é um planeta com cerca de 53% do tamanho da Terra e apenas 10% da massa do nosso planeta. A atmosfera de Marte tem apenas 0,6% da pressão da da Terra e é composta em 95% de dióxido de carbono. A atmosfera está directamente relacionada com a massad o planeta, dado que a sua espessura depende imenso da gravidade que o planeta exerce. A nossa atmosfera não existe por haver alguma barreira por cima do nosso planeta que evita que os  gases escapem. Tal como nós próprios, os gases que compõem a nossa atmosfera mantêm-se presos ao planeta porque a gravidade não os "deixa" escapar. No caso de Marte, tal não é possível.