Ultimamente são muitos os que têm saído em defesa do hacker Rui Pinto. De Ana Gomes a Miguel Sousa Tavares, de Pacheco Pereira a Manuel Carvalho, já sem falar nos seus advogados, em Portugal e no estrangeiro, que aliás mais não cumprem do que o seu papel, são muitas as vozes que querem elevar o estatuto do fulano a um herói, um quase semideus, à espera de ser condecorado pelo Presidente da República e venerado pelos portugueses.
Se há coisa em que os portugueses perdem com facilidade o sentido do equilíbrio, das proporções e do bom senso é quando vêem a turba aos gritos e aos empurrões, altura em que tendem a alinhar com ela, esquecendo o básico.
Gostaria, no entanto, antes de avançar de fazer a minha declaração de interesses, e já agora de simpatias e antipatias, para que as pessoas possam analisar o assunto com a atenção que entendam dar-lhe.
E quanto a este ponto, em poucas linhas direi que desde que me conheço que combato no meu dia-a-dia, pessoal e profissional, a corrupção, o compadrio, o clientelismo, o tráfico de influências, e que desde sempre procurei denunciá-los, existindo algumas largas centenas de textos em que o fiz, independentemente dos riscos e do custo que isso iria ter. E algumas vezes teve. Disso não me queixo. Cumpri. Quero, apenas, acrescentar que não conheço o hacker Pinto de lado nenhum e que tenho estima, simpatia pessoal e até admiração e amizade por alguns dos que agora saíram em sua defesa.
Posto isto, quero deixar bem claro que, em primeiro lugar, a Constituição da República define Portugal como um Estado de direito democrático, subordinado à Constituição e que se funda na legalidade democrática, que o sigilo da correspondência, dos meios de comunicação privada e das telecomunicações é um direito fundamental, e que as autoridades públicas só podem interferir nesses meios se para tal estiverem autorizadas em matéria criminal, sendo “nulas todas as provas obtidas mediante (...) abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
Sublinho que estes são, até à data, os princípios que nos regem, os que vinculam o Estado, os órgãos de soberania, os seus titulares, e que foram por todos nós reconhecidos, democraticamente, com ou sem o apoio de cada um de nós enquanto indivíduos, como aqueles em que nos revemos e fundamos a nossa comunidade.
A compatibilização do que aqui temos — não sendo pertinente neste momento estar a aprofundar o mais que consta da legislação vigente, até porque este debate deve ser aberto, acessível e compreensível por todos em termos absolutamente inequívocos, e não restrito a juristas, meia dúzia de entendidos e políticos em geral — com a imperiosa, e desde sempre inadiável necessidade de combate à corrupção e crimes conexos e associados, é o que nos deve mobilizar, mas tal deverá acontecer em termos racionais, deixando de lado a emotividade, a hipocrisia e o populismo em que normalmente os nossos predestinados cavalgam.
Querer transformar quem, primeiro, entrou ilicitamente em redes de comunicações privadas, espiolhou, copiou e guardou o que muito bem entendeu para uso futuro; depois distribuiu como quis parte dessa informação, a coberto do anonimato, a qual entretanto serviu para denunciar e julgar em praça pública quem não se pôde defender; e a seguir aproveitou para tentar, está por apurar se directa ou indirectamente, obter dividendos financeiros dos actos ilegais que cometeu, não me parece que seja suficiente para lhe lavar a alma e transformar um vilão num impoluto campeão do combate à corrupção.
Não está em causa, importa frisá-lo, a gravidade dos factos apurados ou a importância dos documentos divulgados, nem as consequências da sua divulgação pública por parte de quem criteriosamente os investigou para apurar da sua veracidade e actualidade. Há muito que se suspeitava do que foi divulgado, há muito que muita gente desconfiava de tudo o que se veio a revelar através dos documentos, e não poucos foram os que alertaram o Estado português e seus responsáveis, de Cavaco Silva a Passos Coelho, de Durão Barroso a Paulo Portas, de José Sócrates a António Costa, da necessidade de não nos colocarmos de cócoras de cada vez que falávamos com a família dos Santos, respectiva prol e criadagem empresarial, política, militar ou civil, de cá ou de lá.
Também há muitos anos que muita gente assumiu a denúncia e o combate às sociedades offshore como prioritário, e há muito que esses instrumentos deviam ter sido banidos e sujeitos a pesadas sanções. Em Portugal não só não foram banidos como depois disso ainda se alinhou numa política de criação de vistos gold que se nalguns casos correspondeu a verdadeiro investimento, noutros só serviu para ajudar a lavar, branquear, pagar comissões a quem nada fez e enganar compradores que pagaram preços exorbitantes por imóveis que valeriam um terço do que foi pago.
A propósito das offshore recordo-me, inclusivamente, de ter estado num debate, em Braga, num congresso do PS aí realizado, em que também participaram Ana Gomes, Filipe Brandão Rodrigues, Luís de Sousa, autarcas e muitos outros, em que foram feitas denúncias vigorosas contra as offshore e a inacção do próprio PS sobre essa matéria, tendo havido inclusivamente alguém que lá estava na assistência que desenvolveu explicações sobre o funcionamento em concreto de alguns esquemas em jurisdições offshore, perante o espanto de Ana Gomes, que uma vez mais se interrogou, sem que até hoje tenha havido qualquer mudança ou vaga de fundo para se acabar com essas entidades que servem para dar guarida à bandidagem nacional e internacional que usa colarinhos de todas as cores, formas e feitios, comendo à mesa de reis, presidentes e chefes de governo para parecerem sérios.
Pelo meio, ao longo de décadas, tivemos em Portugal dezenas de processos em que em causa estava a realização de escuta telefónicas não autorizadas por ordem judicial. Do que me recordo, não houve um único em que, por exemplo, Miguel Sousa Tavares considerasse, e com razão, que se devesse dar crédito a essas escutas atenta a forma invasiva, arbitrária e ilegal como foram obtidas; fosse nos célebres casos em que o Presidente do FCP andou envolvido, nos da Casa Pia ou do ex-primeiro-ministro Sócrates.
Curiosamente, o que hoje se vê é que toda essa gente que se manifestou contra a utilização das escutas, de Pinto da Costa ou de Sócrates, algumas até mandadas destruir por um antigo presidente do STJ, sem que outros conhecessem o respectivo conteúdo e apenas porque embora recolhidas legalmente excederiam o objectivo da recolha, venha agora manifestar-se em defesa do hacker Rui Pinto, como se este não fosse efectivamente um criminoso.
É evidente que não deixa de o ser, sendo certo que isso não coloca em causa a importância do que, num segundo momento, e, em minha opinião, apenas para se safar e criar um ambiente favorável à sua pessoa junto da opinião pública e da comunicação social, divulgou junto de um consórcio de jornalistas independentes aparentemente, digo eu, sem exigir contrapartidas.
Idêntico procedimento não foi seguido com os documentos obtidos do Sport Lisboa e Benfica, que foram directamente parar ao Futebol Clube do Porto, certamente que aos olhos do hacker Pinto a entidade mais isenta, imparcial e idónea para proceder à sua divulgação aos bochechos, alimentando as noites televisivas de alguns canais e enchendo as páginas da imprensa que vive da escandaleira, da devassa e da intromissão na vida dos outros.
Pergunto, por isso mesmo, se a forma como o hacker Pinto acedeu aos conteúdos que divulgou é menos intrusiva do que as escutas telefónicas abusivas, e se estas devem ser consideradas mais ou menos abusivas em função do juízo que se venha a fazer da importância do conteúdo divulgado?
É por isso de grande hipocrisia querer desvalorizar a ilicitude dos actos de intromissão em redes e computadores privados, quaisquer que eles sejam, face às regras vigentes.
Convém não confundir a atitude de Rui Pinto, o hacker, com a de gente como Snowden ou Frederic Whitehurst, ou seja, com verdadeiros whistleblowers, lista da qual Pinto não faz parte, embora para si se esforce em agora reclamar tal estatuto.
Considero ser necessária a criação de um estatuto, que já devia existir, destinado à protecção dos verdadeiros denunciantes. Isto é, daqueles que o fazem no cumprimento de deveres de cidadania, e não dos que só se lembram da cidadania quando são apanhados a fazer exactamente aquilo que um cidadão sério, consciente e responsável não faria. Sim, porque ninguém vai entrar em redes privadas e em computadores de terceiros, devidamente seleccionados, seja de Estados, empresas ou particulares, incluindo magistrados e advogados, apenas porque está a navegar pela Internet, a ver a paisagem.
A questão coloca-se a meu ver de forma pertinente não em relação aos que procuram aceder, e acedem, à informação de forma absolutamente ilícita, entrando abusivamente em redes, devassando e muitas vezes destruindo informação, apropriando-se da que lhes convém, mas no que diz respeito a todos os que, designadamente em razão do seu desempenho profissional, acedem legitimamente à informação e sobre os quais é discutível se têm ou não um dever de denúncia, por um lado, ou de bufaria, melhor dizendo, e se o tendo, quando confrontados com a sua obrigação de confidencialidade e preservação do sigilo, o devem exercer e fazer prevalecer sobre as outras obrigações que sobre si recaiam.
A solução não é simples e coloca muitas vezes problemas que estão muito para além da mera denúncia, envolvendo juízos éticos e morais que não são fáceis. Acontece que, em regra, quanto a este tipo de profissionais importa saber até que ponto é que aquelas são compatíveis com as necessidades de combate ao crime e à corrupção. E quando estas devem prevalecer sobre aquelas. E em que momento.
Abreviando, direi tão só que estou de acordo com a criação do estatuto de denunciante, de maneira a que esta condição confira protecção efectiva a quem se coloca em risco para cumprir deveres de cidadania, levando-se em consideração que na outorga desse estatuto deverá ser feita uma separação clara entre aqueles que abusiva e totalmente à margem da lei circulam, devassam e pirateiam redes de comunicações, muitas vezes apenas com o propósito de destruírem, de se divertirem ou de chantagearem, daqueles outros que licitamente ou por mero fortuito têm acesso à informação e por a considerarem de interesse público a entender divulgar e remeter às autoridades competentes.
Uma coisa é certa: não poderá haver dois pesos e duas medidas. E o que vier a ser decidido não deverá ter carácter retroactivo, independentemente de poder haver um regime mais leniente para aqueles casos em que quer a informação não fosse acessível por outra forma, quer à acção criminosa se tenham sucedido actos inequívocos de arrependimento — o que não parece ser o caso de quem se recusa a divulgar as passwords de acesso aos discos rígidos contendo informação que foi obtida ilegalmente sem obtenção de contrapartidas — que levassem à divulgação dos conteúdos imprescindíveis para a investigação dos factos pelas autoridades e à punição dos criminosos.
Quero, ainda, acrescentar que considero absolutamente humilhante e procedimento indigno do nosso sistema judicial que se passeiem e divulguem imagens de arguidos, como no caso do hacker Rui Pinto, algemados e exibidos nas televisões e jornais como troféus de caça. Se as polícias o fazem, os magistrados deviam ser os primeiros a impedi-lo, pois que por aí não nos distinguimos em nada das imagens que os canais de televisão chineses apresentam em relação aos que do outro lado do mundo aguardam que se faça justiça.
Combata-se a corrupção, sim, de forma clara e transparente, mas sem hipocrisias, partidarites e clubites, e acima de tudo respeitando o Estado de direito.
Como ainda ontem escrevia no Público a procuradora Maria José Fernandes, “porque não rever princípios no âmbito da doutrina constitucional e na jurisprudência, sem o objectivo de abastardar valores do Estado de direito, que tanto custaram a consagrar, mas sim para introduzir modulações de equilíbrio nas novas realidades da vida social? Uma possibilidade, a consagração de exce[p]ções baseadas na proporcionalidade, adequação, hierarquia de valores, por forma a que a realização da Justiça acompanhe as profundas modificações valorativas da sociedade de hoje, resultantes da evolução tecnológica, económica e ambiental.”.
Mudem-se as regras do jogo, não se mudem os princípios de acordo com as circunstâncias e as conveniências do momento.
Faça-se isso sem populismo e sem a habitual demagogia retórica destinada a manipular a turba ignorante, visando a punição de alguns criminosos caídos em desgraça para se satisfazer o desejo de vingança das massas e do voyeurismo televisivo, enquanto ao mesmo tempo se heroicizam outros para se desvalorizar a gravidade dos crimes por estes cometidos, e assim se lhes permitir que, saindo impunes, continuem a praticar outros.
Porque é isto o que está verdadeiramente em discussão. Saber se queremos bandidos-denunciantes ou cidadãos-denunciantes.
Protejam-se os cidadãos que denunciam, não os bandidos que disso procuram tirar partido. Pelo menos até que se chegue à conclusão de que os fins justificam os meios, coisa contra a qual houve quem se indignasse quando se tratou das escutas telefónicas de outros processos que acabaram em nada.