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Delito de Opinião

Um maná de equívocos

Sérgio de Almeida Correia, 16.01.23

Quando ouvi o primeiro-ministro lançar, durante o debate na Assembleia da República, a ideia de um questionário a preencher por todos aqueles que um dia viessem a ser convidados para integrar um governo, fiquei de imediato com a convicção de que essa luz devia ter acabado de acender-se no calor da discussão.

Sempre pensei que não passasse daí e que depois houvesse humildade e bom-senso suficiente para dar a volta ao texto. Não houve, e à boa maneira chinesa, para não se perder a face avança-se com a asneira. Depressa e em força.

Não caiu o Presidente da República na esparrela, mas essa asneira foi publicada sob a forma de Resolução do Conselho de Ministros com o n.º 2-A/2023, em 13 de Janeiro, no D.R. 10/2023, I série, I Suplemento, que "estabelece um questionário prévio à integração de novos membros no Governo".

Começa logo no título, porque se a resolução está destinada a vigorar apenas a partir do dia seguinte ao da sua publicação, isto é, para quem vier a ser recrutado, não sendo pois retroactiva, não havia necessidade de se dizer que é só para os "novos" mancebos e noviças. 

Evidentemente que concordo com a necessidade de se "assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático", coisas pelas quais há muito me bato. Porém, não me parece que a forma escolhida seja a melhor. Não é o preenchimento do questionário que vai conferir rigor, idoneidade, integridade e seriedade a quem não a tem. Estes são atributos que resultam dos próprios, do seu carácter, ou da sua falta.

A prova disto está logo no preenchimento das declarações de registo de interesses dos próprios membros do Governo, que não obstante estarem obrigado a apresentá-las e depositá-las na Assembleia da República, de 56 membros do Executivo, só 23 tinham apresentado as declarações e feito a sua inserção no sistema informático do parlamento. Se uma coisa tão simples não é acatada e cumprida pelos membros do Governo, como querer que depois seja feita a confissão de outras situações, envolvendo assuntos porventura mais sérios e alguns que só dirão respeito a outros familiares?

Já com o regime actualmente em vigor houve quem se esquecesse de sociedades comerciais de que fazia parte e de abandonar sociais que integrava, o que não os impediu de assumirem e se manterem nos cargos. 

E se bem me lembro, no passado, dentro da própria Assembleia da República houve deputados que em matéria de preenchimento das suas habilitações nas declarações de registo de interesses dos deputados, se arvoraram titulares de licenciaturas que ao tempo não possuíam, o que não os impediu, depois, de chegarem ao Governo, se tornarem eminências do regime e agora até botarem faladura nos canais de televisão a criticarem os últimos demissionários.

O caso da ex-secretária de Estado do Turismo é mais um exemplo paradigmático da inutilidade de alguns regimes vigentes. Valeu apenas a censura pública para acautelar o que entrava pelos olhos de qualquer cidadão com um mínimo de decência e de inteligência.

O processo de escrutínio deverá ser transparente, o que é pouco compatível com o secretismo conferido ao questionário aprovado. Ou é público, como o registo de interesses dos deputados, pelo menos nos seus aspectos mais relevantes, ou então não permite o escrutínio. Apenas os dados pessoais sensíveis é que devem ser protegidos, tudo o mais deveria poder ser público. Se quem convida não sabe, e se quem é convidado esconde, quem faz o escrutínio? Para que serve pedir aos visados o que não é publicamente escrutinável? Ou será que depois o primeiro-ministro ou o ministro, assim como quem não quer a coisa, vai contratar uma equipa de "detectives amigos" para confirmarem o que leram nas respostas? Não se vê por aqui em quê que este mecanismo contribui para o robustecimento do processo de verificação, aumentando o escrutínio e a confiança dos cidadãos. Pelo contrário, aumenta a burocracia e instala a desconfiança em permanência na vida pública, partindo do princípio, errado, que todos os que são convidados são parte da jagunçada militante que por aí circula.

Quanto ao momento da destruição dos questionários não fiquei ciente, falha minha, sobre quando tal ocorrerá, nem sei se será adequada a destruição imediata logo após a cessação de funções porque há coisas que, muitas vezes, só quando as comadres ficam desavindas é que se vem a saber.

Mas aquilo que me faz mais confusão é o preenchimento prévio da declaração subsequente ao eventual convite. Convite que após a entrega da declaração poderá vir a ser retirado. Ou seja, o primeiro-ministro convida o senhor Y e diz-lhe: Gostava de poder contar consigo para o meu governo, mas já sabe que antes tem de preencher esse formulário. Leve lá isso e mande entregar amanha ao meu gabinete.

O convidado fica todo satisfeito e vai a correr contar a novidade lá em casa. Quando começa a preencher o questionário depara-se com a pergunta sobre se "presta, ou desenvolveu nos últimos três anos, atividade de qualquer natureza, com ou sem carácter remunerado ou de permanência, suscetível de gerar conflitos de interesses, reais, aparentes ou meramente potenciais com o cargo a que é proposta/o?". E que faz o convidado no seu criterioso juízo, que poderá ser o de algum dos camaradas demissionários dos últimos meses? Mesmo que haja um conflito de interesses entende que não há. Aliás, no momento do preenchimento, fala com o cônjuge que lhe diz logo para colocar a cruzinha no "não" e aconselha o parceiro a falar assim que possa com duas ou três pessoas amigas para avisá-las de que vai ser ministro e que sobre o assunto X "nem uma palavra", para não o tramarem.

Se ao fim de seis meses se descobrir uma qualquer situação que leve à demissão, o primeiro-ministro daí lava as mãos, o ministro também, o Presidente da República assobia para o lado e diz que não é nada com ele (e não é), e no final vem uma qualquer moçoila saída do infantário do partido dizer que no seu prudente critério nunca viu qualquer incompatibilidade, nunca recebeu qualquer remuneração, que o apartamento não era seu e que estamos perante mais uma cabala como a do outro figurão que encomendou a tese ou o dos ajustes directos numa autarquia amiga. 

Conheci muitos que a tudo se prestavam. De vários partidos. De caciques das eleições partidárias, às recorrentes cunhas e à falsificação de currículos, há de tudo. Há um que queria à força ser cônsul honorário e quando sabia que havia um lugar disponível, ou que determinado país andava à procura de alguém que pudesse assumir as funções, enviava dois currículos. Um com o o primeiro e o último nome, o outro com os dois nomes do meio. Um dia, alguém de uma certa embaixada veio perguntar-me se eu o conhecia o fulano. Enfim, nada que o impedisse de ser promovido no partido, nomeado para várias sinecuras e, finalmente, cônsul honorário de uma qualquer república das bananas, o que lhe daria a oportunidade de ostentar um "CC" no carro. Para um fulano destes, militante de partido a vida toda, com carreira na jotinha, próximo de secretários-gerais, de deputados e manipulador de estruturas locais do seu partido, um questionário como o proposto seria preenchido (se é que um dia não irá ser) de forma a não perder a hipótese de mais um saltinho na carreira, pese embora a sua reconhecida incompetência.

É claro que há outros problemas que se podem colocar, como a não aceitação das respostas, a devolução do formulário ao convidado e uma palmada nas costas ("olhe, tente para a próxima preencher de outra forma"), com o subsequente convite a um segundo ou até um terceiro candidato ao lugar, até que se encontre um disponível que esteja "virgem" de tudo e complete o questionário. Agora imagine-se este processo repetido com uma dúzia dos convidados. Quando estaria o Governo formado? Quando tomaria posse?

Outra questão, por exemplo, é o "tem a situação fiscal regularizada?". Bom, qualquer cidadão a deverá ter, mas até ser notificado da instauração da execução abusiva tem sempre a sua situação fiscal regularizada. Se a execução for instaurada antes da notificação da liquidação do IMI (já me aconteceu e valeu-me um pedido de desculpas há um ano, sem devolução das despesas, parte sobre a qual a Autoridade Tributária nem sequer se pronunciou), o questionário foi fielmente respondido, mas o convidado podia não ter sido ainda notificado da execução precipitadamente instaurada. De nada valeria a desculpa porque no dia seguinte aparecia um matutino, desses bons que temos, titulando "Ministro não pagou o IMI e tem execução à perna".

É escusado continuar. Nao se percebe como tendo o PS um Gabinete de Estudos, o Governo coloque cá fora uma aberração destas.

Tudo isto é um disparate pegado que não contribui, em nada, para a melhoria da transparência. Só por pura demagogia poderá ser afirmado o contrário.

Como também não serve para desresponsabilizar politicamente qualquer primeiro-ministro ou um ministro convidante pelas escolhas que faça. Poderá, isso sim, ser motivo de gozo e chacota por parte do Presidente da República. Do actual ou de outro parecido.

Pensar que questões de personalidade, carácter e seriedade, de educação e formação se resolvem respondendo a questionários beras é não perceber a essência dos partidos que construímos, das elites que formamos e de muitos dos que lá estão a mandar ou sentados em São Bento.

E isto ainda é o mais triste disto tudo.