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Delito de Opinião

Lembrar Mario Vargas Llosa

Pedro Correia, 14.04.25

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Mario Vargas Llosa morreu ontem em Lima, capital do seu Peru natal, aos 89 anos. Era, sem favor algum, um dos maiores escritores dos dois últimos séculos - justamente distinguido, em 2010, com o Prémio Nobel da Literatura.

Foi sempre um nome de referência no DELITO DE OPINIÃO. Pelo seu talento ímpar, pela manifesta qualidade da sua escrita, pela clareza das suas ideias, pelo desassombro das suas opiniões. 

Pela minha parte, nunca o escondi: era um dos meus autores preferidos. Equiparo-o a Kafka, Orwell, Camus, Hemingway, Greene. Escritores que não apenas admiro e considero, mas que estimo muito. Como se integrassem a minha família alargada - desde os anos da adolescência, quando comecei a conhecê-los e a conviver com eles sem nunca me cansar.

 

Tendo escrito sobre três livros de Vargas Llosa, é o momento de recordar esses textos aqui publicados.

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Sobre Conversa na Catedral (1969):

«Recorrendo à técnica da diluição cronológica, Vargas Llosa povoa esta magnífica obra de múltiplas personagens e narrativas secundárias sem abandonar a denúncia dos governos que suprimem a liberdade e condenam sucessivas gerações a um futuro sem esperança.»

 

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Sobre A Tia Julia e o Escrevedor (1977):

«Acontece que a sua história pessoal, sendo verdadeira, parecia trama de ficção. Puro radioteatro. Impensável confusão entre biografia e folhetim. Quanto mais inverosímil, mais emocionante ou divertida – e, num certo sentido, mais verdadeira. Lembrando-nos que a vida é um romance - percorrido por momentos delirantes ou lancinantes de riso e choro, varrido por horas alternadas de partilha e solidão.»

 

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Sobre La Llamada de la Tribu (2018):

«O liberalismo não é uma ideologia, não é uma doutrina fechada que suscite aplausos acéfalos ou seguidores incondicionais. Em tempo de trincheiras, potenciadas pelas chamadas redes sociais, um liberal à moda antiga – cultor da tolerância, da moderação, da justa medida, da liberdade apenas condicionada ao império da lei – é menos mobilizador do que um populista incendiário apelando ao encerramento das fronteiras. Mas nem por isso deixa de ter a razão do seu lado.»

 

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É também o momento propício para lembrar alguns dos seus pensamentos que mereceram destaque neste blogue. Aqui ficam, nos parágrafos que se seguem, em modesta mas comovida homenagem à sua memória.

«A literatura é o alimento de espíritos indóceis e propagadora de inconformismo, um refúgio para aqueles a quem sobra ou falta algo, na vida, para ser infeliz, para não se sentir incompleto, sem realizar as suas aspirações.»

«Agora, graças à grande revolução audiovisual e cibernética, a privacidade deixou de existir, e em qualquer caso ninguém a respeita: transgredi-la é um desporto praticado diariamente pelos órgãos de informação perante um público que assim o exige com avidez.»

«Por detrás da crise financeira, existe uma moral degradada pela ganância. Esta é uma forma terrível de incultura.»

«A magia e o hipnotismo colectivos podem conduzir ao poder qualquer demagogo sem escrúpulos, tanto numa ditadura como numa democracia.»

«Todo o nacionalismo foi sempre uma catastrófica epidemia para os povos.»

«A paixão pode ser generosa e altruísta quando inspira a luta contra a pobreza e o desemprego. Mas a paixão também pode ser destruidora e feroz quando é movida pelo fanatismo e pelo racismo.»

«A literatura francesa fez o mundo inteiro sonhar um mundo melhor. A literatura francesa permitiu que sejam hoje realidade muitas democracias, preservando a razão contra pesadelos e revoluções, após tantos fracassos e mortos.»

«As democracias mais imperfeitas são sempre preferíveis às ditaduras mais perfeitas.»

 

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(1936-2025)

O pesadelo cubano

65 anos de ditadura comunista, sem pão nem liberdade

Pedro Correia, 15.10.24

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Leonardo Padura: «Mais de um milhão de cubanos abandonaram o país nos últimos anos»

 

Leonardo Padura é o maior escritor cubano contemporâneo. Vive exilado na sua própria terra. Não lhe fazem referências nos jornais, está impedido de aparecer na televisão, nenhum dos seus livros mais recentes foi sequer editado no país submetido há 65 anos a uma ditadura comunista.

O autor de Adiós HemingwayEl Hombre que Amaba a los Perros acaba de dar uma impressionante entrevista ao El Mundo em que confessa a sua amargura pelo cenário de estagnação e pobreza, moral e material, da sua Cuba natal, carente de pão e democracia. Onde as pessoas só podem votar de uma forma: com os pés. É isso que vão fazendo, em número crescente: êxodo em busca de liberdade.

Partilho convosco alguns dos excertos mais relevantes:

 

«Em Cuba falta comida e electricidade, mas acima de tudo falta esperança.»

«É doloroso saber que os meus livros podem ser encontrados nas livrarias de qualquer país de língua espanhola, menos no meu.»

«Vivemos a maior vaga migratória da história de Cuba. Nos últimos três ou quatro anos, só para os Estados Unidos, partiram mais de 800 mil cubanos. Somam-se aos que estão no México em fila de espera, aos que foram para Espanha - cerca de 200 mil -,  Brasil ou Uruguai... Mais de um milhão de cubanos, 10% da população, abandonaram a ilha.»

«Não é só a repressão política: também há repressão judicial. Por quebrar um vidro de uma loja, alguns [jovens] manifestantes foram condenados a dez anos de prisão. Ninguém sai à rua em protesto, sabendo que pode passar uma década atrás das grades.»

«Já ninguém acredita num ideal tornado obsoleto nem num futuro melhor.»

 

Palavras contundentes e desassombradas. Padura, com 69 anos recém-completados, arrisca - também ele - ser detido pelos esbirros da tirania instalada em 1959, ainda ele nem frequentava a escola primária. Porque em Cuba vigora o delito de opinião: não faltam ali prisioneiros de consciência. Há mais de mil nos cárceres castristas, 30 dos quais ainda menores.

Vale-lhe, em parte, ter dupla nacionalidade: em 2011, foi-lhe concedida a cidadania espanhola. Isto não lhe diminui a angústia de se ver cada vez mais isolado no bairro de Havana onde tem passado toda a vida. Porque - outra revelação ao El Mundo - agora não partem só os jovens: também muitos velhos vão virando costas à ilha, deixando-o mergulhado numa solidão que dói como ferida funda.

Como diria o anti-herói dos seus romances policiais, o detective Mario Conde, «desde o infantário até ao túmulo que nos vai calhar na rifa, escolheram tudo, sem nos perguntarem nunca nem de que doença gostaríamos de morrer.»

Após décadas de pesadelo que continua sem ter fim.

Pano para mangas (1.ª parte)

Cristina Torrão, 13.10.24

Por vezes, uma pessoa fica desanimada, pensa em desistir. Julga-se sozinha, sem apoios, e começa a duvidar da justeza do que pensa e escreve. Sei que há frequentadores do Delito que me odeiam, habituei-me a muitos tipos de ataques. Confesso, porém, que fiquei siderada com o teor de certos comentários a este postal. Já tinha contado com controvérsia, mas não deste calibre.

Felizmente, surge sempre uma luz, que nos devolve a esperança e nos confirma que vale a pena (sempre, como dizia o poeta). Desta vez, muita dessa luz veio na forma de um comentador (ou comentadora) anónimo.

Quem diria que violência exercida sobre uma mulher ainda causa tanta controvérsia? Quem diria que Maria Teresa Horta ainda gera tal impacto, passado tanto tempo?

Nesta primeira “manga”, venho, acima de tudo, fazer justiça a Patrícia Reis. Porque também ela foi criticada, muito me surpreendendo. Limitei-me a citar de um seu livro. A fim de não tornar o postal muito longo, fiz alguns cortes, porque, pensei eu, o essencial estava dito. Pretendia apenas chamar a atenção para um caso de violência, num regime ditatorial. Mais nada!

Pelos vistos, porém, as frases cortadas fizeram muita falta. Um colega de blogue decidiu comentar:

"Patrícia Reis escreve de forma atabalhoada e o excerto que publica é exemplo disso.
Maria Teresa Horta não é uma coitadinha, é uma mulher que teve acesso à imprensa, que publicou crónicas, que sabe escrever, qual a razão para nunca ter publicado um episódio tão traumático pela própria pena?

MTH terá cerca de 1.50 m e pesará cerca de 50 kg, seriam necessários dois homens para a imobilizarem? Deitarem-se sobre ela em simultâneo e espancarem-na ao mesmo tempo?

(…)

Acredito que o episódio aconteceu, não acredito que tenha acontecido como Patrícia Reis (PR) o descreve, por razões práticas. MTH terá referido esse episódio "en passant" e PR deu-lhe uma importância que ele não teve para a biografada, caso contrário, MTH teria escrito sobre ele.
Esse episódio é mais um exemplo de "wokismo" a mulher vítima da brutalidade masculina. A mesma tónica não é colocada em quem o salvou, um homem, um heróico vizinho do sexo masculino que arriscou a própria vida para a salvar e que a acompanhou de táxi para o hospital".

Ora, como Patrícia Reis escreve no prefácio deste livro (que não intitula "prefácio", mas "antes de tudo"), para escrever esta biografia, ela passou muito tempo com Maria Teresa Horta, as duas tiveram muitas conversas. E, como o comentador anónimo referido revela, Maria Teresa Horta já tinha descrito este espancamento numa entrevista dada a Ana Sousa Dias, publicada na LER, em Novembro de 2013. O comentador (ou comentadora) fez o favor de transcrever o excerto referente a este ataque, que, no essencial, não difere do relato feito por Patrícia Reis:

"Ana Sousa Dias - (Recebia) Insultos de ódio?
Maria Teresa Horta - De ódio. «A tua mulher é uma esta, uma aquela, a tua mãe é uma puta, uma desgraçada». Quando era eu a atender, desligava o telefone. Tive uma conversa com o Luís Jorge*, expliquei-lhe (a situação). Uma noite saí de casa para ir ter com o Luís, que estava no jornal. O Luís Jorge estava em casa da minha sogra. Nós morávamos no Bairro Social do Arco do Cego, que é muito solitário. Ia apanhar um táxi e um carro parado acendeu as luzes. Reparei, mas só depois pensei nisso. O carro veio atrás de mim, meteu pelo passeio e parou mais adiante. Saíram dois homens e eu podia ter fugido, mas não havia motivo para pensar que havia perigo. Avancei, eles ficaram à espera, pensei: «Que estranho, o carro vinha pelo passeio e parou ali.» Mal penso nisto, eles atiram-me ao chão, começam a bater-me com a cabeça no chão e a gritar: «Isto é para tu aprenderes a não escreveres como escreves.» Um senhor do bairro apareceu, pensou que me estavam a roubar. Eles meteram-se no carro, onde tinha ficado um, e vão desarvorados. Disse ao senhor o que se tinha passado, ele levou-me para casa e telefonou ao Luís. Depois levou-me para o Hospital de Santa Maria e o Luís foi lá ter. Fiz radiografias, não tinha lesões, voltámos para casa".

*filho de Maria Teresa Horta e de Luís de Barros que era, à altura, uma criança.

O episódio teve de facto importância na sua vida. Como a biografia explica, ele foi mesmo o motor para a escrita das Novas Cartas Portuguesas (para quem achar necessidade de provas, também posso transcrever essa passagem, numa terceira parte; talvez fiquemos com o pulôver completo).

Também o vizinho que ajudou Maria Teresa Horta merece destaque, na biografia. Por isso, cai por terra a tese "exemplo de wokismo". Para o provar, decidi transcrever toda a cena, com citações de palavras da própria Maria Teresa Horta, assim nos transportando para as conversas que ela teve com Patrícia Reis, provando que não referiu o episódio "en passant":

"Quando chegou à curva da Rua Caetano, viu um carro estacionado, à sua frente, que acendeu as luzes. Teresa não lhe deu importância. O automóvel arrancou. Subitamente, em pânico, percebeu que vinha na sua direcção, que a ideia era esmagá-la contra a parede. Felizmente estava perto de um dos candeeiros de rua e conseguiu evitar o embate do carro. «Para trás eu não podia ir, não podia correr para casa. Portanto tinha de andar para a frente, para a estátua, que era onde eu queria chegar, na esperança de que existisse por ali mais gente». Teresa apressou o passo, quase a correr. Ouviu as portas do automóvel baterem, dois homens vieram na sua direcção, um outro ficou dentro do automóvel que se movia agora devagar, sempre na sua direcção. Os dois homens alcançaram-na. Deitaram-na ao chão. Teresa caiu de costas e eles ficaram em cima dela a espancá-la. Disseram-lhe: «Isto é para aprenderes a não escreveres como escreves». Pareceu-lhe que tudo aquilo durou horas, os murros, os tabefes, mas devem ter sido minutos. Cada vez que se queria levantar, batiam-lhe na cara, na cabeça. Teresa sentiu que tinha a cabeça aberta atrás e à frente, havia sangue e um prenúncio de várias dores no corpo. Um vizinho do bairro começou a subir a rua, gritou, pensava que eram ladrões. Os dois homens aperceberam-se da sua presença e entraram no automóvel. O trabalho estava feito. O vizinho gritou por ajuda. Teresa recorda-se de o ouvir dizer: «O que é isto?! Roubaram-na, roubaram-na, que horror... Está toda cheia de sangue!» O vizinho não a queria deixar sozinha. Teresa insistiu que ele fosse a casa, telefonar a Luís de Barros, receava que já tivesse saído do jornal e só queria ver o marido. Felizmente não foi o caso e Luís de Barros encontrou-se com ela já no Hospital de Santa Maria. «Ficámos convencidos, mesmo politicamente, de que eles eram legionários, a PIDE não trabalhava assim, não batia na rua. Não era o modo deles. Os legionários eram um braço fascista. Até hoje acho isto. Combinaram serem eles, saíra o livro e estavam ofendidos. Foi uma desgraça. Não fiquei deprimida, nada disso, a PIDE e os fascistas não têm esse poder sobre mim. Isso queriam eles, nem pensar.»

Teresa foi para o Hospital de Santa Maria de táxi com o vizinho. Possui uma lembrança muito vaga da viagem até lá. Fez radiografias, levou uma série de pontos na cabeça. Tinha o corpo coberto de hematomas, as pernas e os braços com escoriações. Não se recorda de chorar, nunca foi muito de chorar. «Uma escritora não tem de ser sensata nem prudente, tem de ter consciência do que se faz, mas não se autocensura.»

Sobre tudo isto conversou com Maria Isabel Barreno e com Maria Velho da Costa."

(pp. 220/221)

Chamo a atenção para o facto de que passagens mais confusas em toda esta descrição (também na entrevista da LER) terão a ver com o estado de choque de Maria Teresa Horta. Ou estavam à espera que uma pessoa, no meio de um ataque deste calibre, teria, mais tarde, discernimento para o descrever cirurgicamente?

 

Adenda: o meu colega de blogue visado neste postal é o Pedro Oliveira (aliás, o facto de eu não o ter identificado, não significa que tal teria de ficar em segredo, basta ir à outra publicação para o verificar). Entretanto, já fizemos as pazes. No fundo, fomos os dois levados pela dinâmica negativa que se formou nessa caixa de comentários. Não nego que entrei em stress. E hoje, mais calma, respondi-lhe num comentário que ele perfeitamente aceitou. Foi mais ou menos o conteúdo desse comentário que usei neste postal.

Mais uma voz a juntar-se a nós

Pedro Correia, 08.09.24

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Passo pela livraria Martins, em Lisboa, e capto esta imagem. Capas de oito livros de autores contemporâneos, com duas características comuns: todos são portugueses, todos escrevem sem recurso ao famigerado aborto ortográfico que transformou as regras anteriores no caos actual - que o digm os professores, incapazes de impor norma alguma num cenário de inúmeras "facultatividades", duplas grafias e supressão generalizada de consoantes, quer sejam supostamente mudas, quer sejam bem articuladas. Depois do cê de "contacto" ter ido às malvas, o de "corrupção" vai pelo mesmo caminho - como nos têm narrado Nuno Pacheco e Francisco Valada, entre outros resistentes da luta contra esta aberração.

Longe de serem os únicos, como a foto documenta. Afonso Cruz (A Boneca de Kokoschka), Carmen Garcia (Tudo o que Ouço é Coração), David Machado (Debaixo da Pele), Frederico Pedreira (Sonata Para Surdos), João Tordo (Biografia Involuntária dos Amantes), Lídia Jorge (O Dia dos Prodígios), Margarida Fonseca Santos (De Nome, Esperança) e Tiago Rebelo (O Tempo dos Amores Perfeitos) também resistem.

Oito. Mas podiam ser oitenta. Ou oitocentos. Podiam ser até antigos defensores assumidos do impropriamente chamado "acordo ortográfico", como o jornalista e ensaista brasileiro Sérgio Rodrigues, que numa excelente entrevista ao Expresso (conduzida por Christiana Martins) reconhece ter mudado de posição. Agora diz claramente, sem papas na língua: «O acordo ortográfico não fez nada ou muito pouco no sentido de nos aproximar. Acho até que teve alguns efeitos colaterais indesejados de nos afastar, por resistências a questões que o acordo tentou resolver e não foi muito hábil. (...) Fez mais mal do que bem, na verdade. E talvez não haja mesmo nada a fazer, a não ser cada um seguir o seu caminho.»

Felicito-o por exprimir hoje a convicção que muitos já tínhamos desde o primeiro dia. Mais uma voz a juntar-se a nós.

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Jamais esquecerei alguns autores de que hoje quase ninguém fala

Pedro Correia, 15.08.24

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Oiço de vez em quando que determinado escritor está "fora de moda". Não considero isso depreciativo.

Aprendi a ler com autores que o cânone actual considera fora de moda - de Miguel Torga a Jack London. E muitos outros - de Adolfo Simões Müller a Júlio Dinis.

Também com Agatha Christie e Rex Stout. E Maurice Leblanc, o criador de Arsène Lupin. E com as aventuras de capa-e-espada: Alexandre Dumas, Rafael Sabatini. Walter Scott. E Júlio Verne, claro. E alguma poesia, muita poesia: António Gedeão, Sidónio Muralha, José Gomes Ferreira. E com os Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes. Vergílio Ferreira e a sua Manhã Submersa. Romeu Correia e os seus Bonecos de Luz. Erico Veríssimo com a sua Clarissa e sagas subsequentes.

Alguns autores de quem quase ninguém já hoje fala. E a quem devo muito. Jamais os esquecerei.

Ler (32)

Afinal porque se escreve?

Pedro Correia, 04.05.24

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Porque se escreve? O que leva alguém a tornar-se escritor? Qual a atracção desta actividade tão intensa mas também tão desgastante e tão solitária? Uma das melhores definições que conheço sobre este tema foi expressa por um profundo conhecedor da matéria: o escritor espanhol Eduardo Mendoza, autor do romance A Cidade dos Prodígios. Ao receber em 2010 o Prémio Planeta, pelo seu livro Riña de Gatos: Madrid 1936, Mendoza declarou o que o leva a sentir a irresistível pulsão da escrita: «Não escrevo livros com um objectivo concreto: escrevo-os para ver como acabam.»

Excelente definição. Ainda mais saborosa por ser irónica. Ou por ser um misto de sinceridade e construção ficcional. Como nos ensinou Fernando Pessoa, num escritor não há distâncias entre fingimento e realidade.

Cobardia física e miopia moral

Pedro Correia, 07.10.23

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Salman Rushdie fotografado por Murdo Macleod

 

Como era óbvio, mais um ano transcorrido, Salman Rushdie não foi distinguido com o Prémio Nobel da Literatura. Nem o será. O Comité Nobel está infectado há muito tempo pelos vírus da cobardia física e da miopia moral. Se dois tradutores foram assassinados por terem ousado verter os Versículos Satânicos para outros idiomas, mais ameaçados ficariam os membros do aludido comité se prestassem justiça a um escritor que já merece o galardão desde 1981, quando publicou esse extraordinário romance que é Os Filhos da Meia-Noite

Como premiar um autor que caminha há décadas sob o fio da navalha, condenado à morte pelos inquisidores islâmicos e alvo de um miserável atentado em Agosto de 2022 que o deixou cego de um olho? Ninguém se atreverá a tanto. Sem desconsiderar Jon Fosse, o norueguês distinguido este ano, a sua reiterada omissão da lista de galardoados acaba por enobrecer o romancista britânico nascido em Bombaim -- «o sobrevivente», como acertadamente lhe chamou a revista Le Point.

Está muito bem acompanhado nesta vergonhosa omissão, integrando um longo cortejo dos melhores do século XX, de Joyce a Borges, de Ibsen a Kafka, de Tolstoi a Orwell, de Malraux a Virginia Woolf. Todos superaram o maior dos desafios: o decurso do tempo. «Se conseguir passar no teste de mais uma ou duas gerações, poderá perdurar», escreveu Rushdie, precisamente n'Os Filhos da Meia-Noite, a propósito de outro assunto. Os prémios passam, os júris eclipsam-se, a obra fica.

Os cobardes

Pedro Correia, 14.09.23

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Notável peça jornalística da revista Le Point desta semana: entrevista exclusiva com Salman Rushdie. O grande escritor está de volta após ter sido quase assassinado a 22 de Agosto de 2022, em Nova Iorque, por um extremista islâmico armado com um cutelo. Em 27 segundos levou 15 naifadas, sobreviveu quase por milagre. Mas não saiu ileso: ficou cego do olho direito, como a fotografia de capa documenta.

Felizmente Rushdie é daqueles que não desistem. Aos 76 anos, tem outro livro já ao encontro dos seus numerosos leitores: A Cidade da Vitória, romance histórico, ambientado na Índia do século XIV, mas obviamente com a intenção de retratar os dias de hoje. «Este mundo imaginário fala do nosso mundo real, o que sempre acontece com os romances, a pretexto da ficção», assinala na entrevista.

Testemunho desassombrado: nem seria de esperar outra coisa dele. Arrasa os dogmas da correcção política, critica sem rodeios a esquerda e a direita que ameaçam a liberdade de expressão com o mesmo ímpeto censório, afirma a necessidade de militarmos em defesa dos direitos fundamentais pois nenhum está garantido a título perpétuo - muito longe disso. «Quando se trata da democracia, não estamos num salão de chá, temos de nos bater por ela.»

Perseguido, injuriado, ameaçado, alvo de tentativas de homicídio pelo criminoso regime de Teerão desde a publicação dos Versículos Satânicos, em 1988, ele não se verga. Evidenciando coragem física e moral. Em contraste absoluto com os cobardes membros do júri do Prémio Nobel da Literatura - que ano após ano o ignoram. Quando bastaria esse fabuloso romance intitulado Os Filhos da Meia-Noite, de 1981, para lhe valer este galardão que já distinguiu tanto autor medíocre.

«De que necessita realmente um ser humano quando vem ao mundo? De ser alimentado, de estar em segurança, de ser amado se tiver possibilidade disso. Mas que pede ele aos pais quando já comeu e se sente aconchegado na cama? "Conta-me uma história..." Esta necessidade de histórias acompanha-nos desde a origem.» Sabe do que fala, este escritor que tanto admiro. Tem fibra de resistente. É um exemplo para todos nós.

Ler (26)

Os meus 50 livros preferidos escritos por mulheres

Pedro Correia, 02.09.23

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Tanto se fala agora em literatura feminina. Ou em livros escritos por mulheres, mais secamente, numa tentativa - inexplicável para mim - de expurgar o adjectivo feminino da linguagem corrente, como se soasse a condescendência masculina.

Tenho a mania de elaborar listas. Num destes dias, pus-me a pensar quais terão sido os 50 melhores livros que já li escritos por mulheres - ou senhoras, para usar uma linguagem antiquada mas que era corrente durante as vidas de grande parte delas. 

Lembrei-me destas que aqui deixo, por ordem cronológica, partilhando-as convosco. Talvez possam evocar boas memórias das vossas próprias leituras. 

Uma evidência: quase todos estes livros são romances ou novelas. Abri raras excepções, que se justificam pela qualidade das obras: os volumes de contos de Katherine Mansfield e Alice Munro, e as memórias de Karen Blixen. Estas, aliás, podem ler-se como um romance. Não incluo poesia, nem história, nem ensaio.

Outra anotação: esta lista só abrange, de propósito, autoras estrangeiras. As portuguesas merecem menção especial, por diversos motivos. Constarão, portanto, de outra lista que divulgarei em breve.

 

Orgulho e Preconceito, Jane Austen (1813)

Jane Eyre, Charlotte Brontë (1847)

O Monte dos Vendavais, Emily Brontë (1847)

O Tesouro, Selma Lagerlöf (1904)

Numa Pensão Alemã, Katherine Mansfield (1911)

O Regresso do Soldado, Rebecca West (1918)

A Idade da Inocência, Edith Wharton (1920)

Mrs. Dalloway, Virginia Woolf (1925)

O Assassinato de Roger Ackroyd, Agatha Christie (1926)

Rumo ao Farol, Virginia Woolf (1927)

A Mãe, Pearl Buck (1934)

Um Crime no Expresso do Oriente, Agatha Christie (1934)

E Tudo o Vento Levou, Margaret Mitchell (1936)

África Minha, Karen Blixen (1937)

Rebecca, Daphne du Maurier (1938)

Convite Para a Morte, Agatha Christie (1939)

Coração, Solitário Caçador, Carson McCullers (1940)

Reflexos nuns Olhos de Oiro, Carson McCullers (1941)

Laura, Vera Caspery (1943)

Gigi, Colette (1944)

Nada, Carmen Laforet (1945)

O Desconhecido do Norte-Expresso, Patricia Highsmith (1950)

Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar (1951)

A Colina da Saudade, Han Suyin (1952)

O Preço do Sal / Carol, Patricia Highsmith (1952)

Preconceito Racial, Pearl Buck (1953)

Ciranda de Pedra, Lygia Fagundes Telles (1954)

O Talentoso Mr. Ripley, Patricia Highsmith (1955)

Mataram a Cotovia, Harper Lee (1960)

Primeira Memória, Ana María Matute (1960)

A Campânula de Vidro, Sylvia Plath (1963)

Vasto Mar de Sargaços, Jean Rhys (1966)

O Olhar Mais Azul, Toni Morrison (1970)

Malina, Ingeborg Bachmann (1971)

Ressurgir, Margaret Atwood (1972)

As Meninas, Lygia Fagundes Telles (1973)

O Conservador, Nadine Gordimer (1974)

A Casa dos Espíritos, Isabel Allende (1982)

O Amante, Marguerite Duras (1984)

Turista por Acidente, Anne Tyler (1985)

Corações de Pedra, Ruth Rendell (1986)

O Quinto Filho, Doris Lessing (1988)

O Deus das Pequenas Coisas, Arundhati Roy (1997)

Harry Potter e a Pedra Filosofal, J. K. Rowling (1997)

Pequenas Infâmias, Carmen Posadas (1998)

A Louca da Casa, Rosa Montero (2003)

Instruções para Salvar o Mundo, Rosa Montero (2008)      

Telex de Cuba, Rachel Kushner (2008)

Coonduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos, Olga Tokarczuk (2009)

Amada Vida, Alice Munro (2012)

Jornada Mundial da Juventude

Pedro Correia, 03.08.23

«Sinto que muitos olham para estes jovens [participantes da Jornada Mundial da Juventude] com alguma desconfiança, por serem filhos da revolução tecnológica. Mas esta é uma demonstração de espiritualidade que as vozes mais pessimistas achariam que estava completamente arredada desta geração.»

José Luís Peixoto, ontem, na SIC Notícias

A quase extinção do homem analógico

João Pedro Pimenta, 22.06.23

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Confesso: apesar de o meu Pai me garantir que era (até há dias, evidentemente) o maior escritor americano vivo, nunca li um livro de Cormac McCarthy e tanto quanto sei só vi um filme adaptado de uma obra dele - o famigerado No Country for Old Men. Este artigo de in memoriam de Paulo Faria (excelente tradutor, já agora), que em "leitura aberta" para não assinantes só se consegue ler o início, revela-nos um escritor que não só cresceu em viva comunhão com a natureza mas que acima de tudo NUNCA usou a net para absolutamente nada, recorrendo sempre, até morrer, à sua máquina de escrever.
 
Isto é absolutamente extraordinário, e traz-nos à memória antigos correspondentes de jornais, de mangas arregaçadas, por vezes fumando copiosamente, teclando furiosamente as suas Remingtons, para deixar pronto a tempo o artigo do dia seguinte com o melhor tratamento possível da língua. Não sei se seria o caso de McCarthy, mas não posso deixar de pensar em todas as discussões, críticas e debates exclusivamente na net sobre a sua obra e as respectivas adaptações que ele nunca viu nem imaginou. Era, pois, um ser em vias de extinção: uma pessoa absolutamente analógica. Isto escrevo eu, no meu computador, na net, da qual dependo imensamente, como a maioria das pessoas, com um tudo de nada de inveja e muita admiração.

Mais cem escritores indispensáveis (99)

Pedro Correia, 30.04.23

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«Um ser humano deve ser capaz de mudar uma fralda, planear uma invasão, comandar um navio, arquitectar um prédio, escrever um soneto, fazer contas, erguer um muro, ajustar um osso, consolar um moribundo, receber ordens, dar ordens, cooperar, agir na solidão, resolver equações, programar um computador, confeccionar uma saborosa refeição, lutar com eficácia, morrer com garbo. A especialização é para os insectos.»

Robert A. Heinlein (1907-1988)