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Inflação de inúteis pronomes pessoais e possessivos
O livro é muito bom, uma obra-prima. Pena a tradução: abundam nela alguns dos maiores defeitos que vou verificando, em grau crescente. Importando uma estrutura lexical que nada tem a ver com a nossa.
Em português, subentendemos grande parte dos pronomes pessoais e possessivos - ao contrário do que sucede na língua inglesa, onde estes elementos são continuamente sublinhados. Redundâncias, do nosso ponto de vista.
Para traduzir de modo competente não basta dominar o idioma de partida: há que conhecer tão bem ou melhor o idioma de chegada. Sem esquecer que uma obra estrangeira se torna portuguesa ao ser vertida para a nossa língua. Destina-se a leitores portugueses, que interpretam textos e raciocinam de acordo com as nossas regras gramaticais, não em função de códigos normativos alheios.
Este saudável princípio não imperou na página de abertura do magnífico romance Luz em Agosto, de William Faulkner. Pelo contrário: a norma inglesa é metida a martelo na lingua portuguesa - e saem, portanto, frases repletas de inúteis possessivos que fui assinalando na mancha gráfica.
Ela «só estivera em Doane's Mill depois de o seu pai e a sua mãe terem morrido». Tinha «os seus pés nus estendidos no fundo da carruagem». Ela havia pedido «ao seu pai para parar a carruagem nos arrabaldes da cidade». E ficamos a saber que «não diria ao seu pai «porque é que preferia caminhar em vez de continuar a cavalgar». Infelizmente, quando tinha apenas 12 anos, «o seu pai e a sua mãe morreram no mesmo Verão». Saberemos ainda que «a sua mãe morreu primeiro» e quando isso aconteceu «o seu pai» teve uma conversa com ela.
Isto, repito, só na página inicial - aqui reproduzida. Profusão de apêndices que fazem o leitor tropeçar a todo o momento, cortando o ritmo da escrita tal como a entendemos segundo as regras há muito fixadas no nosso idioma.
Maior ainda é a inflação dos pronomes pessoais. Na página 56, há um recorde batido: lemos trinta vezes «ele/eles», quase sempre com a função de sujeito. Outra redundância, tão gritante como a anterior.
Gerando frases como estas: «Eles pensaram sem dúvida que ele partiria agora, e a igreja organizou uma colecta para ele partir e se estabelecer noutro lado qualquer. Mas em seguida ele recusou-se a abandonar a cidade. Eles contaram a Byron sobre a consternação, mais do que a afronta, que sentiram, quando souberam que ele comprara a pequena casa na rua secundária onde ele hoje vive e tem vivido desde então; e os anciãos organizaram mais um encontro porque eles disseram que lhe tinham dado o dinheiro para partir, e se ele o gastara noutra coisa qualquer, então ele aceitara o dinheiro com falsas intenções. Eles foram ter com ele e disseram-lhe isto.»
Um festival de pronomes. Sem seguir uma regra essencial deste nosso idioma que não nasceu ontem: a do sujeito subentendido.
«Em português, ao contrário do que acontece noutras línguas, não há necessidade de explicitar o sujeito em todas as frases ou orações. Tal acontece porque o português é "uma língua de sujeito nulo, ou seja, uma língua na qual um sujeito pronominal pré-verbal não tem necessariamente realização fonética".» Palavras de Eduardo Paiva Raposo, na Gramática do Português (edição Fundação Gulbenkian).
Os tradutores deviam assimilar estas normas antes de porem mãos à obra. Sobretudo quando lhes cabe a missão fundamental de introduzir obras-primas da literatura mundial no valioso espólio da língua portuguesa.