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Delito de Opinião

Ler (25)

Inflação de inúteis pronomes pessoais e possessivos

Pedro Correia, 12.08.23

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O livro é muito bom, uma obra-prima. Pena a tradução: abundam nela alguns dos maiores defeitos que vou verificando, em grau crescente. Importando uma estrutura lexical que nada tem a ver com a nossa.

Em português, subentendemos grande parte dos pronomes pessoais e possessivos - ao contrário do que sucede na língua inglesa, onde estes elementos são continuamente sublinhados. Redundâncias, do nosso ponto de vista.

Para traduzir de modo competente não basta dominar o idioma de partida: há que conhecer tão bem ou melhor o idioma de chegada. Sem esquecer que uma obra estrangeira se torna portuguesa ao ser vertida para a nossa língua. Destina-se a leitores portugueses, que interpretam textos e raciocinam de acordo com as nossas regras gramaticais, não em função de códigos normativos alheios.

Este saudável princípio não imperou na página de abertura do magnífico romance Luz em Agosto, de William Faulkner. Pelo contrário: a norma inglesa é metida a martelo na lingua portuguesa - e saem, portanto, frases repletas de inúteis possessivos que fui assinalando na mancha gráfica. 

Ela «só estivera em Doane's Mill depois de o seu pai e a sua mãe terem morrido». Tinha «os seus pés nus estendidos no fundo da carruagem». Ela havia pedido «ao seu pai para parar a carruagem nos arrabaldes da cidade». E ficamos a saber que «não diria ao seu pai «porque é que preferia caminhar em vez de continuar a cavalgar». Infelizmente, quando tinha apenas 12 anos, «o seu pai e a sua mãe morreram no mesmo Verão». Saberemos ainda que «a sua mãe morreu primeiro» e quando isso aconteceu «o seu pai» teve uma conversa com ela.

Isto, repito, só na página inicial - aqui reproduzida. Profusão de apêndices que fazem o leitor tropeçar a todo o momento, cortando o ritmo da escrita tal como a entendemos segundo as regras há muito fixadas no nosso idioma.

 

Maior ainda é a inflação dos pronomes pessoais. Na página 56, há um recorde batido: lemos trinta vezes «ele/eles», quase sempre com a função de sujeito. Outra redundância, tão gritante como a anterior.

Gerando frases como estas: «Eles pensaram sem dúvida que ele partiria agora, e a igreja organizou uma colecta para ele partir e se estabelecer noutro lado qualquer. Mas em seguida ele recusou-se a abandonar a cidade. Eles contaram a Byron sobre a consternação, mais do que a afronta, que sentiram, quando souberam que ele comprara a pequena casa na rua secundária onde ele hoje vive e tem vivido desde então; e os anciãos organizaram mais um encontro porque eles disseram que lhe tinham dado o dinheiro para partir, e se ele o gastara noutra coisa qualquer, então ele aceitara o dinheiro com falsas intenções. Eles foram ter com ele e disseram-lhe isto.»

 

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Um festival de pronomes. Sem seguir uma regra essencial deste nosso idioma que não nasceu ontem: a do sujeito subentendido.

«Em português, ao contrário do que acontece noutras línguas, não há necessidade de explicitar o sujeito em todas as frases ou orações. Tal acontece porque o português é "uma língua de sujeito nulo, ou seja, uma língua na qual um sujeito pronominal pré-verbal não tem necessariamente realização fonética".» Palavras de Eduardo Paiva Raposo, na Gramática do Português (edição Fundação Gulbenkian).

Os tradutores deviam assimilar estas normas antes de porem mãos à obra. Sobretudo quando lhes cabe a missão fundamental de introduzir obras-primas da literatura mundial no valioso espólio da língua portuguesa.

Ler (14)

Como agarrar o leitor do princípio ao fim

Pedro Correia, 22.10.22

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Não sei o que se ensina nos cursos de escrita criativa que agora proliferam como cogumelos. Sei, sim, como se prende a atenção de um leitor - pela experiência de quatro décadas a escrever em jornais, revistas e blogues. Além da minha própria experiência enquanto autor de livros e leitor atento dos mais diversos géneros literários - romance, conto, poesia, teatro, ensaio, biografia, diário...

A frase de abertura deve suscitar-nos a atenção por algo insólito, divertido ou inquietante. Imagine-se que eu inicio um texto com esta, inventada agora, ao correr da pena: «Três horas antes de morrer, da forma mais inesperada, Marcelo K. tomou um pequeno-almoço rápido, como sempre fazia, e desceu à rua cantarolando uma ária de ópera que lhe recordava as remotas tardes do Verão da infância rural no solar da avó.»

 

Está introduzido desde logo um elemento de suspense: vai ocorrer uma morte súbita. Temos essa certeza desde as primeiras palavras. Surge uma personagem com a qual tenderemos a identificar-nos - apresentada pelo nome próprio, o que lhe confere uma sugestão de intimidade, embora com apelido oculto.

Em poucas frases, diz-se muito. Sobre a idade aproximada da figura em causa (elemento que nos é fornecido pelo "remoto"), o seu nível de instrução (referência à ópera), o seu meio social (alusão ao "solar" de família), a sua aparente inserção num meio urbano (por contraposição implícita ao adjectivo "rural"). 

O que sucederá a Marcelo K.? A narrativa posterior deverá enquadrar-se nos parâmetros iniciais para manter dois elementos necessários à ficção literária: a verosimilhança (que não deve confundir-se com "realismo" ou naturalismo) e uma certa coerência interna, na medida em que o exercício de escrita se destina, no essencial, a ordenar um caos.

A letra K não surge por acaso. Levando os mais atentos e esclarecidos a uma associação imediata ao universo kafkiano, com a sua teia concentracionária, polvilhada de inimigos invisíveis. É um elemento suplementar de sedução do leitor, elevando a fasquia da exigência.

 

A escolha de uma frase para abrir qualquer texto, longo ou curto, nunca deve ser deixada ao acaso ou aos supostos caprichos da "inspiração". Requer experiência, traquejo, "oficina". Tal como um título.

Tomemos três exemplos de títulos: "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", "Este País Não é Para Velhos", "Crónica de uma Morte Anunciada". Fortes e sugestivos, todos eles. Mas passaram a servir de mote até à náusea para os mais variados e disparatados títulos de imprensa neles inspirados. O que era engenho e surpreendia pela novidade tornou-se enjoativo lugar-comum.

Um título pode ser poético ("O Imenso Adeus") ou insólito ("A Rosa Púrpura do Cairo") ou nostálgico ("A Colina da Saudade") ou perturbante ("O Lugar do Morto") ou sombrio ("Crime e Castigo") ou retumbante ("Os Dez Dias que Abalaram o Mundo"). Mas precisa de fugir à banalidade: só assim capta realmente a atenção do leitor.

 

Há uma semana deparei com uma crónica do jornalista Jorge Bustos, na sua coluna da última página do diário El Mundo. Intitulava-se "50 segundos" e começava assim: «Um homem aguarda num carro. O homem é chefe do Governo e o carro é o Audi blindado que o transporta quando não segue de avião ou helicóptero.»

Li de rajada. Técnica literária num texto jornalístico que nada tinha de rotineiro ou previsível. Só no fim ficamos a saber o motivo daquele título. Pode o cronista sentir-se satisfeito: o leitor foi conquistado à primeira vista.

Falar a escrever

Maria Dulce Fernandes, 20.10.22

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Eu falo pelos cotovelos. Já vos contei que fui um bebé prodígio no que concerne a articular sons. Reza a história que esta criatura de Deus pronunciou a primeira palavra com – pasmai - 6 meses, e não foi uma palavra qualquer: pedi um guardanapo!

A partir daí, parece que nunca mais me calei. Quando tinha cerca de um ano, sentavam-me com um livro no colo e eu “recitava” a história do Lobo e dos 7 Cabritinhos, com todas as pausas, respirações e virares de página, como se estivesse realmente a ler o livro. Tudo o que era poema ou lengalenga, mesmo longa longa, era comigo, tanto que cheguei a ser notícia nos Ecos de Belém. Até parece anedota…

Adoro uma boa conversa, tanto falada como escrita. No meu tempo de lente, éramos encorajadas a ter correspondentes, crianças como nós de outras escolas do País, com as quais trocávamos postais dos correios, postais ilustrados, cartas, recortes e fotografias .

A minha primeira amiga literária era de Borba e escrevíamos sobre a escola e a família tudo sob o escrutínio da professora D. Fernanda Barroso. No Liceu, algumas de nós foram escolhidas para trocar correspondência com garotos de outras nacionalidades nas suas línguas natais, o que servia como exercício à nossa aprendizagem das mesmas.

Ter correspondentes, ou pen-pals, foi um excelente trampolim para a aprendizagem de outras línguas, de que me orgulho de falar e escrever com um bom nível de qualidade, como o francês e o inglês. Lamento que a conversação em alemão, que requer muita prática, não me seja frequentemente solicitada; entendo quase tudo, mas torna-se cada vez mais complicado pensar em alemão para bem articular as frases com as correctas declinações.

Tive a Brigitte, francesa de Toulon, a Christina de Passau na Alemanha, e o Urs Kamber, um desportista suíço, que mais tarde representou o seu país nos jogos Olimpicos de Moscovo em 1980, onde ganhou a medalha de bronze dos 400 metros, e que reencontrei no Facebook passados 35 anos.

Já pensei fazer um update, mas não sei se terei vontade de  voltar para a escola. O regresso às aulas estaria previsto para os tão sebastiânicos "anos dourados", mas por muito caleidoscópico que desejemos o futuro, a sombra da incerteza não deixa de pairar pardacenta e desanimadora.

 

(Republicado/Imagem Google)

Ler (12)

Erros a mais num romance só

Pedro Correia, 24.09.22

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Leio outro livro daqueles a que chamo "literatura da côdea". Páginas e páginas em que as personagens vagueiam à mercê das inclemências do destino, com a abstinência a roer-lhes o estômago sem nada mais conseguirem encontrar para comer do que pedaços de pão por vezes acompanhados de um toucinho já rançoso.

Não é a fome metafísica, daquelas que se apossam de seres envoltos em angústia traumática, como a figura central desse assombroso romance existencialista avant la lettre que é Fome, de Knut Hamsun. Nem a duríssima fome física que corrói um homem até às entranhas em campos de extermínio modelados por sistemas totalitários, como os nazis em A Centelha da Vida, de Erich Maria Remarque, ou os soviéticos em Um Dia na Vida de Ivan Denitsovitch, de Aleksandr Soljenítsine.

Este é o jejum abstracto, à portuguesa, que durante décadas invadiu a nossa literatura burguesa para lhe incutir suposto cunho popular e lhe deu uma toada ideológica dominante - a tal ponto que ainda encontramos ecos disso no que hoje se vai publicando. Dezenas e dezenas de livros em que apenas se mastigam restos de pão duro migados numa tigela de caldo aguado e triste. Dezenas e dezenas de autores que parecem monges recolhidos em celas, renegando o pecado da gula, sem jamais dedicarem um parágrafo ao prazer da comida ou ao culto do convívio à mesa. Depois dos clássicos, como Camilo e Eça, existe um extenso e penoso período em que ninguém come nem bebe na literatura portuguesa.

É tema a que dediquei algum espaço aqui.

Aquilino Ribeiro e Agustina Bessa-Luís figuram entre as raras excepções a esta frugalidade militante. Do primeiro, gosto de realçar aquela frase do magnífico romance Quando os Lobos Uivam, já citada aqui: «Filomena tinha-lhes um bom caldo de grão-de-bico adubado com pespé de cerdo e uma arrozada de coelho bravo. Comeram-lhe bem, beberam-lhe melhor.»

Epicurismo militante num estilo inconfundível. Inimitável.

 

Pois acabo de ler um desses expoentes da "literatura da côdea". A tristeza habitual. Nem umas iscas na frigideira, nem uns carapaus alimados, nem uma açorda de tomate, nem uns ovos mexidos com presunto. Fuma-se muito, vão-se emborcando uns copos de carrascão, mas a comida fica fora do cardápio literário - resquício desse tempo em que a literatura lusa fazia voto de pobreza.

Em compensação, abundam erros de ortografia. Alguns tão primários, tão clamorosos, tão inadmissíveis que espanta como escaparam a quem reviu e editou a obra, na primeira metade dos anos 50, e a quem a foi reeditando até ser impressa esta versão do mesmo romance, publicada em meados do século 70, numa colecção que ficou famosa: Livros Unibolso.

Cheguei a supor que eram simples gralhas. Mas a cadência e a quantidade dos erros levaram-me a concluir que constavam do manuscrito original. Algo inaceitável, tratando-se de autor que ostentou certa fama e até recebeu salamaleques da chamada "crítica". 

 

Registo alguns: «farçante» (p. 33); «ripansos» (p. 39); «trazeiros» (p. 84); «espectativa» (p. 85); «farças» (p. 85); «cordealidade» (p. 100); «escárneo» (p. 108); «nazalada» (p. 113); «mangedoura» (p. 124). Já para não falar em ridículas redundâncias, como «os olhos saídos fora das órbitas» (p. 54).

Raio de prosa, tão mal parida por um autor "consagrado".

Lendo isto, tal como isto, admira cada vez menos que a iliteracia galope à desfilada nas redes ditas sociais. Se os "vultos da literatura" escrevem com os pés, sem o menor reparo das sisudas sumidades que lhes prestam vénia, não terá também o escriba anónimo o pleno direito de chafurdar na asneira?

 

Leitura complementar:

A literatura que vai à cozinha (18 de Maio de 2017)

Diário do coronavírus (10) (15 de Maio de 2020)

A hilariedade do pagem na mangedoura (21 de Abril de 2021)

Ler (11)

Na morte de Javier Marías (1951-2022)

Pedro Correia, 18.09.22

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Durante anos, li Javier Marías com prazer e proveito na revista dominical do El País. Bastavam as crónicas dele (e guardei várias, arquivando-as entre as páginas de livros, como sempre faço quando gosto muito de certos textos) para justificar a compra do jornal, que há mais de um ano deixou de se publicar nos quiosques portugueses, ao contrário do ABC ou do El Mundo, outros diários do reino vizinho.

Era culto, cáustico e corajoso - três características que aprecio num cronista. Não hesitava em remar contra a maré das modas dominantes, não perdia tempo com bajulações nem ocultava a erudição para seduzir "novas camadas de leitores" em busca da facilidade. Se havia que romper consensos, contassem com ele. Para integrar coros afinados, podiam dispensá-lo.

Este meu interesse pelo Marías cronista alargou-se ao Marías ensaísta. Há um livro dele sobre escritores e leituras que sempre recomendo: Vidas Escritas, em que nos fala de vários dos seus autores preferidos em textos concisos mas luminosos. Ali desfilam Faulkner, Conrad, Rilke, Stevenson, Mishima, Nabokov. E mulheres mestras das letras, como Emily Brontë e a fabulosa Isak Dinesen. 

Daí passei ao Marías romancista. Com obras como Todas as Almas (1989) e Coração Tão Branco (1992), em que exibe sem complexos a sua formação anglo-saxónica, a experiência como professor em Oxford, o gosto em ter traduzido Laurence Sterne e Thomas Hardy, a eleição de Shakespeare como autor de cabeceira.

 

Obra-prima da literatura espanhola, que incluo sem favor entre os cem melhores romances do século XX, Coração Tão Branco (título inspirado em frase de Lady Macbeth) tem um dos melhores parágrafos iniciais que conheço em ficção literária. Daqueles que nos agarram de imediato e nos prendem ao livro do princípio ao fim.

Eis essas primeiras linhas (com sábia tradução de Fátima Alice Rocha para a editora Alfaguara):
«Não queria saber, mas soube que uma das meninas, quando já não era menina e tinha regressado da viagem de núpcias havia pouco tempo, entrou na casa de banho, pôs-se diante do espelho, abriu a blusa, despiu o sutiã e procurou o coração com a ponta da pistola do próprio pai, que se encontrava na sala de jantar com alguns membros da família e três convidados.»

Perguntem-me o que é escrever bem. Respondo com esta admirável frase de abertura.

 

Grande escritor, Marías - prematuramente desaparecido, a escassos dias de completar 71 anos. E sem o Nobel, em nova injustiça cometida pela academia sueca: há muito que o merecia.

Ser politicamente incorrecto, e fazer gala disso, não o favoreceu nesta época de consensos bem comportados. Ele, que não fingia modéstia e exibia «o sorriso da inteligência», como dele disse Juan Cruz. Atributos nada valorizados nos dias que vão correndo.

Até por isso o aprecio. E continuarei a escrever sobre ele no presente, não no passado.

Escrever bem (ou mal)

Pedro Correia, 25.08.22

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Gostamos imenso de usar palavras em excesso. Vejo isso todos os dias no DELITO. Muitos comentários, assinados ou não, começam com quatro vocábulos inúteis: «Na minha opinião pessoal.» Inúteis por ser óbvio tratar-se de opinião, emitida por quem a escreve. Ainda nada foi dito e a frase já tropeça com peso a mais.

Uma variante desta, tão inútil como a primeira, abunda também por aí, sobretudo no discurso oral: «Eu acho que.» O pronome pessoal é redundante, mas cada vez mais insistente por influência brasileira, em réplica da sintaxe norte-americana. Apetece-me brincar com isto dizendo que temos muita gente com vocação para detective. É vocabulário revelador da nossa estrutura mental: "achar" como débil sucedâneo de "pensar".

 

Edito textos de outros há quatro décadas. Não apenas por missão jornalística (aos 21 anos já era coordenador de secção num semanário, aos 22 era editor), mas habituei-me a "limar prosa" mesmo fora da esfera profissional, combatendo a tendência tão portuguesa para o culto do pleonasmo. 

Esta tendência mantém-se. No advérbio «mesmo», semeado a torto e a direito nas frases, sem nada acrescentar no significado. Não faltando quem repita «é assim mesmo», uma vez e outra. Pode passar na fala, mas é um calhau na escrita.

Idem, para a profusão de pronomes possessivos, de novo por influência brasileira. Aponto sempre, como exemplo supremo da arte de bem escrever, a magnífica frase inicial de Cem Anos de Solidão: «Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.»

Nem uma palavra inútil. Apenas um adjectivo. Os nossos cultores de redundâncias logo enfiariam ali um possessivo a martelo: «O [seu] pai.» Tornou-se erro corrente. 

 

O mesmo sucede com a locução «hoje em dia», exemplo muito comum de desperdício vocabular. Está tudo dito no advérbio inicial - o resto só acrescenta ruído. Ou com a partícula enfática «é que», admissível na linguagem oral, sobretudo na forma interrogativa, mas sem préstimo na escrita excepto se reproduzirmos diálogos.

«É que hoje em dia chove mesmo muito pouco.»

Nesta frase agora inventada por mim encontramos três dos erros estilísticos que anotei. Costumo encontrá-los com frequência em prosa de gente que pretende escrever bem. Até em ficcionistas muito em voga, que vão conferindo argumentos de autoridade a quem "acha" que escrever é só alinhar palavras.

Podem "achar". Mas acham mal.

Aprendam com ele

Pedro Correia, 28.07.22

O grande Millôr Fernandes - humorista, escritor, dramaturgo, desenhador, autor de alguns dos mais sarcásticos textos da língua portuguesa no século XX - já não está entre nós. 

Mas ainda é possível aprender com ele.

Aqui transcrevo um apontamento (em "desacordo ortográfico") que ele publicou na revista Veja, a 11 de Fevereiro de 2011. 

«Em matéria de linguagem, o que me causa irritação, porque está mesmo errado, é o uso indevido, em qualquer das dezessete línguas em que leio (tá bem, deixo por três ou quatro!), de "na década de 1950", "na década de 1770". Querem falar de década e usam milênio. Década é década, se refere a 10, não a 1000, ô meus!»

Palavras actuais como nunca. Porque a praga está cada vez mais vulgarizada. Não só no Brasil: também em Portugal.

Ler (3)

Pedro Correia, 04.06.22

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Durante anos, ajudei a formar vários jovens jornalistas que conheci como estagiários nas redacções onde trabalhei. A primeira recomendação que lhes dava era tão elementar quanto indispensável: "Leiam sempre, leiam muito. Nada ajuda tanto a escrever como a leitura."

A seguir, dizia-lhes que escrevessem com simplicidade. Não podemos transmitir informação clara e rigorosa com frases confusas. Recomendava que evitassem as orações subordinadas. A cada ideia deve corresponder uma frase. Em regra, um ponto final substitui com vantagem uma vírgula.

Rever a prosa é fundamental. Enquanto revemos, vamos limpando o texto. Eliminando adjectivos que afogam substantivos. Suprimindo pleonasmos e cacofonias. Preferindo a voz activa à voz passiva. Riscando redundantes sinais gráficos como pontos de exclamação ou reticências, autêntica poluição gráfica.

Lembrava aquela regra de Churchill, que foi jornalista credenciado, repórter de guerra, historiador e vencedor do Nobel da Literatura: «Das palavras, as mais curtas. Das mais curtas, as mais conhecidas.»

 

Em fase posterior, pedia-lhes máxima precaução contra o abuso de verbos auxiliares, como ser ter: quando eles proliferam, parece que as frases gaguejam.

Dizia-lhes para eliminarem artigos definidos ou indefinidos desnecessários.

Sugeria-lhes travão a fundo nos adjectivos abstractos e nessa praga que são os advérbios de modo.

Parágrafos curtos sempre preferíveis aos parágrafos intermináveis. Alerta total contra a multiplicação dos pronomes relativos. Norma básica: nunca escrever que mais de uma vez por frase.

 

Verifiquei com espanto que muitos jornalistas veteranos eram incapazes de respeitar estes princípios. Semeavam os textos de vírgulas, subordinadas, parêntesis e travessões. Recorriam a uma sintaxe muito própria, procurando "fazer estilo", pecado mortal em jornalismo. Assim influenciavam da pior maneira quem dava os primeiros passos na profissão.

A falta desses rudimentos ao nível da escrita nota-se em grau crescente. Até em textos destinados à promoção de livros. Textos que, em vez de atraírem, afugentam os leitores. Ainda agora tropecei num. Vem impresso na contracapa de um romance recém-editado. É o que surge ali em cima, demonstração prática de tudo quanto não deve ser passado a escrito. 

Longuíssima frase com 96 palavras. Espécie de sopa da pedra em versão literária. Às tantas, até quem escreve já se perdeu com tanta ideia lá metida. Sete conjunções copulativas, que servem apenas para ligar orações. Quando sentimos necessidade de polvilhar um texto com pronomes, advérbios e conjunções, todos os sinais de alarme devem acender-se.

Estamos a comunicar de forma deficiente. Estamos a falhar na escrita.

 

Mas cada vez mais reparo em coisas destas. Interrogo-me se em empresas que fazem da expressão escrita no nosso idioma elemento essencial da sua actividade não haverá ninguém capaz de redigir sem falhas elementares. Se não haverá ninguém habilitado a alterar o que está mal, corrigindo. 

Que leitores qualificados podemos formar com matéria-prima tão deficiente?

Regresso a Marx

Pedro Correia, 16.12.21

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A cada crise europeia, volta-se a Karl Marx. Já não com a obsessão de encontrar terapias salvíficas na obra do grande teórico do século XIX, mas pelo menos para se estabelecer uma comparação com o diagnóstico que então traçou e os tempos actuais. Ando a reler um livrinho dele, o clássico O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, e confirmo o que já sabia: Marx escrevia muito bem.

Repare-se nos dois parágrafos de arranque da obra (traduzo directamente do castelhano, pois leio uma versão impressa nos anos 70 em Barcelona): «Hegel diz em algum lado que todos os grandes factos e personagens da história universal se produzem, digamos, duas vezes. Mas esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a outra como farsa. (...) Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem de modo arbitrário, sob circunstâncias eleitas por si próprios, mas sob circunstâncias directamente proporcionadas e herdadas do passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. Lutero disfarçou-se de apóstolo Paulo, a revolução de 1789-1814 envergou alternadamente as vestes da República Romana e do Império Romano, e a revolução de 1848 não conseguiu fazer melhor do que parodiar a de 1789 e a tradição revolucionária de 1793 a 1795.»

Fica agarrado o leitor, logo de início, a esta prosa. Mesmo o leitor que está muito longe de ser marxista.

No dia de mais um aniversário

Paulo Sousa, 22.08.21

Escrevo da minha varanda. O sol incide no lado oposto da casa e isso deixa-me à sombra, a observar o verde vergado ao calor carrasco. As cigarras e os cucos gritam à desgarrada num babélico diálogo. A aragem vai e vem. Os choupos do vizinho no lado nascente aproveitam todos os sopros desta para se espreguiçar.

Há quem escreva por necessidade. Não é o meu caso. Escrevo apenas para desafiar o esquecimento que um dia nos irá vencer. A todos. As verdades universais nunca deixarão de o ser, mas as pequenas verdades, as nossas, essas têm os dias contados. Todas. Quantas já desapareceram e, por não terem sido escritas, é como se nunca tivessem existido?

Por já sabermos qual será o desfecho, desafiar o esquecimento será sempre uma batalha desigual, mas que ainda assim tem de ser travada, olhos nos olhos, sem ter para onde retirar nem nunca aceitar a rendição. Talvez viver seja apenas isso, combater o inevitável. Ou pelo menos combater o inevitável seja uma parte do que é viver.

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A hilariedade do pagem na mangedoura

Pedro Correia, 21.04.21

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Leio um romance de uma escritora noutros tempos muito celebrada, ao ponto de ter recebido prémios literários, ser enaltecida em páginas culturais da imprensa e merecer destaque em antologias. 

À medida que desfilam os capítulos, vou pasmando com a sucessão de erros ortográficos - alguns bem graves. Não são gralhas: são mesmo erros, aliás reiterados. E que foram passando incólumes de edição em edição: esta que tenho entre mãos é já do ano 2000. O que me leva a questionar em que estado viria aquele original quando pela primeira vez foi remetido a um editor, na segunda metade da década de 60.

Eis alguns exemplos: pagem (em vez de pajem), grangear (em vez de granjear), hilariedade (em vez de hilaridade), eminente (em vez de iminente), emerso (em vez de imerso), mangedoura (em vez de manjedoura). Erros a mais para passarem sem um reparo crítico. Enquanto reforço a minha convicção de que há muito escritor a necessitar com urgência de regressar aos bancos da escola. Básica.

Não pensem que são casos isolados. Tenho assinalado vários tão graves como estes em diversas obras literárias, por vezes até de autores que cometeram best sellers (bestas céleres, como dizia Alexandre O'Neill). Daria para uma secção regular no DELITO, garanto. Ou na revista Ler, onde vou escrevendo uma vez por outra. 

Se os "consagrados" escrevem assim, em sisudas obras até recomendadas no douto Plano Nacional de Leitura, como haveremos de admirar-nos de ver tanta calinada à solta na bagunça das redes sociais? 

Antigamente...

Cristina Torrão, 06.04.21

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Imagem encontrada na net, sem indicação de autor

De vez em quando, lá oiço alguém afirmar convicto: antigamente, os Portugueses escreviam muito melhor (…) Estou em crer que quem tal afirma revela alguma ingenuidade. No fundo, está a deixar-se levar por uma imagem idealizada do «português de antigamente».

Aplaudo esta crónica do professor e tradutor Marco Neves. Hoje esquecemo-nos de que Portugal, até meados do século XX, era um país de analfabetos. Não só por me interessar por História, como por andar a consultar livros paroquiais antigos, a fim de fazer a crónica da família, estou em constante contacto com o passado. E, quando reflicto sobre questões destas, gosto de ir procurar casos concretos, precisamente, na minha família, uma típica família portuguesa, que, salvo raras excepções, não pertencia à “elite” frequentadora da escola.  

Apesar de ter tido a sorte de nascer num lar de professores primários e começado a juntar as primeiras letras com quatro anos, não preciso de ir muito longe, a fim de confirmar o analfabetismo que grassava no nosso país até meados dos anos 1980. Não tenho pejo em afirmar que, dos meus quatro avós, só o meu avô materno se sentou nos bancos escolares, concluindo o antigo quinto ano do liceu e tornando-se funcionário público.

O meu avô transmontano sabia ler e escrever por ser autodidacta. Começou a aprender durante a tropa e desenvolveu os conhecimentos ao longo da vida, tornando-se numa ajuda preciosa para os habitantes da sua aldeia. As minhas duas avós eram analfabetas, a materna pediu-me muitas vezes para lhe ler alto as legendas dos filmes (normalmente, era o meu avô que lhas lia). A minha avó transmontana nem sequer se habituou à televisão, apesar de os filhos lhe terem oferecido uma, tinha ela já quase setenta anos.

Se recuar ainda mais, até aos meus oito bisavós, penso que também só um deles estudou, era funcionário das Finanças, como o filho viria a ser. Casou com uma jovem de família conceituada da Mealhada, mas sinceramente não sei se essa minha bisavó sabia ler e escrever. Nascer num berço algo privilegiado, não era garante desse tipo de aprendizagem, para uma mulher. Todos os outros seis bisavós eram analfabetos.

Depois da Revolução de 1974, fez-se muito esforço para acabar com o analfabetismo. Sei isso igualmente por experiência pessoal: o meu pai preparou muitos adultos para o exame da 4ª classe.  Por isso, tal como o professor e tradutor Marco Neves, eu pergunto: quando foi essa época em que escrevíamos muito melhor?

No tal antigamente, a maior parte dos portugueses não escrevia. Haverá quem prefira que poucos escrevam — sempre evitam ler textos com erros. Mas até isso é uma ingenuidade: olhamos para o passado e, de todos os textos de quem escrevia (e eram poucos os que sabiam fazê-lo), só vemos os textos que sobreviveram ao turbilhão do tempo, só nos lembramos dos bons textos.

Este é aliás um erro comum, não só no que diz respeito à escrita. Como a memória não é perfeita, lembramo-nos mais facilmente daquilo de que gostámos do passado — e acabamos por idealizá-lo. A memória é uma peneira que, do passado, nos dá apenas os diamantes. A lama, essa, fica escondida na aridez dos números e de alguns livros de História.

Comparar a escrita dos dias de hoje apenas com os bons escritores do passado é um erro muito mais grave que qualquer cedilha fora do lugar.

"No trates de escribir bonito"

Pedro Correia, 29.04.20

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Um dos melhores conselhos, em matéria de técnica de escrita, foi dado certa vez pelo escritor e pedagogo colombiano Tomás Rueda ao jovem Eduardo Caballero Calderón, que na década de 30 do século XX ensaiava os primeiros passos na literatura.

Disse-lhe o mestre: "No trates de escribir bonito. No dejes que se te vea la gramática."

É um conselho que vale para todas as épocas, para todas as latitudes. A escrita tem muito de pessoal. Tem de irromper sem artifícios. Límpida como a de Borges, depurada como a de Pessoa, torrencial como a de Kerouac. Mas sem pomposidades, sem adstringências.

O estilo diz tudo sobre o seu autor.

Para escreveres bem, evita as frases feitas, as frases batidas, as frases de efeito fácil mas vazias de conteúdo.

Arruma as ideias, escreve como pensas, desvenda-te em cada parágrafo.

Assimila as regras gramaticais evitando sempre a prosa canhestra de mestre-escola.

Escrever é isto.

Penso rápido (92)

Pedro Correia, 06.07.19

Não sei se vos acontece. Tenho instalado no computador um sistema que alerta para eventuais erros ortográficos, putativas falhas de sintaxe e supostos lapsos de pontuação. Com sublinhados a vermelho (alguém um dia me explicará por que motivo o vermelho representa a cor do interdito).

Quase nunca reparo neste mecanismo. Felizmente não precisei de computador algum para saber escrever: fiz toda a minha aprendizagem à moda antiga, com métodos atávicos, recebendo a sabedoria não de infalíveis máquinas mas de falíveis seres humanos.

Hoje, porém, fixei as advertências que o aparelho sinalizou: três, uma por parágrafo. Mandando-me riscar as palavras "teclagem", "apagão" e "hemeroteca". Não fiz caso, claro. Mas fiquei a pensar nestes imperativos nada subtis das novas censuras. Que nos mandam uniformizar a escrita, limpando-a de neologismos, suprimindo a criatividade. É o "novo normal", como se diz em português macarrónico, traduzido à letra do jargão tecnocrático americano. Ilude-se por completo quem pensar que censura era só a outra.

Sun Tzu escrevia em inglês?

Pedro Correia, 28.06.19

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Na minha livraria preferida, espreito as novidades literárias. Novos romances, por exemplo. Há sempre vários à disposição dos leitores.

Pego num deles, espreito a primeira página. Traz citação. Coisa fina: é de Sun Tzu. A Arte da Guerra, clássico com várias traduções em português. 

Mas esta citação surge em inglês, idioma que o admirável filósofo chinês, nascido no século VI antes de Cristo, não dominava. Desde logo porque a língua imortalizada por Shakespeare, Byron e Dickens só começou a generalizar-se, no seu figurino actual, cerca de mil anos depois.

Excluindo o chinês original, só faria sentido, portanto, que uma frase destas surgisse no nosso idioma como epígrafe de um romance escrito por um autor português e destinado a leitores portugueses. O inglês, aqui, indicia apenas aculturação bacoca e espúria. Algo digno de um pesca-frases em modo rápido nesse amplo mar da palha que é o Google.

Passei adiante, claro. Sem necessitar de ler mais nada.

Há muitas coisas belas na terra

Pedro Correia, 14.05.19

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Às vezes é quanto basta. Abrimos um livro, lemos a frase inicial e logo ela nos agarra, despertando-nos a atenção para ler as frases seguintes, sem desgrudar da obra até ao fim.

Alegro-me cada vez que me acontece. Sucedeu há dias, ao abrir um exemplar do romance As Pessoas Felizes, de Agustina Bessa-Luís, em boa hora regressado aos escaparates no âmbito do lançamento da obra completa da grande escritora que tem vindo a ser conduzido por Francisco Vale na editora Relógio d' Água.

«Há muitas coisas belas na terra, mas nada iguala a recordação de um dia de Verão que declina, e temos onze anos e sabemos que o dia seguinte é fundamental para que os nossos desejos se cumpram.» Começa assim, da melhor maneira, este romance de Agustina, muito menos (re)conhecido do que merece. 

Superado o primeiro teste, logo avanço na leitura. Um grande escritor avalia-se, desde logo, pela sua capacidade de nos seduzir pela palavra, sua ferramenta de eleição. É o caso de Agustina. Tal como sucede com Jorge de Sena, na magnífica frase de arranque do seu Sinais de Fogo: «Ramon Berenguer de Cabanellas y Puigmal já era célebre quando, por fusão de duas turmas, passou a ser meu colega no 6.º ano dos liceus.»

Ou Cardoso Pires, n' O Anjo Ancorado: «Num dia de Abril de 1957, pela hora da tarde, apareceu em certa aldeola da costa um automóvel aberto, rápido como o pensamento.» Ou Vergílio Ferreira, nesse fabuloso romance intitulado Alegria Breve: «Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher?»

Saber escrever, saber captar a atenção de quem nos lê - eis o desafio supremo, ao alcance de poucos. Aprendamos com os mestres da palavra a trabalhá-la. Como se fosse terra fértil lavrada por um camponês, como se fosse pedra esculpida por um escultor, como se fosse filigrana nas mãos de um ourives.

Escrever é muito mais do que alinhavar palavras. Como durante anos ensinei aos meus estagiários em jornalismo, para escrever bem nada melhor do que ler muito. Enquanto leitores, aprendamos com quem sabe. Com Camus, que nos introduz no reino mágico da ficção - «a mentira através da qual se diz a verdade». Com Simenon, que em apenas três palavras nos transmite uma das melhores lições: «Escrever é cortar.»

Para escrever bem, há que apelar à sensibilidade e ao intelecto em simultâneo, o que não está ao alcance de qualquer um. Como Agustina demonstra na obra que nos foi legando. «Há qualquer coisa de premonitório neste romance. Pelos costumes das pessoas, pelos sentimentos, pelas relações entre parentes e familiares, percebe-se que já muita coisa mudou ou está em mudança antes mesmo de a revolução acontecer», observa António Barreto no prefácio à novíssima reedição d' As Pessoas Felizes.

Há muitas coisas belas na terra. E algumas experiências sem substituição possível, como o prazer único que só a leitura nos proporciona. Ao rasgar-nos horizontes e ao elevar-nos vários palmos acima do chão.

Tiro à letra

Pedro Correia, 12.04.19

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Há livros que são editados com os pés, para usar uma expressão da gíria jornalística. Abrimos um exemplar e logo na contracapa ou numa badana deparamos com um erro grosseiro, gerado por ignorância ou incompetência - daqueles que nos levam de imediato a pôr aquilo de parte.

Por vezes o disparate surge não na casca, mas já no miolo, no espaço reservado à apresentação ou prefácio. Aconteceu-me há dias, com um exemplar de uma destas editoras que pretendem difundir "coisas giras" e "fora da caixa". Bastou-me ir à primeira página impressa para deparar com isto: como se não bastasse o impiedoso extermínio das impropriamente chamadas "consoantes mudas", o tiro à letra é tão obsessivo que leva estes mabecos a mutilarem até palavras como "actual", aqui mascarada de "acual". Deve ser idioma de pato: língua portuguesa não é, seguramente.

Fechei o livro e ele lá ficou, a gozar um merecido repouso. Faço votos para que seja perpétuo.

Nada recomendável

Pedro Correia, 26.03.19

É confrangedora a falta de talento literário revelada por alguns que se apresentam agora como novos expoentes da ficção portuguesa. Hoje os romances proliferam como cogumelos, sob o complacente beneplácito de algumas editoras ávidas por encontrar o "novo Saramago" ou o "novo Lobo Antunes". Tal como noutros tempos, no fado, se ansiava pela chegada da "nova Amália" ou, no futebol, se suspirava pela aparição do "novo Eusébio".

Ainda há dias folheei um livrinho de um destes candidatos a novelistas da nova vaga, com aquela linguagem sincopada e cheia de alusões a "situações comuns" que parece estar na moda. O arrazoado começa com esta frase, nada digna de um Stendhal ou um Tolstoi: «Não tinha, de momento, outra alternativa.»

Este génio adiado mostra-se incapaz de perceber, logo na frase inicial, que "outra alternativa" é pleonasmo. E dos mais grosseiros.

Fechei o volume. Com um adeus até nunca mais.

Contra todas as cegueiras

Pedro Correia, 10.03.19

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É curioso analisarmos, por vezes, como resulta a transposição de grandes romances em língua portuguesa para outros idiomas. Aconteceu-me faz hoje oito dias, em Londres. Com o Ensaio Sobre a Cegueira, porventura o melhor livro de José Saramago - que originou um filme premiado. Intitula-se Blindness, em inglês.

Espreito o parágrafo de abertura:

«The amber light came on. Two of the cars ahead accelerated before the red light appeared. At the pedestrian crossing the sign of a green man lit up. The people who were waiting began to cross the road, stepping on the white stripes painted on the black surface of the asphalt, there is nothing less like a zebra, however, that is what it is called. The motorists kept an impatient foot on the clutch, leaving their cars at the ready, advancing, retreating like nervous horses that can sense the whiplash about to be inflicted.»

Eis a força da boa literatura: capaz de suplantar barreiras linguísticas, geográficas, afectivas, culturais. Capaz de emocionar, inspirar, comover e fazer sonhar gente de todos os idiomas.

Saber escrever, saber escutar

Pedro Correia, 04.04.18

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É infelizmente cada vez maior o número daqueles que entre nós cultivam a tradução literal de textos literários, à margem de considerações estéticas, como se estivessem a traduzir um relatório árido e burocrático. Sem entenderem que um livro estrangeiro, quando é traduzido para o nosso idioma, torna-se de algum modo um livro português, sujeito às nossas regras gramaticais, à sintaxe que utilizamos e à própria musicalidade da escrita que foi sendo fixada ao longo de séculos por figuras com a dimensão de um Camões, um Garrett, um Camilo, um Pessanha ou um Pessoa.

Não perceber isto é nada perceber de essencial nesta matéria.

 

Qualquer texto em português, ainda que possua matriz estrangeira, torna-se património da nossa língua. Com as suas particularidades, o seu ritmo, a sua semântica muito específica, a sua inconfundível eufonia. Porque cada idioma tem a sua própria cadência musical.

Não sabe escrever quem não sabe escutar.

 

O sujeito elidido ou subentendido é uma dessas características que conferem subtileza ao nosso idioma. Enquanto noutras línguas, designadamente o inglês, as regras determinam a menção expressa do sujeito, a nossa regra impele-nos à omissão do nome ou até do pronome assim que ele nos tenha sido apresentado.

Um exemplo básico:

"Clara went away. She left everything behind."

Não faz sentido traduzir este trecho assim:

"Clara foi embora. Ela deixou tudo atrás de si."

Mas já fará sentido traduzi-lo desta maneira:

"Clara partiu. Deixou tudo para trás."

 

 

A propósito, não sei se já repararam. Esta é uma das maiores diferenças entre os diálogos pretensamente "naturais" ou "realistas" das telenovelas e os diálogos da vida real:

- Ó João, vamos sair esta noite?

- Não posso, Maria. Tenho que trabalhar.

- Ó João, mas tu tinhas prometido...

- Eu sei, Maria. Mas não posso mesmo.

São duas pessoas lado a lado num sofá (nunca falta um enorme sofá em qualquer telenovela). Tudo muito solto e despachado. Único problema: ninguém na vida real fala assim. Quantas vezes mencionamos o nome da pessoa que se encontra ali em casa, à nossa frente, trocando connosco umas frases banais do quotidiano?

Estamos perante um truque retórico que os autores dos guiões utilizam para ajudar os espectadores a memorizar o nome das personagens. Mesmo à custa da verosimilhança que dizem cultivar com esmero e afinal desmentem em cada frase.

 

A tradução literária, quando é competente, não se ocupa apenas do idioma: ocupa-se da qualidade da escrita. Não numa pretensa fidelidade à letra original levada ao extremo, mas na fidelidade ao espírito do autor para melhor o reproduzir no texto traduzido.

É aliás neste sentido que se diz com frequência que As Minas de Salomão, de Henry Rider Haggard, "ganharam" qualidade literária na célebre tradução de Eça de Queirós. Ou, em sentido inverso, ainda hoje nos chegam os ecos da tradução francesa do romance A Selva, de Ferreira de Castro, feita por Blaise Cendrars -- que alguns garantem ser superior ao original.

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Como é frequente dizer-se, o tradutor trai. Ainda bem: nunca nenhum texto, ao ser transposto para outro idioma, será traduzido de forma competente através de uma colagem de vocábulos.

Costumo ilustrar isto com títulos de filmes. Nunca saberemos quem se lembrou de traduzir Gone With the Wind por E Tudo o Vento Levou, algo muito mais intenso e radical. Mas devemos estar gratos a tal pessoa. Porque o título português, que se tornou numa expressão idiomática, faz sentido no contexto e adequa-se ao conteúdo. "Levado (ou levada?) pelo Vento", tradução literal na voz passiva, deixa-nos tão indiferentes como se estivéssemos a contemplar uma parede de tijolos.

E nunca poderemos agradecer bastante a quem se lembrou do título Bem-Vindo, Mr. Chance para baptizar em português a obra-prima de Hal Ashby protagonizada por Peter Sellers. Ao ponto de não faltar quem garanta que o título original deste filme de 1979 é "Welcome, Mr. Chance".

Não é: chama-se Being There.

Mas algum de nós guardaria dele tão boa memória se algum burocrata de turno, como se recebesse um relatório para traduzir, lhe tivesse chamado "Estando Ali"?

 

Em cima: fotograma do filme Bem-Vindo, Mr. Chance