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Delito de Opinião

Latim: língua morta?

Pedro Correia, 29.01.25

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Cena do filme Júlio César (1953), com Marlon Brando

 

Há pouco tempo, um daqueles leitores que adoram falar sobre o que desconhecem garantiu aqui que hoje «já ninguém quer saber do latim para nada».

Está equivocado. Todos os que proclamam a inutilidade do latim como «língua morta» usam palavras e locuções latinas no dia-a-dia. Por vezes até sem se aperceberem disso.

Nas últimas duas semanas, anotei estas, lidas ou escutadas no espaço público. São mais de cento e vinte:

 

a latere

a posteriori

a priori

ab initio

ad aeternum

ad hoc

ad hominem

ad infinitum

ad lib(itum)

ad nauseam

alea jacta est

alter ego

alma mater

alumni

annus horribilis

audaces fortuna juvat

aurea mediocritas

avis rara

bis

bona fide

campus

carpe diem

casus belli

census

citius altius fortis

Cogito, ergo sum

coitus interrumptus

consummatum est

continuum

contra naturam

credo

cum laude

curriculum vitae

delirium tremens

de jure

delirium tremens

de profundis

Deo gratias

Deus ex machina

dixit

dura lex, sed lex

e pluribus unum

ecce homo

errare humanum est

etcétera

ex-aequo

ex libris

facies

fiat lux

finis patriae

forma mentis

grosso modo

habeas corpus

habemus Papam

habitat

homo erectus

homo homini lupus

homo sapiens

honoris causa

idem

in absentia

in dubio pro reo

in extremis

in illo tempore

in loco

in memoriam

in vino veritas

in vitro

inter pars

ipsis verbis

ipso facto

lato sensu

mare nostrum

mea culpa

memento mori

mens sana in corpore sano

modus faciendi

modus operandi

motu proprio

nec plus ultra

numerus clausus

Opus Dei

quo vadis?

panem et circenses

pari passu

pater familiae

per capita

per se

persona non grata

post factum

post mortem

post scriptum

praxis

pro bono

quid pro quo

quis juris

quod erat demonstrandum

quorum

reductio ad absurdum

reductio ad Hitlerum

requiescat in pace (RIP)

rigor mortis

semper fidelis

sic

sic transit gloria mundi

sine die

sine qua non

statu quo

stricto sensu

sui generis

tempus fugit

ultima ratio

ultimatum

urbi et orbi

vacatio legis

vade retro

veni vidi vici

versus

via crucis

vice versa

vox populi

 

Certamente os leitores do DELITO se lembrarão de mais.

Não está mal, para uma «língua morta».

 

Leitura complementar: Ela estava lá.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 02.08.24

«Também na arte há que saber dosear a vida, e sobretudo mandar ao charco o ego, e ainda perceber que há coisas maiores do que a coisa comezinha do dia-a-dia da miséria. É certo que a rejeição dói a toda a gente, mas fazer da literatura um divã transforma o leitor num psicólogo, numa coisa amorfa, sobretudo diminui, ao invés de engrandecer, o papel do criador, não só porque abdica do dever e do prazer de criar, mas principalmente porque passa a não ter nada a dar ao leitor além de si mesmo. E admitamo-lo: pouca gente quer saber assim tanto de alguém ao ponto de lhe ouvir as mágoas.»

 

Ana Bárbara Pedrosa, na Sábado

Decifre se quiser

Pedro Correia, 03.07.24

Escrever bem, de acordo com a técnica jornalística, é adoptar a regra dos três C: de forma clara, concisa e compreensível.

O leitor não tem tempo nem paciência para voltar atrás porque não entendeu o significado daquilo que acabou de ler nem paga um jornal para decifrar charadas que lhe são servidas em forma de notícia.

Apesar disso, são cada vez mais frequentes as frases incompreensíveis na nossa imprensa - até em títulos. Frases codificadas, oriundas de um jargão tecnicista ou empresarial e polvilhadas de estrangeirismos que certos jornalistas pretendem à viva força incorporar no vocabulário comum. Esquecendo que devem ser eles a descodificar a mensagem e não o leitor a esforçar-se por tentar decifrar aquilo que se pretende comunicar.

 

 

Deparo todos os dias com frases em que prevalece o tom charadístico, numa espécie de caricatura involuntária do que não deve ser a escrita usada em jornalismo: opaca, inexpressiva, indecifrável.

Ao falar-se na crise do jornalismo contemporâneo omite-se com frequência este aspecto: a falta de capacidade para comunicar. Quando iniciei a actividade jornalística, na década de 80, os velhos tarimbeiros da redacção costumavam dizer aos novatos como eu: «Escreve de maneira a que possas ser entendido não pelo físico nuclear mas pela empregada doméstica.» Utilizando, desde logo, um vocabulário acessível a todos. Precisamente ao contrário daquilo em que que tantas vezes reparo agora. Como se o mais difícil fosse escrever de forma simples.

 

Às vezes dou por mim a pensar que fazem falta esses tarimbeiros nas redacções actuais - pessoas dotadas não com títulos académicos mas com o bom senso que deriva da sabedoria comum.

Muitos dos erros que costumo anotar seriam evitados pelo olhar atento e experiente de um bom editor. Mas como evitar a propagação do erro se quem tantas vezes o comete são profissionais do jornalismo investidos das funções de direcção ou editoria?

Voltarei a este assunto, raras vezes ou nunca debatido no espaço público. Para já, ficam 50 exemplos que fui colhendo da nossa imprensa:

 

 

"falta cada vez menos para o kick-off deste jogo"

"alternar entre o aceleramento, o giroscópio e os dois joysticks"

"a proposta tem vários regimes e vários períodos de phasing out"

"o processo devia ter sido muito mais friendly user para os utilizadores"

"um verdadeiro apreciador de cozido à portuguesa nunca recusa um convite para descobrir um novo spot com este 'prato do dia'."

"o event designer conta como gere a profissão"

"podia ser um storyboard"

"temos de buscar clusters de desenvolvimento"

"não se consegue compreender porque é que há este delay"

"as teorias de agenda-setting"

"criámos todo um sistema de back up"

 "downgrade sobre a dívida portuguesa"

 "o presidente fez o takeover"

"ele estaria a causar twitter storms constantemente"

"o mercado de credit default swaps atribui a Portugal uma possibilidade de default"

"case study na habitação"

"retalhistas omnichannel"

"hotel em Armação de Pêra é All inclusive"

"reestruturação de programas do daytime da SIC"

"se o governo quiser fazer um restyling, tudo bem"

"acessórios must have da estação"

"ficámos a saber o breakdown dos chumbos"

economic adviser do Governo"

"este país adora quick fixes"

"o que os debates speed-dating fizeram pela democracia portuguesa"

"seria um trabalho de accountabillity útil"

"os estúdios a olharem ao espelho num blacklot em Hollywood"

"os respectivos artwork e streaming

"Portugal tem de descer os salários em relação ao core da zona euro"

"o partido funciona por key words"

"livrarias queer migram para a Net"

"a última filosofia para superar crises conjugais é o coaching familiar"

"sou uma fashion victim"

"vai ser criada uma safe house em Lisboa"

"poderá utilizar o crowdfunding"

"o governo não pode ceder nos valores core"

"tentativa de criação de um catch-all party"

"Ucrânia e Polónia preparam-se para o seu close-up"

"as contas são o nosso bottom line"

"Bolsa alvo de ataque de short-selling"

"ao Chelsea sai quase sempre bem o papel de underdog"

"um daft punk em pose de artes marciais"

"receio de ficar fora do loop"

"após algumas semanas de avaliação em soft opening, X concluiu que deveria criar também um menu de balcão”

"ex-ministro recomenda a criação de um imposto one shot"

"o percurso foi feito para ser TV-friendly"

"o investidor segue uma estratégia passiva de buy-and-hold"

"a dialéctica entre believers e haters"

"o cinema teve outros provocadores e outros pranksters"

"há muito ganhou o gosto do gimmick"

"anunciada por uma espécie de cliffhanger"

"este projecto é um wake up call fenomenal"

"o back-to-basics está para ficar"

 

Decifre quem quiser. E quem puder.

Ler (33)

Quando o jornalismo se torna literatura

Pedro Correia, 05.05.24

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Kim Kardashian: «lábios de embuste»

 

Já falei aqui sobre o meu crescente interesse pela literatura espanhola. Ao ponto de vários dos meus romances ou novelas favoritos dos últimos cem anos serem de autores do país vizinho. Estes, por exemplo: Tirano Banderas (Ramón de Valle-Inclán), Nada (Carmen Laforet), Os Mares do Sul (Manuel Vásquez Montalbán), Coração Tão Branco (Javier Marías), Instruções Para Salvar o Mundo (Rosa Montero), Pátria (Fernando Aramburu) e Os Teus Passos nas Escadas (Antonio Muñoz Molina).

Este interesse estende-se aos colunistas da imprensa. Pelo mais óbvio dos motivos: escreve-se muito bem nos jornais espanhóis. São peças de literatura as crónicas, as reportagens, até os editoriais. Abundam os escritores que recusam enclausurar-se em torres de marfim, molhando os pés e exercitando a pena em colunas quotidianas onde exibem a sua prosa inconfundível, marcada pelo "ruído da rua" (título da coluna de Raúl del Pozo no El Mundo). E não faltam jornalistas que em nada se distinguem dos melhores prosadores contemporâneos de língua castelhana: Pedro Cuartango, Lucía Méndez, Ignacio Camacho, Jorge Bustos, Manuel Jabois, Emilia Landaluce, José Peláez, Maite Rico, Daniel Gascón, Rebeca Argudo. Falei de alguns aqui, em 2017, quando o El Mundo deixou de distribuir edição impressa em Portugal - decisão felizmente revertida algum tempo depois.

O melhor colunista é aquele que não se limita a emitir opinião: consegue criar metáforas e expressões tão sugestivas que se incorporam na linguagem comum. Tivemos nós também um deles, o melhor de todos: Vasco Pulido Valente, que cunhou o termo geringonça, aplicado à solução política que António Costa encabeçou entre 2015 e 2019. Mas, de modo geral, quem escreve na imprensa portuguesa perde fatalmente na comparação com Espanha. Mesmo nos temas mais fúteis.

Acabo de ler, no ABC de ontem, uma crónica de Ángel Antonio Herrera sobre a "influenciadora" norte-americana Kim Kardashian - talvez uma das mulheres mais fotografadas do mundo. Descreve-a com aquela linguagem castiça que tanto aprecio entre os espanhóis dizendo que ela tem «lábios de embuste». Espantosa expressão, tão inesperada e sugestiva.

Eis um caso concreto em que o jornalismo se transforma em literatura, libertando-se do estéril lugar-comum. Quem gosta de ler agradece. E que não restem dúvidas: continuamos a ser muitos. 

Ler (32)

Afinal porque se escreve?

Pedro Correia, 04.05.24

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Porque se escreve? O que leva alguém a tornar-se escritor? Qual a atracção desta actividade tão intensa mas também tão desgastante e tão solitária? Uma das melhores definições que conheço sobre este tema foi expressa por um profundo conhecedor da matéria: o escritor espanhol Eduardo Mendoza, autor do romance A Cidade dos Prodígios. Ao receber em 2010 o Prémio Planeta, pelo seu livro Riña de Gatos: Madrid 1936, Mendoza declarou o que o leva a sentir a irresistível pulsão da escrita: «Não escrevo livros com um objectivo concreto: escrevo-os para ver como acabam.»

Excelente definição. Ainda mais saborosa por ser irónica. Ou por ser um misto de sinceridade e construção ficcional. Como nos ensinou Fernando Pessoa, num escritor não há distâncias entre fingimento e realidade.

Arranca, arranca, arranca, arranca

Pedro Correia, 28.03.24

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Dois títulos da primeira página do caderno de economia do Expresso, de 15 de Março.

Este jornal ignora verbos comuns como iniciar e começar.

Só sabe "arrancar". Nada mais.

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O mesmo parece acontecer com a SIC, outro órgão do grupo Impresa. Eis duas notícias difundidas neste canal na passada segunda-feira. Os editores parecem desconhecer outros vocábulos: "arrancar" serve para tudo.

Sonharão por lá com amputações, mutilações, decapitações? Ignoro.

Sei, isso sim, que a compressão lexical galopa, cada vez mais veloz.

Ou arranca, para mantermos o registo monovocabular destes conspícuos títulos jornalísticos.

Ler (25)

Inflação de inúteis pronomes pessoais e possessivos

Pedro Correia, 12.08.23

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O livro é muito bom, uma obra-prima. Pena a tradução: abundam nela alguns dos maiores defeitos que vou verificando, em grau crescente. Importando uma estrutura lexical que nada tem a ver com a nossa.

Em português, subentendemos grande parte dos pronomes pessoais e possessivos - ao contrário do que sucede na língua inglesa, onde estes elementos são continuamente sublinhados. Redundâncias, do nosso ponto de vista.

Para traduzir de modo competente não basta dominar o idioma de partida: há que conhecer tão bem ou melhor o idioma de chegada. Sem esquecer que uma obra estrangeira se torna portuguesa ao ser vertida para a nossa língua. Destina-se a leitores portugueses, que interpretam textos e raciocinam de acordo com as nossas regras gramaticais, não em função de códigos normativos alheios.

Este saudável princípio não imperou na página de abertura do magnífico romance Luz em Agosto, de William Faulkner. Pelo contrário: a norma inglesa é metida a martelo na lingua portuguesa - e saem, portanto, frases repletas de inúteis possessivos que fui assinalando na mancha gráfica. 

Ela «só estivera em Doane's Mill depois de o seu pai e a sua mãe terem morrido». Tinha «os seus pés nus estendidos no fundo da carruagem». Ela havia pedido «ao seu pai para parar a carruagem nos arrabaldes da cidade». E ficamos a saber que «não diria ao seu pai «porque é que preferia caminhar em vez de continuar a cavalgar». Infelizmente, quando tinha apenas 12 anos, «o seu pai e a sua mãe morreram no mesmo Verão». Saberemos ainda que «a sua mãe morreu primeiro» e quando isso aconteceu «o seu pai» teve uma conversa com ela.

Isto, repito, só na página inicial - aqui reproduzida. Profusão de apêndices que fazem o leitor tropeçar a todo o momento, cortando o ritmo da escrita tal como a entendemos segundo as regras há muito fixadas no nosso idioma.

 

Maior ainda é a inflação dos pronomes pessoais. Na página 56, há um recorde batido: lemos trinta vezes «ele/eles», quase sempre com a função de sujeito. Outra redundância, tão gritante como a anterior.

Gerando frases como estas: «Eles pensaram sem dúvida que ele partiria agora, e a igreja organizou uma colecta para ele partir e se estabelecer noutro lado qualquer. Mas em seguida ele recusou-se a abandonar a cidade. Eles contaram a Byron sobre a consternação, mais do que a afronta, que sentiram, quando souberam que ele comprara a pequena casa na rua secundária onde ele hoje vive e tem vivido desde então; e os anciãos organizaram mais um encontro porque eles disseram que lhe tinham dado o dinheiro para partir, e se ele o gastara noutra coisa qualquer, então ele aceitara o dinheiro com falsas intenções. Eles foram ter com ele e disseram-lhe isto.»

 

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Um festival de pronomes. Sem seguir uma regra essencial deste nosso idioma que não nasceu ontem: a do sujeito subentendido.

«Em português, ao contrário do que acontece noutras línguas, não há necessidade de explicitar o sujeito em todas as frases ou orações. Tal acontece porque o português é "uma língua de sujeito nulo, ou seja, uma língua na qual um sujeito pronominal pré-verbal não tem necessariamente realização fonética".» Palavras de Eduardo Paiva Raposo, na Gramática do Português (edição Fundação Gulbenkian).

Os tradutores deviam assimilar estas normas antes de porem mãos à obra. Sobretudo quando lhes cabe a missão fundamental de introduzir obras-primas da literatura mundial no valioso espólio da língua portuguesa.

Ler (14)

Como agarrar o leitor do princípio ao fim

Pedro Correia, 22.10.22

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Não sei o que se ensina nos cursos de escrita criativa que agora proliferam como cogumelos. Sei, sim, como se prende a atenção de um leitor - pela experiência de quatro décadas a escrever em jornais, revistas e blogues. Além da minha própria experiência enquanto autor de livros e leitor atento dos mais diversos géneros literários - romance, conto, poesia, teatro, ensaio, biografia, diário...

A frase de abertura deve suscitar-nos a atenção por algo insólito, divertido ou inquietante. Imagine-se que eu inicio um texto com esta, inventada agora, ao correr da pena: «Três horas antes de morrer, da forma mais inesperada, Marcelo K. tomou um pequeno-almoço rápido, como sempre fazia, e desceu à rua cantarolando uma ária de ópera que lhe recordava as remotas tardes do Verão da infância rural no solar da avó.»

 

Está introduzido desde logo um elemento de suspense: vai ocorrer uma morte súbita. Temos essa certeza desde as primeiras palavras. Surge uma personagem com a qual tenderemos a identificar-nos - apresentada pelo nome próprio, o que lhe confere uma sugestão de intimidade, embora com apelido oculto.

Em poucas frases, diz-se muito. Sobre a idade aproximada da figura em causa (elemento que nos é fornecido pelo "remoto"), o seu nível de instrução (referência à ópera), o seu meio social (alusão ao "solar" de família), a sua aparente inserção num meio urbano (por contraposição implícita ao adjectivo "rural"). 

O que sucederá a Marcelo K.? A narrativa posterior deverá enquadrar-se nos parâmetros iniciais para manter dois elementos necessários à ficção literária: a verosimilhança (que não deve confundir-se com "realismo" ou naturalismo) e uma certa coerência interna, na medida em que o exercício de escrita se destina, no essencial, a ordenar um caos.

A letra K não surge por acaso. Levando os mais atentos e esclarecidos a uma associação imediata ao universo kafkiano, com a sua teia concentracionária, polvilhada de inimigos invisíveis. É um elemento suplementar de sedução do leitor, elevando a fasquia da exigência.

 

A escolha de uma frase para abrir qualquer texto, longo ou curto, nunca deve ser deixada ao acaso ou aos supostos caprichos da "inspiração". Requer experiência, traquejo, "oficina". Tal como um título.

Tomemos três exemplos de títulos: "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", "Este País Não é Para Velhos", "Crónica de uma Morte Anunciada". Fortes e sugestivos, todos eles. Mas passaram a servir de mote até à náusea para os mais variados e disparatados títulos de imprensa neles inspirados. O que era engenho e surpreendia pela novidade tornou-se enjoativo lugar-comum.

Um título pode ser poético ("O Imenso Adeus") ou insólito ("A Rosa Púrpura do Cairo") ou nostálgico ("A Colina da Saudade") ou perturbante ("O Lugar do Morto") ou sombrio ("Crime e Castigo") ou retumbante ("Os Dez Dias que Abalaram o Mundo"). Mas precisa de fugir à banalidade: só assim capta realmente a atenção do leitor.

 

Há uma semana deparei com uma crónica do jornalista Jorge Bustos, na sua coluna da última página do diário El Mundo. Intitulava-se "50 segundos" e começava assim: «Um homem aguarda num carro. O homem é chefe do Governo e o carro é o Audi blindado que o transporta quando não segue de avião ou helicóptero.»

Li de rajada. Técnica literária num texto jornalístico que nada tinha de rotineiro ou previsível. Só no fim ficamos a saber o motivo daquele título. Pode o cronista sentir-se satisfeito: o leitor foi conquistado à primeira vista.

Falar a escrever

Maria Dulce Fernandes, 20.10.22

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Eu falo pelos cotovelos. Já vos contei que fui um bebé prodígio no que concerne a articular sons. Reza a história que esta criatura de Deus pronunciou a primeira palavra com – pasmai - 6 meses, e não foi uma palavra qualquer: pedi um guardanapo!

A partir daí, parece que nunca mais me calei. Quando tinha cerca de um ano, sentavam-me com um livro no colo e eu “recitava” a história do Lobo e dos 7 Cabritinhos, com todas as pausas, respirações e virares de página, como se estivesse realmente a ler o livro. Tudo o que era poema ou lengalenga, mesmo longa longa, era comigo, tanto que cheguei a ser notícia nos Ecos de Belém. Até parece anedota…

Adoro uma boa conversa, tanto falada como escrita. No meu tempo de lente, éramos encorajadas a ter correspondentes, crianças como nós de outras escolas do País, com as quais trocávamos postais dos correios, postais ilustrados, cartas, recortes e fotografias .

A minha primeira amiga literária era de Borba e escrevíamos sobre a escola e a família tudo sob o escrutínio da professora D. Fernanda Barroso. No Liceu, algumas de nós foram escolhidas para trocar correspondência com garotos de outras nacionalidades nas suas línguas natais, o que servia como exercício à nossa aprendizagem das mesmas.

Ter correspondentes, ou pen-pals, foi um excelente trampolim para a aprendizagem de outras línguas, de que me orgulho de falar e escrever com um bom nível de qualidade, como o francês e o inglês. Lamento que a conversação em alemão, que requer muita prática, não me seja frequentemente solicitada; entendo quase tudo, mas torna-se cada vez mais complicado pensar em alemão para bem articular as frases com as correctas declinações.

Tive a Brigitte, francesa de Toulon, a Christina de Passau na Alemanha, e o Urs Kamber, um desportista suíço, que mais tarde representou o seu país nos jogos Olimpicos de Moscovo em 1980, onde ganhou a medalha de bronze dos 400 metros, e que reencontrei no Facebook passados 35 anos.

Já pensei fazer um update, mas não sei se terei vontade de  voltar para a escola. O regresso às aulas estaria previsto para os tão sebastiânicos "anos dourados", mas por muito caleidoscópico que desejemos o futuro, a sombra da incerteza não deixa de pairar pardacenta e desanimadora.

 

(Republicado/Imagem Google)

Ler (12)

Erros a mais num romance só

Pedro Correia, 24.09.22

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Leio outro livro daqueles a que chamo "literatura da côdea". Páginas e páginas em que as personagens vagueiam à mercê das inclemências do destino, com a abstinência a roer-lhes o estômago sem nada mais conseguirem encontrar para comer do que pedaços de pão por vezes acompanhados de um toucinho já rançoso.

Não é a fome metafísica, daquelas que se apossam de seres envoltos em angústia traumática, como a figura central desse assombroso romance existencialista avant la lettre que é Fome, de Knut Hamsun. Nem a duríssima fome física que corrói um homem até às entranhas em campos de extermínio modelados por sistemas totalitários, como os nazis em A Centelha da Vida, de Erich Maria Remarque, ou os soviéticos em Um Dia na Vida de Ivan Denitsovitch, de Aleksandr Soljenítsine.

Este é o jejum abstracto, à portuguesa, que durante décadas invadiu a nossa literatura burguesa para lhe incutir suposto cunho popular e lhe deu uma toada ideológica dominante - a tal ponto que ainda encontramos ecos disso no que hoje se vai publicando. Dezenas e dezenas de livros em que apenas se mastigam restos de pão duro migados numa tigela de caldo aguado e triste. Dezenas e dezenas de autores que parecem monges recolhidos em celas, renegando o pecado da gula, sem jamais dedicarem um parágrafo ao prazer da comida ou ao culto do convívio à mesa. Depois dos clássicos, como Camilo e Eça, existe um extenso e penoso período em que ninguém come nem bebe na literatura portuguesa.

É tema a que dediquei algum espaço aqui.

Aquilino Ribeiro e Agustina Bessa-Luís figuram entre as raras excepções a esta frugalidade militante. Do primeiro, gosto de realçar aquela frase do magnífico romance Quando os Lobos Uivam, já citada aqui: «Filomena tinha-lhes um bom caldo de grão-de-bico adubado com pespé de cerdo e uma arrozada de coelho bravo. Comeram-lhe bem, beberam-lhe melhor.»

Epicurismo militante num estilo inconfundível. Inimitável.

 

Pois acabo de ler um desses expoentes da "literatura da côdea". A tristeza habitual. Nem umas iscas na frigideira, nem uns carapaus alimados, nem uma açorda de tomate, nem uns ovos mexidos com presunto. Fuma-se muito, vão-se emborcando uns copos de carrascão, mas a comida fica fora do cardápio literário - resquício desse tempo em que a literatura lusa fazia voto de pobreza.

Em compensação, abundam erros de ortografia. Alguns tão primários, tão clamorosos, tão inadmissíveis que espanta como escaparam a quem reviu e editou a obra, na primeira metade dos anos 50, e a quem a foi reeditando até ser impressa esta versão do mesmo romance, publicada em meados do século 70, numa colecção que ficou famosa: Livros Unibolso.

Cheguei a supor que eram simples gralhas. Mas a cadência e a quantidade dos erros levaram-me a concluir que constavam do manuscrito original. Algo inaceitável, tratando-se de autor que ostentou certa fama e até recebeu salamaleques da chamada "crítica". 

 

Registo alguns: «farçante» (p. 33); «ripansos» (p. 39); «trazeiros» (p. 84); «espectativa» (p. 85); «farças» (p. 85); «cordealidade» (p. 100); «escárneo» (p. 108); «nazalada» (p. 113); «mangedoura» (p. 124). Já para não falar em ridículas redundâncias, como «os olhos saídos fora das órbitas» (p. 54).

Raio de prosa, tão mal parida por um autor "consagrado".

Lendo isto, tal como isto, admira cada vez menos que a iliteracia galope à desfilada nas redes ditas sociais. Se os "vultos da literatura" escrevem com os pés, sem o menor reparo das sisudas sumidades que lhes prestam vénia, não terá também o escriba anónimo o pleno direito de chafurdar na asneira?

 

Leitura complementar:

A literatura que vai à cozinha (18 de Maio de 2017)

Diário do coronavírus (10) (15 de Maio de 2020)

A hilariedade do pagem na mangedoura (21 de Abril de 2021)

Ler (11)

Na morte de Javier Marías (1951-2022)

Pedro Correia, 18.09.22

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Durante anos, li Javier Marías com prazer e proveito na revista dominical do El País. Bastavam as crónicas dele (e guardei várias, arquivando-as entre as páginas de livros, como sempre faço quando gosto muito de certos textos) para justificar a compra do jornal, que há mais de um ano deixou de se publicar nos quiosques portugueses, ao contrário do ABC ou do El Mundo, outros diários do reino vizinho.

Era culto, cáustico e corajoso - três características que aprecio num cronista. Não hesitava em remar contra a maré das modas dominantes, não perdia tempo com bajulações nem ocultava a erudição para seduzir "novas camadas de leitores" em busca da facilidade. Se havia que romper consensos, contassem com ele. Para integrar coros afinados, podiam dispensá-lo.

Este meu interesse pelo Marías cronista alargou-se ao Marías ensaísta. Há um livro dele sobre escritores e leituras que sempre recomendo: Vidas Escritas, em que nos fala de vários dos seus autores preferidos em textos concisos mas luminosos. Ali desfilam Faulkner, Conrad, Rilke, Stevenson, Mishima, Nabokov. E mulheres mestras das letras, como Emily Brontë e a fabulosa Isak Dinesen. 

Daí passei ao Marías romancista. Com obras como Todas as Almas (1989) e Coração Tão Branco (1992), em que exibe sem complexos a sua formação anglo-saxónica, a experiência como professor em Oxford, o gosto em ter traduzido Laurence Sterne e Thomas Hardy, a eleição de Shakespeare como autor de cabeceira.

 

Obra-prima da literatura espanhola, que incluo sem favor entre os cem melhores romances do século XX, Coração Tão Branco (título inspirado em frase de Lady Macbeth) tem um dos melhores parágrafos iniciais que conheço em ficção literária. Daqueles que nos agarram de imediato e nos prendem ao livro do princípio ao fim.

Eis essas primeiras linhas (com sábia tradução de Fátima Alice Rocha para a editora Alfaguara):
«Não queria saber, mas soube que uma das meninas, quando já não era menina e tinha regressado da viagem de núpcias havia pouco tempo, entrou na casa de banho, pôs-se diante do espelho, abriu a blusa, despiu o sutiã e procurou o coração com a ponta da pistola do próprio pai, que se encontrava na sala de jantar com alguns membros da família e três convidados.»

Perguntem-me o que é escrever bem. Respondo com esta admirável frase de abertura.

 

Grande escritor, Marías - prematuramente desaparecido, a escassos dias de completar 71 anos. E sem o Nobel, em nova injustiça cometida pela academia sueca: há muito que o merecia.

Ser politicamente incorrecto, e fazer gala disso, não o favoreceu nesta época de consensos bem comportados. Ele, que não fingia modéstia e exibia «o sorriso da inteligência», como dele disse Juan Cruz. Atributos nada valorizados nos dias que vão correndo.

Até por isso o aprecio. E continuarei a escrever sobre ele no presente, não no passado.

Escrever bem (ou mal)

Pedro Correia, 25.08.22

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Gostamos imenso de usar palavras em excesso. Vejo isso todos os dias no DELITO. Muitos comentários, assinados ou não, começam com quatro vocábulos inúteis: «Na minha opinião pessoal.» Inúteis por ser óbvio tratar-se de opinião, emitida por quem a escreve. Ainda nada foi dito e a frase já tropeça com peso a mais.

Uma variante desta, tão inútil como a primeira, abunda também por aí, sobretudo no discurso oral: «Eu acho que.» O pronome pessoal é redundante, mas cada vez mais insistente por influência brasileira, em réplica da sintaxe norte-americana. Apetece-me brincar com isto dizendo que temos muita gente com vocação para detective. É vocabulário revelador da nossa estrutura mental: "achar" como débil sucedâneo de "pensar".

 

Edito textos de outros há quatro décadas. Não apenas por missão jornalística (aos 21 anos já era coordenador de secção num semanário, aos 22 era editor), mas habituei-me a "limar prosa" mesmo fora da esfera profissional, combatendo a tendência tão portuguesa para o culto do pleonasmo. 

Esta tendência mantém-se. No advérbio «mesmo», semeado a torto e a direito nas frases, sem nada acrescentar no significado. Não faltando quem repita «é assim mesmo», uma vez e outra. Pode passar na fala, mas é um calhau na escrita.

Idem, para a profusão de pronomes possessivos, de novo por influência brasileira. Aponto sempre, como exemplo supremo da arte de bem escrever, a magnífica frase inicial de Cem Anos de Solidão: «Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.»

Nem uma palavra inútil. Apenas um adjectivo. Os nossos cultores de redundâncias logo enfiariam ali um possessivo a martelo: «O [seu] pai.» Tornou-se erro corrente. 

 

O mesmo sucede com a locução «hoje em dia», exemplo muito comum de desperdício vocabular. Está tudo dito no advérbio inicial - o resto só acrescenta ruído. Ou com a partícula enfática «é que», admissível na linguagem oral, sobretudo na forma interrogativa, mas sem préstimo na escrita excepto se reproduzirmos diálogos.

«É que hoje em dia chove mesmo muito pouco.»

Nesta frase agora inventada por mim encontramos três dos erros estilísticos que anotei. Costumo encontrá-los com frequência em prosa de gente que pretende escrever bem. Até em ficcionistas muito em voga, que vão conferindo argumentos de autoridade a quem "acha" que escrever é só alinhar palavras.

Podem "achar". Mas acham mal.

Aprendam com ele

Pedro Correia, 28.07.22

O grande Millôr Fernandes - humorista, escritor, dramaturgo, desenhador, autor de alguns dos mais sarcásticos textos da língua portuguesa no século XX - já não está entre nós. 

Mas ainda é possível aprender com ele.

Aqui transcrevo um apontamento (em "desacordo ortográfico") que ele publicou na revista Veja, a 11 de Fevereiro de 2011. 

«Em matéria de linguagem, o que me causa irritação, porque está mesmo errado, é o uso indevido, em qualquer das dezessete línguas em que leio (tá bem, deixo por três ou quatro!), de "na década de 1950", "na década de 1770". Querem falar de década e usam milênio. Década é década, se refere a 10, não a 1000, ô meus!»

Palavras actuais como nunca. Porque a praga está cada vez mais vulgarizada. Não só no Brasil: também em Portugal.

Ler (3)

Pedro Correia, 04.06.22

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Durante anos, ajudei a formar vários jovens jornalistas que conheci como estagiários nas redacções onde trabalhei. A primeira recomendação que lhes dava era tão elementar quanto indispensável: "Leiam sempre, leiam muito. Nada ajuda tanto a escrever como a leitura."

A seguir, dizia-lhes que escrevessem com simplicidade. Não podemos transmitir informação clara e rigorosa com frases confusas. Recomendava que evitassem as orações subordinadas. A cada ideia deve corresponder uma frase. Em regra, um ponto final substitui com vantagem uma vírgula.

Rever a prosa é fundamental. Enquanto revemos, vamos limpando o texto. Eliminando adjectivos que afogam substantivos. Suprimindo pleonasmos e cacofonias. Preferindo a voz activa à voz passiva. Riscando redundantes sinais gráficos como pontos de exclamação ou reticências, autêntica poluição gráfica.

Lembrava aquela regra de Churchill, que foi jornalista credenciado, repórter de guerra, historiador e vencedor do Nobel da Literatura: «Das palavras, as mais curtas. Das mais curtas, as mais conhecidas.»

 

Em fase posterior, pedia-lhes máxima precaução contra o abuso de verbos auxiliares, como ser ter: quando eles proliferam, parece que as frases gaguejam.

Dizia-lhes para eliminarem artigos definidos ou indefinidos desnecessários.

Sugeria-lhes travão a fundo nos adjectivos abstractos e nessa praga que são os advérbios de modo.

Parágrafos curtos sempre preferíveis aos parágrafos intermináveis. Alerta total contra a multiplicação dos pronomes relativos. Norma básica: nunca escrever que mais de uma vez por frase.

 

Verifiquei com espanto que muitos jornalistas veteranos eram incapazes de respeitar estes princípios. Semeavam os textos de vírgulas, subordinadas, parêntesis e travessões. Recorriam a uma sintaxe muito própria, procurando "fazer estilo", pecado mortal em jornalismo. Assim influenciavam da pior maneira quem dava os primeiros passos na profissão.

A falta desses rudimentos ao nível da escrita nota-se em grau crescente. Até em textos destinados à promoção de livros. Textos que, em vez de atraírem, afugentam os leitores. Ainda agora tropecei num. Vem impresso na contracapa de um romance recém-editado. É o que surge ali em cima, demonstração prática de tudo quanto não deve ser passado a escrito. 

Longuíssima frase com 96 palavras. Espécie de sopa da pedra em versão literária. Às tantas, até quem escreve já se perdeu com tanta ideia lá metida. Sete conjunções copulativas, que servem apenas para ligar orações. Quando sentimos necessidade de polvilhar um texto com pronomes, advérbios e conjunções, todos os sinais de alarme devem acender-se.

Estamos a comunicar de forma deficiente. Estamos a falhar na escrita.

 

Mas cada vez mais reparo em coisas destas. Interrogo-me se em empresas que fazem da expressão escrita no nosso idioma elemento essencial da sua actividade não haverá ninguém capaz de redigir sem falhas elementares. Se não haverá ninguém habilitado a alterar o que está mal, corrigindo. 

Que leitores qualificados podemos formar com matéria-prima tão deficiente?

Regresso a Marx

Pedro Correia, 16.12.21

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A cada crise europeia, volta-se a Karl Marx. Já não com a obsessão de encontrar terapias salvíficas na obra do grande teórico do século XIX, mas pelo menos para se estabelecer uma comparação com o diagnóstico que então traçou e os tempos actuais. Ando a reler um livrinho dele, o clássico O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, e confirmo o que já sabia: Marx escrevia muito bem.

Repare-se nos dois parágrafos de arranque da obra (traduzo directamente do castelhano, pois leio uma versão impressa nos anos 70 em Barcelona): «Hegel diz em algum lado que todos os grandes factos e personagens da história universal se produzem, digamos, duas vezes. Mas esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a outra como farsa. (...) Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem de modo arbitrário, sob circunstâncias eleitas por si próprios, mas sob circunstâncias directamente proporcionadas e herdadas do passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. Lutero disfarçou-se de apóstolo Paulo, a revolução de 1789-1814 envergou alternadamente as vestes da República Romana e do Império Romano, e a revolução de 1848 não conseguiu fazer melhor do que parodiar a de 1789 e a tradição revolucionária de 1793 a 1795.»

Fica agarrado o leitor, logo de início, a esta prosa. Mesmo o leitor que está muito longe de ser marxista.

No dia de mais um aniversário

Paulo Sousa, 22.08.21

Escrevo da minha varanda. O sol incide no lado oposto da casa e isso deixa-me à sombra, a observar o verde vergado ao calor carrasco. As cigarras e os cucos gritam à desgarrada num babélico diálogo. A aragem vai e vem. Os choupos do vizinho no lado nascente aproveitam todos os sopros desta para se espreguiçar.

Há quem escreva por necessidade. Não é o meu caso. Escrevo apenas para desafiar o esquecimento que um dia nos irá vencer. A todos. As verdades universais nunca deixarão de o ser, mas as pequenas verdades, as nossas, essas têm os dias contados. Todas. Quantas já desapareceram e, por não terem sido escritas, é como se nunca tivessem existido?

Por já sabermos qual será o desfecho, desafiar o esquecimento será sempre uma batalha desigual, mas que ainda assim tem de ser travada, olhos nos olhos, sem ter para onde retirar nem nunca aceitar a rendição. Talvez viver seja apenas isso, combater o inevitável. Ou pelo menos combater o inevitável seja uma parte do que é viver.

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A hilariedade do pagem na mangedoura

Pedro Correia, 21.04.21

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Leio um romance de uma escritora noutros tempos muito celebrada, ao ponto de ter recebido prémios literários, ser enaltecida em páginas culturais da imprensa e merecer destaque em antologias. 

À medida que desfilam os capítulos, vou pasmando com a sucessão de erros ortográficos - alguns bem graves. Não são gralhas: são mesmo erros, aliás reiterados. E que foram passando incólumes de edição em edição: esta que tenho entre mãos é já do ano 2000. O que me leva a questionar em que estado viria aquele original quando pela primeira vez foi remetido a um editor, na segunda metade da década de 60.

Eis alguns exemplos: pagem (em vez de pajem), grangear (em vez de granjear), hilariedade (em vez de hilaridade), eminente (em vez de iminente), emerso (em vez de imerso), mangedoura (em vez de manjedoura). Erros a mais para passarem sem um reparo crítico. Enquanto reforço a minha convicção de que há muito escritor a necessitar com urgência de regressar aos bancos da escola. Básica.

Não pensem que são casos isolados. Tenho assinalado vários tão graves como estes em diversas obras literárias, por vezes até de autores que cometeram best sellers (bestas céleres, como dizia Alexandre O'Neill). Daria para uma secção regular no DELITO, garanto. Ou na revista Ler, onde vou escrevendo uma vez por outra. 

Se os "consagrados" escrevem assim, em sisudas obras até recomendadas no douto Plano Nacional de Leitura, como haveremos de admirar-nos de ver tanta calinada à solta na bagunça das redes sociais? 

Antigamente...

Cristina Torrão, 06.04.21

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Imagem encontrada na net, sem indicação de autor

De vez em quando, lá oiço alguém afirmar convicto: antigamente, os Portugueses escreviam muito melhor (…) Estou em crer que quem tal afirma revela alguma ingenuidade. No fundo, está a deixar-se levar por uma imagem idealizada do «português de antigamente».

Aplaudo esta crónica do professor e tradutor Marco Neves. Hoje esquecemo-nos de que Portugal, até meados do século XX, era um país de analfabetos. Não só por me interessar por História, como por andar a consultar livros paroquiais antigos, a fim de fazer a crónica da família, estou em constante contacto com o passado. E, quando reflicto sobre questões destas, gosto de ir procurar casos concretos, precisamente, na minha família, uma típica família portuguesa, que, salvo raras excepções, não pertencia à “elite” frequentadora da escola.  

Apesar de ter tido a sorte de nascer num lar de professores primários e começado a juntar as primeiras letras com quatro anos, não preciso de ir muito longe, a fim de confirmar o analfabetismo que grassava no nosso país até meados dos anos 1980. Não tenho pejo em afirmar que, dos meus quatro avós, só o meu avô materno se sentou nos bancos escolares, concluindo o antigo quinto ano do liceu e tornando-se funcionário público.

O meu avô transmontano sabia ler e escrever por ser autodidacta. Começou a aprender durante a tropa e desenvolveu os conhecimentos ao longo da vida, tornando-se numa ajuda preciosa para os habitantes da sua aldeia. As minhas duas avós eram analfabetas, a materna pediu-me muitas vezes para lhe ler alto as legendas dos filmes (normalmente, era o meu avô que lhas lia). A minha avó transmontana nem sequer se habituou à televisão, apesar de os filhos lhe terem oferecido uma, tinha ela já quase setenta anos.

Se recuar ainda mais, até aos meus oito bisavós, penso que também só um deles estudou, era funcionário das Finanças, como o filho viria a ser. Casou com uma jovem de família conceituada da Mealhada, mas sinceramente não sei se essa minha bisavó sabia ler e escrever. Nascer num berço algo privilegiado, não era garante desse tipo de aprendizagem, para uma mulher. Todos os outros seis bisavós eram analfabetos.

Depois da Revolução de 1974, fez-se muito esforço para acabar com o analfabetismo. Sei isso igualmente por experiência pessoal: o meu pai preparou muitos adultos para o exame da 4ª classe.  Por isso, tal como o professor e tradutor Marco Neves, eu pergunto: quando foi essa época em que escrevíamos muito melhor?

No tal antigamente, a maior parte dos portugueses não escrevia. Haverá quem prefira que poucos escrevam — sempre evitam ler textos com erros. Mas até isso é uma ingenuidade: olhamos para o passado e, de todos os textos de quem escrevia (e eram poucos os que sabiam fazê-lo), só vemos os textos que sobreviveram ao turbilhão do tempo, só nos lembramos dos bons textos.

Este é aliás um erro comum, não só no que diz respeito à escrita. Como a memória não é perfeita, lembramo-nos mais facilmente daquilo de que gostámos do passado — e acabamos por idealizá-lo. A memória é uma peneira que, do passado, nos dá apenas os diamantes. A lama, essa, fica escondida na aridez dos números e de alguns livros de História.

Comparar a escrita dos dias de hoje apenas com os bons escritores do passado é um erro muito mais grave que qualquer cedilha fora do lugar.

"No trates de escribir bonito"

Pedro Correia, 29.04.20

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Um dos melhores conselhos, em matéria de técnica de escrita, foi dado certa vez pelo escritor e pedagogo colombiano Tomás Rueda ao jovem Eduardo Caballero Calderón, que na década de 30 do século XX ensaiava os primeiros passos na literatura.

Disse-lhe o mestre: "No trates de escribir bonito. No dejes que se te vea la gramática."

É um conselho que vale para todas as épocas, para todas as latitudes. A escrita tem muito de pessoal. Tem de irromper sem artifícios. Límpida como a de Borges, depurada como a de Pessoa, torrencial como a de Kerouac. Mas sem pomposidades, sem adstringências.

O estilo diz tudo sobre o seu autor.

Para escreveres bem, evita as frases feitas, as frases batidas, as frases de efeito fácil mas vazias de conteúdo.

Arruma as ideias, escreve como pensas, desvenda-te em cada parágrafo.

Assimila as regras gramaticais evitando sempre a prosa canhestra de mestre-escola.

Escrever é isto.

Penso rápido (92)

Pedro Correia, 06.07.19

Não sei se vos acontece. Tenho instalado no computador um sistema que alerta para eventuais erros ortográficos, putativas falhas de sintaxe e supostos lapsos de pontuação. Com sublinhados a vermelho (alguém um dia me explicará por que motivo o vermelho representa a cor do interdito).

Quase nunca reparo neste mecanismo. Felizmente não precisei de computador algum para saber escrever: fiz toda a minha aprendizagem à moda antiga, com métodos atávicos, recebendo a sabedoria não de infalíveis máquinas mas de falíveis seres humanos.

Hoje, porém, fixei as advertências que o aparelho sinalizou: três, uma por parágrafo. Mandando-me riscar as palavras "teclagem", "apagão" e "hemeroteca". Não fiz caso, claro. Mas fiquei a pensar nestes imperativos nada subtis das novas censuras. Que nos mandam uniformizar a escrita, limpando-a de neologismos, suprimindo a criatividade. É o "novo normal", como se diz em português macarrónico, traduzido à letra do jargão tecnocrático americano. Ilude-se por completo quem pensar que censura era só a outra.