A escola
Quando era assim para o pequenininho, a escola só começava lá para os 5-7 anos quando se entrava na primária. Existia já a figura do jardim-escola e da pré-escola, mas eram apenas "o jardim" e "a pré" e ninguém levava aquilo a sério porque não havia trabalhos de casa, faltas, castigos, reguadas, contas e o máximo que se fazia eram umas ondinhas esquisitas que serviam de preparação para aprender os ús e os émes.
Claro que é difícil recuar muito tempo sem que a memória comece a falhar ou a pregar partidas. Por isso mesmo eu levanto dúvidas sobre aquela repetição constante dos desenhos de barcos e casas, sempre os mesmos e que talvez possam ter sido feitos uma única vez e eu os recorde ad eternum simplesmente porque o cérebro gosta de nos pregar partidas. Se a nossa biografia é como a lembramos, os episódios de criança devem mais às memórias filiais tingidas pela ternura. Mesmo invocando o meu Trump pessoal, é difícil crer que tenha sido a criança mais precoce, educada, simpática e divertida do mundo, como a família mais velha faz parecer.
Avancemos antes no tempo até à primária, a qual fiz em duas escolas, a primeira longe de casa porque os meus pais estavam sempre em viagem e passava os dias com a minha tia e avó. Nesses tempos tive o meu primeiro ataque de pânico ao seguir num autocarro de casa para a terreola para ir à escola já na segunda-feira e um pneu furado me fez chegar com enorme atraso. O medo - completamente infundado - do castigo pelo atraso manteve-se para sempre comigo e ainda hoje o tenho quando me atraso para ir trabalhar (mesmo sem reuniões).
A primeira classe é mal recordada. Mesmo muito mal. As seguintes provavelmente também o serão, mas têm a vantagem de terem sido todas na mesma escola e com a mesma professora e assim ser possível empacotá-las e fazê-las parecer mais completas. Recordo que a professora era invariavelmente justa mas já bastante dura para a época, com puxões de orelhas, chapadas e reguadas ainda a serem administradas sempre que os resultados não correspondiam ao desejado. Ainda hoje recordo ter recebido todo o cardápio quando - de forma pouco característica - fui o único incapaz de resolver um problema de divisão. É hoje inconcebível imaginar que tempos houve em que as professoras podiam de facto castigar assim os alunos e ainda bem que assim é.
Até por volta do 6º ou 7º ano a minha vida era relativamente simples, mesmo nos ambientes frequentemente cruéis das escolas. As escolas que frequentei nessa altura tinham bastantes alunos de meios sociais mais degradados (dos chamados "bairros sociais", designação que não sei se ainda subsistirá) e tinham notas bastante fracas, sendo a reprovação de ano (o chumbo) muito frequente. Apesar de isso ser receita para um aluno razoavelmente bom e pequeno sofrer, a verdade é que eu ajudava bastante os meus colegas com trabalhos de casa e nos testes e eles, em retribuição, mantinham-me protegido. Era algo que eu nem notava, mas ainda hoje estou imensamente agradecido a todos esses colegas que ajudaram a que o meu período do ciclo fosse algo mais suportável.
O meu ano de glória foi indubitavalmente o 6º (ou o "segundo ano do ciclo" como era conhecido na altura). Não só me ofereceu as melhores notas da minha carreira escolar (até com 4 a trabalhos manuais e educação física, casos únicos na minha vida) como me permitiu a distinção como um jogador de futebol de escola com talentos reconhecíveis. Como caí numa turma de apenas 9 rapazes, dos quais seis eram múltiplos repetentes e dois dos outros não gostavam de futebol, acabava por ter a possibilidade de jogar com frequência nas peladinhas inter-turmas. Sendo o mais pequeno, acabava por ser invariavelmente enviado para a defesa (tínhamos dois bons guarda-redes, para meu alívio) na qual eu até me dava bem. Não só não tinha muito que fazer (os nossos matulões de 3 a 5 anos mais velhos que eu dominavam o jogo e pouco sobrava para mim) como quando algum atacante me aparecia à frente eu executava a minha famosa manobra defensiva: "chuta a bola e se falhares a bola acertas na canela". Noutras circunstâncias eu seria sumariamente espancado com tais tácticas, mas quando tinha anjos da guarda que me pareciam um cruzamento entre Kareem Abdul-Jabar e Mike Tyson, a vontade de me castigarem rapidamente desaparecia dos elementos ofendidos.
(Neste aspecto devo deixar um pequeno parêntesis para o grande jogo desse ano: o encontro 2ºP (nós) contra 7ºA (os outros). Ao longo de várias semanas que havia a discussão sobre qual seria a melhor equipa da escola. A oportunidade de dissipar dúvidas ia sendo adiada, porque nós éramos das turmas da tarde e eles das turmas da manhã. Contudo, um dia lá se organizou o jogo. Tudo preparado. Nós e eles com os melhores jogadores disponíveis (o nosso guarda-redes tinha febre mas não podia faltar). O campo atrás do pavilhão estava ladeado por um grupo de espectadores que ainda hoje não deve ter sido repetido naquele sagrado terreno. O resultado é que não foi de acordo com o esperado. O 7ºA abriu o jogo com um golo pelo avançado deles, um cruzamento entre touro, cavalo e locomotiva, sem requintes técnicos mas que, lançado, só seria parado por um helicóptero Apache. Era o aviso e fiquei preocupado: se não conseguia acertar no bicho, como o parar? Não houve problema. A verdade é que não voltei a ver a bola. Vencemos por 7-1 (apesar de um golo deles após o final, quando o nosso guarda-redes já tinha saído da baliza) e a humilhação ainda deve ser suficiente para aqueles indivíduos esconderem a cara quando passam em vista da escola.)
A minha coroa de glória académica nesse 2º ano do ciclo foi um teste de história, disciplina para a qual tinha apetência e onde as notas acima de 90% eram não só frequentes como corriqueiras. Na véspera de um teste alguém surgiu no final de uma aula com o enunciado do teste da outra turma, a que tinha os testes sempre depois de nós e que eram sempre iguais. Por uma vez éramos nós a poder saber o teste com antecipação: um dia inteiro!! Toda a gente copiou o enunciado (nessas alturas, inexplicavelmente, os nossos telefones não tinham o CamScanner nem tiravam fotografias nem eram, imagine-se, portáteis) menos eu. Não sei ainda hoje explicar porquê. Seria por uma mistura de medo, vergonha, ética e confiança, talvez. Sei que não o fiz. No dia seguinte, com um enunciado que, inevitavelmente, não era igual ao que tinha sido profusamente copiado, toda a gente caiu por terra. Em toda a turma houve duas notas acima dos 50%. A de um colega que teve talvez 51% ou 52% (pelo menos imagino o caso assim) e a minha, também inevitavelmente, com 99% (não sei onde terei colocado mal a vírgula). Desde esse momento que fui visto como uma espécie de feiticeiro, epsecialmente história, que era capaz de prodígios intensos. Depois veio o 7º ano.
A partir do 7º ano, habituado à excelência fácil das minhas notas, caí numa mediania profunda da qual só fui resgatado já no 11º ano por uma fúria contra um colega que gostava de gozar com quem tinha notas piores (quase todos). No desejo de lhe mostrar quem era acabei por melhorar as minhas notas a ponto de conseguir entrar na universidade. Hoje, à distância destes anos, posso também agrader-lhe pela parvoíce. O facto de o ter enfrentado em pleno balneário conferiu-me um certo prestígio extra que nada mal fez à minha imagem na escola (aos 15-16 anos isto contava).
A escola em Leiria tinha certos aspectos interessantes. Um deles era a enorme quantidade de góticos que continha. Em Coimbra descobri que a tendência andava pelo punk e rockabilly mas Leiria, em respeito pelo castelo, preferia os tons mais escuros. Talvez por isso seja hoje em dia o palco do festival EntreMuralhas (sim, um dos organizadores é um amigo, mas não desses tempos). Era uma cidade já orgulhosamente freak mas infelizmente sem prestígio por isso em tempos sem internet, Twitter, Facebook ou outros instrumentos que realçam o carácter da cidade. Características fundamentais dos góticos, nessa altura ainda em versão soft, era o uso de roupas escuras - claro! - botas Doc Martens com biqueira de aço (nada de imitações) para os pontapés nas sessões de mosh, ar taciturno, mãos permanentemente nos bolsos e postura liieramente dobrada. O curioso é que estes góticos, vistos como servos do diabo por qualquer senhora com mais de 50 anos da zona velha da cidade (onde estavam os bares), eram dos mais bem comportados da escola. Poucos fumavam, quando bebiam não abusavam e eram frequentemente bons alunos. Não fosse aquela roupa velha inspirada por Belzebu e até seriam bons moços, diria a Sra. Adosinda da Rua Direita (sei hoje que se chama Rua Barão Viamonte).
A escola onde andei no liceu era a Escola Secundária Francisco Rodrigues Lobo. A outra localizada também na cidade era a Escola Secundária Domingos Sequeira e uma outra, algo fora, era a Escola Afonso Lopes Vieira. E eram inevitavelmente conhecidas como o Liceu, Escola Comercial e Escola da Gândara, respectivamente (se os alunos não recordavam os nomes dos escritores que tinham que aprender nas salas de aula como recordariam os nomes das escolas onde andavam?). Como era lógico, os alunos do Liceu não se davam com os da Escola Comercial. Nem pensar nisso. Como poderíamos falar com eles? Pior que isso só darmo-nos com os da Escola da Gândara. Que ralé!! Ainda hoje me é um mistério a razão desta separação, mesmo (ou especialmente) depois de já na universidade ter namorado brevemente com uma antiga aluna da Escola Comercial, mas tenho a certeza que as razões eram boas. Ainda hoje olho de soslaio pra a Escola Comercial, cujo único aspecto bom era ter espaço para estacionar quando saía ao fim de semana uns anos mais tarde.
Um dos grandes mistérios que ainda hoje me assombra é o efeito do 8º ano. Toda a gente falava de o 8º ano ser o ano mais difícil, onde muitos alunos reprovavam. Ainda não sei porquê. Teria um grau de dificuldade mais elevado, isso seria lógico para todos os anos, mas dificilmente seria como uma entrada na universidade. Ainda assim, com ou sem mistério, a verdade é que sofri nesse ano o meu momento de maior tremideira: passei com dsuas "negativas" (a Francês e a Físico-Química - ironia para um engenheiro químico). Também experimentei um momento que acabou por ser determinante na minha vida: ao ver uma pequena exposição dos alunos de Quimicotecnia (opção que existia apenas naquela escola), gostei o suficiente para a querer adicionar como segunda opção quando seguindo para o 9º ano. Acabei nela e, como se costuma dizer, o resto é (má) história.
O Liceu tinha obviamente muitos recantos. Havia a zona de baixo, onde havia apenas duas salas que só eram usadas no verão (creio que por serem menos quentes, embora eu não o notasse muito). Havia o ginásio e balneários, zona onde tínhamos que nos vestir a tal velocidade (as toalhas molhadas podem ser chicoteadas a velocidades de Mach 5) que recrutas do exército seriam vistos como lesmas. Havia também a mitológica sala da associação de estudantes, cuja maior virtude era poder ser trancada com uma chave que os alunos da mesma possuíam e que lhes permitia passar os intervalos a fumar. No entanto o espaço mais selvagem, com uma fauna que teria deslumbrado David Attenbourough, era o pátio. Chamar pátio a uma espaço coberto, em forma de galeria, e aberto para os campos e basquetebol, era talvez um exagero, mas era esse o nome e o espaço era sagrado. Havia delimitações claras que hoje não recordo mas que obedeciam a regras muito estritas. Os fumadores ficavam mais para os lados da parede, para nãos erem vistos pelos professores. Os punks ficavam mais longe da porta de entrada, a conversar encostados aos pilares. A miúdas ficavam a conversar e a ver a Bravo (ali ninguém saberia ler alemão e não era pela literatura que queriam a revista) sentadas no degrau que separava o pátio do campo. Os trestantes andavam por ali, em classes sociais completamente estratificadas e bem delimitadas. Não seria boa ideia a ninguém ingressar nos espaços de classes acima sob pena de levar o tratamento "croquete" (ser molhado e depois rebolado na caixa de areia). Já se alguém decidisse passar pelas classes mais baixas, era de bom tom fazê-lo com encontrões e um par de calduços. Até ficaríamos desapontados se isso não acontecesse.
Suponho que ainda hoje assim seja: a estratificação das classes entre alunos do secundário é tão normalizada e estrita que seria mais fácil a um intocável casar com um brâmane do que a um aluno do 8º ano ir pedir um cigarro a um do 11º. Note-se que os do 12º ano eram outro caso. Eram já adultos e não se incomodavam com os mais novos. Até adoptavam alguns, em substituição de cães. Estas delimitações eram no entanto flexíveis quando se transpunham os portões da escola, para fora, para o mundo real. Aí a possibilidade de interacção era real, embora sempre contida. Era-me então possível falar directamente com alguma rapariga gira e popular (sim, pleonasmo) sem receio de humilhação (mesmo pedir-lhe as horas em plena escola era arriscado). Os mais novos atreviam-se a pedir lume aos mais velhos e até havia quem bebesse uma cerveja em conjunto ao sábado em pleno Terreiro. Ainda hoje não entendo como era possível compreender estas regras todas e não ser possível tirar mais que um 12 num simples teste de matemática do 10º ano.
Claro que tudo isto tinha que terminar. Findo o 12º ano, veio a entrada para a faculdade. No último dia faziam-se as festas, assinavam-se os anuários uns dos outros sem preocupação com classes (era um sucesso conseguir um simples gatafunho do brutamontes que passava o ano a bater-nos n cabeça quando nos via) ou sem consideração para com qualquer familiariedade (metade das assinaturas devem ser de pessoas que eu conhecia no máximo de vista). Era também o momento em que alguns dos professores desciam ao pátio e conversavam connosco, nos perguntavam o que iríamos fazer e quais os nossos sonhos. O momento em que a escola, toda e completmente, se reunia num grupo sem separações, em amizade e numa antecipada saudade.
Se todo o ano tivesse sido assim, talvez esse período da minha vida fosse menos conturbado. Contudo, seria menos recordado. E, em todo o caso, éramos adoslescentes. Estar conturbados era a única coisa que todos sabíamos sem ser ensinados. Com, ou sem escola.