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Delito de Opinião

Cebolagate

Paulo Sousa, 13.03.23

Há dias chegou-me à mão a publicação “Ecos do Século XX – Distrito de Leiria” editada pelo Jornal de Leiria. É um documento de grande importância histórica e que já vai sendo difícil de encontrar. Foi publicado em fascículos, um por cada década, ao longo do ano 2000.

A sua elaboração foi o resultado do trabalho do jornalista Damião Leonel, desaparecido há pouco tempo, e que foi ele próprio uma personagem invulgar e merecedora de ser lembrada.

Numa das páginas, dedicadas ao ano 1919, surge a seguinte nota:

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Em tempos de crise, a inflação e o açambarcamento de víveres, com ou sem falcatruas de variada ordem, são fenómenos antigos. O estado, na notícia corporizado pela Câmara Municipal, intervém para salvaguardar o interesse público e limitar os prevaricadores. O público concorda e revê-se nas medidas contra os abusos. É também para isso que o Estado existe e, sim senhor, fizeram muito bem.

Regressando à actualidade, soubemos pelas notícias que as fiscalizações da ASAE detectaram, por exemplo na cebola, margens de lucro superiores a 50%. Perante tal ignomínia, dei por mim a questionar-me sobre os valores que estavam em causa.

Olhando para os preços praticados por um distribuidor de referência, calculei um preço médio de venda ao público da cebola de 2,40€/kg.

O primeiro valor de média que obtive era bem superior e por isso excluí do cálculo as referências mais caras, por estimar que tenham menor peso no consumo global. Só por aqui já se poderia classificar o método a que recorri de diversas formas, mas nenhuma onde a palavra "rigor" pudesse fazer parte. Mas, adiante.

Ora:

Quando falamos num preço de venda do público (PVP) de 2,40€, estamos a falar em 2,264€ de mercadoria, acrescido de 6% de IVA.

Se 2,264€ é o PVP sem iva e se este valor resulta de uma margem comercial do 50%, podemos calcular que o custo de aquisição da cebola para o supermercado é de 1,509€.

Não nos podemos esquecer que, tal como acontece em todos os produtos hortícolas, a cebola é um produto perecível, e por isso os quilogramas adquiridos pelos supermercados não são exactamente os mesmos quilogramas vendidos. Existe desperdício e isso tem de ser considerado.

Então qual seria a margem de lucro aceitável para a distribuição? Considerando o já referido desperdício e assegurando o normal funcionamento do estabelecimento, arrisco que uma margem razoável ronde os 30%.

Existe quem não aceite que possa haver lucro, quem pense que os supermercados não têm de pagar salários, electricidade, água, seguros, limpeza e higiene, não têm de cumprir as exigência imposta pelas normas HCCP, não têm de dar formação obrigatória aos funcionários, não têm de disponibilizar equipamentos individuais de protecção, de pagar taxas e licenças variadas (i.e. licença paga à SPAutores pela música ambiente), de suportar manutenção de equipamentos de frio, de elevadores, de equipamentos de carga, todo isto acrescido de impostos vários e derrama. Esta não é uma lista exaustiva pois estou certamente a deixar para trás muitas parcelas de despesas operacionais de um supermercado.

Para os mais desligados destes cálculos, os naïfs que por ignorância e alienação acham que a abundância nas prateleiras resulta de uma ordem sobrenatural inabalável, para esses, e com uma risada de escárnio, designarei estes 30% com Margem Moral Máxima – MMM. É uma boa sigla que merecia passar a constar nos manuais de micro-economia.

Assim temos:

Preço de custo da cebola: 1,509€/Kg

Preço MMM: 1,962€/Kg

Preço verificado: 2,264€

E assim chegamos a uma diferença entre o preço moralmente aceitável e a realidade de 0,302€/Kg.

Consideremos então os dados divulgados pelo COTHN Centro Operativo e Tecnológico Hortofrutícola Nacional, o consumo médio anual de cebola em Portugal é de 13Kg/per capita.

Assim teremos:

13kg/per capita x 10 milhões habitantes = 130 000 000 kg

Valor do escândalo do preço da cebola, o cebolagate = 39,26 M€.

Importa referir que no ponto de vista da AT existe ainda outra diferença:

Iva arrecadado aplicando a MMM: 15,3 M€

Iva arrecadado com o preço verificado: 17,66 M€ (= receita fiscal adicional de 2,36 M€)

Total desembolsado a mais pelos consumidores = 39,26 M€ + 2,36 M€ = 41,62 M€. (4,162 €/per capita)

Termino assim comparando estes escandalosos e inaceitáveis valores com um “aceitável investimento”.

- O escândalo da cebola custa a cada português 4,162 €.

- O "investimento estratégico" “não reembolsável” na companhia das caravelas portuguesas do século XXI custa a cada português 340€.

Os responsáveis pelo referido "investimento estratégico", muito se alegrarão que o cebolagate tenha o máximo de atenção possível.

Adenda:

Entretanto, e a partir dos relatórios de contas da Sonae (Modelo e Continente) e da Jerónimo Martins (Pingo Doce e Recheio), divulgados numa notícia do Jornal Eco, podemos observar que estes dois operadores do mercado de distribuição alimentar reduziram as suas margens de lucro nos últimos anos.

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Gráfico: Jornal Eco

Destaco ainda o seguinte excerto:

"Fica apenas a faltar nesta equação o Estado, que atua no mercado através da carga fiscal que aplica sobre os bens de consumo através do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA). E de todos os intervenientes na cadeia de valor, o Estado foi o único que não fez qualquer alteração na sua margem de lucro:não baixou nem reviu o IVA sobre os bens alimentares básicos, como fez Espanha, nem parece ter intenção de o fazer. E o resultado da inação por parte do Estado é bem visível nas suas contas."

Ainda sobre este assunto, termino com a recomendação do programa Conta-Corrente, que mereceu o título: "ASAE não foi fiscalizar preços, foi fazer política".

Facilitanço e afins

Sérgio de Almeida Correia, 07.03.23

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(créditos: NM, daqui)

"Embora a renúncia não careça de aceitação, deveria ter sido comunicada por carta dirigida ao Presidente do Conselho de Administração, só produzindo efeitos no final do mês seguinte àquele em que tivesse sido comunicada, requisitos que não foram estritamente cumpridos" (...)

"Apesar da informalidade na transmissão da concordância quanto ao montante acordado e à respetiva saída da Eng.ª AR, parece evidenciado que esta anuência foi conferida com base em pressupostos de conformidade legal de tais atos, transmitidos pela CEO Eng.ª CW – decorrente do acompanhamento jurídico a que a Administradora cessante e a TAP tinham recorrido – que não terão sido objeto de confirmação por parte dos anteditos ex-membros do Governo." 

"[A] factualidade descrita evidencia a inobservância dos normativos legais aplicáveis às empresas públicas e às sociedades comerciais, bem como das regras estatutárias e regulamentares do Grupo TAP por parte dos administradores envolvidos (CEO Eng.ª CW, PCA Dr. MB e Eng.ª AR), a qual deve ser avaliada e ponderada no âmbito do exercício da função acionista" 

(...)

"C1. O Acordo de cessação de relações contratuais celebrado entre a TAP, S.A. e a Eng.ª AR, envolvendo uma compensação global de 500 000 euros, é nulo exceto nas partes relativas à cessação do contrato individual de trabalho (CIT) e à respetiva compensação (56 500 euros). O Acordo previa igualmente o pagamento da retribuição do mês de fevereiro de 2022 (17 500 euros) que se considera devido. 

C2. Com efeito, o EGP não prevê a existência da figura formalmente utilizada para a cessação de funções da Administradora, ou seja, a “renúncia por acordo”, sendo que a renúncia constante do EGP não confere direito a qualquer compensação financeira, pelo que o valor auferido encontra-se desprovido de fundamento legal (vd. artigo 27.º). 

C3. Mesmo no caso de configuração da cessação de funções como um ato de demissão por mera conveniência, tal ato teria sido praticado por entidade incompetente, na medida em que este careceria de deliberação acionista, em AG ou através de DUE (vd. n.º 2 do artigo 37.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 38.º do RJSPE e n.º 2 do artigo 26.º do EGP). 

C4. Neste último cenário, também o negócio jurídico subjacente ao Acordo, incluindo a totalidade dos benefícios elencados no seu Anexo II, dos quais já foram utilizados, pelo menos, o correspondente a 6 610,26 euros, não tem fundamento legal, na medida em que não observa o requisito temporal de 12 meses de exercício de funções no respetivo mandato, nem a forma de cálculo da indemnização (vd. n.º 3 do artigo 26.º do EGP)." 

 

As partes transcritas, cujos negritos são da responsabilidade do autor deste texto, dizem respeito ao Relatório n.º 24/2023, elaborado no âmbito do Processo n.º 2023/324/M6/36, pela Autoridade de Auditoria da Inspe[c]ção-Geral de Finanças.

Muito do que ali vem já era do conhecimento público, e nalguns casos decorria das declarações conhecidas de alguns dos protagonistas. No entanto, não há nada como ler um documento devidamente estruturado contendo os factos essenciais e as necessárias referências e transcrições dos normativos aplicáveis.

As conclusões acabam por dar razão àquele que era o sentimento público de muitos cidadãos relativamente à forma como assuntos deste tipo  são tratados ao mais alto nível pelos responsáveis políticos e empresariais.

O relatório que agora conhecemos é todo ele um espelho da cultura política e empresarial instalada há várias décadas em Portugal, e não apenas na TAP e no universo das empresas públicas e/ou participadas com capitais públicos.

Uma cultura nacional de informalidade, "agilização", "alavancagem" e "facilitanço", que impregna todo o tecido social, dos mais novos aos mais velhos, que é uma variante da cultura do "golpe e do gamanço generalizado", do desprezo pela norma e pelo estrito cumprimento de regras e procedimentos, devidamente atamancado com a participação de "mercenários" pagos a peso de ouro que tentam albardar os burros de acordo com as exigências dos clientes, fazendo o pino jurídico para acomodarem as pretensões destes, sempre na expectativa de que fechados os acordos ("negociatas") nunca mais se fala no assunto, porque neste país há muito que nada nem ninguém é normalmente escrutinado em devido tempo, todos se calam para poderem comer, as "coisas têm de andar para a frente" e só os tansos é que não tiram partido das falhas do sistema.

É claro que a demissão do Presidente da Comissão Executiva e da CEO da TAP, tal como as anteriores demissões do fedayin da JS que exercia funções de ministro e dos seus subalternos, não resolvem o problema, nem limpam a folha dos restantes, incluindo de todos aqueles que ao longo de quase cinquenta anos de democracia contribuíram para este estado de coisas. De ex-primeiros-ministros e presidentes da república a líderes partidários, deputados, advogados e multinacionais da advocacia, banqueiros e empresários do regime, não há quem não tenha contribuído para este caldo que tem servido para a transformação do país numa espécie de choldra, para que alguns enriqueçam e todos empobreçam, onde cabe sempre mais um, e cujas verdades só são conhecidas quando a escandaleira rebenta e se puxa a batina ao padre.

O espectáculo de ter a CEO da TAP, uma empresa pública, falante de francês, a responder em inglês numa comissão da Assembleia da República cujos deputados se exprimem em português, é só por si revelador do surrealismo inerente a tudo isto, que depois da prestação de informações falsas à CMVM, com uma renúncia que afinal nunca foi, se completa agora com o conhecimento do relatório acima citado e de todos os atropelos cometidos com a devida anuência das eminências do regime. 

Sem prejuízo dos desenvolvimentos que esta novela terá proximamente, se há algum coisa de útil a retirar do que aconteceu é que enquanto imperar esta mentalidade, dentro das instituições, dos partidos e das empresas, em todos e em cada um de nós, será muito difícil mudar o país, reformá-lo e racionalizá-lo, tornando-o finalmente moderno, rigoroso, saudável e livre de eventuais "esquemas" e emplastros.

Ah!, e também que a TAP já devia estar fechada há muito tempo, digo eu, embora quanto a isto a culpa não seja seguramente dos seus pilotos, tripulações de cabine, do pessoal de manutenção e da maioria de todos os outros que ao longo de uma vida garantiram, e garantem, a segurança dos seus passageiros e se esforçam por prestar um bom serviço a quem servem: o empregador e os seus utentes.

Se querem uma transportadora aérea de bandeira, então o melhor será criar uma nova, sem vícios. Uma que funcione. Suíços e belgas encerraram a Swissair e a Sabena, não constando que os parentes lhes tenham caído na lama, ou que sejam piores do que nós.