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Delito de Opinião

Notas de viagem

José Meireles Graça, 02.01.24

Há uns três anos lavrava a histeria pandémica, toda a gente circulava, se tivesse de o fazer, mascarada e, tolhidos de medo, cidadãos ordeiros acoitavam-se em casa enquanto os recalcitrantes eram expulsos das ruas pelas polícias se não se fizessem acompanhar de um cão. Isto enquanto zelosos presidentes de câmara, ou governos regionais, se autoatribuíam poderes que nenhuma lei lhes conferia (e, se conferisse, seriam leis iníquas) e nulidades médicas preopinavam nas tevês, de olhos arregalados, juntamente com magistrados da opinião a cavalgarem a onda, prometendo o fim do mundo se não se lhes seguissem os conselhos. Todos hoje se felicitam porque a doença seguiu o seu curso e passou à banalidade, e não poucos gostariam de reeditar a loucura a propósito das novas estirpes de gripe. Disto me lembrei hoje num restaurante onde um cliente escondia a natural fealdade das feições por trás do antigo farrapo, que todavia retirou para se atochar de grelhados, dado que não os poderia ingurgitar por uma palhinha.

O estabelecimento, em frente ao mar, escolhido por acaso, apresentava uma lista ominosa: imensa, cheia do que me pareceu cozinha criativa italianizada – comecei a preparar-me para um desastre. Que nada, tinha umas extraordinárias pastas para barrar (com base em beterrava uma e coentros e salsa a outra, ambas sabiamente misturadas com malaguetas e outros ingredientes) num pão excelente, e as ameijoas à Bulhão Pato, que escolhi, estavam perfeitas, incluindo o molho no qual afoguei o mesmo pão; e a minha companhia optou por um esparguete com camarões que parecia, e estava, muitíssimo bom.

Sucedeu na Ericeira, onde me calhou ir almoçar de regresso de uma estadia de 4 dias em Lisboa. A vila é muitíssimo bonita, está razoavelmente conservada, as praias são um encanto mas aquilo deve ser, no Verão, um inferno, porque não havia onde parar fora dos parques pagos.

Gostei da terra, e teria gostado do mesmo modo se tivesse tropeçado no senhor engenheiro, homiziado naquelas paragens.

Elogios, porém, não são verdadeiramente a minha praia, é o caso de dizer, de modo que se não tivesse encontrado motivo para embirrações teria de fazer alguma introspecção, não fosse dar-se o caso de estar a mudar de feitio.

Nos dois parques de estacionamento em que estive tropecei no mesmo percalço: a cancela não levantava para sair. No primeiro mandavam meter o bilhete (que a máquina de pagamento, aliás, não havia emitido, pelo que admiti que fosse o mesmo da entrada) na ranhura, que porém inexistia ou estava em lugar ignoto, mas não ali; e no segundo tratava-se de encostar o bilhete para leitura da imagem, mas nicles. O responsável abriu sem mais a cancela num caso mas, no outro, o empregado berrou do cacifo umas ininteligibilidades e, como percebesse que o forasteiro não deslaçava o imbróglio, abeirou-se de má catadura para informar que o que estava a pôr na janelinha era o recibo (que não havia pedido), o que devia era usar o bilhete de entrada, esclarecendo do mesmo passo que “era assim em toda a parte”. Signifiquei ao pobre homem algumas franquezas nortenhas que, por respeito aos costumes e a algum leitor mais sensível, não transcrevo.

Só isto, que é nada? Bem, agora tratava-se, bem almoçado, de regressar. Mas placas a indicar a direcção do Porto (ou Leiria, ou Aveiro) nem vê-las – só Lisboa.

Nada de grave, precisamente o mesmo já me havia sucedido há uns anos em Loures (Lôres, no parlance local) e descobri na ocasião que os indígenas, quando dali saem, vão unicamente para Lisboa; e os forasteiros, se vieram de lá de cima, presume-se que também saberão regressar.

Na ocasião enviei um e-mail de protesto à edilidade, que na altura era comunista. Não esperava resposta mas ela veio, e bem simpática: iam analisar o assunto e pérépépé. Não devem ter feito nada, claro, mas só o responderem já os constituiu credores da minha estima.

Desta vez não mando e-mail nenhum. Nem me apetece nem a impressão que levo da Ericeira é negativa: se tivesse de ter uma casa de inverno junto ao mar seria um bom lugar.