Cadernos de um enviado especial ao purgatório (60)
Embora seja uma boa metáfora da vida, o futebol é desprezado por alguns intelectuais. No fundo, este jogo mostra que não somos todos idênticos e que a luta pelo triunfo individual tem aspectos mais complexos do que parece. Os escritores e os filósofos deviam prestar mais atenção e os jornalistas especializados deviam perder o ar de sumo-sacerdotes discutindo as inescrutáveis altitudes celestes. Na rua, toda a gente comenta e sabe muito sobre futebol, pois toda a gente tem uma perspectiva sobre a existência humana.
Há um treinador que costuma ser ridicularizado pelos intelectuais, mas que recentemente disse mais sobre a vida do que alguns compêndios. Questionado pela milésima vez sobre uma minúcia táctica que ninguém recorda, Jorge Jesus perdeu a paciência e explicou que isso não interessava para nada, o importante era a forma como os jogadores reagiam “aos momentos do jogo”. A declaração motivou outros treinadores a dizerem mais ou menos o mesmo: o sistema táctico não é o mais importante, o que interessa é a “dinâmica” da equipa e a força de vontade dos jogadores.
Tomei isto como uma boa lição em geral. É também uma boa lição para a literatura. O que interessa não é o sistema ou a forma prevista na teoria, mas a dinâmica da prosa; o que interessa é a maneira como as pessoas reagem aos “momentos da vida” e como superam as crises, que são sempre mais ou menos idênticas. Recordamos segmentos limitados de um jogo, como esquecemos quase tudo o que vivemos e não podemos lembrar tudo o que lemos num livro. A maior fatia do tempo que passamos na vida serve para nos levar de um momento memorável para outro momento assim. Isso funciona da mesma forma no jogo de futebol e no romance de ficção: nem tudo será lembrado e o que verdadeiramente conta são os momentos (aquilo a que alguns chamam a dinâmica) contendo drama e emoção, algo de diferente, mas sobretudo intenso, que nos fique gravado na memória, não exactamente como aconteceu, mas ligeiramente transformado em mito.