Dos outros países não sei, mas em Portugal as rolhas do regime são uma instituição. Já eram no tempo da Velha Senhora, mas menos e mais modestas, e são legião hoje.
Que são rolhas do regime? São aqueles indivíduos que gravitam à volta do Poder, do que está e do que pode vir a estar, passaram por lugares do aparelho de Estado político, incluindo a Europa desde que se descobriu que era um excelente viveiro de contactos úteis e com um passadio muito melhor do que o nacional (o cidadão quer estupidamente pagar mal aos seus políticos nacionais mas paga principescamente aos europeus por não saber quanto lhe custa) e dele saíram voluntariamente para aterrar em lugares invariavelmente bem pagos de empresas públicas, grandes empresas privadas, bancos, institutos ou outras instituições.
Há dois sítios em que nunca estão: um é a política activa – porque isso os obrigaria a definir claramente correligionários e adversários, e defender lugares com a faca nos dentes; e o outro são as pequenas empresas privadas, salvo as inventadas para servir encomendas do Estado, porque a taxa de mortalidade é grande, a competição assanhada, o Fisco opressivo e o espaço para tretas diminuto.
E costumam falar sobre o quê? Profundidades: a Europa, a Educação, os desígnios, a modernidade, o futuro, as desigualdades, os desafios tecnológicos, a pobreza – ai! que estes grandes temas, se os ouvirmos, ficarão para nós de luminosa transparência.
Carlos Moedas é um destes. E, fatalmente, disse muitas coisas a Maria João Avillez, uma especialista em entrevistas hagiográficas. A própria, ciente de que se eleva na mesma medida em que iça os convidados, nunca poupa nos elogios. E, com Moedas, esmerou-se:
“Carlos Moedas é uma mais valia. Provou-o em Portugal no governo da coligação PSD/CDS; tinha-o demonstrado, fora de portas, muito novo, na banca internacional; voltou a ter-se a certeza disso em Bruxelas, onde durante cinco anos fez o seu melhor. Estabelecendo pontes inovadoras entre o hoje e o amanhã, reteve-se o seu apport na energia e na criatividade usadas como Comissário para a Inovação e Ciência junto da EU”.
Ahem, estabelecer pontes inovadoras entre o hoje e o amanhã parece realmente uma obra impressionante de construção civil retórica, mas talvez não fosse pior inteirar as pessoas do que realmente quer dizer o “apport” que terá trazido à energia, a não ser que o dedo engenheiral e subsidiesco do entrevistado tenha muito a ver com os corrupios no alto dos montes. Quanto à passagem pelo governo PàF não esteve mal, de facto: os camaleões têm, precisamente, a admirável capacidade de se fundirem com o ambiente.
Que diz então o miraculado? Muitas coisas, quase todas vagas, quase todas genéricas, quase todas vácuas – não vale a pena respigar a enxurrada de paleio, salvo nos extractos a seguir (haveria outros, mas o texto ficava demasiado extenso).
“Para isso [para a passagem do invisível para o visível] precisamos de duas grandes mudanças: uma institucional, outra de mentalidades. A mudança institucional é aceitar que é impossível estarmos todos de acordo e que a regra da unanimidade não funciona na maioria dos casos. Há que passar à regra da maioria em certas áreas da fiscalidade e dos assuntos externos. Se isso não mudar, a Europa não se afirmará. Foi isso que falhou na crise dos refugiados. Depois, é indispensável uma mudança de mentalidade: a Europa tem que ser mais assertiva na sua comunicação, sem medo de expor as nossas posições. Temos que comunicar como Europa e não apenas como países”.
Traduzindo: Há que eliminar a competição fiscal, nivelando todos os impostos por cima e reforçando as contribuições para o embrião do supergoverno europeu; e há que anular as diferenças entre Estados e os seus interesses permanentes, a benefício do eixo franco-alemão.
“Tenho muito orgulho em dizer que, na minha área, marquei a agenda da Inovação e Ciência na Europa. Ninguém falava destes temas há cinco anos. Nem nenhum chefe de Estado ou de governo abordava estes temas nos seus discursos políticos. Era uma área vista como um parente pobre das políticas europeias. Hoje não é assim, estes temas estão já ancorados na agenda dos líderes europeus e mundiais”.
Marcou sim senhor. E hoje ninguém em seu juízo, na Europa, faz investigação, inova ou cria sem apoios públicos. Admite-se mesmo a hipótese de as redes sociais do futuro, os telemóveis, o GPS, e a generalidade das inovações tecnológicas, deixarem de vir dos EUA, ou da Ásia, e mudarem-se para a Europa, desde que evidentemente os sucessores de Moedas lhe honrem a herança. No futuro. Porque, no passado, e este abrange o tempo em que moedas foi Comissário, isto é, desde fins de 2014, o que tem a dizer um senhor professor da London School of Economics, sobre a EU, avaliada pela sua quota no produto mundial, ou no volume do comércio, é o seguinte:
“There are various metrics for this. The size of the EU market is clearly one factor, at 16.9 percent (or 14.54 when the UK leaves) of world GDP, the EU weighs in as one of the heavyweights (China 17.1 percent, USA 15.8 percent), but its share is declining. In terms of the share of world trade in goods the EU accounts for 15 percent (excluding intra-EU trade) of world trade (15.7 percent of exports and 2016 and 14.8 percent of imports), but here the EU share has declined more rapidly over the past decade, as has that of the USA. This is an indicator of the shift in the focus of world trade from the Atlantic to Asia Pacific”.
Cabe dizer portanto que a EU tem sido o farol da inovação e ciência – mas o resto do mundo não se tem apercebido, senão a importância da UE pararia de decrescer.
A entrevista abunda em verdadeiros achados de retórica, língua de pau, gabarolice e disparates. Um último:
“Defendo um imposto digital europeu, o que não só seria a forma de impor maior justiça fiscal a empresas americanas que não pagam impostos em território europeu, como uma fonte de receita para o orçamento europeu. Só que para isso é necessária aquela união de que falei há pouco. Precisamos de uma unanimidade sobre este tema, o que é difícil, mas estou convencido de que lá chegaremos”.
Nunca nenhum imposto novo, ou aumento dos existentes, deixou de ser apresentado como um grande progresso em nome de um bem maior; e a engenharia de impostos sempre apresentou os prejudicados como poucos e os beneficiados como muitos, o que pode até no curto prazo ser verdade. Neste caso, o negócio é ainda mais sumarento: beneficiamos todos e os americanos pagam.
Claro que não pagam: ou os clientes europeus deixam de ter acesso ao que agora têm, ou pagarão por isso de uma forma ou de outra.
Enfim, Moedas é ainda muito novo e logo que acabe de ornar a Gulbenkian com as suas luzes pode bem ser que regresse à vida pública, através do seu partido de sempre. É de esperar que este tenha entretanto resolvido os seus problemas, de uma maneira ou de outra. Qualquer uma serve, aliás, porque Passos Coelho “foi o melhor primeiro-ministro desde o 25 de Abril” enquanto “há que reconhecer que o papel de Rui Rio também foi difícil. Estar na oposição em Portugal é dificílimo”.