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Delito de Opinião

«Sem ilusões não há frustrações»

Pedro Correia, 03.10.23

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Não foi bem uma entrevista digna desse nome: foi mais um ameno bate-papo que serviu para preencher grande parte do serão de ontem da TVI/CNN Portugal. Fazendo lembrar tempos antigos, quando apenas existia um canal de televisão em Portugal e o poder falava pelos cotovelos, sem cronómetro a atrapalhar.

O presidente do Conselho de Ministros perorou até se cansar (e fatigar quem teve a pachorra de o acompanhar até ao fim). Nos dois canais complementares, irmãos siameses. Trinta e cinco minutos em sinal aberto, no principal telediário da TVI - entre as 20.55 e as 21.30. Depois, uma hora e sete minutos na CNNP - das 21.44 às 22.52. Preenchendo quase duas horas de tempo de antena. Sem contraditório. Sem ouvir uma só pergunta verdadeiramente incómoda. Num auditório do ISEG - agora com nome "amaricano" - convenientemente polvilhado de "cidadãos comuns" previamente inscritos e recrutados por intermédio da empresa de sondagens Intercampus(!). 

Novidade? Nenhuma.

Propaganda? O tempo todo: nem um minuto desperdiçado. 

 

Assisti por dever de ofício à prelecção integral de Costa, da qual retive três frases que transcrevo aqui:

«O salário mínimo subiu 50% nos últimos oito anos.»

«O salário médio hoje em Portugal são 1500 euros. É mais 31% do que era há poucos anos.»

«Hoje, com muitos dos salários que são pagos, as pessoas não estão disponíveis para trabalhar.»

A terceira frase, vale a pena anotar, anula as outras duas. Quase parecia proferida por alguém da oposição. Mas o líder socialista, instalado na sua maioria absoluta, quer lá saber. Repete promessas feitas noutros anos, sobre os mais diversos assuntos (habitação para todos, novos hospitais, ferrovia, aeroporto de Lisboa), com a mesma desfaçatez e a mesma certeza antecipada de que não serão cumpridas.

Quem vier depois que descalce a bota.

 

«Comigo não há ilusões, portanto não há frustrações.» Esta foi uma das raras afirmações com interesse que Costa proferiu na sua homilia televisiva. 

Falava supostamente para o País, mas mais parecia falar para ele próprio. Quase um lema de governação aqui enunciado.

Na torrente de blablablablá propagandístico, perante uma audiência benigna e dois jornalistas demasiado complacentes, quase só isto soou a verdade.

Momento Marcelo

Sérgio de Almeida Correia, 15.10.22

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Os helicópteros Kamov são há muito uma fonte de preocupações, de problemas e de despesas para os contribuintes portugueses. Que me lembre, desde 2006 que os ditos são notícia. Da falta de licenças à falta de peças, da ausência de manutenção à dificuldade de encontrar mecânicos e à falta de certificação, tem sido todo um folhetim. Os partidos da oposição, designadamente o PSD, têm questionado o Governo sobre os helicópteros, apesar de um deles estar inoperacional desde 2012, quando estava no poder com o CDS-PP.

Eu confesso que de cada vez que ouvia falar neles era porque havia problemas. Mas eis que surge a "oportunidade" de nos "livrarmos" dos aparelhos e dar-lhes alguma utilidade, colocando-os ao serviço das forças ucranianas que combatem o invasor russo.

A ministra da Defesa esclareceu que o Estado português, que os tem inoperacionais e não tem meios para os colocar a voar, que é para o que servem, iria doá-los à Ucrânia. Já o tinha dito em Bruxelas, reafirmou-o na terça-feira passada na comissão parlamentar de Defesa. A imprensa noticiou-o

Hoje, ao ler no Público as declarações de João Almeida, um antigo secretário de Estado da Administração Interna, fiquei sem perceber se ele desejava que os helicópteros cá continuassem. Das suas palavras depreendo que ficou zangado, no mínimo agastado, e que não queria que as aeronaves tivessem sido ofertadas à Ucrânia.

Desconheço quais sejam as qualificações de João Almeida, ou se conversou com algum major-general comentador da CNN, para dizer que mesmo que as aeronaves estivessem aptas para operar "não são adequadas às necessidades existentes"; que "não se percebe que utilidade poderão ter num cenário de guerra como o que existe na Ucrânia", e que "só se pode considerar o negócio como ruinoso". De igual modo, também não sei se da Ucrânia lhe disseram não haver peças nem mecânicos para aqueles helicópteros, pelo que fiquei com muitas dúvidas, e ainda mais questões, depois de ler a sua entrevista. 

Que o antigo governante do CDS-PP sabe de quase tudo, como aliás quase todos os antigos governantes, é normal. Os portugueses já tinham notícia e disso não tenho dúvidas.

Das questões da energia às finanças públicas, do ambiente ao poder local, sem esquecer o ordenamento do território, a educação, a ciência, a cultura, o trabalho, os assuntos sociais, a ética, a banca, a juventude, e, imagine-se, até o futebol e a arbitragem, que é coisa de quase ninguém fala em Portugal, sobre tudo isso João Almeida tem perorado. Sempre com o mesmo à-vontade, note-se.

Mas posto que na entrevista não esclareceu, pergunto se João Almeida preferia que os helicópteros continuassem em Portugal? Será que está convencido de que ninguém do governo português perguntou aos ucranianos se aceitariam os helicópteros? E que da Ucrânia disseram que não os queriam, por estarem obsoletos, e ainda assim Portugal decidiu enviá-los? Queria João Almeida que continuássemos a suportar os custos da sua guarda e manutenção? Vendê-los num leilão? Colocá-los em exposição no Estádio do Restelo?

Não sei qual destas últimas alternativas seria a mais conveniente para o Estado português, embora tivesse lido que o Estado espanhol ainda agora ofereceu à Ucrânia quatro sistemas de defesa anti-aérea de um tempo em que João Almeida ainda não era nascido. Detalhes. Que as forças russas utilizam helicópteros desse fabricante também é verdade, presumindo, que do assunto nada percebo, que sejam mais recentes e que os ucranianos terão meios para os fazerem voltar aos céus. 

No lugar do entrevistado, tendo sido membro de um governo da República (não conto o segundo porque só esteve onze dias em funções por circunstâncias supervenientes, não previstas nem previsíveis) que não resolveu os problemas dos Kamov, usaria de alguma contenção ao falar, já nem digo das outras coisas em que é uma sumidade, mas, pelo menos, de helicópteros. 

Espero que ele não me leve a mal; só de que uma pessoa com o seu currículo, que ainda hoje não sabe como perdeu as eleições no CDS-PP para o tal "Chicão", ninguém espera que venha nesta altura falar de helicópteros, de "cromos para a troca" do Mundial de Futebol ou de pistas de comboios a vapor.

Não lhe fica bem — nem a ele nem a ninguém — seguir os exemplos que nos chegam do Palácio de Belém de cada vez que ali se tem notícia de que vai um microfone a descer, sabe-se lá como, a Calçada da Ajuda. Chega de alvoroço.

No país do «eu acho que»

Pedro Correia, 15.07.22

Vítor Gonçalves é um dos melhores entrevistadores da televisão portuguesa. Sem jamais armar em vedeta, sem nunca ocupar o centro das atenções, demonstrando que sabe ouvir, fazendo as perguntas que se impõem sem ser agressivo nem adoptar um tom inquisitorial que outros adoram usar defronte das câmaras. 

Vi-o há pouco na Grande Entrevista da RTP que tem a sua assinatura. Com a qualidade e a sobriedade de sempre. Questionando o presidente do Conselho Económico e Social, Francisco Assis, político de quem sempre tive boa impressão. 

«Uma das minhas preocupações é a falta de rigor na discussão [em Portugal]. Há muito clichê, há muita frase-feita, há muito preconceito, há tantas coisas que se dizem sem nenhum fundamento empírico nem resultam de nenhuma reflexão teórica séria», disse Assis nesta entrevista, reclamando «rigor na discussão dos temas que se colocam na sociedade portuguesa».

Certíssimo: o achismo é uma praga nacional. A propósito: já repararam quantas frases ouvimos e lemos, a toda a hora, iniciadas pela famigerada expressão «eu acho que»?

Medíocre

Sérgio de Almeida Correia, 15.04.21

Tudo se resume a uma única palavra: medíocre.

Medíocre a governar, medíocre a liderar o partido, medíocre a mentir, medíocre a defender-se.

Mas talvez não tão medíocre como os que o guindaram à posição que atingiu, o seguiram acefalamente dentro do partido, ainda lá estão como se nada tivesse sido com eles, e o protegeram até ao fim.

«A realidade vence sempre»

Excelente entrevista de Sérgio Sousa Pinto

Pedro Correia, 30.03.21

A entrevista já foi dada à estampa há uns dias, no Público, mas venho muito a tempo de chamar a atenção para ela. Uma longa entrevista a Sérgio Sousa Pinto - deputado, presidente da comissão parlamentar dos Negócios Estrangeiros, membro da Comissão Nacional do PS e antigo líder da Juventude Socialista - conduzida por Maria João Avillez.

Vale a pena ler com atenção.

 

Destaco três excertos, com a devida vénia:

«Ou mudamos ou acabaremos numa Suécia fiscal implantada numa Albânia económica. A classe média já exporta os filhos licenciados. Um dia esses filhos enviarão remessas para financiar a velhice dos pais. O colapso da classe média significará a inviabilidade do País e do nosso regime democrático. Chega de propaganda, chega de atirar palavras contra a realidade. A realidade vence sempre.»

«Esta subversão das coisas prende-se também com o modo como se geram hoje os partidos. Há uma preferência pela subordinação e há uma cultura intimidatória: tudo pelo chefe, nada contra o chefe. É por isso que vamos aos congressos partidários e aquilo é um enfado insuportável... Como em nome da democracia se inventou a eleição directa dos líderes, o resto dos trabalhos é um cerimonial sem sombra de interesse. Bem sabemos que as mudanças para pior são sempre ditadas pelas melhores razões: mais democracia, mais transparência, mais tudo, enquanto construímos uma gaiola de bondades que vai arruinar o regime.»

«Não é possível funcionar assim: tanto poder ao líder, tanta insignificância aos indivíduos. O PS e o PSD serão em breve incapazes de gerar personalidades, transformados como estão em máquinas trituradoras. Não geram personalidades e a democracia é um regime de personalidades, é um regime de vozes. Hoje só há coros.»

Elogio de Pérez-Reverte

Pedro Correia, 01.02.21

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Arturo Pérez-Reverte é um dos meus escritores espanhóis preferidos, entre os contemporâneos - a par de Javier Marías e Antonio Muñoz Molina. Autor prolífico, com uma longa tarimba de repórter de guerra, não padece de angústias existenciais nem enfrenta o dilema da ausência de ideias ao ser colocado perante a folha em branco: boas ideias nunca lhe faltam. Por isso ele é também um dos meus cronistas de eleição. Desde logo por se demarcar em absoluto da cartilha politicamente correcta, por negar vénias e salamaleques às bempensâncias de aluguer, por escrever sem reticências aquilo que realmente pensa. E por nunca mandar recados por terceiros nem se refugiar em entrelinhas. Ao contrários de tantos outros, também por cá.

Não esconde a nostalgia de um tempo em que ainda era possível encontrar homens verdadeiramente livres - gente que não se circunscrevia às engrenagens da trituração & consumo nem se deixava manipular por algoritmos. O que não admira: se existe hoje alguém a quem possamos considerar um homem livre, é precisamente o autor d' A Tábua de Flandres. Que no próximo mês terá mais um livro seu lançado em português: o romance Cães Maus Não Dançam, publicado originalmente em 2018.

Acabo de ler uma excelente entrevista dele à revista do Expresso, muito bem conduzida pela jornalista Luciana Leiderfarb. Merece destaque, merece elogio. E merece ser citada. É o que farei nos parágrafos seguintes: eis Pérez Reverte em discurso directo. Com a devida vénia à autora da entrevista e àquele semanário que saía ao sábado mas passou a sair à sexta-feira.

 

«O ser humano é a soma daquilo que viveu e do que leu.»

«É impossível digerir bem o resultado da vida se não houver livros que o permitam.»

«A vida como repórter tirou-me ou diminuiu muitas palavras que antes eram importantes, como pátria, religião, Deus. Deixou-me poucas palavras, e entre elas está dignidade, respeito, honra, lealdade. Os cães são isso tudo, sobretudo leais. E a maior virtude do ser humano é a lealdade.»

«Numa luta entre cães, quando um deles se rende, oferece o pescoço ao vencedor e este deixa-o viver. Se o venceu, não o mata. O ser humano é o único que mata aquele que se rendeu. Isso vi-o com os meus olhos, ninguém me contou.»

«Houve um tempo em que havia homens livres. Havia desertos, estepes, bosques, campos, lugares onde o ser humano podia ser dono de si mesmo. Hoje, a televisão por satélite, o telemóvel, as telecomunicações, a internet, mataram o homem livre.»

«A tecnologia cria uma armadilha. Não mata o homem, mas encerra-o. Mete-o num campo de concentração tecnológico levando-o a acreditar que é livre quando não é. O homem perdeu a liberdade no momento em que o mundo se converteu num lugar controlável tecnologicamente.»

«O cão tem sentimentos extremamente refinados, elevados. É sensível ao amor, ao calor, à companhia, à bondade, à maldade. Não há cães maus, há homens maus.»

«O homem peca contra a natureza. Estamos continuamente a cometer pecados contra ela. Se existisse uma moral cósmica, estaríamos em pecado mortal, porque usamos a natureza e a abandonamos. Usamo-la como usamos os cães. A Humanidade vive em pecado mortal há muitos séculos.»

«O mundo é um lugar perigoso e hostil, onde o mal é frequente, onde a ambição, a luxúria e a crueldade são constantes e por vezes não são só características humanas, mas regras cósmicas - porque também o cosmos é cruel, aí estão os tsunâmis, os terramotos, as inundações.»

«Há uma frase que uso há muito tempo: se juntar um malvado com mil estúpidos, terá mil e um malvados. O mal é contagioso, mas, se não houvesse tantos estúpidos, os malvados não teriam tanto poder.»

«Hoje em dia todo o escritor, desde o maior génio da literatura ao medíocre junta-letras, tem sobre si a guilhotina terrível da estupidez.»

«Se tivesse que dividir o mundo em dois grandes núcleos de pessoas, não seria entre bons e maus. Seria entre os que sabem que vão morrer e os que não o sabem. As pessoas que sabem que vão morrer são melhores - são realmente humanas.»

«Vivi uma vida inteira a acumular possíveis "últimas vezes". Isso deu-me uma forma de olhar o mundo que não pode ser igual à de uma pessoa que não teve esse tipo de experiência. Não é uma queixa: gosto dessa espécie de melancolia, de me sentir incerto. Gosto de ter 70 anos (vou fazer este ano) e continuar a acreditar que no fim da madrugada cinzenta pode não haver nada, pode não haver outra noite. Desse modo vivo organizado, tenho tudo preparado.»

«A escrever ainda posso ser jovem, seduzir mulheres, lutar contra inimigos, bater-me em duelo, viver guerras. Acordo com a ilusão de ser capaz de contar bem aquilo que estou a contar. É um motivo excelente para viver e para envelhecer com dignidade.»

Uma desgraça

Pedro Correia, 31.07.20

 

- Durante três meses, é ou não verdade que houve pessoas em situação absolutamente desesperada, com uma quantidade de dinheiro por mês que é insuficiente, para dizer o mínimo?

- Houve muitas pessoas...

- Sente que falhou a essas pessoas?

- Ó... ó... vamos lá ver. O Estado, durante esse tempo, aprovou medidas muito importantes de apoio social...

- Claro. Como por exemplo o lay-off simplificado para as empresas...

- O lay-off simplificado...

- Sabe quanto tempo é que essa medida demorou a ser aprovada?

- Mas... oiça... vamos ver...

- Senhora ministra: sabe quanto tempo?

- Eu sei quanto tempo.

- Quanto?

- Eu sei quanto tempo.

- Quanto?

- Mas há uma coisa... há uma coisa que é preciso...

- Quanto tempo, senhora ministra?

- Há uma coisa que é preciso... há uma coisa que é preciso... 

- Vou replicar a pergunta: sabe quanto tempo é que o lay-off simplificado demorou a ser aprovado?

- Sei. E há uma coisa que é preciso aqui realçar. É preciso realçar o seguinte: todos os dados...

- Eu vou deixá-la realçar o que entender, mas gostaria de insistir nesta questão. Porque aqui a questão do tempo de reacção é muito importante...

- Claro que é.

- ... e se o lay-off simplificado demorou uma semana a ser aprovado, o que permitiu ajudar milhares de famílias, a minha pergunta para a senhora ministra da Cultura é porque é que o seu ministério demorou três meses.

- Mas o meu ministério... vamos lá a ver... há aqui um ponto que é muito importante realçar: é que Portugal é um estado social, tem um sistema de segurança social de natureza universal, não há nenhuma razão... não há nenhuma razão... não há nenhuma razão para que as pessoas... todas as pessoas, inclusive as que trabalham na agricultura, não estejam abrangidas pelo sistema de apoio social universal. 

 

Excerto de uma entrevista à ministra da Cultura, Graça Fonseca, conduzida pelo jornalista Bento Rodrigues, há pouco, no Primeiro Jornal da SIC

Um sábio

Pedro Correia, 31.07.20

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Foto: Bruno Gonçalves / Sol

 

Uma entrevista pode ser um grande momento de televisão. Aconteceu na semana passada, no primeiro canal da RTP, no programa Grande Entrevista. António Barreto - um dos genuínos senadores portugueses - pensou em voz alta, durante quase uma hora, sobre algumas das mais relevantes questões nacionais. Com a eloquência habitual e uma notável capacidade de articular ideias. Sem enrolar palavras, sem fazer vénias, sem receio de dizer aquilo que realmente pensa.

Enfim, um sábio. Em diálogo com o jornalista Vítor Gonçalves, hoje um dos melhores entrevistadores da televisão portuguesa. Alguém que está ali realmente para ouvir os entrevistados e não para se ouvir a si próprio - o que vai sendo cada vez mais raro.

Gostei tanto que partilho convosco alguns excertos desta Grande Entrevista. Recomendando, de qualquer modo, que escutem a versão integral. Vale mesmo a pena. Por ser verdadeiro serviço público.

 

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«A dimensão [deste pacote financeiro de emergência da UE para enfrentar a crise pandémica] é muito superior à do Plano Marshall americano, depois da guerra, para toda a Europa. Haver um plano de recuperação económica que ultrapassa largamente a dimensão financeira do Plano Marshall é impressionante.»

 

«Lamento imenso ouvir pessoas dizer que querem "aproveitar a crise" da doença. Para acabar com o capitalismo, para criar Deus sabe o quê, para resolver os problemas... As crises não se aproveitam: o melhor é tratar delas. Ultrapassar a crise para voltar a adquirir meios para encontrar as soluções.»

 

«Os países do Norte [da Europa] têm razão quando exigem fiscalização e supervisão [das verbas]. Primeiro, e sobretudo, porque é dinheiro deles. Depois porque é dinheiro europeu, de nós todos. E em terceiro lugar porque emprestar ou dar sem saber para que serve é quase criminoso. Dizer isto em Portugal passa quase por traição à pátria, o que não me incomoda.»

 

«Parece uma especialidade nossa: nós perdemos muito tempo com a guerra colonial, com a revolução, com a nacionalização da economia, com a reprivatização da economia. Há cerca de 20 anos que o crescimento português é praticamente nulo.»

 

«Quase todos os países da Europa Central e Oriental que entraram depois de nós [na UE] souberam fazer mais rapidamente as reformas, souberam [criar] economias mais competitivas, souberam encontrar soluções adequadas e não ficaram eufóricos com a adesão. Portugal perdeu muito tempo, muito tempo, muito tempo.»

 

«Precisamos de quantidades enormes de capital de investimento, sobretudo privado. E de investimento produtivo novo, não é chegar cá e comprar o que já existe. É preciso fazer novas empresas, novos produtos, novas indústrias, novos edifícios... Mas precisamos de quantidades colossais. Se só tivermos este balão de oxigénio [da UE], não chega. Daqui a dez anos vamos encontrar a mesma vulnerabilidade, o mesmo tempo perdido.»

 

«[O caso BES] é um dos maiores crimes cometidos na história de Portugal, se tudo aquilo for provado. Crime de roubo, crime de desvio, crime de esbulho do País, das classes sociais que trabalham, esbulho do Estado, utilização intensiva de todos os meios de corrupção, de compra, de venda... Não há na história portuguesa nada que se pareça com isto... Eles contribuíram para dar cabo de Portugal.»

 

«Não devemos esquecer o que se passou nesses dez anos: o ciclo Sócrates mais as crises financeiras, mais a bancarrota (nós ficámos a dias da bancarrota), mais a austeridade, mais toda a questão dos fogos florestais, que parece de somenos mas não é. O BES, por cima disto tudo. E agora a pandemia. Este conjunto de fenómenos em dez anos é destruidor de uma geração, é destruidor do País.»

 

«Era bom conseguirmos castigar quem deve ser castigado. E há muita gente para ser castigada. Se a nossa justiça estiver à altura - e eu não sei se está - era bom castigar para dissuadir e para resolver este problema da corrupção, do nepotismo, do favoritismo e do esbulho dos recursos nacionais.»

 

«O BES foi autor, ou ajudou, ou empurrou, ou acarinhou a destruição do que havia melhor em Portugal do sistema financeiro, do sistema industrial e do tecido empresarial. Nas grandes destruições - estou a pensar na PT, por exemplo - esteve sempre o [Grupo] Espírito Santo.»

 

«Daqui a uns anos será interessante ver quem foi na conversa do Espírito Santo. Quase toda a gente: políticos, partidos, governos, empresários (pequenos, médios, grandes), quase toda a gente...»

 

«O Governo está num momento de ausência de oposição quase total, o que é péssimo. (...) Isto não faz bem nem a Portugal nem ao Governo.»

 

«O primeiro-ministro tem conseguido algumas vitórias importantes. Durar, já é uma vitória política. Tem sabido tratar com as oposições todas, tem sabido tratar com o Presidente da República, tem sabido libertar-se do pior deste Governo, que é a terrível herança Sócrates. Agora não tem nenhuma oposição séria, o que é muito mau.»

 

«Nunca vi um parlamento onde se berrasse tanto como o parlamento português. (...) Dar nobreza ao debate parlamentar era uma obrigação dos nossos políticos.»

 

«Vivi 40 anos em Portugal de concorrência institucional entre o Presidente e o Governo, aquilo que se chama - aflitivamente - o semipresidencialismo. Lembro-me dos problemas gravíssimos que houve entre todos os presidente e quase todos os governos. Estes [Marcelo e Costa] decidiram colaborar e cooperar. Aplaudo, acho bem. O País ganha com isso. Onde começa o problema? Da cooperação e da colaboração, é fácil chegar à cumplicidade. E creio que já lá chegámos. Não gosto da cumplicidade. Quero que o Presidente da República tenha recuo, altura, espaço para poder avisar, advertir, controlar, alertar, fiscalizar.»

Do meu baú (3)

Pedro Correia, 02.07.20

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Sou coleccionador compulsivo das entrevistas de falsos profetas. Sobretudo aqueles que profetizam desgraças e calamidades. Um dos mais simpáticos dentro do género, devo reconhecer, é João Ferreira do Amaral «economista conceituado», como o introduz Clara Ferreira Alves na entrevista (insolitamente apresentada como "almoço") que assinou com ele na revista do Expresso, edição de 4 de Maio de 2013

O título de capa é um daqueles que vendem sempre bem: «Vamos sair do euro.» Assim mesmo, neste tom categórico, sem margem para dúvida.

Como se fosse pouco, lá dentro (página 37) a certeza torna-se ainda mais indubitável: «É claro que vamos sair do euro.»

 

«Num restaurante de Lisboa com vista larga sobre o rio, pediu cabrito assado com batatas. Água. Mais nada. Fala dos assuntos com a voz desapaixonada do técnico e do conhecedor.» Assim alude a ele a jornalista, em prosa quase poética, sem disfarçar o deslumbramento pelo entrevistado: «Lê-lo é um exercício de clareza e de esclarecimento, e tem razão em muitas coisas que aponta. A saída deverá ser controlada para não ser traumática, e será um benefício para a economia. Portugal continuaria na União Europeia e no espaço Schengen. A história já lhe deu razão em quase tudo.»

Caramba, é difícil um simples leitor não se sentir esmagado com tanta sapiência. Tudo isto nos parágrafos de entrada, ainda sem termos acesso ao pensamento do entrevistado. 

 

«Não ponho sequer a alternativa de ficarmos», debita o professor, que trabalhou no Palácio de Belém, entre 1991 e 1996, como consultor de Mário Soares. E nem seria necessário convocar os portugueses para referendar tão relevante opção política. Motivo? «Visto que não entrámos com um, não há razão para precisarmos de um para sair.»

Possíveis consequências, para o País, de uma "saída ordeira" da moeda única? Hipótese desenvolvida num trecho da entrevista: «Seria o cenário argentino. Teríamos dois anos infernais e depois resolvia-se. O pior são os dois anos, do ponto de vista democrático. A violência, a bandidagem...» E noutro trecho: «Vejo imensos [riscos]. Pode correr mal. Pode gerar-se um pânico.»

 

Sete anos depois, ao revisitarmos este ameno bate-papo, ficamos esmagados com tanta acutilância e tanta presciência daquele a quem «a história já deu razão em quase tudo».

Fez bem, de qualquer modo, o Presidente Soares em não ter seguido os conselhos deste seu sábio consultor.

Ofereçam um GPS a Costa

Pedro Correia, 01.07.20

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Alguém lá no palacete de São Bento, onde funciona a residência oficial do primeiro-ministro, devia oferecer um GPS a António Costa.

Veio ele dizer agora, em entrevista ao jornal catalão La Vanguardia, que não haverá qualquer problema com festejos de rua nos jogos da fase final da Liga dos Campeões, que irão disputar-se na capital portuguesa, pois o "dever cívico de recolhimento" imposto a 19 freguesias da Área Metropolitana de Lisboa, no âmbito do estado de calamidade que ainda aqui vigora, não abrange o centro da cidade, onde se situam o estádio José Alvalade e o estádio da Luz.

«Não se trata de Lisboa, mas apenas de alguns bairros pertencentes a municípios vizinhos», declarou Costa nesta entrevista. Dizendo, categórico e taxativo: «Não existe nenhuma relação com o centro da cidade de Lisboa, onde se celebrará [a Liga dos Campeões].»

 

Há aqui uma óbvia fuga à verdade - eufemismo próprio dos editorialistas da imprensa portuguesa como alternativa ao substantivo mentira quando visam governantes.

Costa parece ignorar que Lisboa é um dos concelhos abrangidos pelas mais recentes medidas de confinamento impostas pela necessidade de conter a expansão do Covid-19, estando representada nesta lista nada lisonjeira pela freguesia de Santa Clara, que abrange as antigas freguesias da Ameixoeira e da Charneca do Lumiar. 

 

Vamos lá medir distâncias. Apenas 3,6 km separam a Ameixoeira do Campo Grande, onde irão disputar-se alguns dos jogos. Até dá para ir a pé.

Mesmo várias freguesias de concelhos vizinhos agora abrangidos pelas medidas especiais de contenção estão a curtíssima distância daqueles estádios. Seguem-se alguns exemplos: vai-se de Odivelas a Carnide, onde se disputarão outros desafios, em apenas 2,8 km; o trajecto de Camarate (Loures) ao Campo Grande esgota-se em 5,3 km; basta percorrer 2,4 km para chegar da Venda Nova (Amadora) a Benfica; e vai-se de Moscavide (Loures) ao Campo Grande em escassos 5,7 km.

 

Serve isto para demonstrar que o chefe do Governo, nesta entrevista destinada a conter danos junto dos espanhóis após uma notícia com destaque de primeira página no conceituado El País que aludia a três milhões de lisboetas novamente confinados, respondeu à falsidade com informações inexactas (outro eufemismo). 

Serve também para confirmar que necessita com urgência de um GPS. Um dos seus assessores deveria encarregar-se disso já no próximo dia 17, quando Costa soprar as velas do bolo de aniversário. As melhores prendas são sempre aquelas que se tornam úteis.

Eanes exemplar

Pedro Correia, 02.04.20

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Como o Sérgio já assinalou, Ramalho Eanes concedeu ontem uma notável entrevista à RTP. Entrevista presencial, desde logo: o general deslocou-se pessoalmente ao estúdio da televisão pública apesar de pertencer a um grupo de risco nesta fase mais assanhada do coronavírus: tem 85 anos, embora pareça mais jovem - tanto pelo físico como pelo intelecto. «Nos tempos incertos vai-se ao local», declarou sem mais rodeios.

Com esta decisão - assumida sem a menor hesitação, como a jornalista Fátima Campos Ferreira assinalou - o antigo Presidente da República deu desde logo uma lição aos heróis de sofá que pululam por aí, muitos deles com idade para serem seus filhos e até seus netos. "Heróis" da treta, que exercem a função comentadeira no conforto doméstico, devidamente calafetados, e aí dão livre curso às suas bravatas verbais.

Deu igualmente uma lição àquele jovem deputado que há dias compareceu de máscara no plenário da Assembleia da República - hoje seguramente um dos lugares mais "higienizados" do País - esquecendo que àquela mesma hora faltavam máscaras em todos os hospitais portugueses. Imagem lamentável: só admito ver um político de máscara em local de grave risco sanitário, nunca na sala de sessões do Parlamento.

O general, em palavras lúcidas e inspiradoras, apontou a estes apavoradinhos o rumo a seguir: «Nós, os velhos, quando chegarmos ao hospital, se for necessário, oferecemos o nosso ventilador a um homem que tenha mulher e filhos.»

 

Eanes foi exemplar por tudo quanto afirmou. 

Anotei outras das suas reflexões e transcrevo-as aqui. Para mais tarde recordar.

 

«A primeira coisa que esta batalha nos exige é que sejamos virtuosos - isto é, que sejamos humildes. Que percebamos que somos falíveis e muito frágeis. Uma fragilidade que só se compensa através de uma comunicação autêntica com os outros.»

«O medo é razoável, mas é nossa obrigação ultrapassá-lo. Nesta altura temos que pensar que estamos com os outros. Temos que pensar menos no eu e mais no nós. De maneira que todos quantos carecem de apoio tenham a nossa solidariedade.»

«Esta crise demonstra que nenhum país, por si, consegue resolver os problemas. A própria China, poderosa, no início da crise recebeu o apoio da França e até da Itália.»

«Isto levar-nos-á, necessariamente, a uma nova reflexão. Primeiro, a uma nova reflexão sobre os nossos sistemas políticos. E sobre o homem: porque é que o homem se tornou tão egoísta, tão individualista, que até se esqueceu que o mundo é de interligação permanente? Como é que vamos gerir a globalização? A globalização é interdependência, mas deixou de ser solidariedade.»

«O homem, com os avanços da ciência e da tecnologia, julgou ser capaz de tudo. E esta situação pandémica demonstrou que afinal continua o tal ser frágil, falível, que está em permanente ligação com os outros.»

«Isto vai levar-nos a repensar as próprias funções do Estado. O Estado não pode ser o Estado mínimo, como se diz: tem que ser o Estado necessário. Que não olha apenas para a situação presente e para as eleições: olha para o futuro da sua comunidade.»

«Esta crise é um momento de silêncio, de reflexão, de comunhão. Se não for assim, estamos a perder uma oportunidade única que nos é oferecida - com dramatismo, com dor, com desgosto.»

Sozinho em casa

Pedro Correia, 10.03.20

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Em política, convém valorizar a importância daquilo que não é dito, mas expresso de outra forma. Veja-se, a título de exemplo, o que sucedeu ontem com Marcelo Rebelo de Sousa: em plena crise do coronavírus - que já contagia governantes e suscita temores sobre uma crise económica à escala global - o Presidente da República decide confinar-se durante 15 dias às quatro paredes domésticas, submete-se voluntariamente à análise clínica para indagar se é portador do vírus (deu negativo) e, cereja acima do bolo, concede uma entrevista a Miguel Sousa Tavares no Jornal das 8 da TVI, em que alterna os recados políticos com o enaltecimento das virtudes domésticas. Sozinho em casa, em minucioso exame à proposta de Orçamento do Estado para 2020, Marcelo comporta-se como uma fada do lar: cozinha, lava a loiça, estende a roupa e passa a ferro. 

Em momento algum da entrevista, concedida a pretexto do quarto aniversário da sua tomada de posse, afirma que tenciona recandidatar-se a Belém. Mas tudo nela - tanto na dimensão pública como privada do cidadão Rebelo de Sousa - nos sugere que o Chefe do Estado não pensa noutra coisa. Mais: o teste ao coronavírus e esta original aparição presidencial via FaceTime à hora do jantar dos portugueses constituíram o pontapé de saída da campanha eleitoral que culminará no escrutínio de 2021. 

Ao declarar-se em quarentena preventiva, levando o País a acompanhar com alívio as novidades do seu boletim clínico e com elevado apreço o exemplo de desapego às honrarias palacianas de que dá provas, Marcelo exibe um florentino instinto político - muito acima de qualquer rival, declarado ou não. E até invoca um seu ilustre antecessor para, com aparente candura, devolver uma farpa que Ana Gomes lhe endereçara pouco antes enquanto aproveita desde já para captar votos à sua esquerda: «Mário Soares é imbatível, é unico na democracia portuguesa, a votação dele é irrepetível.»

Sabe-a toda. Confirmando que a política profissional é para gente crescida, não para meninas ou meninos.

Rolhas

José Meireles Graça, 17.11.19

Dos outros países não sei, mas em Portugal as rolhas do regime são uma instituição. Já eram no tempo da Velha Senhora, mas menos e mais modestas, e são legião hoje.

Que são rolhas do regime? São aqueles indivíduos que gravitam à volta do Poder, do que está e do que pode vir a estar, passaram por lugares do aparelho de Estado político, incluindo a Europa desde que se descobriu que era um excelente viveiro de contactos úteis e com um passadio muito melhor do que o nacional (o cidadão quer estupidamente pagar mal aos seus políticos nacionais mas paga principescamente aos europeus por não saber quanto lhe custa) e dele saíram voluntariamente para aterrar em lugares invariavelmente bem pagos de empresas públicas, grandes empresas privadas, bancos, institutos ou outras instituições.

Há dois sítios em que nunca estão: um é a política activa – porque isso os obrigaria a definir claramente correligionários e adversários, e defender lugares com a faca nos dentes; e o outro são as pequenas empresas privadas, salvo as inventadas para servir encomendas do Estado, porque a taxa de mortalidade é grande, a competição assanhada, o Fisco opressivo e o espaço para tretas diminuto.

E costumam falar sobre o quê? Profundidades: a Europa, a Educação, os desígnios, a modernidade, o futuro, as desigualdades, os desafios tecnológicos, a pobreza – ai! que estes grandes temas, se os ouvirmos, ficarão para nós de luminosa transparência.

Carlos Moedas é um destes. E, fatalmente, disse muitas coisas a Maria João Avillez, uma especialista em entrevistas hagiográficas. A própria, ciente de que se eleva na mesma medida em que iça os convidados, nunca poupa nos elogios. E, com Moedas, esmerou-se:

“Carlos Moedas é uma mais valia. Provou-o em Portugal no governo da coligação PSD/CDS; tinha-o demonstrado, fora de portas, muito novo, na banca internacional; voltou a ter-se a certeza disso em Bruxelas, onde durante cinco anos fez o seu melhor. Estabelecendo pontes inovadoras entre o hoje e o amanhã, reteve-se o seu apport na energia e na criatividade usadas como Comissário para a Inovação e Ciência junto da EU”. 

Ahem, estabelecer pontes inovadoras entre o hoje e o amanhã parece realmente uma obra impressionante de construção civil retórica, mas talvez não fosse pior inteirar as pessoas do que realmente quer dizer o “apport” que terá trazido à energia, a não ser que o dedo engenheiral e subsidiesco do entrevistado tenha muito a ver com os corrupios no alto dos montes. Quanto à passagem pelo governo PàF não esteve mal, de facto: os camaleões têm, precisamente, a admirável capacidade de se fundirem com o ambiente.

Que diz então o miraculado? Muitas coisas, quase todas vagas, quase todas genéricas, quase todas vácuas – não vale a pena respigar a enxurrada de paleio, salvo nos extractos a seguir (haveria outros, mas o texto ficava demasiado extenso).

“Para isso [para a passagem do invisível para o visível] precisamos de duas grandes mudanças: uma institucional, outra de mentalidades. A mudança institucional é aceitar que é impossível estarmos todos de acordo e que a regra da unanimidade não funciona na maioria dos casos. Há que passar à regra da maioria em certas áreas da fiscalidade e dos assuntos externos. Se isso não mudar, a Europa não se afirmará. Foi isso que falhou na crise dos refugiados. Depois, é indispensável uma mudança de mentalidade: a Europa tem que ser mais assertiva na sua comunicação, sem medo de expor as nossas posições. Temos que comunicar como Europa e não apenas como países”.

Traduzindo: Há que eliminar a competição fiscal, nivelando todos os impostos por cima e reforçando as contribuições para o embrião do supergoverno europeu; e há que anular as diferenças entre Estados e os seus interesses permanentes, a benefício do eixo franco-alemão.

“Tenho muito orgulho em dizer que, na minha área, marquei a agenda da Inovação e Ciência na Europa. Ninguém falava destes temas há cinco anos. Nem nenhum chefe de Estado ou de governo abordava estes temas nos seus discursos políticos. Era uma área vista como um parente pobre das políticas europeias. Hoje não é assim, estes temas estão já ancorados na agenda dos líderes europeus e mundiais”.

Marcou sim senhor. E hoje ninguém em seu juízo, na Europa, faz investigação, inova ou cria sem apoios públicos. Admite-se mesmo a hipótese de as redes sociais do futuro, os telemóveis, o GPS, e a generalidade das inovações tecnológicas, deixarem de vir dos EUA, ou da Ásia, e mudarem-se para a Europa, desde que evidentemente os sucessores de Moedas lhe honrem a herança. No futuro. Porque, no passado, e este abrange o tempo em que moedas foi Comissário, isto é, desde fins de 2014, o que tem a dizer um senhor professor da London School of Economics, sobre a EU, avaliada pela sua quota no produto mundial, ou no volume do comércio, é o seguinte:

“There are various metrics for this. The size of the EU market is clearly one factor, at 16.9 percent (or 14.54 when the UK leaves) of world GDP, the EU weighs in as one of the heavyweights (China 17.1 percent, USA 15.8 percent), but its share is declining. In terms of the share of world trade in goods the EU accounts for 15 percent (excluding intra-EU trade) of world trade (15.7 percent of exports and 2016 and 14.8 percent of imports), but here the EU share has declined more rapidly over the past decade, as has that of the USA. This is an indicator of the shift in the focus of world trade from the Atlantic to Asia Pacific”.

Cabe dizer portanto que a EU tem sido o farol da inovação e ciência – mas o resto do mundo não se tem apercebido, senão a importância da UE pararia de decrescer.

A entrevista abunda em verdadeiros achados de retórica, língua de pau, gabarolice e disparates. Um último:

“Defendo um imposto digital europeu, o que não só seria a forma de impor maior justiça fiscal a empresas americanas que não pagam impostos em território europeu, como uma fonte de receita para o orçamento europeu. Só que para isso é necessária aquela união de que falei há pouco. Precisamos de uma unanimidade sobre este tema, o que é difícil, mas estou convencido de que lá chegaremos”.

Nunca nenhum imposto novo, ou aumento dos existentes, deixou de ser apresentado como um grande progresso em nome de um bem maior; e a engenharia de impostos sempre apresentou os prejudicados como poucos e os beneficiados como muitos, o que pode até no curto prazo ser verdade. Neste caso, o negócio é ainda mais sumarento: beneficiamos todos e os americanos pagam.

Claro que não pagam: ou os clientes europeus deixam de ter acesso ao que agora têm, ou pagarão por isso de uma forma ou de outra.

Enfim, Moedas é ainda muito novo e logo que acabe de ornar a Gulbenkian com as suas luzes pode bem ser que regresse à vida pública, através do seu partido de sempre. É de esperar que este tenha entretanto resolvido os seus problemas, de uma maneira ou de outra. Qualquer uma serve, aliás, porque Passos Coelho “foi o melhor primeiro-ministro desde o 25 de Abril” enquanto “há que reconhecer que o papel de Rui Rio também foi difícil. Estar na oposição em Portugal é dificílimo”.

O novo ópio do povo

Pedro Correia, 28.08.19

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A TVI, no seu canal informativo, prometia ontem conceder destaque a Assunção Cristas, entrevistada por um jornalista da casa e alguns especialistas em diversas áreas incluídos entre os participantes nesta emissão, transmitida em directo. Sob o título genérico «Tenho uma pergunta para si» (o abuso do redundante pronome "si", que me soa sempre a nota de música, reflecte o empobrecimento da nossa linguagem comunicacional).

Tentei fixar a atenção nesta entrevista, mas desisti a meio. Porque me pareceu desde o início que se destinava apenas a despachar agenda e aliviar um fardo. Decorria tudo num tom tão impaciente, como se houvesse urgência máxima em retirar a presidente do CDS do ar, que obrigou uns e outros a falar em ritmo anormalmente acelerado.

Assunção, pressionada pelo ponteiro dos segundos, parecia uma picareta falante, para usar a expressão que Vasco Pulido Valente colou noutros tempos a António Guterres. Os interrogadores de turno, quando demoravam um pouco mais a formular a pergunta, eram de imediato interrompidos pelo profissional da casa. O próprio Pedro Pinto, ao comando desta emissão tão frenética, parecia mais confinado à função de cronometrista do que de jornalista.

E afinal tanta pressa para quê? Para que o mesmo canal informativo da TVI desse lugar a três cavalheiros de calças de ganga a discorrer tranquilamente sobre os mais recentes rumores do chamado "mercado de transferências" da bola. Preopinavam em modo pausado, de perna traçada, como se estivessem no café e tivessem todo o tempo do mundo para perorarem sobre coisa nenhuma.

Foi a minha vez de recorrer ao cronómetro: cavaquearam das 22.36 às 23.57. Um dos membros deste trio já estivera em antena durante a tarde, entre as 17.58 e as 18.48, tagarelando sobre o mesmíssimo assunto.

Estranho critério jornalístico, estranho critério informativo - cada vez mais monotemático. Como se nada mais houvesse de relevante do que as tricas do futebol.

Alguém aí falou em ópio do povo? Se o fez, acertou em cheio.

Pontes sim, trincheiras não

Pedro Correia, 21.08.19

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Imagem do DELITO em Janeiro de 2009

 

Foi um prazer, confesso, estar à conversa com o Pedro Neves nas instalações do Sapo. O pretexto para este bate-papo, que se prolongou por cerca de uma hora, foi o décimo aniversário deste nosso DELITO DE OPINIÃO, já com merecido estatuto de veterano da blogosfera.

Do simpático convite do Pedro nasceu uma entrevista que me permitiu falar um pouco sobre este percurso trabalhoso mas muito gratificante em termos intelectuais e humanos. Desde logo porque me permitiu conhecer e estreitar relações com muitas pessoas de quem me fui tornando amigo a pretexto desta escrita em jeito de registo diário do que vai sucedendo no país, no mundo e um pouco também nas nossas vidas.

Se me permitem, destaco algumas frases:

«Conseguimos fazer uma coisa que é difícil interiorizarmos em Portugal: podemos ter opiniões muito diferentes, e até opostas, e isso não afectar a relação no plano pessoal»

«Temos uma base de conteúdo político, mas captámos leitores que detestam política e vêm ler outras coisas: uma crítica de livros, uma crítica de cinema, por exemplo»

«Devemos estender pontes. É muito mais fácil encontrarmos compromisso e entendimento a meio de uma ponte do que se estivermos no fundo de uma trincheira»

«Essa»

Pedro Correia, 09.07.19

 

«Essa».

Foi nestes elegantíssimos termos que Rui Rio se referiu ontem à ex-ministra da Justiça e ex-dirigente social-democrata Paula Teixeira da Cruz, respondendo a uma pergunta de Miguel Sousa Tavares no Jornal das 8 da TVI.

Para não haver dúvidas, transcrevo a frase na íntegra: «Acho que essa até disse "tirano", salvo erro, ahahah...»

Há pormenores que definem uma pessoa. Às vezes basta uma palavra. Um simples pronome demonstrativo, como é o caso. Rio definiu-se nesta palavra com que brindou em directo, num dos principais telediários portugueses, uma senhora - sua companheira de partido.

Como se estivesse lá em casa. Ou no café.

 

É este um líder da oposição?

Pedro Correia, 09.07.19

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1. Elogios ao Governo (do PS):

«O produto interno bruto cresceu, nestes quatro anos, cerca de 30 mil milhões.»

«Têm sido criados empregos.»

«As taxas de crescimento que nós temos não são muito diferentes das do PS: são um pouquinho acima.»

 

2. Críticas ao Governo (do PSD/CDS):

«No tempo da tróica, o que é que se fez? Cortes nos salários, cortes nas pensões, cortes na despesa. Porque, ao mesmo tempo, já se estava a aumentar os impostos.»

«Inventaram-se os vistos gold, que eram uma espécie de exportação de casas, sendo que a mercadoria fica cá e não é exportada...»

 

3. Dúvidas existenciais:

«Eu estou em Lisboa pelo menos três dias por semana. E não quer dizer que nos outros dias esteja no Porto.»

«Podem duvidar se eu sou capaz, se o PSD é capaz. Isso, podem duvidar.»

«O apego pessoal que eu tenho ao lugar [de presidente do PSD] não é nenhum.»

 

Rui Rio, ontem à noite, em entrevista ao principal telediário da TVI conduzida por Miguel Sousa Tavares e Pedro Pinto

Cinquenta vezes o pronome "eu"

Pedro Correia, 12.05.18

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Bruno de Carvalho em extensa entrevista ao Expresso de hoje. Curioso: há três meses pediu aos adeptos para deixarem de ler os jornais, mas continua disponível para receber a imprensa.

Leio a entrevista, desrespeitando o tal pedido. Ao longo de seis páginas, o presidente do Sporting pronuncia cinquenta vezes o pronome eu e apenas três vezes o pronome nós. Esquecendo a dimensão colectiva, componente fundamental de modalidades como o futebol.

É todo um programa. Todo um modo de encarar o desporto. Toda uma forma de estar na vida.