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Delito de Opinião

CIP

José Meireles Graça, 14.09.19

A CIP é, invariavelmente, apresentada como representando os patrões. Sucede que nunca os representou nem os representa – muito menos agora, e desde há muito, que tem uma direcção bem comportadinha e perfeitamente integrada no sistema, isto é, no respeitinho do governo do dia e na ficção da concertação social, que tem dignidade constitucional e em cujo organismo tem assento com outras organizações de duvidosa representatividade e discutível utilidade.

Sobre a concertação social escrevi muito e sobre a CIP alguma coisa (quem tiver curiosidade que vá ver no meu blogue de origem), sempre em tons pouco lisonjeiros: a concertação não deveria existir noutro nível que não o das empresas, quando muito as do mesmo sector, ponto, e a CIP não deveria ser apresentada, nem fingir, como representando os patrões, nem ter outro papel na vida pública que não seja o de uma organização privada voluntária que, representando estritamente quem nela está inscrito, se alivia das doutrinas, dos estudos e das opiniões que defende.

Periodicamente, a CIP vem ao proscénio com um catálogo de reivindicações, e houve um tempo longínquo em que era uma voz de senso num mar de loucura – os muitos anos em que o país esteve a caminho do socialismo, primeiro, socialismo de rosto humano, depois, a Europa connosco, a seguir, e vários tipos de social-democracia durante e mais à frente.

Agora, está tudo muito bem, mas precisa de uns retoques, para crescer. O nosso país é lindo, o governo até que nem é mau, os portugueses são inexcedíveis, os empresários, então, em tendo os números de telefone certos, não há quem os segure. Mas, lá está, não chega. Ai!, que se os poderes públicos ligassem às mais de 80 medidas que a CIP anuncia, no texto para que remete o link acima, metíamos o turbo e, em vez de deslizarmos suavemente para o fundo da tabela dos rendimentos por cabeça por países da EU, como sucedeu com o garboso governo PS, iríamos fazer o senhor XI Jiping arregalar os olhos, enquanto comprava mais das nossas empresas, já não por razões geoestratégicas mas por serem um bom negócio.

A apresentação é no revulsivo paleio do empreendedorismo ecónomo-cavaquês: desafios do futuro, estratégia assente em vectores, motor da recuperação, foco nas Pessoas (assim, grafado com maiúscula), desafio da transformação digital, e o resto do palavreado sempre neste tom – Saraiva acha, e com ele a maioria dos economistas, que embrulhar a vacuidade e o asneirol neste dialecto reforça a credibilidade do discurso. Enfim, vamos às medidas (só algumas, que o documento não tem importância para mais do que um respigo).

A introdução, pedantemente intitulada “sumário executivo”, é um repositório actualizado do velho mantra da liberdade económica, e daí não decorreria nenhum mal – pelo contrário – se não viesse tingida de dirigismos sortidos, que estão a mais, e da denúncia tíbia dos constrangimentos que a impedem, que está a menos.

2.1 Desafios: É necessário mais investimento, indispensável à incorporação de inovação tecnológica nos produtos, nos serviços e nos processos.

Um ponto prévio: Isto não é um desafio (a economia não tem desafios, tem circunstâncias e oportunidades, umas negativas e outras positivas, desafio é coisa para concursos e jogos de futebol), é uma opinião e um objectivo. Mas quem tem de decidir se são necessários investimentos não é a CIP, são os empresários, e caso a caso.

As atuais dinâmicas do comércio e fluxos de investimento internacionais vão penalizar quem não é competitivo.

Siiim? Mas não foi sempre assim, as empresas que não são competitivas no ou nos mercados em que trabalham são penalizadas? E a CIP vê sinais seguros de que a liberalização do comércio internacional se vai aprofundar, e portanto que os fluxos de investimento vão crescer?

O nível de endividamento das empresas e os ainda elevados rácios de crédito em incumprimento dificultam ainda a capacidade de o sistema financeiro redirecionar o crédito para os setores produtivos.

Este palavreado limita-se a reproduzir acriticamente o discurso dos bancos, cuja gestão foi, em parte, responsável, na crise de 2008 e anos seguintes, por um penoso ajustamento, que entre nós ainda decorre. Os bancos foram salvos, e os seus gestores, os quadros, a parafernália administrativa, as práticas, as crenças, não foram beliscados seriamente, salvo casos contados. Quem perdeu foram os accionistas, mas, ao contrário do que sucede nas verdadeiras empresas (que não são, ao contrário dos bancos, instituições), a cultura empresarial dos responsáveis pelo descalabro não foi sancionada. Por razões que não cabe aqui explanar, dificilmente poderia ter sido de outra maneira, mas não é razoável ouvir gestores bancários como se estes fossem depositários de alguma espécie de lucidez em economia: não são, e há inclusive um incentivo perverso no sistema para premiar inimputáveis, teóricos, académicos e nulidades sortidas, com o denominador comum de todos serem pagos a peso de ouro.

Os bancos não financiam o sector produtivo porque a gestão é inepta, não sabe avaliar o risco, como foi abundantemente demonstrado, e continua a financiar actividades do sector de bens não-transacionáveis à boleia de garantias reais que desembocam em bolhas, o Estado, empresas públicas e grandes empresas com boas e obscuras alavancagens no tráfico de influências.

Só com as empresas, mediante a introdução de tecnologias inovadoras mais limpas, a aposta na economia circular, uma mobilidade mais amiga do ambiente, a promoção da eficiência energética e da transição gradual para energias renováveis, será possível alcançar desenvolvimento mais compatível com a sustentabilidade ambiental.

Todo este parágrafo é um indigno chorrilho de asneiras, traduzindo uma adesão acrítica a ideias da moda: as empresas não precisam de conselheiros, e ainda menos de normas, para a introdução de tecnologias mais “limpas” (isso é uma decorrência da evolução tecnológica e das exigências e preferências dos clientes); a economia circular não é mais do que treta redonda, não significa nada; a transição gradual para energias renováveis é, no estado actual do desenvolvimento científico e tecnológico, pouco mais do que um bordão propagandístico e um unicórnio económico; e o “desenvolvimento mais compatível com a sustentabilidade ambiental” tem lugar num acampamento do Bloco de Esquerda, num comício do PS, ou num artigo de opinião de um frade piolhoso obcecado com o ambiente – num catálogo de intenções de uma associação empresarial não.

1,6%  ꟷ Estas são as projeções de crescimento anual do PIB em 2020 e 2021. Trata-se de um resultado insuficiente para vencer os desafios identificados.

É insuficiente sim, não por causa dos “desafios” (essa qualificação parva tem o transparente propósito de fazer passar a ideia de que os empresários são uma espécie de condottieri que se expõe ao temor e reverência dos gentios) mas porque há nações, numa Europa que não cessa de perder lugares no mundo, que estavam, e já não estão, abaixo de Portugal no rendimento por cabeça, e porque quase todos os países da liga dos últimos crescem mais do que nós. E isso apenas porque têm mais liberdade económica, em particular na fiscalidade, e não por qualquer conjunto muito sofisticado de políticas públicas intervencionistas subtis.

Pessoas ꟷ O ser humano é, em qualquer circunstância, a base e o fundamento da intervenção dos decisores e responsáveis. Do ponto de vista económico, o seu talento é, cada vez mais, o principal fator de diferenciação e de sucesso de qualquer empresa ou de qualquer nação.

O ser humano NÃO É a base do fundamento e decisão etc., a menos que com esta frase obscura se queira dizer que um eremita não faz empresa nenhuma porque não tem nem empregados nem mercado. Que as estratégias de diferenciação parecem cruciais para a sobrevivência da muitas empresas (não todas: a generalização, neste domínio ainda mais do que noutros, é má conselheira) é inegável; que a formação académica tem importância é indiscutível, embora só por si não sirva para nada (Portugal anda a formar médicos, enfermeiros, arquitectos e outros profissionais para os exportar porque cá ou não têm lugar ou são mal pagos); e que a formação profissional contínua é, em muitos casos, necessária, parece ser uma inevitabilidade. É porém um equívoco achar que o Estado, para além do ensino clássico (cujos níveis de exigência ganhavam se subissem, e se os programas fossem depurados de fantasias e voluntarismos sortidos – mas isso são outros quinhentos) tem um grande papel a desempenhar. Pelo contrário: O Estado em Portugal é inimigo da liberdade de ensino, no sentido de hostilizar a propriedade privada dos estabelecimentos.

O talento não se ensina (o que se ensina são conhecimentos), aparece quando as circunstâncias o permitem; a formação profissional deve ser a que os empresários requerem, não a que alguns iluminados acham por eles que deveriam querer; e a subsidiação, os acordos com mediação de entidades públicas, e de forma geral toda a sorte de imposições na matéria são apenas múltiplas formas de promover a corrupção, sustentar consultadorias, escolas  e organismos inúteis, e financiar a concorrência desleal.

Nem tudo no capítulo sob a epígrafe “Pessoas” é para deitar fora. Mas a tónica está errada: não é preciso mais Estado, e sim menos; não são precisas “ajudas”, nem agências para promover isto e aquilo; nem muito menos uma qualquer CIP sabe o que convém e desconvém, e deve por isso abster-se de entrar em “parcerias”.

Não há paciência para ler mais, o resto afina pelo mesmo diapasão: mais Estado, mais Estado, mais Estado, nem sequer faltando tolices como “promover o empreendedorismo como verdadeira opção de carreira para ambos os géneros”. Sim, CIP? O empreendedorismo não se promove, CIP, porque quem o sabe promover faz empresas, não discursos; e ele surgir, e frutificar, não depende de o querer muito, e ter muitas opiniões, depende da diminuição dos obstáculos. E quanto aos géneros, CIP, não há dois (o que há dois são sexos), há aí uns cem, segundo a última contagem. Não consta que em alguma cabeça more a ideia peregrina de colocar obstáculos a qualquer dos sexos e, portanto, remover uma inexistência só não é arrombar uma porta aberta porque ela, efectivamente, está fechada – para quase todos.

Isto é a CIP, que em tempos bradava no deserto, e sob a liderança do vaselinesco Saraiva evoluiu para um organismozinho socialista, simpaticozinho e colaboracionista. Felizmente, continua a bradar no deserto – nem tudo se perdeu.

MIT Portugal e as parcerias internacionais de que poucos falam, mas tanto dão ao país

Alexandre Guerra, 06.03.18

Quando li há dias que arrancou a segunda fase do Programa MIT Portugal, prevendo-se mais dez anos de parceria entre universidades, investigadores nacionais e aquele prestigiado instituto, fiquei francamente contente, porque tive o privilégio de ter contribuído para o arranque desse projecto. O MIT Portugal, lançado em 2006, é considerado um caso de sucesso, sobretudo por duas razões: permitiu às universidades e investigadores nacionais terem acesso ao conhecimento e práticas geradas no MIT; trouxe para o nosso país uma cultura de relacionamento íntimo entre a academia/investigação e o desenvolvimento empresarial. Não é de estranhar que na altura do seu lançamento, o MIT Portugal tenha sido alvo de algumas críticas provenientes de uma certa academia mais conservadora, instalada nos seus feudos, onde o mais importante era manter um determinado status quo de interesses, pouco dada a privilegiar a produção de mais-valias de conhecimento ao serviço de soluções tecnológicas empresariais. O MIT Portugal foi a maior das quatro grandes parcerias internacionais que Portugal celebrou há doze anos (Austin Texas, Carnegie Mellon e Fraunhofer, foram as outras três que agora também foram renovadas), tendo os responsáveis daquela instituição de Massachusetts reconhecido com particular interesse as especificidades deste Programa face a outros do género em diferentes partes do mundo.

 

Acompanhei o processo praticamente desde o início, enquanto consultor de comunicação do MIT Portugal, já que a agência onde trabalhava tinha precisamente acabado de ganhar essa “conta”. Foi uma experiência enriquecedora, onde foi possível perceber as diferenças abissais entre os modelos das duas academias, sobretudo o pragmatismo, a simplicidade e a simpatia na forma de trabalhar dos responsáveis e investigadores do MIT. A mim, enquanto responsável pela comunicação do Programa, cabia-me “puxar” pelo MIT Portugal, comunicá-lo nas suas diferentes vertentes, contando histórias de projectos, promovendo entrevistas e conversas com investigadores do MIT, organizando conferências, entre tanta outra coisa. Tudo isto, naturalmente, sempre em contacto permanente com os meus homólogos no MIT, em Boston, além do acompanhamento próximo da tutela, nomeadamente do saudoso ministro Mariano Gago, um homem do conhecimento e que importante legado deixou com estas parcerias. Anos depois, quando a vida profissional me levou por outros caminhos e deixei de trabalhar com o MIT Portugal, senti que o Programa tinha ganho fôlego e estava no bom caminho, embora pairassem muitas dúvidas quanto à sua continuidade por causa de questões de financiamento. De vez em quando ia acompanhando o “estado da arte” daquele Programa e ficava com a sensação de que alguns agentes da sociedade portuguesa, empresas e media nunca reconheceram a verdadeira importância destas parcerias internacionais. Infelizmente, e atendendo à falta de massa crítica nesses círculos, continua-se a assistir à primazia de acontecimentos mediatos e mediáticos, de fácil consumo e muito “trendy”, mesmo que poucos ou nulos resultados produzam para o conhecimento e tecido económico nacional.

 

No que me toca, gosto de enaltecer o bom trabalho que é feito em prol do conhecimento sólido e do desenvolvimento empresarial sustentável, com base na verdadeira inovação e não em clichés. Doze anos após a criação do MIT Portugal e das outras parcerias internacionais, e depois de muito trabalho, o retorno para a sociedade portuguesa é inegável, tendo sido formados centenas de mestres e doutores, produzidos papers, feitas descobertas científicas e geradas soluções inovadores, e criadas centenas de startups, algumas delas a valerem mais do que empresas cotadas no PSI20. Provavelmente, uma Web Summit (que tem muitas virtudes) nunca irá gerar este tipo de riqueza para o país, mas veja-se a atenção, os recursos e o foco que tal iniciativa mobiliza. Ou ainda, a forma como os media e agentes políticos não hesitam em abraçar a criação de startups da “moda” que tão rapidamente aparecem como desaparecem, sem terem deixado qualquer mais-valia para Portugal. Agora, se o leitor pensar bem, quantas vezes ouviu falar do MIT Portugal? Quantas reportagens viu sobre as parcerias com Carnegie Melon ou Austin Texas? Quantas empresas nascidas destas parcerias mereceram a atenção da classe política ou das elites? O leitor já ouviu falar na Veniam? Vale 118 milhões. E da Feedzai? Vale 508 milhões de euros. Dá que pensar, mas é precisamente a pensar que estas parcerias internacionais conseguiram gerar estas empresas 

Colaboradores estagiários - à borla

João André, 23.10.14

A Teresa escreveu este post e lembrei-me deste texto sobre as ideias de alguns "empreendedores" "amaricanos" de ter gente a trabalhar de borla. É ideia praticada há muito em Portugal, onde o conceito de trabalhar para aquecer, apesar do nosso ameníssimo clima, pegou há já uns bons tempos. Normalmente o corolário acaba por ser a felicidade de novos trabalhadores em receber «pelo menos o salário mínimo».

 

Obviamente que visionários como Mark Cuban defendem a sua visão sob o conceito de "liberdade", onde cada pessoa deveria poder trabalhar de borla se o quisesse. Naturalmente que podemos encontrar gente de todos os tipos, mas desafio qualquer um a encontrar uma meia dúzia de pessoas entre o seu círculo de pessoas que estivessem dispostas a trabalhar sem nada receber. Não falo de voluntariado ou de causas, falo de trabalho a sério, com prazos, objectivos, horários e chefes.

 

Para ser claro sobre a minha posição: o trabalho não deve ser pago. O trabalho tem de ser pago. É uma obrigatoriedade no mundo moderno civilizado. Conceitos como o trabalho não pago deveriam desaparecer e ser classificados como aquilo que são: exploração. Os estágios não remunerados já são, a meu ver, um abuso, mas desde que haja vantagens reais para educação de um estudante (os quais têm que ser verificados pela instituição de ensino) e a instituição de acolhimento incorra com despesas extra (deslocamento, alojamento, eventuais custos extra com alimentação), até nem os rejeito de imediato.

 

O mundo está já excessivamente cheio de "colaboradores", "estagiários" e outros títulos que servem para esconder abusos da parte do sector empresarial. As melhores empresas para trabalhar são também frequentemente aquelas que obtêm maiores índices de produtividade. Infelizmente, enquanto existirem "tubarões" como Cuban por aí, a mentalidade feudal não desaparecerá.

Virar o bico ao prego

João André, 17.10.14

Era uma questão de tempo até as empresas virarem o bico ao prego. Agora, desincentivar as mulheres a terem filhos é visto, pelo menos por certas empresas, como um apoio às mesmas. Não importa que a medida seja cosmética e que a esmagadora maioria das mulheres que decidam aderir não venham a retirar quaisquer benefícios. As empresas terão apoiado a promoção das mulheres nas suas estruturas.

 

É por isso que não aceito que o Estado se isente das vidas empresariais. Os mecanismos de auto-regulação nas empresas não funcionam nunca em favor dos mais fracos - os trabalhadores - e é aqui que o Estado tem de agir. Não pode estar a querer dirigir a economia - fá-lo-à sempre de forma menos eficiente - mas tem que corrigir as assimetrias de poder.

Mentalidades empresariais em anúncios de empregos

João André, 24.09.14

Como ainda não perdi completamente as esperanças de um dia voltar a Portugal, continuo a receber semanalmente as actualizações sobre empregos nas minhas áreas de interesse e, de tempos a tempos, dou uma espreitadela ao que vai sendo publicado em jornais. Uma coisa que vou notando com frequencia é a aversão que os anúncios (ou anunciantes) parecem ter a identificar a empresa ou frequentemente sequer a área de actividade. Nas descrições de anúncios, as funções são igualmente de tal forma vagas que quase qualquer pessoa com as habilitações literárias indicadas se poderia candidatar. Há, por último, um curioso hábito de pedir para posições de chefia experiência em funções semelhantes.

 

Este é o tipo de anúncios que via quando andava a estudar (já lá vão 15-20 anos) e que parecem não ter mudado em Portugal. Estranhamente, as empresas parecem não ter ainda entendido que é do seu interesse anunciar que estão a contratar (sinal de saúde). No caso das descrições de funções ou qualificações, têm uma rede de captação tão grande que irão apenas aumentar o trabalho de triagem de cartas e anúncios (perdendo assim tempo e dinheiro). Por fim, parece ainda não se ter percebido que, alguém que suba dentro de uma empresa a cargos de chefia, dificilmente mudará de empresa (com todas as dificuldades subjacentes) para o mesmo cargo (ou, pelo menos, para um salário semelhante).

 

Estas são lições que vejo aprendidas por toda a Europa. O tecido empresarial português ainda não o parece ter percebido. Também nisto há muito que mudar a nível de mentalidades.

Eficácia sueca

Sérgio de Almeida Correia, 07.07.14

Apesar de muitos amigos meus fazerem compras a estes cavalheiros, eu nunca o fiz. E se já tinha má impressão destes tipos, agora reforcei a ideia. Saber que o seu dinheiro e os seus lucros serviram para sustentar uma corja de torcionários e corruptos, predispondo-se a esquemas de pagamentos manhosos e ao uso de prisioneiros políticos da ex-RDA como mão-de-obra, não abona muito a favor da tão propalada seriedade sueca. Afinal qual é a diferença entre esses métodos usados na Roménia e alguns mais típicos de certas regiões da Europa do Sul? Fico à espera de conhecer a forma como se irão redimir do seu passado (não muito distante).

Engenheiros ao almoço num dia de sol e calor

João André, 04.07.14

Pequena conversa durante o almoço sobre futebol e sistematização do trabalho (isto a propósito do patrocínio da empresa onde trabalho a um clube alemão).

 

- Temos de melhorar o desempenho do clube. Encontrar os pontos fracos do sistema de trabalho e apresentar sugestões.

 

- Torna-se lógico que os recursos não estão optimizados. Há 10 trabalhadores a executarem diversas funções e um que apenas está parado.

- 10 não, um! Os outros movem-se muito mas não fazem grande coisa.

- E quem são aqueles outros 11 indivíduos na zona de trabalho? Têm autorização para ali estar? Receberam o treino sobre regras de segurança?

- Falando em segurança, a bola parece ser perigosa, uma vez que um dos trabalhadores usa luvas. Mas os outros raramente o fazem.

- E capacete? Há um objecto constantemente a cair do ar e os trabalhadores estão constantemente a ser atingidos com ele na cabeça.

- O número de horas de trabalho perdidas por ano é assustador.

 

- OK, OK, propostas?

 

- Dar uma bola a cada trabalhador, para poder aproveitar melhor o trabalho.

- Remover pessoas não autorizadas da zona.

- Capacetes e luvas a cada trabalhador.

- Implementar um projecto de Six Sigma.

 

- Muito bem, levamos estas sugestões ao conselho administrativo. Confio que dentro de um ano já veremos uma forte melhoria nos resultados. Obrigado a todos.

Empresas e promoção da natalidade

João André, 03.12.13

No Arrastão, Daniel Oliveira escreveu sobre o envelhecimento da população portuguesa. Refere no post um inquérito pelo INE onde as razões para a baixa fecundidade são expostas. O principal culpado é o esperado: a situação financeira dos casais. Não discuto este ponto. Se eu tiver dificuldades em pagar a minha casa e a minha comida também hesitarei antes de decidir ter filhos.

 

A este aspecto gostaria no entanto de acrescentar outro, talvez pouco presente em Portugal no momento, mas cada vez mais notório noutros países europeus: a carreira dos casais (não só das mulheres). As empresas modernas exigem aos seus quadros qualificados cada vez mais disponibilidade. Isto significa que uma vida familiar é um obstáculo frequente à progressão profissional. Há filhos que adoecem, há que levá-los às creche ou escola, há que os ir buscar, levá-los às suas actividades, brincar com eles, ajudá-los com as suas tarefas, educá-los, vesti-los (literalmente - uma birra de uma criança quando está a ser vestida pode levar a atrasos complicados na chegada ao trabalho), etc. Isto para lá da questão óbvia da licença de maternidade e do tratamento pela mesma medida de homens e mulheres por parte das empresas.

 

A realidade é que, mesmo um casal que tem uma boa situação financeira e profissional, poderá ter tendência a adiar os filhos à espera de um momento em que a sua carreira tenha atingido um patamar mais estável onde uma criança não complique as suas obrigações. Infelizmente, num mundo empresarial onde há cada vez maior mudança de funções (para motivar empregados), essa estabilidade não é facilmente atingida.

 

Antes que me perguntem, não tenho uma solução mágica para mudar a situação. Muitas empresas promovem o trabalho flexível, a partir de casa, por exemplo. Esta solução tem demonstrado que os empregados são mais eficientes e produtivos e, muito importante, mais felizes. Também acaba por aumentar o número de horas que um empregado trabalha, mas poderá ser uma troca aceitável. Outras soluções passam por ter creches e jardins de infância da/na empresa (só possível para grandes empresas ou em associação com outras pequenas e médias empresas) e ter horários flexíveis.

 

Este não será um problema da generalidade da população portuguesa, mas serve para ilustrar como não podemos esperar que o governo venha, por artes mágicas, resolver tudo. Há uma responsabilidade da sociedade civil e das empresas privadas para com o tecido socio-económico em que estão inseridas. Cumpri-la pode ser não só um imperativo moral, pode também trazer benefícios próprios.

Comparações

Sérgio de Almeida Correia, 19.11.13

Um empresário de "sucesso" da hotelaria deu uma conferência promovida pela Microsoft Portugal para uma plateia de cem directores de escolas. Não estive lá, e duvido que se estivesse em Portugal lá pudesse ir. Mas os jornais para alguma coisa servem e, graças a eles, e à Internet, já agora, fiquei a saber que o referido empresário considera que gerir uma escola ou uma universidade é praticamente o mesmo que gerir um hotel. E exemplifica: "Vocês também têm clientes, os alunos são os vossos hóspedes, e têm de tratar deles. São donos de casa como eu, servem refeições na cantina como eu sirvo no restaurante, têm de assegurar a limpeza, a segurança". E continuou referindo que "vocês são empresários como eu. Gerem uma empresa sem fins lucrativos". (DE, 18/11/2013)

Não sei se alguém saiu da conferência antes do final. Ou se todos manifestaram concordância com o sentido do que foi dito.

Descontando o "vocês", típico de alguns meios e fruto de modismos recorrentes, foi este tipo de discurso que conduziu Portugal ao patamar miserabilista em que se encontra. Esta mentalidade simplificadora de cariz económico, que equipara escolas a hotéis, é a mesma que, certamente, tem equiparado hospitais e urgências hospitalares a casas de massagens, onde o valor/hora e o custo por cama devem ser avaliados em minutos e facturados em consonância. Ou que transformou escritórios de advogados numa espécie de sociedades anónimas onde se "enchem chouriços" com taxímetro à vontade do freguês, ou que fez de agências funerárias uma espécie de sociedades de exploração de estabelecimentos nocturnos, com serviço a la carte, cafés e bolinhos, enquanto se recebem as individualidades que se vêm despedir do falecido.

Quer o referido empresário queira, quer não, ainda há algumas diferenças substanciais entre escolas e hotéis. Não consta que nos hotéis os hóspedes, ou "clientes", como ele diz, sejam ensinados a ler, a escrever, a pensar ou até a comer. Desconfio que os seus "clientes" já cheguem ensinados. E também desconfio que as empresas que o dito empresário gere não sejam "sem fins lucrativos". Caso esteja enganado, então seria aconselhável que ele as transformasse em escolas, de excelência, de preferência, e sem fins lucrativos. E, já agora, que desse depois a receita a uns quantos estabelecimentos de ensino privado cujos proprietários passaram a deslocar-se em viaturas de alta gama, exploram os escolas como se fossem hotéis e ainda se permitem queixarem-se da insuficiência dos subsídios que recebem à custa dos impostos que milhões pagam e que todos os anos são desviados das escolas públicas para os sustentar.

Havemos de lá chegar!

Helena Sacadura Cabral, 12.11.13

 

A AEM, que reúne a maioria das empresas cotadas, defende a existência de mais mulheres nos conselhos de administração. Estranha-se a posição, dado que está nas mãos das empresas que esta associação representa resolver o problema, juntamente com os seus accionistas.     
A iniciativa da AEM - que pediu ao Instituto de Corporate Governance para inserir no seu código esta recomendação - nasce sobretudo da insistência pessoal do seu presidente, Luís Palha da Silva, que se esforçou por encontrar um consenso alargado que permitisse tornar este desígnio num desejo colectivo de todas as associadas.
A questão não é exclusiva de Portugal. Na Europa, só a Noruega e a Islândia têm mais de 40% de mulheres nos seus conselhos de administração. Pior que Portugal (com 7,1%), só Malta.
Ou seja, será muito difícil negar que persiste um claro problema de sub-representação das mulheres nos conselhos de administração.

Descendo um nível, nos cargos mais técnicos de direcção, o fenómeno é já diferente, porque as portuguesas estão a alcançar, com relativa facilidade, a antecâmara do Conselho de Administração. O problema é dar o passo seguinte.
E aqui poderemos encontrar uma questão cultural. Porque, numa sociedade em que as mulheres continuam a ter, no quotidiano, a maior responsabilidade da educação e do acompanhamento dos filhos, a questão do tempo e da disponibilidade para a empresa não pode ser descartada.
Mas também é verdade que, em termos de tempo consumido, pouca diferença existirá entre pertencer à Direcção ou ao Conselho de Administração. A questão não é, pois, só de tempo. É uma questão política. De quem manda e das pessoas em quem se confia para mandar. 
As mulheres não conseguem chegar ao topo do comando -, em que o gestor tem de possuir, também, um carácter "político", de influência junto das autoridades e de contacto permanente com os accionistas - porque se considera que este "papel" será sempre melhor desempenhado pelos homens.
O mesmo fenómeno se verifica, aliás, na política, com muitas mulheres em lugares decisivos e de destaque, mas com sistemáticas dificuldades em chegar a número Um.

Chefias

José António Abreu, 04.10.13

Sem ilusões de que o atraso seja de algum modo fashionable, ando a ver The Wire (vou na quinta e última série de episódios e, sim, trata-se provavavelmente da melhor série televisiva de todos os tempos*). No início da terceira temporada, a polícia não consegue obter resultados das escutas porque, para além de trocarem de telemóvel com regularidade, os traficantes de droga, em especial nos níveis médios e elevados da organização, são extremamente cuidadosos acerca do que dizem ao telefone. Numa tentativa de contornar o problema, a polícia arranja forma de prender uma chefia intermédia, na esperança de ver promovido ao seu posto um familiar de um tipo importante, com tendência para falar demais. Quando o plano é apresentado, um dos polícias pergunta: «Mas porque hão-de eles promover um incompetente?» A resposta é: «Porque não? Nós fazemo-lo todos os dias.»

O plano acaba por não dar certo porque os traficantes são afinal mais espertos do que a hierarquia da policia (ou das muitas outras organizações onde a cunha vence o mérito) e não promovem o idiota. Mas, para mim, este nem é o ponto mais curioso. O ponto mais curioso é eu contar isto à frente de chefias e elas esboçarem trejeitos de compreensão e rirem-se com um prazer que parece genuíno.

 

* O início do primeiro episódio, para quem nunca tiver visto (ou, tendo visto, quiser relembrar):

Ok, então vamos lá

Patrícia Reis, 19.11.12

Quando se começa no mundo empresarial há ilusões que enchem várias caixas. Uma década e meia mais tarde, em plena crise, as caixas estão vazias ou cheias de outras coisas. Podemos falhar melhor? Não sei. O que sei é que o atelier 004, onde se faz a Egoísta, por exemplo, é uma estrutura quase familiar que começa a ser uma casca de noz num mar que se agita. Oiço as notícias, faço as minhas contas. Observo a vida das pessoas e, no fim, percebo que a única solução é continuar a fazer o melhor possível. Dá o mesmo trabalho que fazer mal feito.

A falácia da teoria da empresa como local e espaço de cooperação

Rui Rocha, 16.11.12

Emerge uma concepção da empresa e do trabalho como lugares e espaços de cooperação. Trata-se, se quisermos, da visão simétrica da que resulta da  luta de classes marxista. Marx estava, é claro, enganado. Falta, na sua análise redutora e para dar só alguns exemplos, e se nos quisermos manter apenas na dinâmica do conflito, a perspectiva da luta entre o norte e o sul, entre insiders e outsiders do mercado de trabalho e o sentido da ironia histórica que viria a deslocar o epicentro da luta de classes como ele a entendia para a China. E, se quisermos ir mais longe, a percepção dos múltiplos sentimentos e formas de ser humanas que não se explicam na estreiteza da ideologia, seja ela marxista ou outra. Entre as quais se incluem o altruísmo, a solidariedade, a compaixão, o egoísmo e outras virtudes e vícios, adquiridos ou de fabrico, que dão origem a lutas sem classe. Muitas vezes, a lutas sem classe mesmo nenhuma que são capazes de minar as relações entre pessoas estejam elas ligadas por uma qualquer hierarquia ou sejam pares de uma mesma função. Mas, se isto é assim, deve admitir-se que a dita concepção da empresa como local de cooperação é igualmente falaciosa pelas exactas e mesmas razões. Aliás, para perceber que assim é, basta levar as consequências do argumento até ao fim. No tempo das empresas colaborativas, dizem, não faz sentido ver consagrado o direito à greve que, pela sua natureza conflitual, está completamente ultrapassado. Pois muito bem. Demos então todos os passos em frente ao mesmo tempo. E expurguemos da legislação do trabalho, também, a possibilidade de despedimento individual com justa causa. Pois se a empresa é local de cooperação... No fundo, o que temos de concluir, para marxistas e teóricos da cooperação, é que podes saber tudo sobre os vários pilares da sociologia. Mas, se não te conheces a ti mesmo, com todas os teus méritos, defeitos e limitações, isso é sinal de que ainda não sabes nada do mundo.

Peculiaridades

José Maria Gui Pimentel, 16.11.12

O debate em torno da extensão óptima do papel do Estado na economia é antigo e complexo, e é difícil avaliar em cada caso específico qual a melhor solução a adoptar. Há, porém, um sinal em particular que me faz sempre suspeitar de que algo não está como devia: quando os trabalhadores de uma empresa pública se manifestam contra a sua privatização. Os empregados têm, naturalmente, todo o direito a ter uma opinião sobre essa medida, mas quando vejo uma larga maioria a opor-se ruidosamente não consigo evitar ficar desconfiado. Afinal, a decisão de privatizar uma empresa do Estado pode ser boa ou não para a economia e para os contribuintes, mas para os trabalhadores dessa mesma empresa – sobretudo sem saberem quem a comprará – custa-me compreender tanta aversão a priori a mudar de patrão. A não ser, claro, que o patrão actual seja muito bondoso. Porventura demasiadamente bondoso. 

Com a ZON, na saúde e na doença

Rui Rocha, 09.10.12

Acto I (algures num balcão da ZON)

 

- Bom dia.

- Bom dia. Em que posso ajudar?

- A minha mãe é vossa cliente. Por motivo de doença teve de mudar de residência e agora pretendemos cancelar o vosso serviço.

- Pois, mas isso aqui ao balcão, só com a presença do próprio.

- Pois, mas isso é completamente impossível devido à doença.

(silêncio longo e olhar inquisitivo)

- Bem, atendendo à situação, vamos abrir uma excepção.

- Ah, muito obrigado (faço, ao mesmo tempo, uma pronunciada vénia de agradecimento).

- Traga, por favor, uma declaração da mãe a dizer que o autoriza a tratar da cessação do serviço. Traga os seus documentos pessoais e os da mãe.

- Ah, muito obrigado (faço, ao mesmo tempo, uma pronunciada vénia de agradecimento).

 

Acto II (uns dias depois, no mesmo balcão da ZON)


- Bom dia.

- Bom dia. Em que posso ajudar?

- A minha mãe é vossa cliente. Por motivo de doença teve de mudar de residência e agora pretendemos cancelar o vosso serviço. Trago aqui uma declaração assinada por ela a autorizar-me a tratar do assunto.

- Pois, mas essa declaração não serve.

- Não serve? Mas foi uma sua colega aqui da loja que me disse para proceder desta forma...

- Pois, mas cancelamento aqui ao balcão, só com a presença do próprio.

- Pois, mas isso é completamente impossível devido à doença.

(silêncio longo e olhar inquisitivo)

- De qualquer maneira, essa declaração não serve.

- Então...

- Bem, atendendo à situação, vamos abrir uma excepção.

- Ah, muito obrigado (faço, ao mesmo tempo, uma pronunciada vénia de agradecimento).

- Mas essa declaração não serve. Vou imprimir-lhe uma declaração para trazer assinada pela mãe.

- Ah, muito obrigado (faço, ao mesmo tempo, uma pronunciada vénia de agradecimento).

 

Acto III (contacto telefónico uns dias depois da entrega com sucesso da declaração)

 

- Sim?

- Boa tarde, estou a contactar da ZON na sequência do pedido de desactivação do serviço apresentada pela Senhora Y.

- Ah, muito bem. É a minha mãe.

- E poderia falar com ela?

- Não, por motivo de doença é impossível.

- Percebo. É que para concluir o processo preciso de contactar com a Senhora.

- Percebo. Mas por motivo de doença é completamente impossível.

- Percebo. Aproveito para apresentar os nossos votos de pronto restabelecimento. 

- Muito amável. Transmitir-lhe-ei o seu cuidado logo que acabarmos a chamada.

- Ahnnn... Muito obrigado. Estou a falar com o Senhor?

- Rui Rocha.

- Sugiro então que abramos uma excepção.

- Ah, muito obrigado (faço, ao mesmo tempo, uma pronunciada vénia de agradecimento).

- Se me permitir, coloco-lhe as questões que faltam para concluir o processo.

- É mesmo necessário? É que a minha mãe já declarou por escrito que não pretende o serviço. Não vejo a necessidade...

- Compreendo. Mas sim, não posso concluir o processo sem colocar as questões.

- Diga.

- A residência da Sra. Y é na Rua (...).

- Confirmo.

- E tinha contratado o pacote Funtastic com 142 canais e mensalidade promocional no valor de vinte e nove euros e trinta e dois cêntimos?

- Olhe... agora apanha-me em falso. Confesso que nos últimos dias andei a vasculhar nos papéis todos da minha mãe até descobrir qual o pacote de cabo que ela tinha. E estava capaz de jurar que eram vinte e quatro cêntimos... E 138 canais.

- Não, a informação que tenho é que era de  vinte e nove euros e trinta e dois cêntimos e 142 canais.

- Hmmm. E está certo de que era o pacote Funtastic?

- Sim, essa é a informação que tenho em sistema.

- Por vinte e nove euros e trinta e dois cêntimos e com 142 canais?

- Sim, é exactamente isso que está em sistema.

- Está mesmo seguro?

- Sim, exactamente.

- Então confirmo o pacote e o valor.

- Ah, muito obrigado. E pode dizer-me que tipo de canais são os preferidos da sua mãe?

- Se calhar era melhor dizer-me a lista de canais disponíveis para eu ver se me está a falhar algum.

- Sem qualquer problema. Mas... são 142 canais...

- Pois, mas para o inquérito ser rigoroso...

- Claro. Mas se tiver uma ideia aproximada. Por exemplo, se é uma pessoa com mais idade, talvez os canais de informação, os generalistas...

- Talvez... Mas acho que não. Ponha o MTV Rocks.

- O MTV Rocks?

- Sim, a minha mãe gostava muito de ouvir os Nirvana e dos Red Hot Chili Peppers.

- Ah... vou então registar os canais de música.

- Muito bem. Mas sublinhe o MTV Rocks.

- Muito bem. Senhor Rui Rocha, na residência onde está instalado o serviço pode dizer-me se vivia mais alguém?

- Porquê, desconfia de alguma coisa?

- Ahnn... Não. Não. É só mesmo uma informação requerida pelo sistema.

- Certo. O sistema. Pois então pergunte por favor ao sistema qual a carga de água que faz com que seja preciso dar-lhe informações sobre o número de pessoas que vive em casa da minha mãe para proceder ao cancelamento de um serviço.

- Muito bem, Sr. Rui Rocha.

- Perguntou?

- Quer dizer, não, quer dizer o sistema não responde.

- Foi abaixo?

- Não, quer dizer, não permite fazer perguntas.

- Ah... 73.

- Agora não percebi.

- Ponha que residem ainda 73 pessoas no T2 da minha mãe.

- 73?

- 73. Ponha 73.

- Muito bem, Sr. Rui Rocha.

- Não se esqueceu do 3 depois do 7, pois não?

- Não, de todo. Coloquei 73.

- Óptimo.

- Senhor Rui Rocha, uma outra pergunta. A mãe vivia em casa própria?

- Agradeço-lhe a preocupação. Mas sim, era adequada. Confortável e acolhedora. Só lhe faltava mesmo um bocadinho mais de sol. E de espaço porque eram 74 contando com ela.

- Não, não. O que eu quero saber é se era arrendada.

- É o Senhor que quer saber ou é o sistema? A si digo-lhe de bom grado. Depois desta conversa, já é como se fosse da família. Ao sistema custa-me mais um bocadinho.

- Bem, sou eu para inserir em sistema.

- Pronto. Se é para inserir, está bem. Eu digo-lhe: é arrendada. Mas, já vê. Era barato. A dividir por 74...

- Claro. E o Senhor Rui Rocha não tem o contacto do senhorio?

- Não me diga que vai fazer queixa de que viviam 74 num T2?

- Não, de todo. É só mesmo para inserir em sistema.

- Jura que não é para fazer queixa?

- É só mesmo para o sistema.

- Pois, mas não tenho o contacto. Agora, é capaz de o conhecer. É o Joaquim Couto que tem aquela empresa de construções em Vila Verde.

- Ah, pois. Não conheço. Eu estou em Lisboa.

- Ah, pronto. Então nada feito.

- Senhor Rui Rocha, uma última pergunta. Conhece alguém que não seja cliente da ZON que possa estar interessado em beneficiar da promoção do pacote Funtastic contratado pela sua mãe e que queira indicar-nos.

- O que me está a perguntar é se me estou a lembrar de alguém que me apeteça indicar para beneficiar de uma fantástica promoção aproveitando o facto de a minha mãe estar com uma doença grave?

- Pois, aproveitar a promoção...

- O preço é mesmo vinte e nove euros e trinta e dois cêntimos?

- Confirmo.

- Nesse caso, não. Ainda se fosse pelos vinte e nove e vinte e quatro...

- Agradeço-lhe então a sua disponibilidade e vou dar o processo por concluído. Nos próximos dias será contactado para recolher o equipamento. Muito obrigado.

- Não se preocupe. Não tem de quê. Não quer aproveitar para desejar as melhoras à minha mãe?

- Peço desculpa, agora não percebi.

- Como estava tão preocupado com a saúde dela no princípio da conversa, pensei que quisesse renovar o desejo de pronto restabelecimento.

- Ah, claro que sim.

- Esteja tranquilo. Não me esquecerei de lhe transmitir.

- Então muito obrigado e boa tarde.

- Boa tarde.

Em busca da produtividade

Rui Rocha, 07.08.12

A produtividade é o Santo Graal da economia portuguesa. Todos a procuram mas ela não se deixa encontrar. Agosto é uma boa altura para falar dela. Para uns, a causa da baixa produtividade portuguesa é a indolência (ou mesmo a malandrice) dos trabalhadores. Para outros, é o sistema de ensino que não prepara profissionais qualificados. Muitos referem os custos de contexto e a incapacidade de o Estado fazer a sua parte, nomeadamente ao nível da burocracia e da celeridade da Justiça. Outros tantos referem a falta de visão dos empresários. Vejamos todavia alguns dados interessantes. O quadro seguinte, obtido aqui, compara Portugal com a média da UE a 27 em alguns aspectos: 

 


Por outro lado, o gráfico seguinte, obtido aqui, ilustra a produtividade média em 20 países da UE tendo em conta o número de trabalhadores das empresas:

 

Ou seja, em geral, a produtividade cresce com a dimensão da empresa. Portugal, todavia, emprega 80,9% dos trabalhadores em PME (a média é de 66,9% na UE a 27). Ora, isto não é um problema de qualificação ou de produtividade individual de cada um dos trabalhadores. E dificilmente poderá ser responsabilidade do próprio Estado. Será, em boa parte, uma condicionante de contexto relacionada com a dimensão do próprio mercado. Mas, é muito provável que seja, antes de mais, uma questão cultural relacionada com os próprios empresários. Não de falta de visão, como é usual referir-se. Mas, ao contrário, de excesso de visão. De muitos empresários se considerarem capazes de financiar, gerir e fazer crescer os seus negócios sozinhos. De se verem maiores do que aquilo que na realidade são. E de serem incapazes de juntar forças com outros para ganharem dimensão, explorarem mercados mais amplos, aumentarem a produtividade, tornarem-se competitivos e assegurarem a viabilidade dos seus negócios. Esta é, apenas, uma das vias de análise. Todavia, não parece fazer menos sentido do que defender que a competitividade da economia portuguesa beneficiará muito com a diminuição do número de feriados.

Reuniões

José António Abreu, 12.04.12

Reunião com cerca de vinte participantes. Quando começa já estou farto porque, com perfeita pontualidade britânica aplicada aos típicos atrasos nacionais, a hora marcada passou há vinte minutos. Seguem-se cento e cinquenta de discussões requentadas, apartes idiotas e piadas frouxas, mais ou menos sem ordem, mais ou menos sem objectivo. Assuntos importantes são despachados para canto e assuntos irrelevantes são discutidos até à exaustão. Não estou admirado: é sempre assim. Caio num torpor estupidificante. Os meus movimentos ficam mais lentos, a vista embacia-se-me, nos ouvidos ressoa-me a cacofonia que vai pela sala e no meu cérebro os neurónios suicidam-se um após outro. A sério: consigo ouvir o estalido que acompanha cada morte. Plop, plop, plop. Alguns finam-se discretamente, outros soltam gritinhos agudos em que detecto mais raiva do que desespero. Extinguem-se milhares durante aquelas duas horas e meia. E é sempre assim. Sei que estou perdido e até sei quanto tempo me resta. Projecções feitas numa época em que ainda possuía capacidade para as fazer indicam que, nada mudando, em nove anos atingirei o nível de raciocínio de um pedaço de xisto de dimensões médias.