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Delito de Opinião

Isto anda tudo ligado

Sérgio de Almeida Correia, 25.10.24

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E ciclicamente lá chega mais um caso às páginas da imprensa. Ontem foi Isaltino Morais, hoje é o inefável Miguel Pinto Luz. Amanhã será outro autarca ou governante qualquer.

Sobre os usos e abusos dos dinheiros públicos por parte de mais um ex-autarca e actual membro do Governo, a pagar os linguados, os robalos e a vinhaça nos melhores restaurantes aos amigalhaços e correligionários políticos, aos empresários dos "ajustes directos", a consultores de imagem, jornalistas e investidores anónimos que nunca ninguém sabe se chegaram a investir, nem onde nem quando, nem que benefícios os contribuintes viriam a retirar desses convívios, remeto-vos para a investigação das páginas da revista Sábado e a reportagem publicada na edição desta semana, cujo texto assinado pelo jornalista Marco Alves volta a destacar a inadmissibilidade de alguns comportamentos de titulares de cargos políticos. Comportamentos transversais, de uma forma ou de outra, a todo o espectro político. 

O destaque aqui vai inteirinho, em primeiro lugar, para a argumentação da Câmara Municipal de Cascais para fugir à prestação das informações e de documentos (facturas de despesas do fundo de maneio e acesso a extractos de cartões bancários usados por “Suas Excelências”) relativamente a essa investigação.

Recusar a prestação de documentos e informações alegando “impacto nas rotinas”, perturbação ao “regular funcionamento dos serviços (...) para dar cumprimento a um pedido quase abstracto” para acabar depois no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra a dizer que “não constitui interesse público manifesto e relevante a informação sobre com quem é que os membros do executivo almoçam” e que esses gastos realizados com dinheiro público deviam ser entendidos como reserva da intimidade da vida privada e mereciam protecção constitucional para não ofenderem os limites impostos pela boa-fé e os bons costumes, revela bem o entendimento que esta malta tem da forma como devem ser exercidas funções públicas e de qual o escrutínio a que consideram não dever estar sujeitos.

À argumentação da autarquia de Cascais, digna de um cabo de esquadra, respondeu a decisão judicial referindo desconhecer “quaisquer bons costumes que digam respeito ao número de documentos que se mostra aceitável requerer à administração pública” e que almoços nos exercício de funções públicas e pagos com dinheiros públicos não se inseriam, evidentemente, na esfera íntima e privada dos senhores autarcas.

A este propósito vale ainda a pena ler o editorial do director da revista onde se revela que Miguel Pinto Luz deixou de entregar aos serviços da autarquia as facturas dos seus repastos a expensas da Câmara Municipal de Cascais com os seus amigos políticos após ser publicada, no ano passado, a reportagem sobre as preferências gastronómicas de Isaltino Morais. Atitude infantil e reveladora de que o actual ministro sabia perfeitamente o que estava a fazer e que tal seria censurável. De outro modo não teria mudado de atitude. Percebeu que mais dia menos dia poderia vir a ser apanhado. E foi. Não se tratou de um simples problema de ingenuidade, ignorância ou diferente interpretação de normas legais, mas uma atitude consciente de abuso a coberto da falta de transparência e de escrutínio público.

Como bem diz Nuno Cunha Rolo, na entrevista que na mesma revista dá sobre essa concepção de “bons costumes” do(s) autarca(s) de Cascais, “não há gestão autárquica privada”, menos ainda quando subsidiada pelo dinheiro dos contribuintes, e que as escolhas que estes responsáveis políticos fazem acabam por reflectir “a qualidade ética e confiável da sua gestão”.

É claro que depois, quando vão a ministros, transportam consigo pela vida fora esse sentimento geral de impunidade.

Que cultivado desde os tempos em que andaram pelas autarquias e empresas delas dependentes, ao jeito de coutadas privadas, de onde ascenderam por um bambúrrio e múltiplas manobras de bastidores, aprendidas nessas associações organizadas de formação de demagogos, populistas e irresponsáveis que são as juventudes partidárias, os guiará até aos mais altos cargos do Estado, assim se assegurando que os melhores trapezistas, não sendo os mais bem preparados e habilitados para o exercício de funções públicas, as exercerão com o maior desprezo pelo escrutínio público, em mais um sinal profundo do grau de degenerescência ética e moral atingido pelas nossas elites.

Não sei como, nem quando, será possível sairmos deste tugúrio onde nos abrigamos e melhor ou pior, mais ou menos passivamente, vamos convivendo com a mediocridade. Eu convivo muito mal.

Mas ao contrário do que diz a grande Lídia Jorge, na excelente entrevista ao El Pais, publicada em 12 de Outubro pp., e que a Sábado noutra secção também sublinha, nós não criámos uma democracia que permitisse a corrupção ou fomentasse o nepotismo.

Nós permitimos sim que a nossa democracia, exactamente porque as elites que havia envelheceram, fracassaram e se desinteressaram pela formação de uma nova, se deixasse perverter, condescendendo com a banalização da corrupção, do nepotismo e as más práticas, constantemente fechando os olhos e fomentando modelos de sucesso cimentados na esperteza, na ignorância, no culto da frivolidade, que depois alastraram à magistratura, à banca e à classe empresarial, tudo impregnado numa política de robalos, de tacos de golfe, de convites e bilhetes para jogos de futebol, numa multiplicidade de oferendas e prebendas que se perdem no laxismo ético e moral da classe política.

E essa condescendência, essa perversão de valores e de princípios, esse abandalhamento daquilo que é básico e essencial ao futuro de qualquer nação, à defesa da democracia e do Estado de Direito e à formação de novas elites, é o que transparece até no discurso dessa referência senatorial da nossa democracia que é um Marques Mendes, quando a propósito dos hábitos feudais do ministro Pinto Luz na autarquia de Cascais, esclarece o jornalista, desvalorizando esse tipo de comportamentos em jeito de gracejo, ao afirmar que “se só aparece essa factura é porque fui eu que paguei os outros almoços”.

Como se isso desse vontade de rir. E como se a promoção desses almoços de convívio entre amigos e políticos, do partido dele e de “outros quadrantes”, ainda que fosse apenas um, enquanto titulares de cargos políticos e pagos com dinheiros públicos, para se discutirem listas, prepararem congressos ou se gizarem estratégias políticas, empresariais e/ou eleitorais, devessem ser considerados e aceites como banais e até desejáveis.

Sim, porque não consta que de cada vez que um munícipe de Cascais tem um problema para resolver, o vice-presidente da autarquia ou o vereador com o pelouro o convidem para almoçar no Visconde da Luz ou n’ O Pescador para se inteirarem do problema do esgoto em S. Domingos de Rana, da licença que nunca mais é emitida ou do buraco não sinalizado no pavimento da Estrada da Torre que dá cabo das jantes e arrumou com a suspensão de uns quantos carros. Embora estes últimos até pudessem ser considerados mais de trabalho do que aqueles que Pinto Luz partilhou com Sebastião Bugalho, o que agora é militante do PSD e deputado europeu, com Moita de Deus ou Marques Lopes.

E não, não se trata de um qualquer problema decorrente de uma visão miserabilista destas coisas. Ou de não se perceber em que medida esse tipo de atitudes, e o seu culto, visto como sendo um padrão aceitável, é prejudicial à imagem da política e dos políticos, esquecendo-se que por aí também se impulsionam, à mais leve faísca, como ultimamente se tem visto, comportamentos vandalizadores e desafiadores da autoridade do Estado e das instituições entre sectores mais desfavorecidos, dos quais se aproveitam uns quantos gandulos que a nossa sociedade deixou que proliferassem e se reproduzissem sem eira nem beira.

Desconheço se esta gente terá a noção do desprestígio que tudo isto acarreta para a democracia, para os partidos e as instituições do Estado. E de como isso é ofensivo para a generalidade dos cidadãos que trabalha e educa os seus filhos procurando transmitir-lhes o melhor e esperando que um dia sejam cidadãos bem formados, trabalhadores e interessados. Admito mesmo que nunca deverão ter tido tempo para pensar nisso, olhando para tal como questões menores que não dão dinheiro nem enchem os sentidos. Nalguns casos, a apreciar pela voracidade, será mais o bandulho.

O que conheço e sei de muitos destes parolos é que quando se trata de serem eles a pagar a conta do seu próprio bolso começam logo por dizer aos outros que se pode dispensar o couvert,  e estão sempre a iniciar dietas, ou com problemas de falta de apetite, e no final ficam à espera para ver se alguém se chega à frente porque só comeram um queijinho fresco e umas pataniscas.

Existe uma percepção errada, e pelo que se vê e ouve aceite como normal, do que deva ser a utilização das verbas de representação e de cartões de crédito facultados aos titulares de determinados cargos públicos. Como antes havia em relação às viagens. Quem não se recorda das negociatas de deputados com agências de viagens. Procedimento extensivo a membros de diversos governos.

Escasseiam hoje exemplos de servidores públicos que dêem nota de contenção, frugalidade e bom senso no uso que é feito das facilidades inerentes aos cargos políticos. Quase que existe uma convicção generalizada de que se há um limite até X no cartão de crédito pago pela autarquia é preciso gastá-lo, ainda que em finalidades diferentes das que estiveram na base da sua atribuição pelo legislador, apenas porque é possível fazê-lo sem dar nas vistas, cultivando figura de abastado e benemérito, ou porque não serão os subordinados que irão fazer o escrutínio, mesmo que depois o comentem por portas travessas.

Bem pelo contrário. O que vemos em abundância são membros do Governo, autarcas, dirigentes dos partidos políticos, em especial dos estruturantes da nossa democracia, dando os piores exemplos. O caso de Pinto Luz, como antes o de Isaltino Morais, como há dias, noutra vertente, os protagonizados pelo “cantinflas” que faz de chefe da diplomacia, perante chefes militares, e pelo “fedayin” que hoje dirige o PS, em relação à imposição de uma nova lei da rolha aos militantes do partido do senhor Carlos César, a juntar a tantos outros que são motivo de chacota, vergonha e revolta entre tantos dos nossos compatriotas, que olham para a política como uma actividade para chicos-espertos e videirinhos, ultrapassam os limites da mais surreal das imaginações.

Mas é o que temos. E dos outros, dos pirómanos, é melhor nem falar. 

O espelho das nossas elites

Sérgio de Almeida Correia, 18.08.23

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Que por esse Portugal fora, e há dezenas de anos, as autarquias têm sido pasto fértil para a produção das nossas elites políticas, não constitui facto novo.

Que, muitas vezes, os respectivos titulares têm estado envolvidos em múltiplos casos judiciais, de má gestão de dinheiros públicos, de clientelismo, nepotismo, compadrio, favorecimento de familiares e amigos, e em milhares de investigações e processos de natureza criminal, que vão do abuso de poder ao peculato, à falsificação de documentos, ao branqueamento de capitais e à corrupção pura e dura, também não é nada, infelizmente, que seja novo para os portugueses. Tudo isso tem feito parte dos quase cinquenta anos de democracia que levamos.

Também é verdade que alguns autarcas, e muitos deles praticamente desconhecidos, têm feito trabalho exemplar nas autarquias, não raro sem alarido e de modo mais ou menos discreto, junto das comunidades que servem, beneficiando o país e as populações, resolvendo problemas, fazendo o que o Estado centralista e despesista não consegue fazer.

E depois há os outros. E dos outros, de quando em vez, lá se vai sabendo qualquer coisa.

Uma notícia e uma reportagem publicadas hoje na revista Sábado vieram lembrar-nos que para lá do país real, dos que não têm dinheiro para pagar as contas em casa ou suportarem os encargos com a saúde e as escolas dos filhos, há um outro país que vive, literalmente, à pala das autarquias, do "tacho". Há uns que só por serem do partido A ou B têm trabalho e salário garantido, mesmo depois de perderem eleições, e outros que fazem vidas de rico com "salários de miséria". 

No primeiro caso, em Sesimbra, temos o ex-deputado comunista Miguel Tiago, a quem a Câmara continua a oferecer anualmente um contrato de trabalho para prestação de serviços de "assessoria técnica na área do ambiente e desenvolvimento sustentável", à razão de cerca de 3.000 euros brutos por mês. Relata a Sábado que o Miguel foi contratado após "consulta" a três entidades, mas ninguém foi capaz de dizer quem mais foi consultado para prestar esse serviço (p. 20). 

A outra situação é bem mais escabrosa e reveladora da falta de vergonha, do desplante, da dimensão do abuso e dos gostos de novo-rico de alguns servidores da causa pública. 

Repare-se que não tenho nada contra o conforto, o luxo ou o gosto por coisas boas e caras, desde que se tenha dinheiro para elas sem andar a roubar, a esfolar o erário público, a enganar o próximo, ou a abusar da posição que transitoriamente se ocupa, embora considere que a ostentação é exemplo de muito mau gosto, coisa para labregos e laparotos.

Mas mais grave do que os almoços de trabalho – é o que está em causa na reportagem – de Isaltino Morais e seus muchachos (páginas 43 a 46), porque também os há em qualquer latitude, e muitas vezes são imprescindíveis, é verificar que essas refeições ocorrem com uma regularidade impressionante, nos melhores restaurantes de Oeiras e Lisboa, e incluem, pelas facturas a que a revista teve acesso, invariavelmente, quantidades generosas de frutos do mar e da terra, de lagostas a gambas, ostras e refinados presuntos, santola, lavagante, leitão, robalos, peixes-galo, queijos de Azeitão, sushi, sapateiras, caranguejos, camarão-tigre de Moçambique, sem esquecer os muitos gelados para a sobremesa, que ali é tudo gente de alimento, gulosa e lambona.

É natural que quem assim tem necessidade de almoçar para poder trabalhar e resolver os problemas dos outros, por vezes tenha de estar a comer até depois das 20 horas, altura em que pede a conta, e seja obrigado a consumir "saké afrodisíaco", os melhores vinhos, e bebidas espirituosas em quantidade suficiente para que ninguém se esqueça da agenda de trabalho nem do motivo do repasto. 

O resultado, está claro, são refeições de centenas de euros pagas com o dinheiro da autarquia noutros tantos milhares de refeições ao longo de cinco ou seis anos. Um "almoço de trabalho" a mais de 140 euros por cabeça não é um almoço de trabalho. É um "banquete de trabalho". Daí que se veja como normal que uma vereadora se tenha alapado com 450 refeições, o presidente, o chefe de gabinete, o vice-presidente e uma adjunta com cerca de 300 refeições cada um, e até o antigo secretário de Estado da Cultura do poupado Passos Coelho, Barreto Xavier, se alambazou com 77 refeições de 2019 para cá.

Evidentemente que a inclusão de tabaco na conta (charutos?) foram "lapsos", a corrigir oportunamente, mas fico com dificuldade em perceber como é possível arranjar apetite para se chegarem a fazer quatro, três e até dois almoços no mesmo dia! As facturas não devem mentir. 

Onde é que aquela gente "enfiará" tanta comida? Ou será que aproveitam para levar alguma para casa para depois convidarem os amigos e distribuírem à família e aos vizinhos?

Confesso, todavia, que o que me faz mesmo mais confusão é a lata desta malta, pois que a maioria se não estivesse nos lugares em que está não seria com os seus ordenados de "políticos" e de funcionários públicos remediados que ao longo de anos encheriam as suas vistosas protuberâncias com tais iguarias. 

Porque não seria, certamente, com os "salários de miséria" que se poderiam dar ao luxo de terem tantos almoços de trabalho, a ponto de haver necessidade de em três facturas de outras tantas refeições, a cerca de 300 euros cada, se ser obrigado a rabiscar no verso "Saladas Sr. Presidente", sinal de que nesses dias Sua Excelência estaria de dieta, ou, quem sabe, ainda a recuperar do almoço de trabalho do dia anterior.

Sempre ouvi dizer que quem não tem dinheiro não tem vícios. E que a discrição é uma virtude, até para não se ofender ninguém. Mais a mais quando se ocupa um cargo público. E que há que respeitar os sentimentos dos outros, por vezes, também, a desgraça alheia, pois que nem todos têm a mesma sorte na vida. Mas pelos exemplos que diariamente nos chegam das nossas elites políticas e empresariais não terá sido essa a cartilha de muitos.

O juiz Carlos Alexandre, exemplo que também me pareceu extremo e de muito mau gosto para o ter confessado a um jornalista, atenta a sua posição no universo dos profissionais pagos pelo Estado, ainda que com estatuto especial, pode não ter dinheiro para mudar a fechadura da porta de casa depois de ter sido visitado por desconhecidos mais do que uma vez. E muitos mais haverá como o tal juiz, por Portugal fora, que não só não têm para a fechadura como para comer decentemente e alimentarem os seus filhos. O que constitui uma tragédia que a todos nos envergonha. Porém, para alguns autarcas, pese embora esse universo desigual e a necessidade dos outros portugueses terem de partilhar com eles o mesmo país, não há-de faltar o Pêra Manca e o lavagante à custa das autarquias, isto é, dos outros e dos impostos que estes pagam. Não era preciso serem como o miserável do Botas ou como o Cunhal, mas fossem muitos deles a pagar do seu bolso e continuariam nos croquetes, nos bitoques e nas febras.

E não interessa se trabalham muito ou pouco; não é isso que está em causa.

Podem ter bom gosto, e ultimamente mais caro e refinado, que serão sempre uns pacóvios e umas deslumbradas que dão mau nome às autarquias, à classe política em geral, sempre à espera de uma oportunidade para se armarem em finórios. E que são, por muito que nos custe, o espelho das nossas miseráveis e ignorantes elites.

Uma democracia consolidada, sim, é verdade; não deixando de ser um país de isaltinos, de venturas e de "só-cretinos". 

Uma verdadeira choldra paga pelos contribuintes

Sérgio de Almeida Correia, 07.07.23

WhatsApp-Image-2023-05-10-at-17.56.54-8a5095df.jpe(foto via Jornal Económico)

Nos últimos dias tirei parte do meu tempo para ler a versão preliminar do Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito à tutela política da gestão da TAP. Foi um exercício penoso. Não fiquei mais esclarecido do que estava, embora tivesse confirmado todas as suspeitas que tinha.

Para além do título do documento ser enganador, já que não se tratou de um qualquer "inquérito à tutela política", mas antes de um conjunto desconchavado de perguntas e respostas a uma infinidade de criaturas, algumas saídas dos camarins de um filme de terror de segunda linha, o conteúdo é maçudo, confuso, numa linguagem pouco clara, mal escrito, em suma, "comprido e chato". 

Quem não quiser perder tempo pode começar pelas conclusões (p. 171 e seguintes) para perceber o que digo: "Até 2020, o Estado não injetou capital na TAP desde 1997, em resultado de um plano de reestruturação e saneamento económico e financeiro, autorizado pela Comissão Europeia, no valor de 900 milhões de euros, que vinha a ser aplicado desde 1994". É melhor ler de novo.

Mais exemplos (curtos para que as pessoas não deixem de ler esta nota até ao fim): "4. Entre 2012 e 2014 os capitais próprios da TAP degradaram-se decorrente, sobretudo, da situação de indefinição do processo de reprivatização"; "13. Entende-se que, o contexto político que se vivia no momento, a reprivatização não deveria ter sido concluída naquela data"; "14. A emissão das “Cartas de Conforto” foram uma condição essencial ao processo de reprivatização. As garantias asseguradas nessas “Cartas de Conforto” investiram o Estado numa posição materialmente similar à qualidade de acionista único, como refere o Tribunal de Contas.".

Não vale a pena continuar. O tempo é precioso e aquela coisa é tão medíocre que me espanta que tenha conhecido a luz do dia, ainda que sob forma preliminar. Como foi possível?

Porém, há duas ou três coisas com as quais todos os portugueses podem ficar com a certeza.

Uma é a de que não só a maioria de toda aquela gente é má, nalguns casos mesmo muito má, e que não serve para estar a cuidar dos assuntos do Estado ou dos interesses de uma empresa considerada como estratégica para os interesses nacionais.

Podemos não saber como lá chegaram, mas ficamos com a garantia de que a falta de preparação e a desresponsabilização são dados adquiridos para quase toda aquela malta. Gente paga a peso de ouro para o que demonstra saber, e para o modo como faz, que com pouco ou nenhum esforço produz inutilidades pagas por todos os contribuintes enquanto trata da sua vidinha. Dir-se-ia que muitos até evitam intervir, enquanto brincam com o telemóvel nas reuniões da CPI ou dos conselhos de administração das empresas públicas, para melhor escaparem entre os pingos da chuva.

Outra conclusão que se pode facilmente extrair é a de que a forma como foi recrutada a ex-presidente da TAP não constitui garantia de coisa alguma. Bem pelo contrário. Tratou-se de um processo caro, moroso, de onde se evidencia o desconhecimento e a impreparação da escolhida para lidar com os instrumentos societários e legais que regem a vida da empresa.

As más assessorias, o mau aconselhamento e o compadrio político-clientelar são também realidades bem visíveis.

Depois, ressalta à vista a informalidade, o desleixo, a falta de rigor daquele modo de gerir uma entidade com a dimensão e a importância da TAP. O caso relativo à ausência dos contratos de gestão é de bradar aos céus e demonstrativo da irracionalidade em que vive a empresa, mas também do mundo surreal em que vivem os sucessivos governos, os seus administradores e os partidos políticos com responsabilidades na gestão daquela, o que se completa com a falta de senso político, jurídico e empresarial subjacente a muitas das decisões tomadas em tudo aquilo.

Não se percebe o que faz tanta gente na empresa, nem para que serve o seu "departamento jurídico". Menos ainda a gente que gravita à sua volta, nalguns casos evidenciando-se situações de discutível legalidade e de eventuais conflitos de interesses, num quadro que se me afigura como recorrente no quotidiano da vida de muitas empresas públicas ou participadas pelo Estado.

A propósito disto, permito-me chamar a vossa atenção para mais uma história rocambolesca na área da Defesa. Não sei se será sina das empresas do Estado, mas naquela área, e ultimamente com o figurão "jurista Marco Capitão Ferreira", actual Secretário de Estado da Defesa, parece que não há nenhuma situação que não dê em imbróglio.

A avassaladora mediocridade das nossas elites políticas e empresariais é de tal forma destacada pelo versão preliminar do "relatório" da CPI, e por tantos outros “casos de polícia” que diariamente vêm a lume, que dir-se-ia não existir, sequer, há décadas, qualquer processo de recrutamento dessas elites.

O ex-ministro Marçal Grilo escreveu, se a memória não me atraiçoa, que difícil era sentá-los. Pois agora já estão sentados. E bem sentados. No Governo, na Assembleia da República, nos partidos, nas empresas. Pena é que até lá chegarem e se sentarem não tenham aprendido nada. Rigorosamente nada.

E  que continuemos a ser nós a pagar, por essa falta de aprendizagem, diariamente, os erros da sua ignorância e impreparação para estarem nos partidos políticos, lidarem com os negócios do Estado, ou, até, para elaborarem um simples relatório. Que seja legível e em português decente para a maioria dos portugueses.

Isto só lá vai com uma revolução a sério.