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Delito de Opinião

O regresso de uma Frente Popular?

João Pedro Pimenta, 19.05.22

Vindo de uns dias em Paris, primeira viagem a sério pós-pandemia, não pude deixar de reparar, pelas notícias e pelos cartazes que ainda se colam nas paredes, no clima político vigente, e não eram só os preparativos para a (re)tomada de posse no Eliseu e do Dia da Europa.

Depois das eleições presidenciais francesas, afinal menos renhidas do que se pensava e que representaram novo desvio das sondagens (que eram mais favoráveis a Marine Le Pen), dando um novo mandato a Emmanuel Macron, constituindo, como escreveu o Pedro Correia, uma importante derrota política e estratégica para Vladimir Putin, seguem-se as legislativas. 

A divisão em três blocos políticos, verificada nas presidenciais, tende a repetir-se. A Republique en Marche, de Macron, de ideologia "liberal-social" e basicamente centrista, que arrasou as faixas moderadas dos outrora dominantes Partido Socialista e partido gaullista (que mudou de denominação várias vezes, sendo a última Les Républicains), assim como as últimas legislativas, quando só tinha um mês, deve voltar a ganhar, embora com menos lugares que em 2017. As legislativas na V República, a seguir às presidenciais, tendem a confirmar o voto destas, dando uma maioria na câmara como respaldo do sistema semi-presidencialista, havendo poucos casos de coabitação. O mesmo deve suceder agora, mas com uma maior divisão.

Marine Le Pen, em crescendo, quererá sem dúvida alargar o seu grupo parlamentar, pouco numeroso, já que o sistema uninominal e maioritário francês, baseado em duas voltas (em que por vezes há três partidos na segunda), tem pouca correspondência com o número de votos. Com menos "barreiras sanitárias" poderá aproveitar em muitas segundas voltas os votos do movimento de Erich Zemmour, que não se revelou o concorrente perigoso que prometia ser e que até favoreceu Le Pen, com um efeito de contraste como candidato ainda mais radical. Para além da sua RN (ex-FN), contará com estes votos e de habituais aliados, como Dupont-Aignan. O surgimento meteórico de Macron, ao esvaziar os Republicains,  permitiu que alas mais direitistas e soberanistas deste partido se transferissem aos poucos para o de Le Pen, dando-lhe o suporte eleitoral de que goza hoje. A teoria das "três direitas francesas", de Réné Rémond, assinala existir uma direita legitimista (e mais tarde fascista), pré-revolucionária baseada em figuras como Charles Murras e Pétain, por exemplo; uma liberal e "orleanista", de que uma das figuras de proa mais recentes seria Giscard d´Estaing; e uma direita bonapartista/gaullista, mais centralizada e estatizante, centrada num líder carismático, como Napoleão e principalmente De Gaulle. É esta última a dominante em França, mas Le Pen, que partiu com o seu pai da corrente legitimista, de resto em declínio, acolhe muito do gaullismo mais à direita. E há ainda uma corrente sempre presente que parece ser uma inspiração directa: o poujadismo, em parte sinónimo de populismo, que nos anos cinquenta, sob a liderança de Pierre Poujade, reuniu um bloco de pequena classe média composto de comerciantes, agricultores, artesãos e pequenos industriais, sobretudo da "province", e alguns críticos da descolonização, que protestavam contra o poder de Paris. Não por acaso Jean Marie Le Pen começou a sua carreira como deputado por este movimento.

Mas o assunto que actualmente domina a política francesa é a união das esquerdas. Com o cúmulo de votos, que por pouco não o levou à segunda volta das presidenciais, Jean-Luc Mélenchon guindou-se como a mais proeminente e notória figura da esquerda em França. Não só levou a sua France Insoumisse a crescer, ombreando com a RN, como viu a concorrência a mingar: os ecologistas ficaram aquém do que se esperava, os comunistas há largos anos que foram suplantados, e sobretudo os socialistas, que estiveram na presidência até 2017, tiveram o pior resultado de que há memória, com os minúsculos 1,74 conseguidos por Anne Hidalgo, "maire" de Paris. Conseguiram até, suprema vergonha, ficar atrás dos comunistas, numa inversão pobrezinha do que aconteceu nos anos oitenta, quando o PSF de Mitterrand dominou e diminuiu o PCF de Georges Marchais depois de o levar para o governo. 

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A célebre sede do PCF, da autoria do "camarada" Óscar Niemeyer

Curiosamente, nas últimas eleições municipais, os socialistas e ecologistas tinham conseguido grandes triunfos, nalguns casos em conjunto, ao conquistar as principais cidades do país, assim como os Republicanos, deixando as formações de Macron e Le Pen com pífios ganhos, demonstrando uma relação local inversamente proporcional à nacional. 

Os planos de Mélenchon têm como objectivo uma força de esquerda constituída pelo seu movimento, pelos ecologistas, pelo PCF, pelos socialistas e até pelos trotsquistas do Nouveau Parti Anticapitaliste, que aqui correspondem à esquerda do Bloco, provavelmente o MAS. Estes últimos recusaram, por considerarem a frente "demasiado social-democrata", mas os socialistas acabaram por aderir oficialmente. Não sem grande contestação interna: face às tendências eurocépticas de Mélenchon, o partido que teve como figuras de proa François Mitterrand, Michel Rocard e Jacques Delors (e recorde-se, na mesma linha partidária, Guy Mollet, Christian Pineau e Maurice Faure, fundadores da CEE), além de outros mais recentes como Laurent Fabius, François Hollande ou Lionel Jospin, dividiu-se claramente, tendo estes dois últimos sido vozes audíveis contra esta verdadeira dissolução de um partido histórico e fulcral na política francesa numa coligação tão longe dos seus valores. É aliás tristemente irónico, uma vez que nos anos noventa Rocard, considerando o PSF já algo ultrapassado, lançara a ideia do "big-bang" político juntando sociais democratas, ecologistas, centristas e até comunistas renovadores. A ideia recebeu muitos aplausos mas nunca germinou, e agora o que se verifica é não um big-bang mas uma implosão para que dos destroços saia algo mais velho.

A imprensa portuguesa referiu-se a uma "geringonça" francesa. Na realidade, nem precisava de ir por aí, porque em França isso já teve um nome: Frente Popular. E para além da de 1936, numa época particularmente sombria, houve a já referida experiência de Mitterrand em 1981, que se revelaria uma armadilha para o PCF, que a partir daí declinou como nunca antes, sobretudo a partir do momento em que o governo socialista a que estava ligado virou o rumo das políticas. 

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Propaganda de esquerda, nas imediações do Tolbiac 

Tanto o governo da Frente Popular como o dos anos oitenta deixaram algumas medida que ficariam para a posteridade, como as férias pagas e a abolição da pena de morte. As ideias de Mélenchon, porém, parecem ser tributárias de um passado pouco atento à realidade: aumento pronunciado do salário mínimo, recuo da idade da reforma para os 60 anos (a França é dos países da UE com idade de reforma mais baixa, coisa que Macron pretende contrariar subindo-a) ou nacionalizações, principalmente na área dos transportes. E sobretudo, desobediência e incumprimento dos tratados europeus quando considerarem que tal se justifique. Se são bem vindas à democracia novas ideias e novas forças, o que apresenta Mélenchon não parece ser um caminho muito aconselhável num país com um estado social tão vasto e uma burocracia tão pronunciada, e que apesar de alguns problemas sociais que merecem atenção e têm levado a certa contestação, apresenta um crescimento económico e uma taxa de emprego invejáveis.

O novel movimento já tem sigla e nome: NUPES (Nouvelle Union Populaire Écologique et Sociale). Dificilmente constituirá governo, mas será uma pedra no sapato de Macron e um impulsionador de movimentos de rua, mais influente do que o de Le Pen, porque promete eleger muitos mais deputados. Se terá sucesso duradouro ou não, até porque Mélenchon já tem setenta anos, dependerá igualmente de como Macron conseguir governar a França. Se este não conseguir, adivinham-se retrocessos.

Uma vitória clara de Macron

Pedro Correia, 26.04.22

A vitória clara e concludente de Emmanuel Macron na ronda final da eleição presidencial em França, mais que duplicando a percentagem da primeira volta, fica bem evidente neste mapa eleitoral do escrutínio de domingo. Com os círculos em que o Presidente saiu vencedor pintados de amarelo e os da sua rival, Marine le Pen, tingidos de azul.

 

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A derrota de Putin em França

Pedro Correia, 25.04.22

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Vladímir Putin foi derrotado em França. Por interposta candidata. A que se apressou a reconhecer a anexação ilegal da Crimeia, recebeu financiamento russo e a 8 de Fevereiro - contra todas as evidências - afirmou sem hesitar: «Não acredito que a Rússia queira invadir a Ucrânia.» O que diz tudo sobre a sua falta de clarividência em política internacional. E sobre o seu servilismo face a Moscovo.

Os eleitores concluíram - e muito bem - que esta candidata não era digna de chefiar o Estado francês. Para resumir tudo numa palavra, Marine Le Pen é inapresentável. Emmanuel Macron emerge deste escrutínio como óbvio vencedor, com mais 18 pontos percentuais do que a adversária, contrariando aqueles que vaticinavam uma disputa «taco a taco», cheia de «incertezas até ao fim». Balelas.

Apesar dos brutais constrangimentos económicos e sociais impostos por dois anos de pandemia, França apresenta hoje uma das melhores taxas de crescimento na Europa (7% em 2021) e regista uma redução quase histórica do desemprego. Daí este triunfo claro, superior em percentagem ao que o carismático general De Gaulle alcançou em 1965, quando enfrentou François Mitterrand nas urnas: venceu com 55% na segunda volta. Agora Macron obtém 59%

 

Escrevo estas linhas com imensa satisfação: como aqui escrevi na sexta-feira, se fosse francês teria votado em nele.

Há 20 anos que nenhum Presidente era reeleito em França: esta é uma proeza suplementar, também no plano simbólico, do inquilino do Eliseu. E que inaugura uma tendência que vai registar-se a partir de agora em todas as eleições na Europa: quanto mais um candidato estiver conotado com Putin, menos hipóteses terá de vencer. Pela rejeição visceral que isso provoca nos eleitores - de Lisboa a Riga, de Estocolmo a Trieste. Ninguém quer a pata russa em cima.

 

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Parabéns a Macron, o homem que Putin queria ver longe do poder. O ditador enganou-se: os franceses mostraram muito mais clarividência do que ele imaginava. Tal como os ucranianos demonstram, em todas as horas de todos os dias, uma tenacidade e uma resistência que ele jamais supôs.

É uma excelente notícia. Não só para França, pois abre uma luz de esperança também na Ucrânia: se Le Pen tivesse vencido, como algumas luminárias anteviam, isso seria um pesadelo acrescido para aquele martirizado povo.

Os franceses ficaram servidos em matéria de colaboracionismo: não precisam de nenhum outro. Já lhes bastou o decrépito marechal Pétain, ajoelhado perante Hitler entre 1940 e 1944. 

Em quem votaria Putin em França?

Pedro Correia, 23.04.22

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Marine Le Pen com Putin em Moscovo (24 de Março de 2017)

 

Os franceses vão amanhã às urnas para escolherem quem ocupará o Palácio do Eliseu nos próximos cinco anos.

Se eu fosse francês, não hesitaria um momento: o meu voto ajudaria a reconduzir o actual Presidente. Emmanuel Macron enfrenta nesta segunda volta uma recauchutada Marine Le Pen, que para seduzir eleitores não pertencentes à direita radical abandonou as bandeiras mais extremistas que agitara no escrutínio de 2017. Riscou o anterior slogan "Frexit", inspirado no Brexit: deixou de querer a França fora da União Europeia. E não voltou a exigir o regresso ao franco como moeda nacional: agora já aceita o euro.

Macron é a antítese da sua adversária: não imita os televangelistas no púlpito, não proclama frases demagógicas, não faz cedências ao populismo. Nem andou a mendigar financiamento russo, como o partido da candidata que em 2011 se confessava «admiradora» de Vladímir Putin, em 2017 recusou haver «qualquer ilegalidade» na anexação da Crimeia e no passado dia 8 de Fevereiro, em entrevista à BBC, declarava sem pestanejar: «Não acredito que a Rússia queira invadir a Ucrânia.» Dezasseis dias antes da invasão.

Nesta eleição presidencial francesa, com a guerra a decorrer na Ucrânia, impõe-se a pergunta, para arrumar ideias: quem escolheria o ditador russo, se pudesse votar? Marine Le Pen.

Razão suficiente, desde logo, para eu me encontrar na margem oposta.

Quando a abstenção decide eleições

João Pedro Pimenta, 15.07.20

 

Três meses e meio depois a França lá conseguiu realizar a segunda volta das eleições municipais, que tinham ficado a meio por causa da pandemia, após a polémica primeira volta (por não ter sido adiada).

Como resultado, os ecologistas tiveram vitórias retumbantes, conquistando Bordéus, Lyon, Besançon, Tours, Poitiers, tomando parte na manutenção de Paris por parte da esquerda e na sua conquista de Marselha.

O Partido Socialista resiste à queda na irrelevância mantendo Paris, além de outras cidades e parte da banlieue da capital. Depois de anos terríveis, com a perda da presidência, de quase todos os deputados e até da histórica sede da rue Solférino, e da sangria de militantes, os herdeiros de Mitterrand e da SFIO ganham aqui algum fôlego.

A direita tradicional gaulista dos Republicanos ganha muitos municípios mas de escassa importância, com excepções como Toulouse ou Metz, e revela também um declínio crescente, depois de durante décadas ter sido a grande força política francesa.

À esquerda do PS mantêm-se alguns bastiões tradicionais do PCF à volta de Paris e no Sudoeste.

A extrema-direita ex-FN mostra que as municipais também não são o seu terreno favorito, conservando alguns municípios no Sudeste.

E por fim o centro, dominado pela Republique en Marche, do Presidente Emmanuel Macron, revelando fracos resultados e escassa implantação local, confirmando que é um movimento ultra personalizado na figura do(s) seu(s) líderes. Teve como escasso sucesso a eleição de Édouard Philippe por Le Havre e pouco mais.

 

Dois factores fulcrais nesta eleição, um que não é surpreendente, e outro que, sendo-o, talvez se relaccione com o outro. O primeiro é a abstenção, esperada dada a prevalência da pandemia, embora num clima menos pesado do que o da primeira volta. O segundo são os resultados extraordinários dos ecologistas.

Poderá a abstenção ter jogado a seu favor? É bem possível. Note-se a queda dos Republicanos, por exemplo, e a perda de importantes domínios municipais. É um partido assente em eleitores normalmente mais velhos, fiéis ao partido ou às suas sucessivas existências. O mesmo se poderá dizer do Partido Socialista, que até sofreu uma sangria em forma de pequenos movimentos formados pelas alas mais jovens.

Quanto à ReM, como se disse, está demasiado centrado em Macron e tem escassa representação local. Assim, e por causa do receio da epidemia, muitos eleitores mais velhos optaram por não votar.

Os ecologistas recebem por norma um voto mais jovem, e com a ida às urnas de gerações mais novas, é bem possível que a balança se tenha inclinado para o seu lado. Neste caso, o receio da situação terá levado a que parte do eleitorado se abstivesse, permitindo assim uma mudança política (e em parte geracional).

 

É uma nota interessante e ao mesmo tempo ligeiramente inquietante: pode uma situação extra-política levar a uma alteração numa eleição? Há o caso de Espanha em 2004, quando o PP, já pronto a ganhar as eleições, acabou por perdê-las na sequência dos atentados de Atocha e da forma como o seu governo geriu a situação. Mas aí ainda dependia dos próprios. Aqui não, uma situação alheia influencia uma parte do eleitorado e dá azo a alterações políticas de alguma monta.

Repare-se que nas eleições dos últimos dias na Polónia (presidenciais) e em Espanha (regionais) a votação até subiu e ganhou quem já lá estava. O oposto do que se passou em França. É por isso razoável pensar que um evento extra-politico pode mesmo mudar o curso de uma eleição, seja porque é retumbante e altera o sentido de voto, seja porque leva a que uma parte do eleitorado não vote.

 

Entretanto, fica a nota, os ecologistas ajudaram a esquerda a conquistar Marselha, antes reduto dos Republicanos. Mas na cidade da Provença a figura que domina as atenções da cidade não é nenhum político, nem sequer a nova maire. Nestes tempos de epidemia, o infecciologista e académico Didier Raoult, dos mais reputados na área, tem ganho uma especial proeminência, pelas suas declarações pouco ortodoxas, por ser um dos teóricos do tratamento à base de hidroxicloroquina e pela sua figura bizarra, que lhe valeu a alcunha de Panoramix.

Se se candidatasse à chefia do município de Marselha, ganharia decerto com enormíssima maioria. Até já serve de motivo para tatuagens.

 

Actualités | Le 18:18 - Le professeur Raoult toujours dans le cœur ...

França depois das legislativas - resumo fora de horas com uma nota final cinéfila

João Pedro Pimenta, 26.07.17

Já foram há mais de um mês, mas talvez pelo facto da segunda volta ter coincidido com o grande incêndio de Pedrógão, passaram algo despercebidas entre nós. As eleições legislativas francesas quebraram o habitual panorama partidário, afundaram algumas das forças polí­ticas mais tradicionais e deram uma maioria legislativa ao novo presidente Emmanuel Macron e ao seu En Marche, que, recordemos, é um movimento centrista com pouco mais de um ano e de que até há pouco tempo se duvidava que fosse sequer apresentar-se às legislativas, dadas as dificuldades organizativas e em arranjar candidatos. Mas na senda da robusta vitória presidencial de Macron, o agora denominado Republique en Marche posicionou-se ao centro, baralhando os equilíbrios ideológicos, e pescou ao centro-esquerda e ao centro-direita, para além de ter recebido o apoio do MoDem de François Bayou, um experiente nestas lides que transporta consigo parte do legado da antiga UDF. Sem eleger a enormidade de deputados que se chegou a prever (algumas sondagens davam-lhe mais de 400), conseguiu ainda assim uma maioria absoluta de 350 lugares em 577. Depois do Eliseu, Macron ganhou o Palais Bourbon e pode seguir com o seu projecto para a França.
 
Quanto aos outros partidos, os Republicanos, depois da desilusão Fillon, aguentaram-se a custo com algumas pannes como segunda força parlamentar, com a tarefa de aguentarem o legado do mais forte -ismo francês do último meio século. A Frente Nacional confirmou a estagnação e não pode fazer muito mais que esperar o "quanto pior, melhor". Ainda assim, conseguiu oito lugares, quando antes tinha dois. Em idêntica posição está o movimento de Jean-Luc Mélenchon, que ainda conseguiu dezassete lugares concorrendo separadamente com os comunistas, seus tradicionais aliados. O velho PCF, que ganhou as primeiras eleições no pós-guerra, aguenta-se com dez deputados.
 
O grande derrotado na contenda é, tal como nas presindenciais, o PSF, que passou de primeira para quinta força parlamentar e que nem conseguiu eleger os seus principais dirigentes. Uma derrota estrondosa de um partido histórico que, tal como o PASOK grego, parece ir a caminho da irrelevância. O próprio Benôit Hamon, o candidato ofcial do partido às presidenciais, anunciou a sua saída para formar um novo movimento. Os desejos de Manuel Valls em enterrar o velho PS parecem estar a cumprir-se.
 
Para demonstrar como a velha ordem partidária se desmoronou, note-se que nos anos oitenta, o PS e o PCF,então coligados, tinham mais de 50% dos votos. Agora, em conjunto, não chegam aos 10%.
 
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Só que nem tudo são rosas para o governo literalmente presidido por Macron: logo depois destas eleições, e quando o governo tinha apenas um mês, quatro ministros foram demitidos por causa da velha questão de aproveitamento fraudulento de dinheiros europeus. Entre eles contava-se François Bayrou, então com a pasta da justiça, líder do MoDem e aliado preferencial do En Marche.
 
Uma nota curiosa para os cinéfilos: de fora da sangria ministerial ficou Nicolas Hulot, o carismático ministro do Ambiente e antigo apresentador do programa de televisão Ushuaia. Se o apelido parece familiar, não é por acaso: é que o avô de Nicolas, um arquitecto distraí­do que provavelmente fumava cachimbo e envergava sobretudo e chapéu, era vizinho do realizador Jacques Tati, que nele se inspirou para compôr e interpretar a famosa personagem Monsieur Hulot, o inesquecí­vel protagonista de Playtime, O Meu Tio e As Férias do sr. Hulot. Assim, o governo francês traz a memória de um dos monstros do cinema do Hexágono, e logo no campo da comédia. Sempre ajuda a aliviar futuras tensões governamentais, embora seja duvidoso que Macron se tenha lembrado desta.
 

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Penso rápido (83)

Pedro Correia, 10.05.17

Jean-Luc Mélenchon, o representante da esquerda radical na recente campanha presidencial francesa, patinou em toda a linha. Num momento em que se exigem mais que nunca posições claras dos políticos, sem ambiguidade de qualquer espécie, o ex-socialista preferiu chutar para canto, evitando recomendar o voto na segunda volta desta corrida ao Palácio do Eliseu. Equiparando assim de algum modo Emmanuel Macron a Marine Le Pen. Uma ambivalência que lhe valeu muitas críticas e contrastou com o ocorrido em 2002, quando  assumiu a preferência pelo conservador Jacques Chirac na segunda volta das presidenciais, contra Jean-Marie Le Pen, pai de Marine.
Desta vez o ódio a Macron - um centrista moderado, bastante mais próximo da esquerda do que alguma vez Chirac foi - falou mais alto, levando o vacilante Mélenchon a imitar a atitude de Pilatos.
Lavou as mãos.
E os Pilatos, como é sabido, nunca ficam bem na história.

Nem Joana D´Arc valeu a Le Pen

João Pedro Pimenta, 09.05.17

As sondagens em França lá falharam de novo, como tem acontecido no último ano. Afinal de contas, Emmanuel Macron teve uma percentagem mais alta do que as previsões mais optimistas faziam prever, levando até alguns apaniguados de Marine Le Pen a pensar que era possível chegar ao Eliseu.

Olhando para alguns resultados locais das eleições em França, encontram-se números curiosos. Na Vendeia, por exemplo, esse bastião contra-revolucionário e da "reacção", Emmanuel Macron venceu com quase 70%, acima da média nacional, ainda que, pelos resultados da primeira volta, a histórica região continue preferencialmente à direita. Já em Colombey-les-Deux-Églises, terra que se confunde com Charles De Gaulle - que aqui está, aliás, sepultado - a Frente Nacional sai vencedora, talvez pelo trocadilho atribuído ao próprio general, onde numa hipotética islamização, a terra se passaria a chamar "Colombey-les-Deux-Mosquées". Também aqui, na primeira volta, a direita ficou claramente em maioria.

 

Mas não resisti a ver quais tinham sido os resultados em Domrémy-la-Pucelle. Macron ganhou, com um resultado próximo da média. Mas porquê esta curiosidade em saber a votação desta pequena localidade perdida nos confins dos Vosges? É que Domrémy-la-Pucelle é precisamente a terra de Joana D´Arc, a heroína e padroeira de França ("pucelle", ou donzela, é um sufixo em honra da própria), que Marine LePen e a Frente Nacional tanto evocam, ao ponto de se tentar colar a ex-candidata presidencial à donzela martirizada em Rouen. De pouco serviu a inspiração. E na hora de votar, os descendentes de Joana D´Arc acabaram por preferir a original a escolher a cópia falsificada.

 

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Os derrotados

Pedro Correia, 08.05.17

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 Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon, dois dos derrotados em França

 

Galeria de derrotados nas eleições presidenciais francesas:

 

1. Marine Le Pen. Chegou a vaticinar que atingiria os 40%. Ficou muito longe disso, tendo recolhido apenas um terço dos votos. Sai com uma derrota expressiva desta corrida ao Eliseu, que aliás culmina com a dissolução anunciada da Frente Nacional.

 

2. François Hollande. O Presidente cessante confirmou-se como o mais impopular Chefe do Estado da V República Francesa. Termina o mandato como uma figura irrelevante, quase patética. Quem diria que há cinco anos foi saudado como uma lufada de esperança da esquerda europeia...

 

3. Socialistas. Os últimos três anos têm sido catastróficos para a família socialista a nível europeu: derrotas copiosas em Espanha, Grécia, Hungria, Polónia, Bélgica, Holanda e Reino Unido. Seguiu-se o humilhante quinto lugar alcançado pelo representante do PS francês, Benoit Hamon, nesta corrida ao Eliseu, em que só recolheu 6,3% dos votos.

 

4. Comunistas. Desde a queda do Muro de Berlim tornaram-se num “tigre de papel”, para usar uma velha expressão maoísta. O seu representante indirecto neste escrutínio, Jean-Luc Mélenchon, prometia muito mas nem à segunda volta chegou. Terminaram numa espécie de terra de ninguém, recomendando a abstenção.

 

5. Conservadores. O caos estratégico na direita conservadora francesa, de inspiração bonapartista e gaullista, levou-a a ser contaminada pela sua adversária histórica, de inspiração orleanista e colaboracionista (duas fontes históricas da Frente Nacional). Ignorar a probidade do general De Gaulle foi meio caminho andado para chegar aqui.

 

6. Corrupção. Os franceses, como os europeus em geral, decretaram tolerância zero à corrupção em todas as suas formas. Político apanhado a delapidar o erário público é político condenado à derrota por antecipação. François Fillon, que chegou a ser apontado como favorito ao Eliseu, experimentou isto na pele.

 

7. Primárias. Este processo de escolha dos concorrentes a cargos políticos do máximo relevo foi seriamente posto em causa ao longo dos últimos meses. Tanto Fillon, que à direita derrotou Sarkozy e Alain Juppé, como Hamon, que ultrapassou Manuel Valls, venceram as primárias à direita e à esquerda. De nada lhes valeu na eleição a sério.

 

8. Eurofóbicos. Politólogos de vários matizes andaram meses a repetir a mesma tese: a eurofilia estava em acentuada regressão na União Europeia, apressando-lhe o fim. Mas as presidenciais francesas, ganhas pelo eurófilo Emmanuel Macron, desmentem esta tese em toda a linha. A eurofobia, essa sim, sai derrotada deste escrutínio.

 

9. Catastrofistas. A propósito das presidenciais francesas, legiões de comentadores e “analistas políticos” desfilaram nos jornais e nas pantalhas advertindo para os riscos de implosão da União Europeia, do sistema monetário europeu e até da democracia política neste espaço geográfico em que nos inserimos. Não tinham qualquer razão, mas também não darão o braço a torcer. Vão continuar a repetir-nos essas balelas nos tempos mais próximos, serão após serão.

 

Viver habitualmente

Pedro Correia, 07.05.17

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Dia triste para os apreciadores de emoções fortes: o moderado e "cinzento" Emmanuel Macron, o ex-ministro que diz não ser de esquerda nem de direita,  venceu por esmagadora margem a eleição presidencial francesa. Batendo Marine Le Pen, por dois terços dos votos expressos nas urnas.

Notícia desanimadora para os tudólogos que passam o tempo a gritar que vem aí o lobo. Afinal o novo inquilino do Palácio do Eliseu não quer retirar a França da União Europeia, não quer voltar ao franco, não quer encerrar as fronteiras, não quer cortar os vínculos militares com a NATO, não quer estabelecer "parceria privilegiada" com Moscovo, não quer revoluções na quinta economia mundial. Só quer viver habitualmente.

Ainda não foi desta que o lobo chegou - tal como sucedera na  Áustria e na Holanda. O povo francês revelou mais maturidade e sensatez do que os putativos intérpretes das massas populares anteviam em trepidantes tribunas televisivas, onde qualquer teoria da conspiração ajuda sempre a cativar audiências.

Coisa chata, admito. Uma imensa maçada.

O programa de Macron

Pedro Correia, 05.05.17

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Destaques do  programa eleitoral do candidato presidencial francês Emmanuel Macron, fundador do movimento Em Marcha:

 

1. Redução de um terço do número actual de deputados e senadores.

2.  Supressão do regime especial de aposentação dos deputados.

3. Generalização do voto electrónico até 2022.

4. Paridade absoluta de género nas listas eleitorais.

5. Cumprimento intransigente do direito à igualdade de género no espaço público francês.

6. Alteração do mapa administrativo, com a supressão de um quarto das entidades territoriais hoje existentes.

7. Criação de um estado-maior permanente de operações de segurança interna como peça fundamental na luta contra o terrorismo.

8. Encerramento de templos e associações religiosas onde se faz a apologia da violência e do terrorismo.

9. Anulação de novas missões militares francesas no estrangeiro, salvo em casos de legítima defesa.

10. Prioridade absoluta à cibersegurança e à ciberdefesa.

11. Reforço do orçamento da defesa até atingir 2% do orçamento anual francês.

12. Fixação de um tecto máximo de 0,5% do défice estrutural das finanças públicas até 2022.

13. Grande plano de investimentos públicos, orçado em 50 mil milhões de euros, destinados à qualificação dos recursos humanos, à modernização dos serviços públicos, à transição ecológica e à reabilitação urbana.

14. Introdução de mecanismos de controlo do investimento estrangeiro para preservar os sectores estratégicos.

15. Redução do imposto sobre as sociedades, de 33,3% para 25%.

16. Primado aos acordos de empresa no estabelecimento de novos contratos laborais.

17. Redução para 7% do desemprego nos próximos cinco anos.

18. Supressão de 120 mil postos de trabalho na administração pública.

19. Flexibilizar os horários de funcionamento dos serviços públicos.

20. Acelerar a convergência dos sistemas de pensões e reformas.

21. Criação de 30 mil apartamentos sociais para os jovens.

22. Redução do número de canais públicos audiovisuais.

23. Oposição ao alargamento das actuais fronteiras da NATO.

24. Manutenção das sanções à Rússia.

25. Alargamento a mais cinco países do número actual de membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (com inclusão da Alemanha, do Brasil, da Índia, do Japão e de um país africano a designar).

O programa de Le Pen

Pedro Correia, 05.05.17

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Destaques do programa eleitoral da candidata presidencial francesa Marine Le Pen, líder da Frente Nacional:

 

1. Renegociação dos tratados europeus.

2.  Recusa intransigente dos tratados de comércio livre.

3. Convocação de um referendo sobre a integração da França na União Europeia.

4. Restabelecimento de uma moeda nacional francesa, restaurando a soberania monetária do país.

5. Expulsão de todos os estrangeiros comprovadamente associados a movimentos fundamentalistas islâmicos.

6. Criação de uma agência unificada de combate ao terrorismo, sob a dependência directa do primeiro-ministro.

7. Repor a pena de prisão perpétua para os crimes mais graves.

8. Recrutamento de 15 mil novos elementos para as corporações policiais.

9. Aumento para 2% da percentagem mínima do orçamento do Estado destinado à defesa, com esta cláusula garantida na Constituição, e progressivo aumento até 3%.

10. Retirada da França do comando integrado da NATO.

11. Pôr fim à venda de palácios e outros edifícios públicos, mantendo-os integrados no património do Estado.

12. Alicerçar a diplomacia francesa nos princípios do realismo, reforçando os laços com os países francófonos.

13. Elaboração de um plano nacional de promoção da igualdade de género e de luta contra a precariedade laboral e social.

14. Inscrever o princípio da laicidade no código laboral.

15. Interdição de todo o apoio orçamental do Estado a locais de culto.

16. Fixação nos 60 anos da idade legal para a reforma, com 40 anos de contribuições para o sistema público.

17. Pôr fim à aquisição automática da nacionalidade francesa através do casamento.

18. Simplificar os mecanismos de expulsão de imigrantes em situação ilegal.

19. Restabelecimento das fronteiras nacionais, com a denúncia unilateral do Espaço Schengen.

20. Retirada da bandeira europeia dos edifícios públicos franceses.

21. Inscrever na Constituição o princípio da prioridade nacional, estabelecendo o primado da cidadania francesa.

22. Introdução de um sistema eleitoral proporcional nas eleições para os órgãos do Estado.

23. Criação de referendos de iniciativa popular, a partir da recolha de 500 mil assinaturas.

24. Redução do número de deputados (de 577 para 300) e de senadores (de 348 para 200).

25. Restabelecimento do mandato presidencial de sete anos, não renovável.

Comentar primeiro e ouvir depois

Pedro Correia, 04.05.17

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Duas horas e meia de debate vivo e fracturante entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen: quem o acompanhou do princípio ao fim, ontem à noite, não deu o tempo por mal empregue. Infelizmente, os três canais portugueses de notícias foram incapazes de proporcionar a transmissão integral aos seus telespectadores.

A TVI 24 – seguindo obsessivamente os critérios editoriais da generalista CMTV – ignorou o assunto, optando pela muleta de sempre: o futebol.

A RTP3 – ignorando as suas obrigações de serviço público – transmitiu a primeira hora mas também ela preferiu dar prioridade ao enésimo bate-boca sobre bola, monotema da “informação” televisiva portuguesa que nos aproxima muito mais do Terceiro Mundo do que da União Europeia em que estamos integrados.

A SIC Notícias, de resto imitada pelo canal público, foi ainda mais original: interrompeu a transmissão, substituindo-a pelos inevitáveis painéis de comentadores, que assim fizeram o “balanço” do debate quando ainda nem metade tinha decorrido.

Há-de chegar o tempo em que o “balanço” é feito não a meio mas logo no início, para poupar tempo: os tudólogos de turno avançam para estúdio no minuto zero, prontos a comentar o que não viram nem ouviram sem jamais lhes falhar a verve. Eles podem não fazer a menor ideia sobre o que estão a falar, mas nós não duvidamos que eles são a forma mais barata de preencher tempo de antena com coisa nenhuma.

E siga para bingo. Quero dizer: para futebol.

Uma campanha desastrosa.

Luís Menezes Leitão, 01.05.17

Em 2002 quando Jean-Marie Le Pen passou à segunda volta, foi visível o alívio de Jacques Chirac, que temia enfrentar outra vez Lionel Jospin, o qual poderia derrotá-lo. Chirac percebeu que com Le Pen não corria esse risco, mas apesar disso fez uma campanha permanente e consistente, avisando que era preciso votar nele para barrar o caminho a Le Pen. A esquerda alinhou totalmente na sua campanha e embora odiasse Chirac, a quem chamava "o escroque", lá foi dizendo que mais valia votar num escroque do que num fascista. Chirac foi assim facilmente reeleito com 84% dos votos, sendo que um dos que na altura lhe manifestou apoio foi Mélenchon.

 

Quinze anos depois, Macron deve ter julgado que lhe bastaria também ir à segunda volta com Marine le Pen para ter a eleição no papo. Foi assim que fez um discurso de vitória logo após a primeira volta (!) e foi festejar com duzentos convidados (!!) numa brasserie chique de Montparnasse intitulada "La Rotonde", onde distribuiu champanhe francês à descrição (!!!). Foi um disparate rotundo. Macron não percebeu que nem ele é Chirac, nem Marine le Pen é o seu pai, sendo uma adversária muito mais perigosa. Foi assim que enquanto Macron ficou em pousio até quarta-feira, se calhar por causa da ressaca da festa, Marine já andava correr os mercados e os pescadores desde as primeiras horas da manhã de segunda-feira. Um erro crasso de Macron que o próprio Hollande não hesitou em denunciar.

 

O segundo erro de Macron foi a visita à fábrica da Whirlpool que vai ser transferida para a Polónia. Não se percebe porque é um candidato presidencial vai visitar uma fábrica com trabalhadores desesperados se não tem nada de concreto para lhes prometer, a não ser um discurso abstracto sobre as regras europeias, saindo por isso de lá vaiado. Marine le Pen limitou-se a prometer que com ela a fábrica não fecharia — promessa obviamente impossível de cumprir — e saiu de lá em ombros.

 

Macron percebeu que o discurso anti-europeísta de Marine le Pen lhe estava a render frutos, enquanto que o seu discurso pró-europeu lhe causava engulhos, tanto assim que nem sequer conseguia agora recolher o apoio de Mélenchon, que por muito que odiasse Marine le Pen, também não conseguia declarar apoio a Macron. Pelos vistos os seus eleitores da França Insubmissa podiam ser facilmente convencidos a votar num escroque contra um fascista, mas já lhes custa muito mais votar num banqueiro contra uma fascista, até porque Marine fez logo questão de demonstrar os muitos pontos comuns que existem entre o seu programa e o de Mélenchon.

 

Talvez por isso Macron resolveu fazer agora um verdadeiro pino eleitoral, ameaçando a Europa com um Frexit se não se reformar, naturalmente às conveniências da França. Ora a principal oposição do eleitorado francês a Marine le Pen era precisamente pelo seu discurso anti-europeu, pelo que se Macron alinha no mesmo discurso, não só credibiliza as propostas de Marine le Pen, como destrói a principal razão para os franceses votarem nele.

 

Apesar de todos estes disparates, Macron pode continuar a ganhar no domingo. Não deixa, porém, de ter feito a pior campanha presidencial de sempre numa segunda volta.

A União Europeia em questão.

Luís Menezes Leitão, 23.04.17

Se há coisa que demonstra que a União Europeia não passa de um gigante com pés de barro é precisamente o facto de tremer como varas verdes de cada vez que há uma eleição num dos seus estados mais fortes. A verdade é que a União Europeia é composta presentemente por 28 países (até à saída do Reino Unido), pelo que poderia perfeitamente perder um ou dois países sem consequências de maior. Só não sucede assim porque a construção europeia é artificial, sendo apenas uma estrutura de domínio dos Estados pequenos pelos grandes. Para inglês ver, lá puseram um parlamento europeu sem iniciativa legislativa onde os deputados falam sozinhos e uma comissão, que deveria ser independente, mas faz tudo o que os Estados grandes mandam. A Europa foi preparada para ser gerida por quatro grandes Estados: Alemanha, França, Reino Unido e Espanha. Por isso, se algum deles sair, como aconteceu com o Reino Unido, e poderia acontecer com a França, a estrutura cai como um castelo de cartas.

 

Vale por isso a pena perguntar se se justifica manter este castelo de cartas. Da minha parte, sempre preferi viver num país livre do que aprisionado numa mentira. Actualmente vivemos com uma moeda que não podemos pagar, beneficiando de compras de dívida feitas pelo Banco Central Europeu, já que, sem isso, os nossos juros disparariam. Corremos permanentemente o risco de que em qualquer eleição ou referendo num dos grandes Estados alguém diga que já basta de financiar os povos do Sul. E perante este risco, dizem apenas que a União Europeia garante a paz na Europa. Bem, Portugal não tem uma guerra no seu território europeu há quase duzentos anos, sendo que só tivemos que participar numa guerra na Europa em 1917 porque a República assim o decidiu e a mesma consistiu apenas numa expedição à Flandres. Mas que hoje a Europa está em guerra, isso ninguém tem dúvidas, como o atentado de Paris demonstra. E que tem feito a União Europeia para resolver esse assunto? Absolutamente nada.

 

Por muito que continue o discurso de fé na construção europeia, a verdade é que a mesma está a ser questionada em todo o lado. Ou a União Europeia sofre uma reforma profunda ou acaba. Só não vê quem não quer.

Mal menor

Diogo Noivo, 22.04.17

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Emmanuel Macron 

 

São quatro os candidatos que se destacam para a primeira volta das presidenciais francesas. Dois deles, Marine Le Pen e Jen-Luc Mélenchon, não deviam estar num boletim de voto, mas sim no boletim clínico de um hospício. Como sempre acontece com os extremos opostos em política, são mais as coisas que os unem do que as que os separam: anti-europeistas; anti-globalização, anti-establishment; anti-NATO; proteccionistas; contrários aos princípios basilares da democracia liberal; defensores de um Estado cuja principal função parece ser a de contratar tudo e todos. Extrema direita e extrema esquerda distinguem-se apenas no tom do cretinismo: Le Pen considera que todos os muçulmanos são potenciais terroristas; Mélechon defende uma união bolivariana entre França, Venezuela e Cuba. Em suma, nenhum dos componentes deste duo insano é solução para nada de coisa nenhuma. Sobram, portanto, Emmanuel Macron e François Fillon. 

 

Fillon tem a experiência e o estofo necessários para implementar as reformas políticas que França precisa e sempre recusou. Mas Fillon é hoje a cara dos abusos do poder. Sucessivos escândalos mostram que, no passado, François Fillon serviu o Estado, mas também se serviu dele, nomeadamente usando dinheiro público e empregos fictícios para pagar salários a familiares. Pedir sacrifícios aos franceses quando se tem este cadastro não é propriamente edificante e não augura grandes resultados eleitorais num país onde a população nutre um profundo desagrado, se não desprezo, pela classe política. Será porventura injusto que um caso de abuso ofusque anos de trabalho político sério, mas as coisas são como são. 

 

Resta-nos então Emmanuel Macron. Enquanto foi Ministro da Economia bateu-se pela liberalização de alguns feudos profissionais em sectores altamente protegidos, como o notariado ou os transportes públicos. Propõe as muito adiadas reformas, embora seja menos ambicioso do que Fillon. Macron é europeísta, defende uma economia aberta de mercado e tem a coragem de propor algumas reformas impopulares. Mas falta-lhe tarimba. Nunca foi eleito para qualquer cargo público e a sua experiência política resume-se em grande medida à titularidade da pasta da Economia entre 2014 e 2016. Pior, toda a sua campanha tem um aroma de voluntarismo "inspiracional" (é como se diz agora), de tipo Obama. Muita vontade, muito ânimo, muito allez!, mas tudo com um cheiro a inconsequência, típica da política-espectáculo. Tal como Obama, Macron é levado ao colo pela imprensa internacional, o que recomenda prudência na avaliação do candidato.

 

Se, como indicam as sondagens, Macron e Le Pen passarem à segunda volta, o sistema de partidos francês sofrerá uma alteração profunda pois será a primeira vez desde 1958 que os dois principais partidos ficam apeados. E se tal acontecer, mais incógnitas se perfilam no horizonte: a eleição Macron pode obrigar a coligações, algo invulgar no arranjo político-partidário de França; a eleição de Le Pen traduzir-se-á numa viagem para uma dimensão alternativa tão incerta como perigosa.

De resto, face ao atentado terrorista que marcou o final de campanha, Le Pen insistiu num discurso radical e isolacionista, contraproducente, que mais não faz do que agravar o problema e deteriorar os já maltratados pilares do Estado de Direito Democrático. As credenciais de Macron nesta matéria não são brilhantes, mas com ele há pelo menos a esperança de que possa vir a entender o que está em causa.

Assumindo que a política é a arte do possível, Emmanuel Macron é o mal menor. Ainda assim, de longe o mais desejável para França e, pela parte que me toca, para uma Europa salubre. 

França: votar contra a eurofobia

Pedro Correia, 22.04.17

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 Le Pen e Mélenchon, irmãos siameses anti-UE

 

Nas presidenciais de amanhã em França decide-se, acima de tudo, o destino da Europa. Um destino em sério risco, na medida em que dois dos quatro candidatos mais bem situados para rumarem à segunda volta, segundo as mais recentes sondagens, somam 41% das intenções de voto.

Ninguém tenha dúvidas: esta corrida ao Eliseu é também um referendo à construção europeia. Se prevalecer a mensagem de ódio e anátema à União Europeia propalada nas margens extremas do sistema político por Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon, irmãos siameses na eurofobia, todo o continente ficará mais perigoso. Porque esta lógica de exclusão para que apontam os extremismos, à esquerda e à direita, é herdeira directa de mil guerras num espaço continental assolado pelos fantasmas do soberanismo, do nacionalismo e da xenofobia - o horror ao "internacionalismo", ao "globalismo", ao que vem de fora.

O verdadeiro confronto ocorre aqui entre eurófilos e eurófobos. Emmanuel Macron destaca-se entre os primeiros e merece por isso o triunfo eleitoral que a maioria das pesquisas lhe augura, embora por números incertos e precários. Ninguém se iluda com a oratória dos demagogos de turno, sempre prontos a apontar ao inimigo externo, como ocorreu com o Brexit, vai fazer um ano: a União Europeia é uma conquista civilizacional que merece ser defendida todos os dias. Eleição após eleição, voto a voto.

Como a história nos ensina, nunca nada está definitivamente garantido.

O drama repete-se na direita tradicional francesa

João Pedro Pimenta, 04.04.17

 

Ou François Fillon é perfeitamente inábil, ou a fortuna abandonou-o definitivamente depois das surpreendentes primárias em que se içou a candidato da direita republicana francesa. Há dias realizou uma manifestação no Trocadéro, com a Torre Eiffell em fundo, e que reuniu algumas dezenas de milhares de apoiantes, para afirmar que prosseguia como candidato e atirando-se à justiça e aos correligionários partidários que o haviam abandonado. Uma prova de força lhe deu algum oxigénio e que obrigou o partido a reafirmar o seu apoio, ao mesmo tempo que Alain Juppé se mostrava indisponível para ser um "plano b". Até algumas formações que o haviam abandonado voltaram de repente atrás. Mas novo caso bizarro, o dos fatos comprados a preço de ouro a alfaiates parisienses de renome, alguns deles pagos em numerário por "amigos" (o que é que isto nos lembra), veio manchar de novo o suposto currículo impecável de Fillon. E depois disso, vieram à superfície novos rumores que não abonam nada a favor da auto-propalada integridade do candidato gaullista.

 
 
No debate a cinco que se seguiu, Fillon tentou dar um ar da sua graça, mas passou despercebido e a sua prestação só ficou acima da de Benôit Hamon, o candidato oficial e nada consensual do PS francês. Único ponto a favor: era o que tinha a gravata mais elegante.
 
 
Recorde-se que Fillon era, até há semanas, o provável vencedor tanto da primeira como da segunda volta das presidenciais francesas. A rejeição a Marine LePen, as lutas internas do PS francês e a pouca relevância a que a esquerda radical está votada, numa eleição a que se apresentam quase 50 candidatos (incluindo trotsquistas, bonapartistas e simples apêndices zangados das forças maiores), fazia prever que Fillon fosse o próximo locatário do Eliseu. A partir do momento em que os cargos da família Fillon vieram à ribalta pública, através do impiedoso Canard Enchainé, as intenções de voto caíram e emergiu Emanuel Macron, o candidato do centro sem suporte partidário.
 
O drama de Fillon parece ser, como já muitos jornais franceses salientaram, uma repetição do que aconteceu a Edouard Balladur nas presidenciais de 1995. Em fins de 1994, Jacques Delors, a cessar o seu mandato na Comissão Europeia e largamente favorito entre os eleitores para suceder a François Mitterrand, declarou-se fora da corrida. O PS francês teve de se contentar com Lionel Jospin, abrindo caminho ao favoritismo do centro-direita. Jacques Chirac, então maire de Paris, ex Primeiro-Ministro e antigo candidato derrotado em anteriores presidenciais (o que em França dá estatuto de persistência), era a escolha óbvia da aliança gaullista-liberal entre o RPR e a UDF. Mas o então Primeiro-Ministro, Edouard Balladur, com largos apoios à direita e no governo, resolveu avançar e dividiu todo aquele espectro político. A alguns meses das eleições, era o favorito nas sondagens, tanto na primeira como na segunda volta. Mas aos poucos, o seu ar demasiado senhorial, alguns casos obscuros emergentes, as suas ideias sociais pouco populares e a pouca simpatia que a personagem despertava no "homem comum" fizeram-no cair do pedestal. Balladur tinha allure de chefe de estado, mas era pouco comunicativo e empático. O contrário de Chirac, uma velha raposa, um gaullista à antiga, afável e acessível, que aos poucos subiu nas sondagens, e em Abril de 1995 passou à segunda volta, com Jospin, deixando Balladur para trás, após o que seria, sem surpresa, eleito Presidente de França. O então chefe de governo demitiu-se, e com ele os jovens turcos que o tinham apoiado, como François Fillon e Nicolas Sarkozy. François Bayrou, que também lhe tinha dado o apoio, transitou para o novo governo, que seria chefiado por Alain Juppé, até ali Ministro dos Negócios Estrangeiros e apoiante indefectível de Chirac.
 
 
A história presidencial em França parece repetir-se 22 anos depois, no mesmo sector, com a diferença de que desta vez a segunda volta não deverá ser entre um gaullista e um socialista. As forças políticas mudaram, mas muitos dos seus intervenientes não, em especial algumas figuras que conviveram no mesmo governo: Fillon (nem de propósito, apoiado por Balladur) é um candidato em desgraça; Sarkozy antecedeu-o; Juppé caiu mas ia sendo repescado; e Bayrou, que aprendeu a apostar no cavalo certo (Sarkozy primeiro, Hollande depois), apoia Emanuel Macron e pode voltar à ribalta política, se a sua aposta se voltar a concretizar. A política francesa, com as suas reviravoltas, apoios, dissensões e "richelieunismos" vários, continua a ser um apaixonante manancial de interesse na política europeia.