Método de Hondt revisitado
O texto a seguir foi escrito antes de conhecidos os resultados nos círculos da emigração (dois deputados para o PSD e dois para o PS), e estes mereceriam um tratamento autónomo, quer pela percentagem exígua de votantes, quer pela forma indigna como foram tratados os eleitores. Fica para outra maré.
Cada um dos 106 deputados do PS foi eleito, em média, com 17.608 votos; os 77 do PSD com 18.449; os 19 do Bloco com 25.920; os 12 do PCP com 27.426; os 5 do CDS com 43.290; o do Chega com 66.442 (o recordista), e finalmente o da Iniciativa Liberal com 65.545. O do Livre não conta, por ser um rebento exótico do Bloco, e os 4 do PAN também não, porque o respeito pela Democracia não obriga a uma indevida vénia a demências, razão pela qual não os incluo nestes raciocínios, excepto para dizer que a média geral de votos para cada deputado é de 20.706. Isto significa que os deputados do PS e do PSD representam, cada um, um número de eleitores abaixo da média; e os restantes acima.
Os votos deitados ao lixo, isto é, que não elegeram ninguém, foram 194.777 e, se somados a brancos e nulos, 412.915. Este número impressionante empalidece perante o dos abstencionistas, que teria sido, se os números fossem fiáveis, de 4.250.660. Porém, as sábias análises que por aí se fazem em torno da abstenção, nesta e anteriores eleições, assentam na ficção de as autoridades terem a mais remota ideia sobre o número exacto de eleitores, que é oficialmente indicado como de 9.343.084. Não têm, e é um escândalo que no país onde não se podem fazer transacções com dinheiro vivo de valor superior a 2.000 Euros; onde não pode um cidadão dar um espirro sem que o Fisco dele tome conhecimento, se estiver interessado, no caso de o cidadão se medicar com um antibiótico comparticipado; e onde não se movimentam duas caixas de parafusos sem uma guia que as autoridades conhecem, e as polícias podem verificar: um serviço como a Comissão Nacional de Eleições, que tomou posse em Março de 2016, deveria exigir que este problema fosse resolvido, ou dados passos consistentes para ser resolvido num prazo razoável, sob pena de renúncia. Exigir a quem, já agora? Ora, ao ministério da Administração Interna, a cuja página da Secretaria Geral fui buscar os dados em que me baseei, e que ainda não incluem os 4 deputados eleitos pelo círculo da emigração. Outra anedota, aliás, a somar às indignidades dos incidentes dos votos por correspondência. Pensando melhor, todas estas excelências deveriam, para exemplo, serem obrigadas a passear-se em Lisboa, na zona ribeirinha, com a cara enfiada num tacho, aos sábados de manhã, por espaço de um mês – para exemplo e para que o referido utensílio de cozinha deixasse, por uma vez, de ser apenas simbólico das funções que desempenham.
Os números acima, e a distorção da representação que evidenciam, são uma consequência do método de Hondt associado à distribuição por círculos distritais. Fosse eu um desses legisladores frustrados que enxundiam as redes sociais e que querem resolver a golpe de novos arranjos legais os defeitos do regime, e clamaria por novas leis eleitorais.
Sistemas perfeitos porém não existem; qualquer alteração implicaria uma interminável briga, de um lado os potenciais ganhadores e do outro os potenciais perdedores; todos os sistemas alternativos têm igualmente defeitos; e o que o legislador quis foi precisamente dificultar a vida aos pequenos partidos, beneficiar as coligações pré-eleitorais e facilitar a estabilidade governamental, escarmentado pelo exemplo da I República.
Creio ter sido Paulo Portas que disse que a Direita não regressaria ao poder sem se coligar, aquando do nascimento da Geringonça, e isto num tempo em que não era possível estar certo de que o arranjo sem precedentes entre os inimigos do PREC fosse para durar.
Mas durou, as velas enfunadas pela excepcional conjugação da imprevista explosão do turismo, dos juros baixos de um BCE acomodatício senão louco, e o crescimento da procura externa, o que tudo junto permitiu a reversão dos cortes, a diminuição do horário de trabalho dos funcionários e bodos sortidos às clientelas dos compagnons PCP e Bloco. Ao contrário porém da tradição socialista, a parafernália do sistema Costa/Centeno incluía o respeito, mesmo que aqui e além aldrabado, pelas contas públicas, o que implicou cativações, diminuição do investimento, degradação de serviços e aumentos de impostos indirectos – a receita é conhecida, foi denunciada, mas o eleitorado comprou-a como boa, e o preço do deslizar do país, no ranking da riqueza por cabeça por países, para os últimos lugares, não é realmente matéria que impressione o reformado ou pensionista de Freamunde, se tiver mais alguns euros no bolso, vir o desemprego a diminuir, e a comunicação social o sossegar de que nova bancarrota não haverá.
Aqui estamos. E dizia há dias um tipo no Facebook: “Ele há coisas do diabo. Costa, que fez uma legislatura como PM sem ter ganho as eleições, agora que as ganhou duvida-se que a acabe”. Pois duvida: o PCP vai, se a lógica não for uma batata, subir a parada, agora que Jerónimo já demonstrou, mesmo ao mais empedernido dos militantes, que o colaboracionismo com o inimigo se paga em votos; o Bloco, que também perdeu votos e cujos dirigentes se aburguesaram, talvez tenha ainda suficiente maluqueira na moleirinha para querer venezuelar o país, ao menos para não ser um demasiado evidente apêndice do PS; e da crise internacional dizia já em 1 de Janeiro último Ferreira do Amaral que “é um pouco como os sismos, sabe-se que vai haver uma nova crise financeira, tal como estamos certos que vai haver um sismo em Lisboa”.
As crises resolvem-se com eleições. Convém portanto que a Direita arrume a casa antes delas.
Cristas saiu do CDS (aliás com a dignidade e o senso que faltou a Rio) e o partido, que tem três capelas dentro de si (a conservadora, a liberal e a democrata-cristã, isto é, a preocupada com os costumes, a preocupada com a economia e a preocupada com os pobres), ou encontra um dirigente que não exclua nenhuma mas reduza à insignificância os vários próceres que, em nome da pureza de princípios, não querem mixórdias, ao mesmo tempo que desloque o partido para um futuro bloco de direita e lhe confira uma gravitas que nem sempre tem tido, ou entrará em agonia.
Rio é líder de um PSD que não serve para nada porque não é diferente em nada de substancial do PS de Costa. Com franqueza: É um teimoso sério, servido por algum pessoal com qualidades, e Costa uma enguia mentirosa, hábil e vácua, acolitado por uma camarilha tachista, numerosa, voraz e sem a mais vaga ideia, salvo alguns bordões relativos à educação, à formação e ao combate às alterações climáticas, de como o país pode voltar a crescer. Mas agora que o novo PS se rendeu às virtudes da redução do défice, e à condição de bom aluno que dantes desprezava, o que os distingue?
Há porém outro PSD, e esse é o de Passos Coelho, ou melhor, o que se imaginava que Passos quereria fazer dele depois de se livrar da troica. Foi o medo desse PSD que serviu de cimento à geringonça inicial. Foi o medo da direita, a direita que nunca governou sem as mãos atadas ou esmagada pelo imenso edifício do socialismo que décadas de estatismo construiu. Nisso, o futuro suicida Jerónimo, a actriz Catarina e o master-mind Anacleto Louçã não se enganaram.
Este PSD, de que há várias faces visíveis, sendo a mais saliente a de Miguel Morgado, tem uma dura luta pela frente: nem Rio é um osso fácil de roer nem é impossível que o PS, se se desentender com os seus anteriores parceiros, se vire para o compreensivo antigo colega autarca, caso em que, havendo reforminhas para fazer e alguns lugares para distribuir, bem pode a burra aparecer nas couves.
Morgado, co-fundador do Movimento 5.7 (que aglutina incipientemente, além do PSD alternativo, o CDS e a IL) em entrevista há dias dizia que a nova direita inclui todo o anti-socialismo até, mas excluindo, o Chega.
Simpatizo com o Movimento, e tenho a certeza de que Paulo Portas tinha razão. O caminho é longo e cheio de pedras. Creio porém que, se frutificar, coalescerá, porque não pode ser de outra maneira, em torno de um programa comum mínimo. E nesse as aflições do CDS com algumas questões sociais ficarão fora do baralho, porque não são tantas as pessoas que acham que o país se pode governar com encíclicas papais; algumas preocupações da IL não serão acolhidas porque não se podem eliminar serviços públicos ineficientes, redundantes ou daninhos, sem ter solução convincente para os despedidos; o PSD terá de abrir mão de parte do seu dirigismo inato, adquirido no tempo em que se julgava que a salvação estava no Estado, e não no cidadão. E o Chega, que Morgado prestes eliminou, bem poderia, se depurado dos delírios penais selvagens, de uma ou outra opinião ultramontana, e de alguma posição nacionalista importada acriticamente de contextos diferentes do nosso, ser recuperado.
Porque todos não são demais. Costa deu, sem querer, um abraço de urso ao PCP (embora gente céptica como eu se pergunte se com os travestis de social-radicais do Bloco estamos menos mal servidos); e, perdendo eleições, ganhou, e é bem capaz, se for necessário, de se aliar à direita de faz-de-conta, que é a de Rio, para continuar a ganhar.
Estranho caso: As direitas, porque não há nem nunca houve apenas uma, têm alguma coisa a aprender com ele. Com a diferença de que precisam mesmo de ganhar eleições porque a famosa maioria sociológica de esquerda, da qual deixou de ser moda falar-se, não passou a existir menos por causa disso. Donde, o método de Hondt, acima referido, hoje serve para um deputado do PS falar em nome de menos votos do que o de qualquer outro partido; e amanhã pode servir para o país ter um governo que o sirva.