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Delito de Opinião

Um ano depois do massacre

Pedro Correia, 07.10.24

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Faz hoje um ano, ocorreu no sul de Israel o maior massacre de judeus desde a II Guerra Mundial. Por acção do Hamas, movimento terrorista armado e financiado pelo Irão. Só nesse trágico dia 7 de Outubro de 2023, foram assassinadas mais de 1200 pessoas e outras 251 - incluindo menores e velhos - seriam alvo de sevícias e transportadas para diversos pontos da Faixa de Gaza, onde cerca de um terço acabariam executadas.

 

Seguem-se duas breves reflexões associadas a esta triste efeméride, que funcionou como rastilho suplementar no barril de pólvora em que há dezenas de anos se transformou o Médio Oriente, ambas citadas hoje por Jorge Almeida Fernandes no Público:

 

A primeira, na Economist: «O Hamas de [Yabya] Sinwar foi para a guerra com dois pressupostos: de que teria um apoio forte e unido do "eixo da resistência", a constelação das milícias pró-iranianas, e de que a reacção de Israel inflamaria e mobilizaria a região. Esta ideia era partilhada por responsáveis árabes, israelitas e ocidentais. (...) [Mas] os Estados árabes têm sido espectadores numa guerra israelo-árabe. Denunciam a guerra de Israel em Gaza mas não cortam os laços com o Estado judaico. Ao mesmo tempo, procuram desesperadamente evitar qualquer confronto com o Irão. (...) Neste mesmo momento, os Estados árabes permanecem meros espectadores da História.»

 

A segunda, no El País, pela experiente pena da jornalista Ángeles Espinosa: «No meio das bombas que nestes dias sacodem Gaza e Beirute, surpreende o silêncio dos países árabes. Houve manifestações em países ocidentais e Estados de maioria muçulmana, mas a "rua árabe" permaneceu silenciosa. Os seus líderes não querem confrontos com Israel nem pôr em causa as relações com os Estados Unidos. O que têm em comum é o temor de uma mobilização da rua perante a sua falta de legitimidade democrática. (...) No fundo, por muitos excessos que cometa, Israel está a fazer o trabalho sujo de combater os islamistas, tanto os sunitas do Hamas como os xiitas do Hezbollah.»

 

Dá que pensar.

 

Sessenta anos sem Daniel Filipe

Nascido em Cabo Verde (1.2.1925) e falecido em Lisboa (6.4.1964)

Pedro Correia, 06.04.24

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(fragmento)

Neste ano de 1962
não como Hazim Hikmet no avião de pedra
mas na minha cidade
livre de ir onde quiser
e no entanto prisioneiro
neste ano de 1962
exactamente
em Lisboa
Avenida de Roma número noventa e três
às três horas da tarde

 

Neste ano de 1962
encostado a uma esquina da estação do Rossio
esperando talvez a carta que não chega
um amor adolescente
meu Paris tão distante
minha África inútil
aqui mesmo
aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura
cumprindo os pequenos ritos quotidianos
cigarro após o almoço
café com pouco açúcar
má-língua e literatura

 

Aqui mesmo a não sei quantos graus de latitude
e de enjoo crescente
solitário e agreste
invisível aos olhos dos que amo
ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado
com um erro de contas
incapaz de dizer toda a minha ternura
operária de fábrica com três filhos famintos

 

Aqui mesmo envolto na placidez burguesa
higienicamente limpo e com os papéis em ordem
vestido de nylon dralon leacril
com acabamentos sanitized
e lugar marcado junto ao aparelho de TV
eu
enjoado de tudo e contemporizando com tudo
eu
peça oleada do mecanismo de trituração
eu
incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia
eu
apesar de tudo vivo apesar de tudo inquieto
eu
neste ano de 1962
exactamente
não ontem mas precisamente às três horas da tarde
pela hora oficial
exilado na pátria

 

Do livro Pátria, Lugar de Exílio (1963)

O centenário da morte de Lenine

jpt, 22.01.24

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Ando eu submerso nas minhas coisas, em apneia arfante, por isso desatento ao circundante... Mas ainda assim surpreendo-me. Pois apenas hoje, em visita matinal ao email e através da notificação do simpático "sítio" "RetroNews", que noto ter ontem sido o centenário da morte de Lenine. Concedo, terá havido alguma notícia televisiva que eu não acompanhei. Mas no Google são escassas as referências à efeméride. 

E disto retiro mesmo apenas a constatação do quão efémera é a glória. Neste caso política e intelectual (ideológica, se se quiser). Tão propalado foi o "mais importante acontecimento da história do século XX", até mesmo da "história da Humanidade", a "revolução de Outubro" sob a liderança de Lenine. Tão apregoada foi a superioridade - a "virtude" - do marxismo-leninismo. Tão vendidas e mesmo lidas foram as suas "obras" - "escolhidas" e até "completas", quais faróis para o futuro. Isto tudo apenas há algumas décadas, na minha (nossa) vida adulta. 

E agora passa-se o centenário da sua morte. E apenas noto isso no simpático almanaque francófono. Não haverá prova maior de que o tal "espectro [que] ronda a Europa - o espectro do comunismo" é uma memória. Esconsa. Malvada, mas esconsa.

A Lisboa que muda na Lisboa que fica

Pedro Correia, 29.11.23

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Isabel Ruth e Rui Gomes no filme Os Verdes Anos, de Paulo Rocha (1963)

 

Não houve um filme como este, não haverá um filme como este. Admirável enlace entre imagem e som, com os acordes sofridos de Carlos Paredes a sublinhar este drama de gente desenraizada nos dédalos de uma cidade que se reinventava naqueles dias de ilusória quietação pressagiando tempos de turbulência.

É um filme que bebe inspiração sobretudo no cinema italiano que lhe era contemporâneo. Há aqui muito Antonioni, há aqui muito do inesquecível início da Dolce Vita, com uma imagem de Cristo a sobrevoar de helicóptero os novos subúrbios de Roma, espécie de sorridente alegoria ao milagre económico italiano.

Era um cinema de intervenção, certamente. Mas muito mais no plano estético do que no plano político. Era um cinema que olhava com veneração para a arquitectura e acreditava com sinceridade que os arquitectos eram os novos profetas da modernidade, capazes de - com as suas linhas ousadas e arrojadas - abraçar o futuro e edificar os alicerces de uma sociedade diferente, habitada pelo homem novo.
Utopias urbanísticas tornadas pouco antes realidade, como sucedeu com a Brasília de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, conduziam a isso. Daí a veneração quase infantil que Paulo Rocha demonstra pela arquitectura, pondo as suas personagens a deambular constantemente pelos espaços mais modernos da Lisboa daquele início da década de 60 - Avenida dos EUA, Avenida de Roma, Cidade Universitária...

 

Como se viu depois, a arquitectura serve para muito mas não para moldar o homem novo, que aliás permanecerá eternamente por criar. E a vanguarda de anteontem torna-se rapidamente uma obsoleta mercadoria académica aos olhos dos que nascem depois de amanhã.
O Cinema Novo tornou-se rapidamente prisioneiro das suas contradições, abraçando um neo-realismo tardio (em obras como Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes, e A Promessa, de António de Macedo), quase sempre a preto e branco, como metáfora permanente de um regime que parecia imutável mas que se tornou também espelho de fronteiras artísticas demasiado estreitas.

Derrubado o regime, também de algum modo os seus opositores no campo artístico se tornaram anacrónicos. O fabuloso Berlamino (1964) escapa a esta sina porque recusou logo à partida encerrar-se naquela tendência de contrapor ao miserabilismo da ditadura uma linguagem artística também tocada pelo miserabilismo de circunstância.

 

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Cena do filme rodada na Avenida de Roma, em Lisboa, junto à pastelaria Suprema


Os Verdes Anos, com as suas evidentes fragilidades, interessa-me hoje sobretudo pela sua vertente documental. Era um cinema feito na rua, que recusava o estúdio, também por inspiração italiana - e este filme, que constitui uma declaração de amor a Lisboa, acaba por ter portanto as rugas que a própria cidade ostenta. Neste aspecto, como noutros, diremos que a arte imita a vida...
Ainda há dias passei pela oficina de sapateiro do Raul/Rui Furtado, naquela cave situada mesmo ao lado da Suprema: tudo tal e qual como vem no filme. Excepto que a fresta, hoje gradeada, já não está aberta à rua. Ou o Vá Vá, onde decorre a cena final: está praticamente na mesma. Inversamente, a Floresta do Ginjal, que bem conheci na outra banda e era local de romaria gastronómica ao fim de semana, está há muito encerrada - sintoma de incompreensível decadência numa localização privilegiada, onde se obtêm as melhores vistas sobre a capital.
O filme confirma que, por detrás de uma Lisboa que muda, há uma Lisboa que permanece. Outros, antes dele, fizeram o mesmo - mas talvez nenhum com a transparência e a admirável sinceridade deste. Ao som hipnótico da guitarra de Paredes e revendo para sempre o belo rosto de Ilda/Isabel Ruth, em eterno desafio às inclemências do tempo com um fulgor que só a magia do cinema dá.

 

Texto reeditado, no dia do 60.º aniversário da estreia d' Os Verdes Anos

50 anos após Pinochet

jpt, 11.09.23

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Hoje é dia de (tristes) efemérides. Passam 50 anos sobre o golpe de Pinochet, que marcou a minha geração - e as anteriores. Fui ler os chilenos que tenho. Mas mantenho-me nada atreito a Neruda. Por isso virei-me para este nicho de Luís Sepúlveda, que o meu pai me legou. Reli "O Velho que Lia Romances de Amor", a história de António José Bolívar Proaño, num livro bonito, com um grande começo, "O céu era uma inchada barriga de burro, pendendo ameaçadora a escassos palmos das cabeças". Gostei mais do que antes gostara - então havia resmungado com a antropomorfização final da onça, com o tom "new age" que havia naquela novela antropológica, com o muito Hemingway que pressentira, pois aquilo é uma espécie de "O Velho e a Selva" - e agora leio em vários textos Sepúlveda a convocar a admiração que tem por Hemingway, a confirmar, se necessário fosse, essa filiação. Mas é óbvio que baixei a crítica, estou mais sensível, velho - mas continuo a resmungar que um romance "amazónico" se espeta quando chama insecto a um escorpião (ou será que estou errado?).
 
Li depois "O General e o Juiz", textos de opinião de quando o juiz espanhol Baltazar Garzón tentou prender o já velho Pinochet, não só sumarizando a malvadez do ditador como irando-se contra os obstáculos que foram sendo levantados pelos Estados a esse julgamento - e o vieram a inibir. E mais três colectâneas de textos de opinião e algumas crónicas - "Histórias Daqui e Dali" (o mais interessante, em minha opinião), "Crónicas do Sul" e "Uma História Suja" -, mostrando o escritor empenhado e de verve solta. Mas com grande défice na ironia, pois constantemente a escorregar para o sarcasmo, furibundo quantas vezes, até cruzando o que se poderia antever - como quando resumiu Colin Powell a um "escurinho" que cantaria "spirituals" na Casa Branca ("Uma História Suja", pp. 115-116). São textos nos quais apresenta laivos de memórias do regime de Allende e a (triste) história chilena desde o golpe, entre factos da ditadura e protestos contra a urdidura constitucional que enquadrou a subsequente democratização do país, salvaguardando os implicados na repressão. Mas também as suas opiniões pessoais sobre o estado do mundo.
 
Entretanto comecei hoje o "A Sombra do que Fomos", romance com belo ritmo inicial, que me parece ser uma memória ficcionada dos tempos de Allende - mas vou mesmo no início, não posso afiançar. Promete... E depois seguir-se-á o último que tenho, "A Lâmpada de Aladino", conjunto de contos.
 
Antigo membro do PC chileno, miliciano de Allende, guerrilheiro sandinista, exilado na Europa, Sepúlveda tem nestes textos, escritos até cerca de 2010, um anti-americanismo -- anti-gringuismo, se se quiser -, típico da sua região de origem. É mesmo um olhar típico de região e de era: nas centenas de páginas que percorri em que vitupera EUA, a UE, os democratas europeus que não sejam da esquerda profunda (e para todos estes vai usando epítetos como "fascistas" ou similares) - ainda que se deixe louvar, em voz indirecta, pois por interpostas personagens, a social-democracia sueca -, elide o mundo comunista, tendo eu notado apenas uma referência à STASI. E para a considerar similar ao governo de Bush Jr... Ou o mais liminar "julgávamos que o mundo ficava melhor com a queda do Muro mas ficou pior" (cito de memória). Um tipo vai lendo isto e não  diz "não acredito". Porque sabe que era assim, uma enorme franja de intelectuais (e não só) pensou assim: décadas passaram a lamentar as vigentes e passadas ditaduras, os sofrimentos, torturas (e Sepúlveda alude as que sofreu e assistiu), assassinatos, censuras, etc. E depois as mesmas sensibilidades esqueciam os sofrimentos, afinal, vizinhos, sob os jugos comunistas, "camaradas". Um tipo de facto sabe que era assim. E que, não se deve esquecer, ainda é entre os escombros das "Internacionais", agora muitas delas feitas "identitaristas". 
 
Mas, apesar de tudo isto, vale bem a pena correr os textos de Sepúlveda. Para que não se esqueça a barbárie de Pinochet e dos seus congéneres de então. E para que sempre se refute o malvado aforismo "os nossos ditadores são melhores do que os dos outros", ou coisa parecida, que norteou (e vai norteando, ainda que menos do que antes) a "política real" de tantos Estados democratas.
 
E, após todas estas leituras, mais uma coisa: Sepúlveda era visita recorrente em Portugal. E morreu de Covid, após ter sido contaminado nas "Correntes de Escrita" no início da pandemia. Nessa época vários o invocaram, nas habituais eulogias, dizendo-o um homem interessante, simpático, cativante. Um tipo lê-o, vai discordando, resmungando, de vários dos textos opinativos - mas noutros percebe-o bem pertinente... E, acima de tudo, fica com a sensação que deve ter sido um gajo porreiro.
 
(Agradeço à equipa da SAPO o "destaque" feito a este postal)

Fala-lhes do sonho, Martin!

Pedro Correia, 26.08.23

Faz amanhã 60 anos, um reverendo baptista de baixa estatura e vontade inquebrantável, militante anti-racista, pronunciou um dos melhores discursos do século XX. Martin Luther King culminou a gigantesca marcha de Washington, que congregou cerca de 250 mil pessoas, com a última de dez intervenções proferidas nas escadarias do Memorial Lincoln - local emblemático por evocar o presidente norte-americano que libertou os EUA da escravatura e pagou com a vida por isso.

Falando perante aquele que era então o mais vasto auditório de sempre no seu país, com as três estações de televisão nacionais transmitindo em directo, King começou o discurso lendo um texto que levava escrito, mas - segundo reza a lenda - quando já havia muitas pessoas a dispersar naquela tarde de 28 de Agosto de 1963, a cantora Mahalia Jackson incentivou-o em voz bem audível: «Fala-lhes do sonho, Martin!»

Ele largou os papéis, passando a falar de improviso. Destes dois momentos conjugados nasceu um discurso extraordinário, pontuado de referências bíblicas (com citações do Salmo XXX, 5 e do livro de Isaías, XL, 4-5) em defesa da igualdade racial e em sonoro protesto contra todos os actos de discriminação de que os cidadãos americanos de pele negra continuavam a ser alvo um século após a guerra civil, sobretudo nos estados do sul governados por caciques do Partido Democrático.

«Sonho que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos esclavagistas serão capazes de se sentar à mesa da fraternidade. Sonho que um dia até o Mississipi, um estado que sufoca sob o calor desértico da injustiça e da opressão, se transformará num oásis de justiça e liberdade. Sonho que um dia os meus quatro filhos viverão numa nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo seu carácter», declarou King nesta obra-prima da oratória política, peça essencial para a promulgação da legislação que reconheceria direitos civis a todos os norte-americanos, promulgada dez meses mais tarde pelo presidente Lyndon Johnson.

 

James Reston, um dos mais categorizados jornalistas do New York Times, fez a cobertura do acontecimento, no qual John Kennedy, então inquilino da Casa Branca, chegou a pensar participar antes de ter sido fortemente dissuadido pelos seus conselheiros, receosos de que a marcha pelos direitos raciais degenerasse em tumultos na capital dos Estados Unidos. Mas Reston, apesar do seu inegável instinto jornalístico, não foi capaz de descortinar a força mobilizadora do discurso do futuro Prémio Nobel da Paz, tendo-lhe reservado um modesto 19.º parágrafo na peça de reportagem que o mais influente diário norte-americano dedicou no dia seguinte à memorável manifestação de Washington - prova evidente de que nem sempre o jornalismo está em condições de ser o primeiro rascunho correcto dos livros de História.

Em 2023, com tantas segregações ainda em vigor - de modo explícito ou implícito - nos mais diversos locais do globo, faz falta uma nova Mahalia Jackson a incentivar: «Fala-lhes do sonho, Martin!» E faz falta, acima de tudo, um novo Luther King, transformando a resistência passiva e a não-violência em poderosos instrumentos de combate cívico em defesa dos direitos humanos, com a sua retórica de profeta iluminado, capaz de mobilizar incontáveis multidões através dos continentes só com o poder da palavra.

Quando Bergoglio se tornou Francisco

Pedro Correia, 12.03.23

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Faz amanhã dez anos, ao fim da tarde, Jorge Mario Bergoglio surgia no balcão da Basílica de São Pedro: o sucessor de Bento XVI era apresentado ao mundo. Escolheu Francisco como nome oficial de dirigente supremo da Igreja Católica e Chefe do Estado do Vaticano. Simplesmente Francisco, sem numeração romana - deixando antever que não haverá outro com o mesmo nome depois dele. Em homenagem explícita a São Francisco de Assis, apesar de ser jesuíta.

Foi o primeiro Papa não-europeu em 1200 anos. Oriundo do continente americano - concretamente da Argentina, onde anteriormente se distinguira como cardeal de Buenos Aires. Nascido numa família de imigrantes italianos, iguais a tantas outras que demandaram aquele país para fugirem à pobreza ancestral da terra-mãe.

Assomou ao balcão, onde uma multidão estava reunida a aplaudi-lo e vitoriá-lo. De braços caídos e um ar algo perplexo, como se ainda mal estivesse refeito do peso que lhe caíra em cima após a já histórica renúncia do antecessor, impensável num Papa dos tempos modernos.

Esteve uns momentos em silêncio, contemplando aquele vasto grupo de fiéis. Depois vimos-lhe o rosto a abrir-se num sorriso largo. Disse de si próprio ser alguém que «vinha de longe», como qualquer peregrino. E pediu, com inesperada humildade, que rezassem por ele. Que todos rezássemos por ele, em qualquer recanto do planeta. 

 

Nascia ali o Francisco «pároco do mundo», como o designou a revista italiana Panorama numa feliz síntese do que tem sido o seu pontificado. Procurando seguir à letra, na sua acção pastoral, as palavras de Cristo no Sermão da Montanha: «Bem-aventurados os construtores da paz.» E as que ecoam há dois mil anos no Evangelho de Marcos: «Quem quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos.»

Quem não vive para servir, não serve para viver, como declarou em 2015 na visita pastoral a Cuba.

 

O mesmo Papa que Fátima já recebeu em 2017 e Lisboa se prepara para receber, de novo como peregrino, na Jornada Mundial da Juventude.

O mesmo Francisco que em Março de 2013 viu seis deputados do PS - Pedro Delgado Alves, Isabel Moreira, Elza Pais, Miguel Coelho, António Serrano e Mário Ruivo - juntarem-se a comunistas e bloquistas na recusa de um voto parlamentar pela sua eleição. Comprovando que o sectarismo e o extremismo podem irromper em qualquer bancada.

Trinta deputados no total - alguns revelando mais intolerância pelo representante máximo da religião com maior número de fiéis no globo do que pelo ditador da Coreia do Norte.

E o que dizia esse voto supostamente tão controverso? Apenas isto: «A Assembleia da República, reunida em sessão plenária, saúda o Estado do Vaticano, a Igreja Católica e todos os que professam a sua fé, pela eleição do novo Sumo Pontífice.»

 

«Mesmo para uma Europa desenvolvida e laica, o Papa Francisco é mais inspirador do que qualquer líder europeu», observou Teresa de Sousa no Público, naquele Março de 2013. Quando já era evidente o carisma de Bergoglio - evidente nos seus gestos despojados, no seu discurso claro, na sua capacidade de aproximação à pessoa mais comum. Dizendo que não há cristianismo sem comunidade, tal como não há paz sem fraternidade.

Com a força inequívoca do seu exemplo, digno de um genuíno discípulo de Jesus, Francisco inspirou e mobilizou crentes de todos os quadrantes geográficos nesta década do seu pontificado. E até muita gente que não partilha da sua fé.

Memória do grande exterminador

Estaline morreu há 70 anos após aniquilar 20 milhões de pessoas

Pedro Correia, 05.03.23

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«O maior dos prazeres é escolher a vítima, preparar o golpe, consumar a vingança e depois ir para a cama.»

Estaline

 

Faz hoje 70 anos, morria um dos tiranos mais execráveis que o mundo já conheceu. Estaline sucumbiu ao fim de quatro dias agonizante, vítima de trombose após um serão bem comido e bem regado na sua vasta mansão oficial, numa floresta a sul de Moscovo. Vivia ali como lobo solitário, protegido por uma bateria anti-aérea e um corpo de segurança pessoal composto por 300 homens.

Ninguém lhe valeu quando mais precisava.

 

Até ascender ao posto supremo do Estado soviético, onde se manteve durante quase três décadas, foi liquidando todos os rivais, um a um. Reza a lenda que na juventude, já como militante comunista, chegou a cometer homicídios. Na galeria de genocidas da História, poucos lhe disputarão a liderança: tem 20 milhões de cadáveres no cadastro. «A morte de um indivíduo é uma tragédia, a morte de um milhão é uma estatística», costumava dizer, no seu brutal cinismo.

Só entre Julho de 1937 e Novembro de 1938, ordenou pessoalmente a execução de 800 mil pessoas - num infame morticínio que passou à história como a Grande Purga. No seu delírio compulsivo, o tirano culpava aqueles que mandou liquidar a tiro de serem "inimigos do povo", "espiões a soldo de potências estrangeiras", "contra-revolucionários", "burgueses cosmopolitas" e outras imaginativas expressões da escolástica marxista-leninista.

 

Era o terror estalinista no expoente máximo: naqueles 17 fatídicos meses, o Estado soviético executou 1500 vítimas por dia, ao ritmo de um assassínio a cada 57 segundos. Adolescentes de 14 e 15 anos também recebiam a bala fatal. Dizia-se em Moscovo que a Lubyanka - sede da sinistra polícia política - «escorria sangue».

Dois terços dos 139 membros do Comité Central do PCUS - eleito no congresso de 1934, o chamado "congresso dos fuzilados" - desapareceram nesta voragem homicida. Em 1940, apenas sobreviviam dois dirigentes que figuravam com Lenine no Comité Central contemporâneo da revolução soviética de 1917: Alexandra Kollontai, na prática exilada como embaixadora na Suécia, e o próprio Estaline.

Lenine avisara no seu testamento político, em Janeiro de 1923: «Estaline é brutal, deve ser impedido de tomar o poder.» O fundador da URSS - eminente teórico do Estado como instrumento de repressão - conhecia bem o discípulo que se tornou seu sucessor. Sabia que o ex-seminarista georgiano jamais hesitaria em aniquilar quem pudesse ameaçar a sua obsessão pelo poder absoluto.

 

Desde a morte da segunda mulher, em 1932, Estaline foi-se isolando cada vez mais. Considerou uma "traição" aquele inesperado suicídio de Nádia, com um tiro no coração. Vingou-se na sua familia - e no povo soviético. Enviando milhões de perseguidos políticos para os campos de extermínio na Sibéria - o tristemente célebre "Arquipélago Gulag" onde se trabalhava 12 horas por dia, às vezes com 50 graus negativos, e se sucumbia de frio, fome, exaustão, doença e desespero.

Estaline mandou envenenar um cunhado em 1938 e enviou uma cunhada para o Gulag, acompanhada de uma sobrinha. Em 1941, deu ordem de execução a outro cunhado, irmão da primeira mulher.

Nada disto impedia que fosse glorificado por parte da intelligentsia ocidental da sua época, incensado por alguns basbaques diplomáticos (Joseph E. Davis, embaixador norte-americano em Moscovo, dizia que ele era o género de homem em cujos joelhos «uma criança gostaria de se sentar») e até por muitos imbecis já nascidos após a sua morte. No Portugal revolucionário de 1975 eram frequentes os comícios de partidos da extrema-esquerda em que se exibiam grandes retratos deste déspota, enaltecido como «libertador dos povos».

 

Encerrado em ambiente palaciano como os imperadores da era antiga, este autoproclamado "revolucionário" morreu como viveu quase sempre: mergulhado na solidão. E foi vítima dela. O escasso pessoal com acesso aos seus aposentos privados tinha estritas indicações para não perturbar o amo. Daí ter passado longas horas em agonia, sem que ninguém o socorresse naquela madrugada de 1 de Março.

Dos médicos que costumavam tratá-lo, todos haviam sido removidos pouco antes: o tirano, num delírio paranóico, convencera-se que tinham urdido uma conspiração para o liquidar aos poucos. Mandou prendê-los e alguns só escaparam à execução porque o sucessor de Lenine se finou primeiro.

Todos os ditadores, por mais cruéis que sejam, têm pequenas fragilidades. A de Estaline era o Concerto para piano n.º 23 de Mozart, sua peça musical favorita. Dizia-se que, ao escutá-la, se comovia até às lágrimas. Talvez a tivesse ouvido naquela noite em que tombou de vez no chão do quarto, condenado à fatal pena a que ninguém escapa, partilhando o destino com todos quantos mandou matar.

De luto pela Ucrânia

Pedro Correia, 24.02.23

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Foto: Maksim Levin / Reuters

 

O número de militares ucranianos que perderam a vida ao longo deste ano de invasão da Rússia pode ascender a 100 mil.

Pelo menos oito mil civis foram mortos. Outros números apontam para quase 30 mil.

Cerca de 13.300 civis feridos - números mínimos.

Pelo menos 487 crianças assassinadas.

Outras 954 feridas com gravidade.

«Nem o mais simples aspecto das vidas infantis foi poupado neste conflito», salienta a UNICEF, acrescentando que para elas este foi «um ano de terror». 

A percentagem de crianças a viver na pobreza na Ucrânia quase duplicou ao longo deste ano, passando de 43% para 82%. 

O número de refugiados ucranianos noutros países europeus ultrapassa já os oito milhões - o que corresponde a cerca de 20% da população do país, segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados.

Há neste momento cerca de 5,9 milhões de desalojados internos no país.

Milhão e meio de crianças ucranianas sofre de ansiedade, depressão, stress pós-traumático e outras doenças do foro psicológico.

Milhares de equipamentos civis foram arrasados na Ucrânia - incluindo escolas, infantários, creches, hospitais, enfermarias, maternidades, igrejas, conventos, teatros, museus, salas de concerto, oficinas, lojas e habitações.

O PIB da Ucrânia caiu 30,4% em 2022.

O défice orçamental do país pode registar uma acréscimo de 38 mil milhões de dólares em 2023.

Os prejuízos materiais causados pela agressão russa à Ucrânia ascendem já a mais de 750 mil milhões de dólares.

Os danos ambientais deste conflito ultrapassam 48 mil milhões de dólares.

No centenário de Saramago

jpt, 21.11.22

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(Encontro de escritores nas "Pontes Lusófonas", Maputo 1999- reportagem)

Na semana passada foi o centenário de Saramago e evoco quando o conheci em Maputo. No ano anterior ele recebera o Nobel. A atribuição coincidiu com a visita oficial de Guterres a Moçambique - à cidade haviam chegado 170 pessoas integrantes da comitiva! Um quarto de século depois lembro-me de como soube do prémio: na inauguração de uma exposição na Fortaleza de Maputo, inserida no programa dessa visita. Ali cheguei ao fim da tarde, a hora apropriada, e logo fui abordado por um pequeno grupo de quadros de instâncias culturais moçambicanas, os quais me deram efusivavamente os "parabéns". Julguei, até surpreendido, que me saudavam devido a algum sucesso que estivesse a acontecer no decurso da viagem dos nossos governantes. Mas não era isso, congratulavam-me pelo Nobel! - uma "glória nacional" que eu ainda desconhecia, após um dia embrenhado em múltiplos afazeres, naqueles tempos já tão recuados que ainda sem internet avulsa nem telemóveis.

Confesso que fiquei um bocado atrapalhado. Pois diante do até lendário Prémio o meu trabalho de então (numa cultura nacional literata como é a nossa, que presume mais necessário que se leia Cardoso Pires do que Hermínio Martins, para falar de contemporâneos) pressupunha que eu fosse um saramagófilo... Mas não o era. Filho do senhor meu Pai - que me legou todos os livros do escritor (ainda que nos seus últimos anos de vida me recomendasse "o Aquilino") - havia lido com muito agrado o "Levantado do Chão", com encanto o "Memorial..." e, depois, com o sempre recordado fastio dos meus 21 anos o "...Ricardo Reis". E a partir daí tinha largado todos os livros do autor que havia encetado, por pura impaciência. Decidi, ali mesmo e enquanto me fingia - copo na mão - um "connaisseur" da obra nobelizada, resolver o assunto. No final desse Outubro tive - apaixonado - a sorte de me casar. O furacão Mitch desviou-nos da almejada e já reservada Guatemala e fomos celebrar o acordo que nos viria a dar a Carolina para o Norte do Brasil - e aí, nesse amoroso contexto, preparei o meu regresso a Maputo lendo o "Todos os Nomes". Que, pura e simplesmente, abominei (uma palavrosa mescla de Borges e Kafka, resmunguei, porventura lá pelo Marajó...).

No ano seguinte Saramago aportou a Maputo, incluso numa enorme embaixada cultural portuguesa, as "Pontes Lusófonas", uma sobranceria institucional germinada naqueles tempos das "vacas gordas" que alimentavam os "desígnios" da lusofonia e que também queriam abrilhantar a então nóvel - e indiscutida - CPLP. O escritor logo percebeu a pesporrência de tudo aquilo, do tão "nós aqui para vos iluminar", e decidiu "partir a loiça", nisso distinguindo-se das dezenas de comparsas viajantes, apenas embrenhados nas suas agendas pessoais e encantos alienados. Assim, e com o recente Nobel às costas, decidiu recentrar as coisas, articular(-se) com as "gentes da cultura" de Maputo, saindo do programa oficial que lhe fora agendado.

Foi então arranjada uma sessão na sede da Associação dos Escritores Moçambicanos (a AEMO), no qual ele proferiria uma charla. Entretando eu havia-lhe sido apresentado, gentileza do seu editor Zeferino Coelho, ali também deslocado, e do Augusto Carvalho, o jornalista e professor há já muito em Maputo e do qual eu viria, poucos anos depois, a ser colega. E nisso havia acontecido uma bela conversa, informal e na qual lhe pude perceber uma característica evidente: a extrema acutilância, algo que o desencerrava de si mesmo, coisa que é muito mais rara em artistas e escritores do que se possa pensar, pois tendencialmente egocentrados, no que penso ser mesmo uma deformação profissional.

Enfim, não pude deixar de ir à sessão na AEMO. Para ouvir o Nobel enchera-se a casa, pejada de escritores, jornalistas, académicos e jovens literatos. Saramago entrou, afável, o já velho laureado explicitando estar ali apenas entre colegas, homem contido mas sem nada de altaneiro. E, totalmente de improviso - como me confirmou um dos seus próximos, num decerto que exagerado mas também verídico "é sempre assim!" -, falou durante mais de uma hora sobre aquilo de escrever e isto de ler. Dando depois azo a uma animada conversa - lembro que a Paulina se levantou e disse, com desapegado atrevimento, "eu também gostaria de um dia ganhar o Nobel" e talvez só ela (ou nem ela) pensasse então que "se calhar...", como poderemos dizer hoje. Em suma, Saramago falou e literalmente encantou(-me). E isto para além do sensibilizado que já estava eu, tendo-o antes ouvido criticar o modo de voo do nosso funcionalismo público e nisso percebendo-lhe a sensibilidade política que a tantos outros faltava. Um ano ou dois depois voltou a Maputo, para a apresentação do seu "A Caverna" e lá fui, até mesmo ao autógrafo, e a uma breve troca de palavras, claro que antecedida do "não sei se se lembra de mim, sou fulano de tal...", para receber em troca um piedoso "sim, claro, como tem passado por cá, e etc.". Mas esta simpatia e admiração não me tornou leitor, tendo continuado a não aderir aos seus livros. 

Há quatro anos a minha filha teve de ler o "Memorial" pois constava do seu currículo escolar. Bastante lida para a idade fomos conversando sobre o livro, e daquela forma barroca latina bem diversa dos Fitzgerald, Huxley ou Orwell que o currículo inglês lhe promovia (e do Greene e do Waugh que o pai lhe impingia). Eu lá lhe aludi à minha ambivalência face ao autor, talvez me tenha socorrido daquele "um dia tens de ler o Ballester" - sei lá porquê mas tenho a mania de associar os autores - ou outra coisa qualquer. Mas, e acima de tudo porque pouco tive para avançar sobre o livro, passado pouco tempo fui relê-lo, 35 anos depois!, tantos que até custa assumi-los.

Lá avancei na lide leitora, entre o recordar alguns traços e descobrir outros, acima de tudo saindo da trama - que decerto terá sido o meu interesse de leitor de 20 anos - para lhe procurar escavar o fundo ["a(s) mensagem(ns)", se se quiser] e a forma. E às tantas cheguei àquela parte em que o escritor inventa aquilo do povo trabalhador congregado ali em Mafra ter de avançar até ao que nós hoje alvitraremos ser Pero Pinheiro, na senda de uma enorme laje de pedra necessária para o convento. E se põe a imaginar esforços e cuidados, passos e paragens havidos em tal tarefa. E um tipo lê aquelas páginas e só pode dizer "que grande escritor. Gigante." 

Depois, claro, há uns tristes espíritos que resmungam umas ladainhas a seu propósito. Para quê ouvi-las, se nada encantatórias?

Um disco que é património nacional

Nos 40 anos de POR ESTE RIO ACIMA, de Fausto

Pedro Correia, 19.11.22

 

Faz hoje 40 anos, era posto à venda um dos melhores álbuns de sempre da música portuguesa: Por Este Rio Acima, de Fausto Bordalo Dias.

Banda sonora das vidas de tanta gente.

Da minha também.

A efeméride aqui fica assinalada. Com saudável e vibrante nostalgia, que nada tem de passadista. Embalada pela música e pelos versos deste belo disco que cedo se tornou património nacional.

 

Watergate 50 anos depois

Pedro Correia, 17.06.22

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Escândalo Watergate começou com um assalto a 17 de Junho de 1972

 

A minha geração foi irremediavelmente influenciada pelo caso Watergate. Sonhei ser jornalista precisamente porque Watergate aconteceu. Dissequei-o nos mais ínfimos pormenores e na minha galeria de heróis figuram não só o duo Bob Woodward-Carl Bernstein (Robert Redford-Dustin Hoffman, na excelente versão cinematográfica de Alan J. Pakula) mas também Ben Bradlee, o director que confiou no talento e na sagacidade dos seus repórteres, e Katharine Graham, a proprietária de jornal que soube mostrar-se imune a todas as ameaças. Incluindo as da Casa Branca, reforçadas pela grosseria de Richard Nixon.

Woodward e Bernstein, os jornalistas que revelaram aos americanos e ao mundo todas as implicações do caso Watergate, tornaram-se celebridades. Fala-se muito menos em Bradlee, que aceitou dirigir o Washington Post quando este era uma espécie de parente pobre na alta roda da imprensa norte-americana, sempre à sombra do mítico New York Times.

A verdade é que nenhum dos artigos de Woodward e Bernstein (a dupla que ele baptizou de “Woodstein”, nos longos serões de trabalho no jornal durante a revelação do escândalo que conduziria à demissão do presidente Nixon) teria sido possível sem a firmeza de Bradlee, que lhes deu destaque em sucessivas manchetes. Contra pressões de todo o tipo.

 

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Nas suas memórias, Bradlee relata-nos a odisseia do relançamento do Post, que à época era apenas o terceiro jornal mais vendido na capital americana. Ele arejou o grafismo, destacou a imagem, criou um suplemento chamado Style, que dava prioridade ao lazer, valorizou o espaço de opinião, criou um provedor de leitores (em 1969!) e deu novo impulso à reportagem. Bastando-lhe adoptar como lema a velha lição que recebera da professora da instrução primária: «O melhor possível hoje, melhor ainda amanhã.»

A qualidade foi sempre um objectivo a atingir. «A detecção de talentos nunca cessa num periódico», defendia Bradlee, «decidido a que cada jornalista fosse o melhor da cidade no seu ramo de actividade».

Este foi um dos segredos do sucesso do jornal, a par das normas de exigência postas em vigor. O Post deixou de usar a ambígua expressão «segundo as nossas fontes», instituiu a norma da verificação dos factos junto de duas fontes autónomas e recomendou aos seus repórteres que nunca esquecessem o sábio preceito de Camus, que também foi jornalista: «Não existe a verdade. Só existem verdades.»

 

Neste caso, a verdade jornalística contrariou em toda a linha a suposta verdade oficial. A partir de um assalto ao edifício Watergate, faz hoje 50 anos. Ali funcionava a sede nacional do candidato democrata George McGovern, rival nas urnas do republicano Nixon, que já formalizara a recandidatura à Casa Branca.

Parecia ser mero caso de polícia, com a detenção de cinco supostos larápios de meia-tigela, a tal ponto que a cobertura jornalística foi confiada a Woodward, jovem repórter que costumava frequentar esquadras à cata de novidades. Mas transformou-se num escândalo político em cascata que foi cercando o presidente. Em 17 de Novembro de 1973, já muito acossado, Nixon fez uma alocução televisiva em que declarou categoricamente: «I'm not a crook» [«Não sou vigarista»] Ninguém tomou esta declaração pelo seu valor facial, mas pelo seu oposto.

Nove meses depois, o inquilino da Casa Branca - o mais poderoso político do planeta - viu-se forçado a resignar ao cargo. Nunca antes tinha acontecido algo semelhante nos EUA, nunca aconteceu depois.

 

Dir-me-ão uma vez, dir-me-ão cem vezes: o caso Watergate é irrepetível. Mas quanto mais único, quanto mais insólito, quanto mais raro, mais me serve de referência. E continuará a ser o maior dos motivos por que um dia, já há muito tempo, decidi ser jornalista.

Ingenuidade, dirão talvez. Felizmente podemos ser ingénuos em qualquer idade.

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Dustin Hoffman (Bernstein) e Robert Redford (Woodward) no filme Os Homens do Presidente

Efemérides Sangrentas

jpt, 19.10.21

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Dia de efemérides. Passam hoje 35 anos sobre o incidente de Mbuzini, no qual morreu o presidente Machel e quase toda a sua comitiva. Vários amigos e conhecidos moçambicanos assinalam o facto nos seus murais de Facebook - alguns usando imagens do impressionante monumento idealizado pelo arquitecto José Forjaz para colocação no fatídico local. Acidente ou atentado?, continuam as dúvidas, as versões, as crenças, num processo de interpretação da história algo similar ao acontecido com a morte de Sá Carneiro e comitiva.
 
Por cá cumpre-se hoje o centenário do assassinato do primeiro-ministro António Granjo e de vários vultos da instauração da República, a dita "Noite Sangrenta", um dos momentos maiores do terrorismo político durante a I República, perpetrado pelo que se poderá dizer, sob anacronismo limitado, a "extrema-esquerda" terrorista de então. O Pedro Correia aqui no Delito de Opinião convoca o assunto.
 
O resto da sociedade, a corporação historiadora, os colunistas avençados, os "quadros" da função pública? Seguem fiéis militantes da higienização da I República, da produção da "amnésia organizada" sobre esse directo ascendente (republicano e maçónico) do poder socialista de hoje.
 
Nisso não só vigora o silêncio na imprensa. Mas também o popular, pois poucos (se alguns) se lembram de convocar o assunto nos seus murais. Há que preservar o mito da I República benfazeja. E para isso que faz o Estado, os seus oficiais mais importantes? Usa o dia do centenário deste brutal e tão significativo episódio para se congregar, sob o datado e anacrónico molde panteónico, em homenagem a Aristides de Sousa Mendes, morto há 67 anos, nascido a 19 de Julho e falecido a 3 de Abril. Ou seja, nem sequer há um qualquer vínculo simbólico quase inultrapassável para que a cerimónia decorra hoje.
 
Julgo que nunca tinha assistido a tão descarada manipulação da história política portuguesa. Agora venham-me dizer que é preciso derrubar a estátua do João Gonçalves Zarco. E fazer "introduções contextualizadoras" ao Frei João dos Santos...

 

Dez anos sem Maria José

Pedro Correia, 06.07.21

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Fui repórter parlamentar durante cinco anos. Nessa qualidade, em representação do Diário de Notícias, tive o privilégio de conhecer excelentes deputados - em todas as bancadas. Uma das pessoas que mais me impressionaram, desde os meus dias iniciais na Assembleia da República, foi Maria José Nogueira Pinto. Quis o acaso que tivesse sido ela a primeira representante parlamentar com quem falei para redigir a minha notícia número um no DN, em Janeiro de 1997.

Entrevistei-a várias vezes depois disso, nomeadamente quando se tornou a primeira mulher a liderar uma bancada parlamentar em São Bento, eleita pelo CDS. Numa dessas ocasiões, concedeu-me a entrevista na fascinante mansão familiar do Campo Grande, repleta de livros, memórias e múltiplas marcas de discreto requinte.

Era frontal, enérgica, culta, determinada, profundamente empenhada na vida pública e com elevados padrões de ética pessoal que fazia questão de transpor para a política. Era uma mulher de convicções firmes e dotada de um carácter muito forte, mas que sabia dialogar com quem se situava nos quadrantes ideológicos mais diversos. Tinha um talento inato para a escrita (tal como o marido, Jaime Nogueira Pinto), interesses que iam muito para além da esfera política (foi ela quem me recomendou que lesse as obras de Nélida Piñon, por exemplo) e uma paciência limitada para a mediocridade reinante nos estados-maiores partidários.

Mantive um gosto enorme em conversar com ela, mesmo quando abandonei o Parlamento. Porque havia sempre alguma coisa a aprender com Maria José Nogueira Pinto. E houve, até ao fim: a extraordinária coragem física e a dignidade de que deu provas enfrentando a terrível doença que acabou por vitimá-la constituiu admirável - embora doloroso - exemplo para todos nós.

Custa-me a crer, mas já passaram dez anos. Há pessoas que deixam um vazio impossível de preencher. Foi o caso dela. Pensei isso na altura e continuo a pensar assim.

Efemérides históricas ao tempo da formação de Portugal (18)

Cristina Torrão, 15.01.20

Como sabemos, e principalmente até ao século XIII, altura em que a escrita começou a ter um papel de maior relevo, muitos acontecimentos medievais ficaram mal documentados. Não se sabe, por isso, a data de casamento de D. Teresa de Leão com D. Henrique de Borgonha, uma união que alterou o curso da História Hispânica. Parece, no entanto, certo que este casamento se realizou na sequência da perda de Lisboa.

Afonso VI de Galiza, Leão e Castela Catedral Sant

Representação de D. Afonso VI na Catedral de Santiago de Compostela

Em 1093, D. Afonso VI, o pai de D. Teresa, recebeu, do rei mouro de Badajoz, as cidades de Lisboa e de Santarém e o castelo de Sintra. Em troca, o rei mouro contava com a protecção do imperador hispânico contra os almorávidas, uma casta berbere que tentava alcançar o poder na Península. Este tipo de alianças com os muçulmanos não era novidade para D. Afonso VI, a Reconquista foi um processo mais complicado do que, à primeira vista, se possa pensar.

D. Afonso VI colocou o território à guarda de seu genro, D. Raimundo, feito conde da Galiza, por casamento com D. Urraca, em 1091. D. Raimundo viu-se, assim, senhor de vastas posses, que incluíam a Galiza e Portucale, descendo até ao Tejo. Em fins de 1094, porém, Lisboa e Sintra foram perdidas para os almorávidas e o imperador, desiludido com o genro, separou o condado Portucalense da Galiza, entregando o primeiro ao novo genro, D. Henrique, originário da Casa Ducal de Borgonha. Sendo o mais novo de seis irmãos, D. Henrique não tinha direito a herança e procurou a sua fortuna na Hispânia, já que a rainha D. Constança, esposa do imperador, era sua tia. Assim se viu o jovem cavaleiro dono de um vasto território, maior ainda do que o do marido da filha legítima, circunstância só explicável pela grande desilusão que D. Raimundo terá causado ao sogro.

D. Henrique e D. Teresa terão, por isso, casado pouco depois da perda de Lisboa. O historiador Rui de Azevedo serviu-se de um diploma de Afonso VI para o mosteiro de S. Servando, datado de 13 de Fevereiro de 1095, para situar o casamento em Janeiro desse ano. Nesse diploma, os condes portucalenses surgem casados e a perda de Lisboa deu-se no Outono de 1094. Porém, segundo o Prof. Abel Estefânio (nota 10) esse documento «encontra-se actualmente redatado criticamente de 1098 ou 1099». Enfim, não havendo outras referências, achei que o mês de Janeiro seria uma boa altura para assinalar este matrimónio e as circunstâncias em que ocorreu.

Teresa de Leão em miniatura medieval de manuscrit

Miniatura medieval (pormenor) representando D. Teresa. Manuscrito gótico do mosteiro galego de Toxosoutos

(Arquivo Histórico Nacional, Madrid. Tumbo de Toxosoutos, fol.  6v.)

Santarém haveria de pertencer a D. Henrique até Maio de 1111, altura em que foi conquistada pelos almorávidas, fazendo recuar novamente a fronteira do condado Portucalense até quase ao Mondego, já que, entre Santarém e Soure, se estendia uma vasta terra de ninguém. Santarém, Lisboa e Sintra só seriam reconquistadas trinta e seis anos mais tarde, por D. Afonso Henriques.

Efemérides históricas ao tempo da formação de Portugal (17)

Cristina Torrão, 06.12.19

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Túmulo de D. Afonso Henriques na igreja de Santa Cruz, em Coimbra. © Horst Neumann

Não se sabe a data e o local de nascimento de D. Afonso Henriques, mas, quanto à sua morte, não há dúvidas: o nosso primeiro rei faleceu a 6 de Dezembro de 1185, em Coimbra. Se considerarmos as datas mais prováveis do seu nascimento, entre 1107 e 1110, ele tinha de 75 a 78 anos, o que representa um caso relativamente raro de longevidade, naquela época. E isto, apesar de D. Afonso Henriques ter vivido os seus últimos dezasseis anos bastante incapacitado.

Em Maio de 1169, o monarca terá sofrido um acidente grave na luta pela posse de Badajoz. Tinha à volta de 60 anos e não se sabe a verdadeira dimensão dos seus ferimentos. Nas crónicas medievais, há alusões a não se conseguir mover pelos próprios meios e parece certo que nunca mais tornou a montar. Este último aspecto é, porém, muitas vezes explicado com a promessa que teria feito ao genro, D. Fernando II de Leão, de não tornar a combater, o que aliás pode ser uma tentativa medieval de esconder a sua incapacidade física. A ser verdade a gravidade dos ferimentos e suas consequências, mais notável ainda é o facto de ter vivido ainda dezasseis anos, num tempo de cuidados médicos muito precários.

Afonso Henriques foi sepultado no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, no mesmo local em que a esposa, D. Mafalda (ou Matilde), já repousava há quase trinta anos. Depois de casar, a rainha D. Mafalda viveu apenas doze anos, falecendo na sequência do seu sétimo parto, a 3 de Dezembro de 1157 (curiosamente, quase coincidindo no dia com o marido). Dos sete filhos que teve, só três chegaram à idade adulta: o príncipe herdeiro, D. Sancho, e as duas filhas mais velhas, D. Urraca e D. Teresa.

A sepultura de D. Afonso Henriques, que se pode visitar na igreja de Santa Cruz de Coimbra, não é a original. Quase nada resta do primeiro edifício, construído no século XII, depois de D. Manuel I ordenar uma extensa reforma, reconstruindo e redecorando o mosteiro e a sua igreja, a partir de 1507. Nessa época, foram transladados os restos mortais de D. Afonso Henriques e de D. Sancho I dos seus primitivos sarcófagos para novos túmulos, os actuais, decorados em estilo manuelino.

RDA, 1949-1989

Pedro Correia, 09.11.19

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Tanques soviéticos esmagando a rebelião operária em Berlim-Leste, capital da República "Democrática" Alemã (17 de Junho de 1953)

 

O fim da ditadura. O fim da repressão. O fim do partido único. O fim das manifestações orquestradas a favor dos ditadores Ulbricht e Honecker. O fim do vergonhoso servilismo perante a União Soviética. O fim dos "crimes" de natureza política. O fim da sociedade de delatores, tão bem retratada nessa obra-prima do cinema contemporâneo que é A Vida dos Outros. O fim da proibição do direito à greve. O fim da proibição do direito à manifestação. O fim da imprensa amordaçada, submetida ao pensamento único do Partido. O fim da polícia política. O fim dos delitos de opinião. O fim da Stasi - a PIDE leste-alemã. O fim dos tiros disparados, na calada da noite, contra quem ousasse transpor a fronteira. O fim da perversão da palavra democracia, usada como emblema de um Estado que sempre a espezinhou.

Além do derrube do Muro, é também isto que hoje festejamos. O fim de um pesadelo que durou 40 anos.