O ensino da Antropologia
1. Neste estio muito se discutem as propostas governamentais de mudanças na lei de concessão de nacionalidade e na de autorização de residência a estrangeiros (resumidas aqui). Há especialistas que contestam a primeira - como o jurista Jorge Miranda. E o Presidente da República opor-se-á à segunda, algo perceptível na peculiar forma como a remete ao Tribunal Constitucional (como aqui demonstra Miguel Morgado). Noutro âmbito, o governo enfrenta a disciplina do ensino secundário Educação para a Cidadania (sobre a qual há uma consulta pública).
Sobre os assuntos impendem questões de técnica jurídica e pedagógica, e das filosofias que as subjazem. Ainda assim são matérias políticas, não monopolizáveis por uma tecnocracia. E a situação actual do seu debate resulta de anos de ineficiência estatal, do arrastar deste “um pé numa galera, e outro no fundo do mar”, o que legitima - se tal fosse necessário - o opinar dos leigos.
2. Entre tantos outros autores, já Umberto Eco anunciava em finais de XX que na Europa - tal como antes aconteceu na América - a coexistência com diversos feixes de migrantes é um fenómeno imparável “e nenhum racista, nenhum nostálgico reaccionário poderá impedi-lo” (Cinco Escritos Morais, Difel, 1998, p. 105). O ideal da aldeia de “irredutíveis gauleses (europeus)” glosado por Goscinny - esse genial francês, um filho de imigrantes italianos, já agora - é um mero mito de uma (falsa) Idade de Ouro, pois tão mescladas foram sendo as populações europeias ao longo da história.
Mas este processo de absorção demográfica pode e deve ser matizável, ordenado. No nosso país foi potenciado por uma descuidada - incompetente - legislação de 2017, contemporânea do esfacelamento de instituições estatais relacionadas com a matéria. Entretanto - paralela, independente e secundariamente - continua a debater-se com esdrúxulo afinco alguns conteúdos educativos de teor antropossociológico.
É evidente que estas diversas matérias, e os seus impactos na população, não vêm sendo pensadas pelos sucessivos governos e pelo “campo intelectual” nacional. Há um facto denotativo dessa irreflexão política - mesmo se pouco notado e se por alguns entendido como uma minudência: devido à polémica sobre a Educação para a Cidadania e ao afluxo imigratório, os temas de “família”, “género”, “sexualidade” e de “interacção cultural” (evito o poluído termo “multiculturalismo”) tornaram-se prementes no debate nacional.
Ora esses temas são o fulcro da Antropologia. Mas nunca houve - nem há - qualquer esforço governativo para a expansão do seu ensino no ensino básico e secundário. Uma disciplina autónoma está praticamente ausente no currículo nacional, com excepção de escassíssimas escolas que a têm como opção. E também inexiste a conjugação substantiva dos seus conteúdos especializados nos currículos de disciplinas mais abrangentes.
E muito mais significativo é o caso - absurdo - de aos licenciados em Antropologia estar praticamente vedado o acesso ao ensino. Pois, e ao invés dos licenciados em disciplinas aparentadas (as “ciências sociais”), os antropólogos não podem ensinar disciplinas de “Humanidades” e afins no 3º ciclo do ensino básico (7º/8º/9º ano) e no ensino secundário (10º/11º/12º ano). Estamos restringidos a ensinar no segundo ciclo (5º/6º ano), e apenas as disciplinas de Português (!!!, qual a razão?) e de Estudos Sociais (uma espécie de História). E tudo isto num contexto de proclamada escassez de docentes! Tal dever-se-á a inércia administrativa e alguma ignorância burocrática. Mas também a um vincado alheamento político - o último ministro que esteve realmente disponível para escutar as argumentações sobre esta matéria da associação profissional dos antropólogos foi David Justino. O qual foi ministro entre 2002 e 2004!!!!
Ou seja, o país tem um fluxo imigrante de dimensões inéditas, e concomitante incremento de diversidade “cultural” interna. E desde há anos vive uma polémica sobre o ensino de temáticas de sexualidade e, acima de tudo, sobre o âmbito da autonomia educacional da família. Mas profissionais cujo saber é especializado nessas matérias - os licenciados para o “olhar antropológico” - estão impedidos de intervir no Ensino. Não para “doutrinar” as novas gerações. Mas para transportar o seu olhar disciplinar, ilustrado. E não só sobre estes temas. Sem rebuço (sem “véu”, para falar como agora…), tudo isto é um verdadeiro e longo naufrágio intelectual da elite política. E da administração pública.
(Este postal é o preâmbulo - também conclusivo - de um texto longo que publiquei no meu blog "O Pimentel": "Nação & Sexo: um pé numa galera, e outro no fundo do mar".


