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Delito de Opinião

O ensino da Antropologia

jpt, 04.08.25

 

1. Neste estio muito se discutem as propostas governamentais de mudanças na lei de concessão de nacionalidade e na de autorização de residência a estrangeiros (resumidas aqui). Há especialistas que contestam a primeira - como o jurista Jorge Miranda. E o Presidente da República opor-se-á à segunda, algo perceptível na peculiar forma como a remete ao Tribunal Constitucional (como aqui demonstra Miguel Morgado). Noutro âmbito, o governo enfrenta a disciplina do ensino secundário Educação para a Cidadania (sobre a qual há uma consulta pública).

Sobre os assuntos impendem questões de técnica jurídica e pedagógica, e das filosofias que as subjazem. Ainda assim são matérias políticas, não monopolizáveis por uma tecnocracia. E a situação actual do seu debate resulta de anos de ineficiência estatal, do arrastar deste “um pé numa galera, e outro no fundo do mar”, o que legitima - se tal fosse necessário - o opinar dos leigos.

2. Entre tantos outros autores, já Umberto Eco anunciava em finais de XX que na Europa - tal como antes aconteceu na América - a coexistência com diversos feixes de migrantes é um fenómeno imparável “e nenhum racista, nenhum nostálgico reaccionário poderá impedi-lo” (Cinco Escritos Morais, Difel, 1998, p. 105). O ideal da aldeia de “irredutíveis gauleses (europeus)” glosado por Goscinny - esse genial francês, um filho de imigrantes italianos, já agora - é um mero mito de uma (falsa) Idade de Ouro, pois tão mescladas foram sendo as populações europeias ao longo da história.

Mas este processo de absorção demográfica pode e deve ser matizável, ordenado. No nosso país foi potenciado por uma descuidada - incompetente - legislação de 2017, contemporânea do esfacelamento de instituições estatais relacionadas com a matéria. Entretanto - paralela, independente e secundariamente - continua a debater-se com esdrúxulo afinco alguns conteúdos educativos de teor antropossociológico.

É evidente que estas diversas matérias, e os seus impactos na população, não vêm sendo pensadas pelos sucessivos governos e pelo “campo intelectual” nacional. Há um facto denotativo dessa irreflexão política - mesmo se pouco notado e se por alguns entendido como uma minudência: devido à polémica sobre a Educação para a Cidadania e ao afluxo imigratório, os temas de “família”, “género”, “sexualidade” e de “interacção cultural” (evito o poluído termo “multiculturalismo”) tornaram-se prementes no debate nacional.

Ora esses temas são o fulcro da Antropologia. Mas nunca houve - nem há - qualquer esforço governativo para a expansão do seu ensino no ensino básico e secundário. Uma disciplina autónoma está praticamente ausente no currículo nacional, com excepção de escassíssimas escolas que a têm como opção. E também inexiste a conjugação substantiva dos seus conteúdos especializados nos currículos de disciplinas mais abrangentes.

E muito mais significativo é o caso - absurdo - de aos licenciados em Antropologia estar praticamente vedado o acesso ao ensino. Pois, e ao invés dos licenciados em disciplinas aparentadas (as “ciências sociais”), os antropólogos não podem ensinar disciplinas de “Humanidades” e afins no 3º ciclo do ensino básico (7º/8º/9º ano) e no ensino secundário (10º/11º/12º ano). Estamos restringidos a ensinar no segundo ciclo (5º/6º ano), e apenas as disciplinas de Português (!!!, qual a razão?) e de Estudos Sociais (uma espécie de História). E tudo isto num contexto de proclamada escassez de docentes! Tal dever-se-á a inércia administrativa e alguma ignorância burocrática. Mas também a um vincado alheamento político - o último ministro que esteve realmente disponível para escutar as argumentações sobre esta matéria da associação profissional dos antropólogos foi David Justino. O qual foi ministro entre 2002 e 2004!!!!

Ou seja, o país tem um fluxo imigrante de dimensões inéditas, e concomitante incremento de diversidade “cultural” interna. E desde há anos vive uma polémica sobre o ensino de temáticas de sexualidade e, acima de tudo, sobre o âmbito da autonomia educacional da família. Mas profissionais cujo saber é especializado nessas matérias - os licenciados para o “olhar antropológico” - estão impedidos de intervir no Ensino. Não para “doutrinar” as novas gerações. Mas para transportar o seu olhar disciplinar, ilustrado. E não só sobre estes temas. Sem rebuço (sem “véu”, para falar como agora…), tudo isto é um verdadeiro e longo naufrágio intelectual da elite política. E da administração pública.

(Este postal é o preâmbulo - também conclusivo - de um texto longo que publiquei no meu blog "O Pimentel": "Nação & Sexo: um pé numa galera, e outro no fundo do mar".

Da Necessidade de Despedir Funcionários Públicos

jpt, 05.07.22

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Li ontem em cabeçalhos sobre a decisão de manter os jovens cujos pais impedem de assistir à disciplina de "Educação para a Cidadania" sob guarda escolar. Presumi que isso respeitasse ao horário lectivo - os miúdos não assistem às aulas mas teriam de ficar na escola, numa qualquer actividade extra-curricular, decisão normal, correcta. Mas afinal não é isso, percebo isso que o "Ministério Público" exarou uma proposta de retirar aos pais a tutela dos miúdos, entregando-a ao director e/ou psicólogo da Escola Secundária...! É absolutamente inenarrável, tenha-se a opinião que se tiver sobre o irredentismo paternal neste caso.
 
E por isso o título deste postal. O tal "Ministério Público" é um colégio de indivíduos. Entre eles, e sem exposição pública pois apenas aparece o nome da instituição, produziram esta proposta. Que é descabida de desproporcionada, que é persecutória. E que nunca se realizará mas dará imenso trabalho e despesas à família e a outras instituições estatais. Torna-se evidente que só a impossibilidade real de despedir os albergados na Função Pública é que permite uma proposta tão desatinada. Pois se se aquilatasse da pertinência laboral este(s) doutor(es) do "Ministério Público" seriam despedidos se produzissem tamanha patetice. Ou seja, teriam tino no seu trabalho.
 

O Regresso da Educação para a Cidadania

jpt, 08.11.21

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Devido a recente decisão jurídica voltou à berlinda o caso dos irmãos Rafael e Tiago Mesquita Guimarães - cujos encarregados de educação impedem de frequentar a disciplina liceal "Educação para a Cidadania" e que por isso se deparam com o intuito estatal de os reprovar. Em tempos já muito se escreveu sobre o assunto e não será necessário repetir argumentos [eu botei aqui o que penso sobre a algo desajustada disciplina]. Em relação às (improváveis) sanções que os alunos poderão sofrer julgo muito certeiro o que diz Henrique Pereira dos Santos no Corta-Fitas: se cumpre aos encarregados de educação prover à conclusão da escolaridade obrigatória (esta entendida como um direito inviolável das crianças) então essas hipotéticas sanções deveriam incidir sobre estes pais e não sobre os alunos que cumprem os ditames dos seus progenitores. Um pouco à imagem - salvaguardadas as óbvias diferenças - do que acontece em casos de precoce abandono escolar ou em casos de denúncias do corpo docente de indevidas práticas paternais que impeçam a consecução escolar. Mas julgo (e espero) que este é um novelo em que o Estado acabará por se retirar, cedendo a esta idiossincrasia familiar. Com a qual pouco simpatizo, independentemente do que penso da disciplina curricular em causa, pois muito me parece um finca-pé algo histriónico.

 

 

Educação (também) para o Desenvolvimento

jpt, 08.09.20

(Bianca Catasfiore - The Jewel Song)

"Ah je ris de me voir si belle en ce miroir..." [Ah, rio de me ver tão bela neste espelho] é o lendário refrão ... Desde 2015, feito torna-viagem, que quase todos os dias me lembro deste cume de Hergé. Pois um dos grandes problemas culturais de Portugal (o maior?) é mesmo o catasfiorismo dominante, a turba em ademanes, nos lavabos roncando trinados desafinados, cantarolando a perspicácia própria diante dos espelhos - em vez de retirarem os cabelos e pelos púbicos dos imundos ralos sobre os quais patinam.

Esta cena, minudência, da disciplina da Educação para a Cidadania e Desenvolvimento é mais um exemplo. Agora um coro de 500 cantores, mais a plebe ululante na plateia, vem guinchar que são belos nas suas doutas opiniões - entre os quais, no palco e em aplausos, um punhado de Catasfiores que eu conheço. Entretanto, agora mesmo, 7.9.2020, no final do telejornal da TVI (abençoado zapping) David Justino explicou pausada e competentemente tudo aquilo que é preciso pensar sobre o assunto - a reportagem sobre a matéria começa à 1.03.20 e a intervenção do antigo ministro da Educação começa à 1.05.40. E fê-lo apesar de repetidamente interrompido, em registo morcão, por Sousa Tavares.

De pouco servirá, as patetas e os patetas continuarão, em trinados, ciosos do que julgam sageza. Mas não é, é apenas o pouco que são.

Haddock, O Captain! My Captain ...

Ainda sobre a educação para a cidadania

Paulo Sousa, 06.09.20

Já depois de o assunto aqui ter sido postado e comentado, tropecei num desabafo no Facebook em que uma defensora da obrigatoriedade da frequência da referida disciplina se queixava de ter crescido numa aldeia católica, retrógrada e patriarcal e que sabia bem o que lhe tinha custado emancipar-se, acrescentando que: “O que teria sido de nós, sem uma escola pública aberta e democrática?” Quando comecei a ler esta frase achei que ia sair algo do género: “O que teria sido de nós, sem as aulas de Educação para a Cidadania?”

Ora se os efeitos de uma emancipação numa terra pequena como a descrita possam ser traumáticos, o que em certas combinações de comunidade e familia admito que o possam ser, isso, o trauma, não legitima que se possa ser hoje tão impositivo como impositivo era a situação anterior.

As mentalidades não se mudam de um dia para o outro a toque de decreto de lei e ameaça de polícia, antes pelo contrário. Será muito mais eficaz ambicionar por uma evolução serena e saber esperar. Não o fazer equivale a protagonizar um comportamento simétrico ao do radicalismo que se quer combater. Se as ideias que estão em causa são válidas e sólidas, o que não é o ponto do meu texto, acabarão por naturalmente se impor.

Educação para a Cidadania

jpt, 02.09.20

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Há uma polémica sobre a disciplina Educação para a Cidadania. Como a minha filha não estudou em Portugal não conheço o programa e a prática (ela teve, no currículo da Escola Europeia de Bruxelas, disciplinas congéneres excelentemente leccionadas que muito contribuiram para a fazer uma jovem muito informada e com uma consciência bem densa).

Assim, e por curiosidade, fui ver o programa disciplinar, esse que sustenta toda esta polémica. O portal da DGE está em baixo (oops, início de Setembro ainda por cima ...). Como tal restrinjo-me aos dados da televisão pública, RTP Ensina.

A primeira coisa que se percebe é que a disciplina veicula um conjunto de considerações que se esperam constitutivos dos valores estruturantes da prática individual. Ou seja, é mesmo uma espécie da velha "Religião e Moral" do Estado Novo, um seu sucedâneo. Não estou a dizer que é a mesma coisa. Mas que cumpre a mesma função pedagógica: explicitamente formar (formatar, como se diz agora) os valores dos indivíduos-cidadãos. Os que negam esta homologia apenas assentam os seus argumentos num "tem que ser", num dever-ser dos valores que são agora transmitidos. Concorda-se com os conteúdos transmitidos? Ok. Mas não podem chamar hereges, demoníacos, imorais ou mesmo até, e pior, ateus, aos que os recusam. E tal como eu, e outros, pude acabar o ensino secundário isento das aulas de Religião e Moral (dado o saudável e iluminado ateísmo do Senhor meu pai) sem que isso prejudicasse o meu desempenho em Ciências e Letras, também os de agora o poderão fazer - ficando um bocadinho mais morcões em alguns assuntos, presumo eu, mas paciência ...

A segunda coisa que eu retiro desta visão sobre o programa de Educação para a Cidadania é que o Estado, através do seu "aparelho ideológico" Escola, impregna os jovens com a mistificação das relações laborais exploratórias do sistema capitalista, introduzindo-os ao famigerado "Empreendedorismo", esse ícone do individualismo assente na falácia da meritocracia. Fico estupefacto e até indignado com a audácia ideológica da Escola portuguesa, com esta reprodução da mundivisão capitalista. E ainda mais surpreso fico com a ausência de crítica a esta insidiosa prática pedagógica. Onde estão agora as Raquel Varela deste país?

A terceira coisa que retiro (repito, apenas baseado nos recursos partilhados pela RTP Ensina) é uma grande ênfase na homossexualidade e seu casamento, e nas dimensões violentas (físicas e psicológicas) das relações amorosas, neste caso significadas como heterossexuais. Há apenas um filminho sobre a sexualidade juvenil, passível de não ser considerada exclusivamente homossexual, cujo texto inicia atribuindo-a a fenómenos naturais (as hormonas que saltam, etc.). Ou seja, no até vasto manancial de recursos sobre amor, sexualidade, conjugalidade, não há um filminho que seja sobre a beleza do casamento heterossexual (o antes dito "canónico"), nada o erege como "valor". Nem há - num país que tem uma baixissima taxa de natalidade, por vezes a menor da Europa - um capítulo nesta "Educação para a Cidadania", e com um filmezito qualquer, sobre puericultura, sobre a beleza da pater/maternidade. Não estou a falar da reprodução do mito do "Presépio" familiar. Mas sobre o veicular da dimensão de reprodução biológica enquanto espaço de cidadania. Nada mesmo ... Porventura porque os ideólogos do Estado pensarão que não cumpre ao Estado orientar valores sobre sexualidade ou vida familiar e afectiva? Decerto que não, pois muito do resto que ensinam incide sobre isso. De facto, o que o quadro geral da disciplina deixa perceber é uma visão enviesada das temáticas sociais prementes, segundo a ideologia identitarista em voga.

Um último ponto, já não advindo da consulta à RTP Ensina. Especulo, mas julgo provável que muitos dos professores desta disciplina, provenham de licenciaturas mais retóricas, humanidades ou ciências sociais. Convirá perceber que, ao que fui ouvindo e deduzindo ao longo dos anos, algum desse ensino superior é muito doutrinário. E será assim normal que matérias socialmente algo sensíveis sejam, por vezes, leccionadas por gente que foi doutrinada na sua formação e tenda à doutrinação. Mas aí o problema não radica na disciplina. Nem no ministério da Educação.

Enfim, pode-se dizer que é estúpido não querer que os filhos aprendam o que ali se ensina. Porventura sê-lo-á. Mas temos o direito de ser estúpidos. De não crer. E de não querer. Se eu tivesse miúdos a estudar em Portugal em vez de subscrever abaixos-assinados paroquiais preferiria gastar algum tempo, no lugar de ver o "Preço Certo" do simpático Mendes ou a "Quadratura do Círculo" da isenta comentadora Mendes, dedicando-me a matizar junto desses filhos alguns exageros "identitaristas" veiculados por qualquer furibundo setôr ...

O caso de Famalicão.

Luís Menezes Leitão, 02.09.20

Fiz a minha escola primária no Colégio Moderno onde nunca vi que se procurasse ensinar às crianças nada mais do que os conteúdos escolares habituais. Quando, porém, entrei no ciclo preparatório na escola oficial em 1973 descobri que existia uma disciplina de Religião e Moral, que me pareceu imediatamente uma disciplina diferente das demais, quer pelos conteúdos, quer pelo estilo de leccionação.

Embora tivesse apenas dez anos e tivesse tido uma educação religiosa na família, estranhei por isso imenso as aulas nessa disciplina. Soube, porém, que a disciplina não era obrigatória, podendo os alunos ser dispensados da frequência das aulas se o encarregado de educação fizesse um requerimento nesse sentido. Convenci, por isso, o meu Pai a elaborar esse requerimento, argumentando que, se fosse dispensado de assistir a essas aulas, teria mais tempo para estudar as outras disciplinas que me pareciam efectivamente importantes.

Levei assim com entusiasmo o requerimento assinado à escola, solicitando a dispensa da frequência dessas aulas. Ao contrário do que eu esperava, o requerimento foi, no entanto, recebido com imensa perplexidade, uma vez que parece que ninguém se tinha até então atrevido a exercer esse direito. A Professora perguntou superiormente o que deveria fazer, e o Conselho Directivo da escola reuniu de urgência sobre o assunto. No fim da reunião, informaram-me que o requerimento do encarregado de educação não era suficiente e que eu teria que continuar a frequentar as aulas até haver uma decisão final do Ministério da Educação. E assim, com imenso sacrifício, lá frequentei essas aulas, o que só confirmou a minha opinião sobre a sua inutilidade absoluta. Os tempos foram passando e acabei por me convencer de que o direito que eu tinha exercido para não frequentar essas aulas não iria ser reconhecido.

Só que, passado um mês, a Professora informa-me que o Ministério da Educação tinha deferido o requerimento e que eu afinal estava dispensado de frequentar as aulas de Religião e Moral. Imediatamente me despedi com imensa alegria de todos os Colegas, os quais ficaram furiosos por continuarem sujeitos a essa provação, enquanto eu era dispensado. Foi aí que aprendi que os direitos existem para ser exercidos, independentemente de os outros não quererem que o façamos.

Não faço a mínima ideia se a actual disciplina de Educação para a Cidadania constitui ou não uma situação semelhante à Religião e Moral do meu tempo. Sei, porém, que o art. 43º, nº2, da Constituição proíbe o Estado de "programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas". E que, perante uma disposição constitucional que toda a gente parece querer esquecer, houve alguém que a decidiu invocar. Só isso me parece meritório.