In memoriam
In memoriam
(ao Eduardo Nery)
Habitava um mundo estranho
povoado de divindades africanas
que ensaiavam as suas danças tribais
regidas pela batuta de Wagner
Era uma galáxia longínqua
num pátio de Lisboa
o reino do artista
Recebiam-me à porta
festivas buganvílias e Valquírias
tomadas da mesma vertiginosa exuberância
animadas pela mesma estética intemporal
natureza pura e fantasia humana
vegetação e som pulsando em uníssono
E tudo fazia sentido
um inexplicável sentido
um misterioso sentido
no reino do artista
Depois era preciso abrir caminho
sem medo de armadilhas
por entre graves sobas ancestrais
e feiticeiros de olhos penetrantes
a guarda real
do reino do artista
Passada a prova iniciática
esperava-me lá ao fundo um sorriso tímido
envolto em espirais de fumo
nascidas da volúpia de um cachimbo
Feliz entre tintas e pincéis
quadriculava a vida em cores vivas
e banhava-a de ouro no final
para que tudo fosse luz
no reino do artista
Eu levava-lhe palavras e silêncios
medidos sempre com mil cuidados
para não perturbar trompas e clarinetes de nibelungos
para não desafiar os deuses vodun na sua eterna vigília
para não profanar em vão
o reino do artista
Palavras e silêncios
eram tudo o que eu tinha para dar-lhe
Por lá ficaram
suspensos entre o Báltico e a costa do Benim
marítima deriva num pátio de Lisboa
o reino do artista.