Em tempos, a propósito de um programa da Rádio Observador, casquei em não sei quê do que disseram três economistas residentes. Um deles, um socialista com cujas opiniões antieuropeístas concordo, discordando de tudo o mais, não deve ter tomado conhecimento da minha objurgatória; outro, aliás outra, uma opinion maker com a qual simpatizo, não reagiu; e o terceiro, o mais próximo, provavelmente, das minhas opiniões, e portanto o mais sensato, encabritou-se por espaço de dois minutos no Twitter, levando a coisa para um plano pessoal completamente alheio aos meus propósitos, salvo numa leitura pouco atenta.
Um prof da especialidade, com quem me dou interneticamente muito bem, achou graça; um seu colega não ficou demasiado longe de me achar burro; e um amigo chegado, com óptima cabeça e aquela desgraçada formação, inteirou-me de que “deves ter alguma coisa contra os economistas”.
Tenho e acho que se deve ter porque é gente demonstravelmente perigosa: não há política económica moderna mal-sucedida que não seja inspirada por gurus daquela ciência oculta; e todos os desastres foram previstos por algum sacerdote da seita desdenhado pelos colegas, que todavia, com o prestígio adquirido, nunca mais acertou na previsão de coisa alguma. A despeito do recurso extensivo a disciplinas científicas ancilares, como a matemática, um dialecto próprio que com o tempo foi sendo desenvolvido, e uma produção de papers que não caberia na biblioteca de Alexandria, é tropa que não se entende: há economistas liberais de múltiplas declinações, social-democratas e socialistas de várias obediências, até mesmo (que Nosso Senhor, na Sua infinita misericórdia, lhes perdoe) comunistas à velha boa maneira e outros que, credo!, não são comunistas, apenas pretendem depurar o capitalismo dos seus defeitos e acabar com as desigualdades, de modo a que, já próximo da perfeição, lhe aconteça o mesmo que ao burro do escocês.
Exemplos de próceres destes clãs toda a gente conhece: Daniel Bessa é um liberal entre muitos; Cavaco era o exemplo acabado do social-democrata, tão completa e cegamente que, com geral admiração de quem sempre o admirou, continua a ser; Mário Centeno passa por socialista (talvez com algum exagero porque, provavelmente, nem o próprio chega a alcançar aquilo que é); de comunistas talvez o mais conhecido seja Eugénio Rosa, e o consagrado frei Anacleto Louçã é ainda o melhor exemplo do adepto da economia sem ricos, por causa da igualdade, mas com grandes taxas de crescimento da felicidade, um indicador bem mais justo do que o PIB.
(chamo-lhe “frei” porque a peça tem um palavreado intensamente untuoso, lá está, freirático; e porque paira sobre tudo o que diz uma espessa nuvem de superioridade moral – para frei Anacleto as pessoas de direita, isto é, as que assim define, são pecadores que ainda não viram a luz que lhe ilumina o coração amantíssimo).
Escolhi estes porque, tirando o comunista, são ou eram professores; e pensando coisas muitas diferentes têm sempre um grande cuidado, no discurso, em não ferir as susceptibilidades uns dos outros (“não ponho em causa a competência do professor xis, mas não terá porventura completa razão porque pérépépé”). É isso um claro sintoma de que estes clãs constituem uma tribo – a econotribo.
De longe em longe, aparece um adiantado mental que desperta entusiasmo – foi o caso, por exemplo, de entre os listados acima, de Cavaco, quando ainda era ministro das finanças de Sá Carneiro. O pobre homem veio a deixar marca, no seu futuro consulado, como coveiro dos restos do manicómio em autogestão que herdara, tendo ancorado o país firmemente à Europa e sobretudo aos seus fundos, a par do papel central do Estado na economia e na vida dos cidadãos – um legado deletério que nem o próprio nem a corte de apaniguados reconhece como tal.
Pois bem, apareceram agora dois economistas com um discurso relativamente inovador, ambos tendo despertado grande entusiasmo nas minhas hostes.
Um é Nuno Palma, que seguia há muito e a quem já me referi bastas vezes com geral aprovação. Palma é um historiador económico, e só posso esperar que os seus trilhos de investigação sejam aprofundados – conhecer e entender o passado é a maneira mais segura de evitar erros porque há pouca coisa de novo debaixo da roda do Sol.
Nuno despertou uma multiplicidade de reacções de mandarins da opinião, por ter tocado num nervo quando, incidentalmente, se referiu, de mais a mais num encontro partidário, ao Estado Novo como não tendo sido, do ponto de vista do desempenho económico, o desastre que a propaganda abrileira fez passar para a opinião pública como dado adquirido.
Já Ricardo Reis, numa notável entrevista, veio dizer sem ambages o que alguns dos seus pares – os mais lúcidos, num meio em que semelhante artigo escasseia – dão a entender com abundância de quiquiquis, mas a coisa tem sido razoavelmente silenciada.
Percebe-se porquê: a opinião de esquerda atacaria o moço sem contemplações se este não estivesse protegido por credenciais académicas estrangeiras impecáveis e uma carreira invejável lá fora. O quê, os americanos, que são o sal da terra, respeitam este tipo? Tem de ser muito bom. E como o muito bom diz coisas inconvenientes o melhor é não as amplificar. Já a opinião de direita, em se tratando de próceres da Academia, também não tem grande interesse em promover o estrangeirado, não vá ele lembrar-se de regressar: cá no torrão lugares não há muitos.
Palma, benza-o Deus, tem outro tipo de protecção: historiadores falam do passado, que não interessa a ninguém, portanto pode-se-lhes bater; com ideias para o futuro é que temos a burra nas couves.
Que diz então Reis? Identifica três razões para a nossa estagnação: i) Impostos excessivos; ii) Má alocação de capital; iii) Empresas zombie.
Diz bastante mais, é claro, e coisas que valem a pena. Sucede porém que nisto, que é o essencial, discordo de um terço.
A referência a empresas zombie não é uma novidade: numa definição, são empresas que, ao longo de mais de uma década de existência, não geram lucros suficientes na sua actividade regular, dependendo persistentemente de crédito bancário. Isto, segundo a literatura pertinente desta moda de pensamento, tem como efeito diminuir a produtividade por sector, além de encorajar a sobrevivência no mercado de firmas ineficientes, uma vez que o acesso “fácil” a crédito bancário lhes permite continuar a sua actividade. Esta mobilização de recursos, por sua vez, diminui o crédito disponível para empresas viáveis, dificultando o seu crescimento e a continuidade das que existem, e impossibilitando o nascimento de inovadoras e mais produtivas.
Este discurso assenta obviamente no pressuposto de que os bancos não sabem o que andam a fazer ꟷ quem sabe são os académicos, os mesmos que enxundiam os quadros da entidade de supervisão e, frequentemente, dos próprios bancos. E, a julgar pela história recente destes, poder-se-ia legitimamente achar que é assim – bancários são gente que, efectivamente, não sabe o que anda a fazer.
Sucede que não saberão, talvez, cabendo porém lembrar que o caso particular do BES (que apoiou sem dúvida empresas zombie) não ilustra uma qualquer inépcia de gestão, mas antes jogos de poder, incluindo o poder político, além de complicadas relações familiares, também elas de poder. Correu mal, mas se formos lá atrás o que vamos encontrar é uma reprivatização assente em muita vontade e pouco capital – o PREC deixou sombras compridas. Isto para não falar da crise de 2008, espoletada por uma bolha no imobiliário que chegou cá porque às nossas praias, e às de quase todo o mundo desenvolvido, chega o lixo todo. Porque os bancos americanos apoiaram empresas zombie? Não, porque apoiaram zombies propriamente ditos, impingindo-lhes casas que não poderiam pagar se alguma coisa abanasse, como abanou.
Fizeram-no por causa dos prémios de gestão e porque a sustentabilidade das organizações cedeu o passo à eficiência, medida em resultados que esqueceram a prudência.
Não se permite que haja na gestão bancária, provavelmente por boas razões, o instituto falimentar do mesmo tipo que existe para as empresas comuns. Aliás, os bancos não são firmas, são instituições crescentemente reguladas. E não é portanto razoável esperar que sejam particularmente bem geridos, até porque um dos mecanismos para isentar os decisores de responsabilidades pelo que corre mal é colectivizar as decisões, diluindo-as em colégios de pessoas albardadas de sólida formação académica, sobrando-lhes normalmente em teias de aranha teóricas o que lhes falta em experiência.
Mesmo com todas estas limitações, quem decide emprestar pretende um ganho. E esse, ao contrário do que pode caber na cabeça esquemática de um académico, pode estar mais na empresa suficiente do que na muita boa – a muito boa tende a discutir o preço, esmagando as margens, e a suficiente (na realidade portuguesa esta, e não a outra, é que é frequente) pode, com uma adequada avaliação de risco, proporcionar muito maiores ganhos.
A treta da produtividade do sector significa pouco porque, sendo aritmeticamente inegável que se as empresas com pior desempenho forem eliminadas a média sobe, isso não nos garante que o que se perdeu acresça automaticamente para quem ficou, incluindo os postos de trabalho. Por exemplo, se umas empresas exportadoras num determinado sector forem relativamente débeis o seu encerramento pode beneficiar apenas concorrentes estrangeiros; além do que, com frequência, o melhor desempenho tem mais a ver com políticas de marketing ou outras que afectam o numerador, sem tocar na produtividade material dos bens produzidos, o que significa que o mercado passará apenas a pagar mais por menos. Num exemplo paralelo, cabe lembrar que o salário mínimo português, que está demasiado perto do médio, sinal seguro de disfunção, passaria a estar menos no caso de, sem mais, despedir um número suficiente de trabalhadores com aquele salário mínimo, mantendo os outros, coisa que aliás parece ter sucedido recentemente por causa do aumento do desemprego na restauração. Uma evolução positiva, portanto, segundo indicadores acéfalos, excepto para os desempregados.
De resto, ou se acredita no mercado ou não: este fará a selecção pelos melhores critérios, que são os que resultam da soma das escolhas dos agentes individuais. Falta de dinheiro para emprestar não parece que haja: se, armados de paciência, formos ouvir um quadro de topo de um banco, é fatal como o destino que este, inclinando a cabeça ponderosa, murmure com gravidade que dinheiro há, o que falta são projectos com qualidade. E enquanto se espera pelos tais projectos vai sobrando financiamento para automóveis, férias e electrodomésticos, mais fácil de obter do que, por exemplo, para leasing de máquinas industriais, coisa que não estou absolutamente certo de que se tenha conhecimento nos think tanks de americanices.
Pretender que decisões de gabinete, em obediência a métricas discutíveis, são o melhor piloto para orientar políticas de crédito, sem mais, e que as empresas mais eficientes não podem por si liquidar as menos eficientes, desafia, entre outras coisas, o senso e a experiência.
E isto dando de barato que os instrumentos contabilísticos para fazer estas análises são fiáveis (não são, uma das falhas mais gritantes das análises financeiras é a crença na comparabilidade dos balanços e contas de empresas nacionais, com completo descaso do campo de minas que é o plano de contabilidade, as suas incidências fiscais e a capacidade que têm aqueles documentos para traduzir a verdadeira situação das empresas).
Carlos Pereira da Cruz, um consultor de gestão que respeito muito e que acima linquei, diz há muito: Deixem as empresas morrer.
Também digo. As que estão moribundas, desde que com a condição certificada por médico competente e não por um distante director do hospital. Sem isso, e se fosse gestor bancário, pensava duas vezes antes de liquidar uma empresa. Preferiria diminuir lentamente a exposição, subindo entretanto ao preço. Isto, claro, se, sendo CEO o professor Reis, lhe conseguisse explicar que a realidade portuguesa não é bem a que imagina. Talvez ao fim de algum tempo, inteligente como é, já não precisasse de explicação alguma.
Publicado no Observador